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O movimento anti-Renoir

Para Max Geller, o pintor Pierre-Auguste Renoir é péssimo. Ele acha que Renoir é tão ruim, mas tão ruim, que criou uma conta no Instagram com o nome Renoir Sucks at Painting (em tradução livre, algo como Renoir é uma droga como pintor), que angariou fãs pelo mundo até se tornar um movimento, com direito a manifestações em portas de museus com cartazes dizendo coisas como “Deus odeia Renoir”. Sua demanda: remover pinturas do francês das paredes dos museus. Max é o primeiro a admitir que usa humor em suas ações, mas por trás da fachada cômica tem uma crítica de verdade. O Renoir Sucks at Painting quer, na verdade, discutir a diversidade nas artes plásticas.

Como exemplo, ele cita o Brasil, com seus museus construídos numa terra “roubada por colonizadores europeus, que hoje penduram arte europeia que nem é tão boa dentro deles”. “Especialmente no contexto do Brasil, Renoir Sucks at Painting é uma acusação contra o eurocentrismo”, afirma. “O movimento pode ser tão sério quanto você está disposto a levá-lo. Acho que falar sobre quem vai a museus e quem fica de fora é muito importante. Não é uma piada. Não é uma piada falar de como mulheres e pessoas que não são brancas são mal representadas. Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”

[olho]”Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”[/olho]

Outros pintores brancos e europeus poderiam ter sido escolhidos para representar o movimento, Max confessa. Mas há algo de especial em Renoir, em sua opinião. Os dedos que ele pinta parecem tentáculos, a pele das pessoas é cadavérica e ele retrata mulheres da mesma forma como pinta flores e prédios. “Ele literalmente objetifica as mulheres. Ele não dá a elas nenhum tipo de agência, elas só existem sob seu olhar masculino e isso é uma droga”, afirma. Também critica a participação de Renoir no projeto colonizador francês. “Ele foi para a Argélia e voltou com quadros que mitificam e facilitam a dominação colonial. Isso é uma bosta. E é uma bosta também porque seus cenários parecem vegetação podre e não árvores.”

Tirar todas as obras de Renoir de circulação é uma meta surreal e não é isso que o movimento almeja. “Um objetivo realista é incluir pessoas que costumam ficar de fora das conversas. Não estou interessado em ser o cara que diz ‘esse Renoir é ok’ e ‘esses cem são péssimos e não deviam estar em museus’. Eu quero democratizar a conversa sobre arte e incluir mais vozes. Especialmente vozes que não são de homens brancos descendentes de europeus”, diz.

A repercussão do movimento o surpreendeu. Semanas atrás era só um cara com uma conta no Instagram, e agora diz ter falado com mais de 200 pessoas de países diferentes sobre suas ideias. Há grupos em diferentes cidades americanas organizando suas próprias manifestações e Max conta ter visto recentemente uma foto de um protesto em Tel-Aviv, em Israel, em que pessoas reclamavam de Renoir e dos museus voltados à arte europeia. “É um problema no mundo todo, com colônias importando arte da Europa como monumento à dominação ocidental. Não é bom, na minha opinião.”

Um dos motivos para os grandes museus exibirem tanta arte de homens europeus, em sua opinião, é que as pessoas que tomam essas decisões não representam todos na sociedade. “Não somos fortes o suficiente para forçar diretores de museus a contratar tipos de pessoas diferentes, mas somos fortes o suficiente para fazer nossa presença sentida. O ato de protestar em museus e aumentar a conscientização a respeito do acesso a eles é o primeiro passo.”

Protesto do Renoir Sucks at Painting na frente do Met, em Nova York
Protesto do Renoir Sucks at Painting na frente do Met, em Nova York

MERITOCRACIA

Nem todo o mundo vê o movimento com bons olhos. Uma herdeira de Renoir, por exemplo, deixou um comentário pouco amistoso em dos primeiros posts de Max no Instagram. “Quando seu tataravô pintar qualquer coisa que valha US$ 78,1 milhões (o que seria US$ 143,9 milhões hoje) você vai poder criticar. Enquanto isso, dá pra dizer que o livre mercado falou e Renoir NÃO é uma droga como pintor”. “Ela ficou muito chateada e usou, na minha opinião, um argumento muito insano sobre o livre mercado. O que, pra mim, foi ótimo”, conta Max.

Ela não foi a primeira nem a última a dizer que devemos deixar o mercado livre para decidir o valor das coisas e que,se Renoir está nos museus, é porque merece e o mercado reconheceu. “Acho ótimo que essa seja a melhor resposta que os críticos tenham, porque é patético. Olhe ao seu redor. Se você ler o jornal hoje vai ver que todas as histórias terríveis que estão lá foram causadas pelo livre mercado”, diz. “Não é uma surpresa que as pessoas que escolham os indicados ao Oscar sejam majoritariamente brancas. Da mesma forma, não é uma surpresa que os curadores de museus sejam majoritariamente homens. É um problema estrutural. É racista e misógino dizer que é uma questão de mérito e não de acesso.”

Outros dizem que pedir para tirar Renoir dos museus é uma forma de censura. Ninguém poderia afirmar que algo não merece estar exposto. “Censura é uma questão de poder e o movimento literalmente não tem nenhum. Não estamos em posição de censurar. Eu acuso os museus de censurar arte que não seja de um europeu. Porque eles podem colocar outro tipo de arte lá e não colocam. Somos um movimento que tenta pressionar museus a serem mais inclusivos.”

Ok, mas e o valor histórico? Supondo que se concorde com as posições do Renoir Sucks at Painting, não valeria a pena manter as pinturas de Renoir na parede pelo que elas representam na história da arte? Max reflete. “Não estou dizendo para tirarmos toda a arte europeia dos museus. Digo que devemos pensar melhor no que vai nas paredes. Tem que ter menos, mas não tirar tudo. Alguns museus têm 15 Renoirs. Pra que tanto? Especialmente quando eles não têm nenhum quadro de mulher ou de um negro.”

Seus planos são ousados. Além de continuar os protestos nas portas de museus, o movimento quer começar uma campanha de financiamento coletivo para tentar comprar um quadro de Renoir e queimá-lo ao vivo. Sério? “Tentar fazer isso vai levar a uma discussão que estou interessado em ter. Conseguir comprar a pintura não é tão importante quanto dar início a essa conversa”, afirma. “Você tem que entender, se eu pareço ambicioso é porque semanas atrás eu só tinha um perfil no Instagram e agora isso deu a volta ao mundo. O céu é o limite.”

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A crise de 2008 para leigos

A certa altura de “A Grande Aposta”, alguém faz um comentário super complicado sobre economia e o personagem de Ryan Gosling diz algo como: “Esse papo faz você se sentir burro ou entediado? Bem, é esse o objetivo. Wall Street adora usar termos confusos pra você achar que só eles conseguem fazer o que fazem”. A crise de 2008, para quem não acompanhou com atenção ou estava mais preocupado com o nascimento dos gêmeos de Angelina Jolie e Brad Pitt e a greve dos roteiristas americanos, é um pouco assim. Todo o mundo sabe que ela aconteceu, alguns sabem mais ou menos como ela aconteceu e nem tantos sabem realmente como foi. “A Grande Aposta” desenha para você entender.

Baseado em um livro de Michael Lewis, cujos textos inspiraram também “O Homem que Mudou o Jogo” e “Um Sonho Possível”, o filme conta a história de alguns personagens reais que perceberam antes dos outros que a bolha imobiliária iria estourar e ficaram ricos com isso. Pela sinopse não parece, mas é uma comédia — afinal, o diretor é Adam McKay, de “O Âncora” e ex-roteirista do “Saturday Night Live” — e tudo é feito para facilitar. Quase um “a crise de 2008 para leigos”.

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Christian Bale em 'A Grande Aposta'
Christian Bale em ‘A Grande Aposta’

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O filme, que estreia em janeiro no Brasil, tem três núcleos principais que não conversam um com o outro. Christian Bale é Michael Burry, um investidor que trabalha descalço e de bermuda enquanto escuta rock num volume altíssimo, e o primeiro a perceber que a crise era inevitável por fazer algo que ninguém tinha feito antes: olhar o que estava acontecendo. Antecipando-se ao estouro da bolha, começou a apostar contra o mercado imobiliário, comprando em diferentes bancos uma espécie de seguro para caso as hipotecas que todos os americanos faziam não fossem pagas — para a alegria dos banqueiros, que acreditavam que o mercado imobiliário era o mais seguro de todos.

Ryan Gosling é Jared Vennett, funcionário de um banco que descobre o que Burry está fazendo, vê que aquilo tudo faz sentido e leva a informação para Mark Baum (Steve Carell), que também começa a apostar contra o mercado. Por fim, dois jovens investidores (Finn Wittrock e John Magaro) leem o plano de Vennett e também entram na jogada, com a ajuda do ex-banqueiro Ben Rickert (Brad Pitt, produtor do filme). Os protagonistas fazem uma aposta arriscada e é normal torcer para que eles vençam. Só que como Rickert aponta, se eles ganharem boa parte do país vai perder suas casas, suas economias, suas aposentadorias. Não tem mocinhos ali.

É possível entender a trama com zero conhecimento de economia, até porque McKay é didático. Depois de algumas cenas mais complexas, celebridades aparecem em diferentes situações explicando os termos para leigos. Margot Robbie (“O Lobo de Wall Street”) toma um banho de espuma enquanto toma champanhe, Selena Gomez joga blackjack num cassino e Anthony Bourdain reaproveita peixes velhos em seu restaurante enquanto explicam conceitos de economia. Mas como a explicação vem depois das cenas complexas, ajuda ir para o cinema com uma base mínima do que aconteceu.

Em termos bem (bem) simples, o que Burry descobre é que muita gente havia financiado suas casas nos Estados Unidos sem ter condições de arcar com empréstimos. Os bancos americanos juntavam diversas hipotecas em pacotes com vários níveis de risco e as vendiam para investidores. As mais seguras rendiam menos juros, mas mesmo assim tinham um retorno bom. Empolgados, começaram a emprestar mais e mais dinheiro para quem quisesse comprar casas, mesmo sem entrada ou garantias de que essas pessoas pudessem pagar. Burry percebeu que isso não poderia durar e investiu mais de 1 bilhão de dólares num seguro contra a inadimplência. Enquanto o calote não acontecesse, ele deveria pagar altos prêmios aos bancos. Mas quando a bolha finalmente estourasse, ele ficaria rico.

O que aconteceu todo o mundo já sabe: Burry estava certo, cada vez mais pessoas deixaram de pagar seus empréstimos e entregaram suas casas aos bancos, a oferta de imóveis cresceu, o valor de cada um deles caiu, bancos e investidores se viram com um monte de batatas quentes nas mãos e a economia quebrou. No fim das contas, o governo americano salvou os bancos da falência, deixando a população que perdeu tudo arcar com as consequências. Os protagonistas do filme se dão bem, mas não tem final feliz.

Imagens reais (fotos, clipes musicais, vídeos) são misturadas às descobertas devastadoras que os personagens fazem: casas abandonadas por pessoas que não conseguiram pagar suas dívidas, gente com vários empréstimos ao mesmo tempo, vendedores inescrupulosos de hipotecas, que nem se preocupavam em explicar as cláusulas aos clientes, agências de risco que avaliavam investimentos de risco como seguros. Havia problemas em todas as engrenagens do sistema e, sete anos depois, muita gente já se esqueceu deles. McKay não quer que as pessoas se esqueçam. É um filme político, quase educativo, mas sem ser chato.

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Cultura

A surpresa e o óbvio no Globo de Ouro

Acompanhar as indicações do Globo de Ouro para a televisão é sempre uma surpresa. Diferente do Emmy, em que é mais ou menos fácil prever a lista, o prêmio, que divulgou hoje (10) seus candidatos, é mais favorável a séries iniciantes, às vezes troca quase todos os indicados em uma categoria de um ano para o outro e olha com carinho para as séries originais dos serviços de vídeo sob demanda — e não só para as já figurinhas fáceis “House of Card”, “Orange Is the New Black” e “Transparent”.

Nesse ano não foi diferente. Foi um bom ano para o Netflix. “Narcos” concorre a dois dos prêmios principais: melhor série de drama e melhor ator em série de drama, com Wagner Moura (grande surpresa, mas infelizmente ele disputa com o favorito Jon Hamm, pelo fim de “Mad Men”). “Master of None” e “Better Call Saul” tiveram seus protagonistas, Aziz Ansari e Bob Odenkirk, indicados a melhor ator. “Orange Is the New Black” tem duas indicações, “House of Cards” e “Grace & Frankie”, uma. Até no cinema o Netflix foi indicado, com Idris Elba disputando o prêmio de melhor ator coadjuvante. Quase todas suas séries foram contempladas.

A Amazon também foi surpreendentemente bem. “Transparent” já é barbada, costuma concorrer e ganhar em todas as premiações de TV. Neste ano não foi diferente e tem a chance de repetir os prêmios de 2015 de melhor série de comédia e melhor ator em série de comédia e ainda concorre em melhor atriz coadjuvante. Mas nesse ano o serviço ainda conseguiu duas indicações para a pouco comentada “Mozart in the Jungle”, protagonizada por Gael García Bernal. E talvez a maior surpresa de todas: “Casual”, série do Hulu, também concorre a melhor série cômica.

É uma felicidade ver “Modern Family”, “The Big Bang Theory”, “Homeland” ou Maggie Smith (boa, mas chega, né?) completamente fora da disputa. Ou mesmo não ter ganhadores do ano passado, como a série “The Affair”, a atriz Ruth Wilson (da mesma série), ou Kevin Spacey (“House of Cards”). O Globo de Ouro fez escolhas menos óbvias, indicando “Scream Queens”, “Crazy Ex-Girlfriend”, “The Grinder”, “Blunt Talk” e “Mr. Robot”. Até Lady Gaga disputa um prêmio, como atriz de filme para a TV ou minissérie, por “American Horror Story: Hotel”.

Como todo bom prêmio, o Globo de Ouro também cometeu algumas injustiças. Indicar “Game of Thrones”, em sua pior temporada, no lugar de “Mad Men” é um insulto. “UnREAL”, uma das melhores estreias do ano, ou “The Americans”, que teve um ano incrível, seriam alternativas melhores. E se era para escolher um medalhão, que fosse “House of Cards”. “Game of Thrones” não fez por merecer. E quantas personagens Tatiana Maslany tem que interpretar para ser indicada pela série sobre clones “Orphan Black”? Na comédia, “Master of None” e “You’re the Worst” mereceriam uma indicação como melhor série também. Mas o Globo de Ouro é tão louco que quem sabe eles entrem no ano que vem.

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Leonardo DiCaprio em 'O Regresso'
Leonardo DiCaprio em ‘O Regresso’

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NA GRANDE TELA

No cinema, a situação se inverte um pouco e as surpresas são poucas. Como na maioria das categorias tem uma divisão entre filmes de comédia e de drama, quase todos os favoritos encontram uma vaga. Jennifer Lawrence, por exemplo, foi ignorada pelo sindicato de atores pelo filme “Joy”. Mas como as favoritas (Brie Larson, Cate Blanchett e Saoirse Ronan) vão se digladiar na disputa no drama, ela tem boas chances na comédia (Amy Schumer e Melissa McCarthy são algumas das concorrentes). Nessas categorias ainda tem o fato de que Oscar e Globo de Ouro discordam em relação a que prêmio certas atrizes devem disputar. No Oscar, Rooney Mara (“Carol”) e Alicia Vikander (“A Garota Dinamarquesa”) vão tentar como coadjuvantes, onde têm mais chance. No Globo de Ouro, concorrem ao prêmio principal mesmo.

O mesmo acontece na disputa de melhor ator. Matt Damon, até essa semana onipresente na lista de favoritos a ganhar uma indicação ao Oscar pelo sucesso “Perdido em Marte”, ficou de fora pelo sindicato dos atores. Como ator de comédia, também tem grandes chances, favorecido pelo fato de que Steve Carell e Christian Bale podem se anular na briga ao concorrer pelo mesmo filme, “A Grande Aposta”.

Talvez o grande esnobado tenha sido Johnny Depp, por “Aliança do Crime”. É o tipo de papel perfeito para premiações: envolve uma transformação física, é uma história real e ele interpreta um psicopata. Ficou um pouco mais fácil para Leonardo DiCaprio, que pode finalmente ganhar seu Oscar em 2016 (seu papel também é perfeito para prêmios, já que ele comeu fígado cru de bisão e dormiu pelado na carcaça de um animal). Outra ausência: “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, considerado candidato a uma indicação ao Oscar, não entrou na lista de filmes estrangeiros.

Pensando no número inclusivo de candidatos, talvez a lista de melhor diretor seja a mais significativa, já que une as duas categorias em uma só. Lenny Abrahamson, de “O Quarto de Jack”, e David O. Russell, de “Joy: O Nome do Sucesso”, por exemplo, ficaram de fora e perderam o lugar para George Miller, de “Mad Max: Estrada da Fúria”. De qualquer forma, tem sido raro o diretor vencedor do Globo levar o troféu no Oscar — Richard Linklater, que ganhou por “Boyhood” neste ano, que o diga.

Com todo o mundo incluído, a lista de indicados ao Globo de Ouro no cinema não é muito polêmica e nem é o melhor termômetro para o Oscar. Nem os resultados significam muita coisa, aliás, já que frequentemente os resultados das premiações divergem (DiCaprio tem dois Globos de Ouro, por exemplo). De qualquer forma, o prêmio é divertido. Com os atores bebendo em mesas grandes, como num casamento, e apresentadores com menos medo de forçar a barra nas piadas, o Globo de Ouro é uma ótima parada na longa temporada anual de premiações.

 

Jacob Tremblay e Brie Larson em 'O Quarto de Jack'
Jacob Tremblay e Brie Larson em ‘O Quarto de Jack’

A lista completa de indicados:

CINEMA

FILME DE DRAMA
“Carol”
“Mad Max: Estrada da Fúria”
“O Regresso”
“O Quarto de Jack”
“Spotlight – Segredos Revelados”

FILME DE COMÉDIA
“A Grande Aposta”
“Joy: O Nome do Sucesso”
“Perdido em Marte”
“A Espiã que Sabia de Menos”
“Descompensada”

DIRETOR
Todd Haynes, “Carol”
Alejandro Iñárritu, “O Regresso”
Tom McCarthy, “Spotlight – Segredos Revelados”
George Miller, “Mad Max: Estrada da Fúria”
Ridley Scott, “Perdido em Marte”

ATRIZ EM DRAMA
Cate Blanchett, “Carol”
Brie Larson, “O Quarto de Jack”
Rooney Mara, “Carol”
Saoirse Ronan, “Brooklyn”
Alicia Vikander, “A Garota Dinamarquesa”

ATRIZ EM COMÉDIA
Jennifer Lawrence, “Joy: O Nome do Sucesso”
Melissa McCarthy, “A Espiã que Sabia de Menos”
Amy Schumer, “Descompensada”
Maggie Smith, “A Senhora da Van”
Lily Tomlin, “Grandma”

ATRIZ COADJUVANTE
Jane Fonda, “Youth”
Jennifer Jason Leigh, “Os Oito Odiados”
Helen Mirren, “Trumbo”
Alicia Vikander, “Ex-Machina: Instinto Artificial”
Kate Winslet, “Steve Jobs”

ATOR EM DRAMA
Bryan Cranston, “Trumbo
”
Leonardo DiCaprio, “O Regresso”
Michael Fassbender, “Steve Jobs”
Eddie Redmayne, “A Garota Dinamarquesa”
Will Smith, “Um Homem entre Gigantes”

ATOR EM COMÉDIA
Christian Bale, “A Grande Aposta”
Steve Carell, “A Grande Aposta”
Matt Damon, “Perdido em Marte”
Al Pacino, “Não Olhe para Trás”
Mark Ruffalo, “Sentimentos que Curam”

ATOR COADJUVANTE
Paul Dano, “Love & Mercy”
Idris Elba, “Beasts of No Nation”
Mark Rylance, “A Ponte dos Espiões”
Michael Shannon, “99 Homes”
Sylvester Stallone, “Creed: Nascido para Lutar”

ROTEIRO
Emma Donoghue, “O Quarto de Jack”
Tom McCarthy, Josh Singer, “Spotlight – Segredos Revelados”
Charles Randolph, Adam McKay, “A Grande Aposta”
Aaron Sorkin, “Steve Jobs”
Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”

FILME DE ANIMAÇÃO
“Anomalisa
”
“O Bom Dinossauro”
“Divertida Mente”
“Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme”
“Shaun: O Carneiro”

CANÇÃO ORIGINAL
“Love Me Like You Do”, “Cinquenta Tons de Cinza”
“One Kind of Love”, “Love & Mercy”
“See You Again”, “Velozes & Furiosos 7”
“Simple Song No. 3”, “Youth”
“Writing’s on the Wall”, “007 Contra Spectre”

FILME ESTRANGEIRO
“The Brand New Testament”
“The Club”
“The Fencer”
“Cinco Graças”
“O Filho de Saul”

TELEVISÃO

SÉRIE DE DRAMA
“Empire”
“Game of Thrones”
“Mr. Robot”
“Outlander”
“Narcos”

ATOR EM SÉRIE DE DRAMA
Jon Hamm, “Mad Men”
Rami Malek, “Mr. Robot”
Wagner Moura, “Narcos”
Bob Odenkirk, “Better Call Saul”
Liev Schreiber, “Ray Donovan”

ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA
Caitriona Balfe, “Outlander”
Viola Davis, “How to Get Away With Murder”
Eva Green, “Penny Dreadful”
Taraji P. Henson, “Empire”
Robin Wright, “House of Cards”

SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
“Casual”
“Mozart in the Jungle”
“Orange Is the New Black”
“Silicon Valley”
“Transparent”
“Veep”

ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Rachel Bloom, “Crazy Ex-Girlfriend”
Jamie Lee Curtis, “Scream Queens”
Julia Louis-Dreyfus, “Veep”
Gina Rodriguez, “Jane the Virgin”
Lily Tomlin, “Grace & Frankie”

ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Aziz Anzari, “Master of None”
Gael García Bernal, “Mozart in the Jungle”
Rob Lowe, “The Grinder”
Patrick Stewart, “Blunt Talk”
Jeffrey Tambor, “Transparent”

MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
“American Crime”
“American Horror Story: Hotel”
“Fargo”
“Flesh & Bone”
“Wolf Hall”

ATOR EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Idris Elba, “Luther”
Oscar Isaac, “Show Me a Hero”
David Oyelowo, “Nightingale”
Mark Rylance, “Wolf Hall”
Patrick Wilson, “Fargo”

ATRIZ EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Lady Gaga, “American Horror Story: Hotel”
Sarah Hay, “Flesh & Bone”
Felicity Huffman, “American Crime”
Queen Latifah, “Bessie”
Kristen Dunst, “Fargo”

ATRIZ COADJUVANTE EM TV
Uzo Aduba, “Orange Is the New Black”
Joanne Froggatt, “Downton Abbey”
Regina King, “American Crime”
Judith Light, “Transparent”
Maura Tierney, “The Affair”

ATOR COADJUVANTE EM TV
Alan Cumming, “The Good Wife”
Damien Lewis, “Wolf Hall”
Ben Mendelsohn, “Bloodline”
Tobias Menzies, “Outlander”
Christian Slater, “Mr. Robot”

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Sertão em ritmo de HQ

Criado em São Paulo, Homero Olivetto passava os verões com os avós em Aracaju, no Sergipe, ouvindo histórias do cangaço e de Lampião. Enquanto estudava em Salvador, ouvindo mangue beat, escreveu 20 anos atrás um conto que mistura suas experiências por essas diferentes cidades do Brasil. Em 2006, transformou a história no roteiro do filme de ação “Reza a Lenda”, uma história do sertão embalada numa roupagem bem pop. “É um universo de história em quadrinhos”, tenta explicar Cauã Reymond, o dúbio protagonista Ara.

Os primeiros minutos do filme, com estreia prevista para janeiro, são uma síntese do que vem pela frente. Duas amigas viajam à noite por uma estrada de terra no Nordeste, quando cruzam com um bando de motoqueiros perseguidos pela polícia. As motos passam zunindo pelas laterais do carro, a motorista consegue desviar de uma viatura, que capota e pega fogo, mas colide com a outra. É um filme de ação. Em seguida vem um letreiro explicativo. Reza a lenda, diz o texto, que a imagem de uma santa seria capaz de fazer chover no sertão ao ser colocada no lugar certo. Existe um bruxo que sabe dizer onde está a tal santa e para onde ela deve ser levada. Mas para que ele revele seus segredos, é necessário pagar um preço. É também um filme sobre fé.

Ara é um menino órfão quando conhece Pai Nosso (Nanego Lira), líder religioso que quer ver o milagre da santa e reúne um grupo de crianças, a quem ensina sobre a fé, para realizar a missão. Já na pele de Cauã, Ara integra o tal grupo de motoqueiros armados que rouba a santa do poderoso Tenório (Humberto Martins) depois de assassinar boa parte de seus capangas. Tenório — cujo pai matou sua mãe, fez buchada com suas tripas e serviu o prato a um grupo de convidados — não deixa barato e, para achar a gangue, deixa uma trilha de mortos em seu caminho, e amarra pedaços de seus corpos em balões de São João. Tanto Ara quanto Tenório são religiosos e nenhum dos dois hesita em matar em nome da santa.

Ao duelo dos dois se soma um triângulo amoroso, que envolve Severina (Sophie Charlotte), parte do grupo de Ara e Pai Nosso, e Laura (Luisa Arraes), sobrevivente do acidente de carro que inicia o filme mantida como refém pelos motoqueiros. Mas nem de longe é um filme romântico. Tem quase mais cenas de sexo na terra seca do sertão do que diálogos (“É o personagem mais silencioso que já fiz”, diz Cauã).

LADO POP

Segundo Homero, o filme é todo construído com base na realidade, em pesquisas feitas no local. “A seca existe, as estradas estão lá, as motos substituíram os cavalos. O lado pop da coisa é muito mais de linguagem do que o que está sendo contado. O que está sendo contado é real, é o que está lá. Mesmo a parte estética, como a roupa dos motoqueiros, foi construída a partir do tempo que a gente passou lá”, diz o diretor. “A gente colocou uma lente das nossas referências pop e ampliou. Foi essa a brincadeira que a gente fez. Era importante estar baseado na realidade pra criar essa fantasia. Até pra humanizar os personagens, pra entender as escolhas deles.”

O cenário é o sertão, mas o ritmo do filme muitas vezes lembra uma história em quadrinho ambientada na cidade. A trilha sonora, por exemplo, é bem urbana. “Ela tem uma função narrativa, porque eu queria fazer um sertão fantasioso e moderno. Queria tentar mostrar um lado diferente”, diz Homero. “A ligação afetiva que eu tenho do sertão como as minhas referências de paulistano, onde fui criado, me deram a ideia de fazer essa mistura. Me pareceu bem normal, orgânico”, conta. “Achei o máximo poder fazer um filme tão diferente. É novo. Não lembro de nenhum filme assim no Brasil”, diz Sophie.

Cauã e Luisa passam boa parte do filme montados numa moto que cruza o terreno deserto — ela quase sempre sem capacete na sua garupa. O ator tirou a habilitação para poder pilotar a moto, mas diz que “não adiantou muito”. “Logo que a gente começou a filmar eu tomei um tombaço. O pé ainda dói um pouco. Adoro moto, mas sou super medroso. Hoje em dia, tomar um tombo e ficar três meses parado pra mim é impossível, devido à rotina de trabalho que a gente tem.”

Numa conversa com jornalistas depois da exibição do filme, alguém pergunta se ele e Luisa precisaram de dublês. “Na hora que a moto empina sou eu. Mas a Luisa sem capacete não é ela, é outra pessoa”, brinca Cauã. “Tive que confiar muito na autoescola que ele fez”, responde a atriz. “Eu me lembro até hoje de um momento engraçado. A gente estava filmando num posto de gasolina e eu tinha que dar a volta e entrar na cena. A Luisa estava na minha garupa e eu falei: ‘tá preparada?’. E ela: ‘tô, né’. Aí eu botei a moto em vruuuuum, cento e pouco por hora. Estava me sentido o máximo. Me senti incrível, pilotando naquela velocidade com ela, seguro. Quando tirei o capacete ela bateu no meu ombro e disse: ‘e aí? Tá com a autoestima boa agora?’. Eu estava me exibindo”, conta ele, rindo. “Foi divertido.”

Para Cauã, as cenas de ação e violência são puro entretenimento, como numa história em quadrinhos. E defende as ações de seu personagem até o fim. “Vejo o Ara como um personagem criado numa situação extremamente árida, passando muitas dificuldades com esse líder que é o Pai Nosso. Um cara preparado pra tudo, pra trazer a chuva pro sertão, pra acabar com a seco. Ele está disposto a tudo, até porque foi a forma que ele aprendeu”, avalia.

Sophie Charlotte em 'Reza a Lenda'. Crédito: Divulgação
Sophie Charlotte em ‘Reza a Lenda’. Crédito: Divulgação

DA BABILÔNIA AO SERTÃO

Humberto Martins (“Nosso Tommy Lee Jones”, diz Cauã) não é tão positivo em relação a seu personagem. Solicitado a descrever Tenório, o ator tem bastante a dizer:

“Sou um cara de certa forma crente. É claro que a gente tem que ter bastante, vamos dizer, esperança, porque sem esperança a gente não atinge nada. Mas sou muito pragmático com relação à realidade do ser humano, do planeta Terra. Desde o que eu entendo de história, falei isso pra um repórter agora, desde a antiga Babilônia, Pérsia, aí veio o reino grego, Roma, entre outras coisas, vejo que a humanidade está muito mal administrada pelos seus governantes, pelas pessoas de poder, que são responsáveis pelas nossas vidas, pelo que acontece no cotidiano das nossas vidas. Esse filme retrata no Tenório uma base de consistência totalmente existencial, além do tempo, atemporal, desses governantes, dessas pessoas de poder que pensam muito em si, no ego. O Tenório acha uma afronta roubarem a santa dele, um desrespeito, ao prestígio, a tudo que ele exerce. Tudo dentro do ego”, diz.

“Eu vejo que a gente evolui muito em tecnologias, tecnologia medicinal, tem coisas boas nas evoluções humanas e científicas, de conhecimento do planeta, do que devemos fazer. Estamos vivendo um momento muito, muito preocupante e decisivo pra nossa humanidade, em todos os sentidos. Esse filme vem de uma forma muito conveniente no momento. Vejo ele dentro de uma realidade possível, muito possível. Daqui um tempo isso acontecer dentro dos Estados, você tá entendendo? Daqui a pouco até um Estado começar a brigar com o outro pelo recurso que o outro tem. Não vejo isso muito longe, não. Da maneira que vai. Principalmente no Brasil, onde os recursos são ignorados através dos nossos governantes. Vejo que ele tem uma pegada humanitária, política, muito forte”, continua.

“O Tenório é um cara que quer se manter no poder. Ele mantém a santa como uma… Ele acredita, é claro. Também, ele não tem outra coisa em que acreditar. Ele foi criado assim. Acho que ele é um protótipo do DNA formado pelo pai, que é um bárbaro. Tudo isso se impregnou dentro dele, por isso ele toma essas atitudes até impensadas, porque está dentro da genética dele. Todos somos assim, cópias da nossa criação, desde onde viemos. Cientificamente provado, não sou eu que estou dizendo isso, não. Dentro desse princípio ele justifica tudo o que faz. Dentro dessa involução que eu vejo dos poderosos desde a antiga Grécia, que se constitui até hoje. Pode até ter boa intenção em tudo, tentar um reservatório novo de água, não sei o quê. Mas o ego prevalece. O ego, a arrogância, a prepotência”, afirma.

“Esses garotos da motocicleta são heróis que resolvem confrontar esse poder máximo, você tá entendendo? Essa é a grande esperança que eu acho que pode existir. Tenório é um ser muito ignorante. Ele acredita na religião pela religião que foi formada da sua cidade, da vida, da sua área, da sua terra, pelo pai, a mãe e tal, não sei o quê. Mas ele não tem um conhecimento profundo sobre isso, sobre isso e a humanidade, o que isso representa, Deus, essas coisas. Ele não tem. É o cultural muito baixo. Muito baixo conhecimento que ele desenvolve na sua postura de vida”, diz.

“Ele comete essas atrocidades apenas pelo ego e pela vaidade de querer mostrar a força e confrontar friamente. O Nordeste sempre foi uma terra violenta dentro desses interiores. De famílias matarem as outras a tiros para tomar a terra das outras e se tornarem ricos assim. Lembro quando fiz ‘Gabriela’, estudei muito sobre isso. Era assim que eles tomavam a fazenda dos outros, na marra mesmo. Matavam até os descendentes pra não sobrar nenhum. Tem um pouco dessa cultura na região, violenta. Do espaço já ser difícil, da procriação de gado, de plantio, tudo. O que predomina no ser humano, que é a sobrevivência”, finaliza.

Cauã Reymond o interrompe para brincar sobre uma possível sequência do filme: “Humberto, você acha que no ‘Reza a Lenda 2’, se Deus quiser que tenha o dois, o Marcinho vem com tudo, então, porque ele é bem mau?”. “Marcinho?”, pergunta Humberto. “É, seu filho [do personagem]!” “Sim, vem na genética”, ri Humberto. “Sem spoiler!”, pede Homero.

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O estranho Natal de Bill Murray

O que você acha do Bill Murray? Talvez essa seja a única pergunta que importa para decidir se vale ou não a pena assistir ao especial de Natal de Sofia Coppola com o ator, “A Very Murray Christmas”, que estreia hoje no Netflix. Se você o ama, possivelmente vai gostar de vê-lo cantar durante quase uma hora. Se não, é provável que apenas ache o programa estranho.

O Netflix começou a diversificar sua oferta de produções originais com séries faladas pelo menos em parte em espanhol e elenco latinoamericano, como “Club de Cuervos” e “Narcos”. Mesmo assim, uma parte significativa do seu conteúdo próprio praticamente só tem apelo para o público americano — ou pelo menos pouco apelo para o público brasileiro. É o caso de vários especiais de stand-up com comediantes pouco conhecidos por aqui e do especial de Natal.

No programa, Bill Murray é contratado para fazer um show natalino ao vivo na televisão americana, com vários convidados ilustres — passando por George Clooney, Paul McCartney e o papa Francisco — na plateia. Só que uma nevasca em Nova York impede que aviões pousem, carros circulem e estações de metrô funcionem. Ninguém aparece no local e Murray quer desistir. Suas produtoras, Amy Poehler e Julie White, o obrigam a se apresentar. A partir daí, o programa é uma viagem.

São muitos convidados (Miley Cyrus, George Clooney, Maya Rudolph, Michael Cera, Rashida Jones, Chris Rock, a banda Phoenix…) em cenas cujo único sentido é fazer todos cantarem músicas natalinas tradicionais nos Estados Unidos. Algumas apresentações, como a de Miley Cyrus, são boas. Outros convidados não cantam tão bem e fica a dúvida: era pra ser bom ou era pra ser engraçado? (Ver Clooney cantando não faz rir, mas pelo menos é curioso.)

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Bill Murray com George Clooney e Miley Cyrus
Bill Murray com George Clooney, Paul Shaffer e Miley Cyrus

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A trama, se é que se pode chamar de trama, é bem solta: no hotel em que sua apresentação está marcada, Murray se sente solitário, quase triste. No bar, conversa com cozinheiros, garçons, e tenta reunir um casal que brigou no dia de sua festa de casamento, à qual ninguém foi. Em certo ponto, Murray começa a sonhar e aí a história passa a fazer menos sentido ainda. Mas a intenção nunca foi fazer uma trama consistente. Segundo Sofia Coppola, que escreveu um depoimento sobre o especial para o site Vulture, o programa não era pra ter lógica mesmo.

Ela queria prestar uma homenagem aos antigos especiais de Natal na televisão americana, em que vários convidados aleatórios, principalmente músicos, participavam de uma trama sem sentido, como quando David Bowie e Bing Crosby cantaram “Peace on Earth” e “Little Drummer Boy” em 1977 ou programas com os Carpenters e Dean Martin. Para ela, esse tipo de especial remetem a uma memória afetiva, de sua infância.

“Eram memórias vagas de como era ser criança, como cápsulas do tempo — Dean Martin parece queimado de sol, como se tivesse acabado de andar no seu conversível. Não quero ser mal-educada falando algo de sua qualidade, mas eles eram divertidos de ver”, escreveu ela. “Acho que a mágica do show business se une com a das festas de fim de anode um jeito legal. Adoro o sentimento não linear, sem lógica, de que tudo pode acontecer, e as músicas que aparecem do nada. Foi ótimo olhar para esse modelo e fazer nossa versão exagerada disso.”

Coppola resume bem o que é o especial do Netflix. Para quem o Natal traz esse tipo de memória, pode ser legal assistir a uma versão daquilo com atores e cantores que fazem sucesso hoje em dia. “A Very Murray Christmas” é pouco comum, diferente dos outros programas que estão no Netflix. É uma mistura de melancolia, humor e nonsense. Mas não dava para esperar algo muito diferente disso vindo do ator.

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Cultura

Entre os muros da escola de música

Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.

O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.

Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.

 

Coral do Instituto Baccarelli
Coral do Instituto Baccarelli

O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”

Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.

Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.

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FOGO EM HELIÓPOLIS

No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.

Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.

Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.

Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.

Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.

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DEDICAÇÃO TOTAL

Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.

Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.

Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.

Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.

Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”

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Música

A máquina de hits

O que “Everybody”, dos Backstreet Boys, “…Baby One More Time”, de Britney Spears, “Roar”, de Katy Perry, e “Shake It Off”, de Taylor Swift, têm em comum? Todas têm na lista de autores um mesmo nome: Max Martin. O sueco, único compositor na lista dos 50 melhores da revista Rolling Stone a ter construído uma carreira a partir dos anos 90, é uma máquina de fazer hits. Tanto que, neste ano, Justin Bieber declarou não sentir que “ligar pro Max Martin e pedir pra ele te escrever um hit” é fazer música de verdade. Para muitos cantores pop hoje em dia é assim que funciona: em busca de um novo sucesso, procura-se Martin — que costuma entregar o que promete.

Max Martin é o mais bem-sucedido de um pequeno grupo de compositores e produtores da Escandinávia por trás de grande parte dos maiores hits das últimas décadas. Seu mentor, o também sueco Denniz PoP (1963-98), foi responsável por canções como “All That She Wants”, do Ace of Base, e “As Long As You Love Me”, dos Backstreet Boys. Já os noruegueses Tor Erik Hermansen e Mikkel Storleer Eriksen, conhecidos como Stargate, fizeram “Worth It”, do Fifth Harmony, “Don’t Stop the Music”, de Rihanna, e “Irreplaceable”, de Beyoncé.

No livro “The Song Machine” (Editora WW Norton, 288 págs., R$ 150 em papel e R$ 52 em versão digital), o jornalista da New Yorker John Seabrook mostra como a produção de hits é praticamente industrial. Criadas em pouco tempo por equipes munidas apenas de um computador, essas canções seguem quase uma receita, na qual a letra importa pouco e as batidas misturam, em suas palavras, vodca e MDMA ao pop chiclete de antigamente.

A imagem do cantor compositor, sentado na cama com um violão escrevendo suas canções num caderno, não tem lugar no mundo pop de hoje. Quem mais se aproxima disso é Taylor Swift, conhecida por falar de todas suas desventuras amorosas em suas músicas. Mas mesmo ela não costuma compor sozinha. Das 13 canções de seu último disco, “1989”, apenas uma tem só seu nome nos créditos. Max Martin aparece como compositor nos maiores sucessos: “Style”, “Blank Space”, “All You Had to Do Was Stay”, “Shake It Off”, “Bad Blood”, “Wildest Dreams” e “How You Get the Girl”. O mesmo vale para Adele. Em “25”, que lançou neste mês, todas as canções têm coautores — Martin entre eles.

 

Seabrook, que levou quase quatro anos nas pesquisas para o livro, não é exatamente um fã de pop. Seu gosto pessoal pende mais para o rock, mas descobriu anos atrás que o gênero era um ótimo tema para conversar com seu filho adolescente, que controlava o rádio a caminho da escola e escutava canções nas quais ele nunca tinha ouvido falar.

Nos últimos anos, fez alguns artigos sobre música pop para a New Yorker, meio que por acaso. “Nunca fui um escritor de música pop. Sempre me interessei por canções, nos momentos de inspiração e em como ideias podem virar dinheiro”, conta. “Mas meio que caí nesse tema. Começou com uma ideia que um editor da revista sugeriu.” Nas páginas da revista, escreveu sobre o pop coreano, sobre o produtor e compositor Dr. Luke, discípulo de Max Martin, e sobre o próprio Martin. Um texto seu de 2012, no qual traçava um perfil da equipe por trás do sucesso de Rihanna, foi inclusive publicado com o título “The Song Machine”, a máquina de canções.

UMBRELLA ELLA ELLA

Rihanna, aliás, é uma espécie de síntese do processo descrito por Seabrook. “Umbrella”, música que fez com que ela estourasse em 2007, não só não foi escrita por ela como nem foi escrita para ela. A história começa com o grupo de compositores de Atlanta formado por três homens. Um deles, Tricky Stewart, vinha de uma família de escritores de jingles que tinha no currículo canções para marcas como Coca-Cola e McDonald’s. Tricky cresceu em estúdios aprendendo a fazer músicas pegajosas e, por influência da mãe, estudou produção musical em vez de algum instrumento (assim ele teria mais futuro, pensou ela). Com outros membros de sua família, Tricky abriu a produtora RedZone Entertainment e durante anos trabalhou sem produzir um grande hit.

O jogo virou com “Umbrella”, uma criação conjunta. Kuk Harrell brincava com uma batida no computador quando Stewart entrou na sala e complementou o som com uns acordes no teclado. Terius Nash ouviu tudo, pegou um microfone, e começou a cantar algumas palavras aleatórias que vieram à cabeça. Assim nasceu o famoso refrão “under my umbrella ella ella ê ê”.

 

Sabendo que tinham algo bom em mãos, os três procuraram um artista para gravar a música. Tentaram Britney Spears, a cantora mais famosa que conheciam, mas ela recusou. Depois disso, tentaram o executivo L.A. Reid, que a mostrou para Rihanna, que, por sua vez, amou a canção e quis gravá-la. Os autores, porém, queriam alguém mais conhecido para “Umbrella” e, no início, negaram. Com a ajuda de Jay-Z, Rihanna acabou convencendo a equipe.

Mas o nascimento de um hit não é tão simples. É fundamental para que uma música toque bastante na rádio para estourar, e para que isso aconteça é necessária uma campanha pesada da gravadora. Segundo uma investigação da rádio pública americana NPR, citada pelo livro, uma gravadora desembolsa tranquilamente pelo menos 1 milhão de dólares para emplacar uma única música nas rádios, influenciando as datas e horários em que ela vai tocar e o número de vezes em que ela será repetida durante o dia. “As rádios precisam de música contagiante o suficiente para manter as pessoas ouvindo mesmo com os anúncios e as gravadoras precisam das rádios para vender suas músicas. Ambas precisam de hits”, escreve Seabrook.

POP ESCANDINAVO

“Umbrella” foi escrita por americanos, mas a origem dessa fábrica de canções está na Suécia nos anos 1990, com Denniz PoP, então um DJ de 28 anos parte do coletivo SweMix, que remixava sucessos dos Estados Unidos para o público europeu. O sonho de Denniz, conta Seabrook, era misturar as batidas dançantes dos clubes com o pop das rádios e seus refrões marcantes. Ele já havia trabalhado com algumas bandas quando recebeu uma fita com uma gravação de um quarteto chamado Ace of Base com uma mensagem: “Por favor, ouça essa fita e nos ligue”.

O DJ colocou a fita para tocar em seu carro e antes de terminar a canção já sabia que não queria trabalhar com eles. Mas seu rádio quebrou, a fita não saía e Denniz ficou ouvindo a música sem parar por duas semanas. Foi aí que teve o estalo. Mudou a melodia toda, colocou uma linha de baixo, deixou a música em acordes maiores, mas o refrão em menores, simplificou algumas coisas e batizou a composição de “All That She Wants”. A música foi um sucesso, inclusive nos Estados Unidos.

 

Denniz teve uma carreira curta, mas foi o responsável pelo Max Martin compositor. Martin era um cantor de glam-rock chamado Martin White quando assinou um contrato para trabalhar com Denniz, que o colocou sob sua asa. Denniz percebeu que Martin era melhor como compositor do que como cantor e o ensinou a usar o estúdio. Não há nenhuma gravação disponível na internet de Martin cantando, mas segundo Seabrook, que ouviu a versão do compositor de “…Baby One More Time”, sua voz é muito boa. Inclusive, ele envia suas versões das canções para o artista exatamente do jeito que ele quer que elas sejam cantadas.

Martin é bastante recluso e não quis falar com Seabrook, que contornou a questão usando entrevistas que ele havia dado a uma rádio sueca em 2008 que ainda não tinham sido traduzidas para o inglês. “Isso respondeu a maior parte das questões que eu teria perguntado”, afirma. O jornalista diz entender que Martin não goste muito de falar. “Ele é sueco! Eles não gostam muito de chamar a atenção. E como é melhor que todos achem que o artista escreve suas próprias músicas sua natureza reclusa encaixa muito bem com seu trabalho.”

E por que o pop deu tão certo na Escandinávia? Seabrook arrisca uma resposta. “ Nos Estados Unidos os compositores crescem com uma divisão entre pop e R&B que vem de categorias raciais de 60 anos atrás, mas que ainda são muito reais em termos de quem escreve cada música”, diz. “Pessoas brancas não escrevem R&B nos Estados Unidos. Mas na Suécia isso não é um problema. Pessoas como Max Martin se propuseram a escrever R&B para artistas negros, mas como são suecos, não saíram músicas exatamente desse gênero. Quando ele escreveu …Baby One More Time para o trio de R&B feminino TLC, elas ouviram a demo e disseram não.”

ME BATA MAIS UMA VEZ, BABY

Uma consequência curiosa desse arranjo é que as letras dessas músicas às vezes não fazem muito sentido. O refrão de “All That She Wants”, por exemplo, diz “all that she wants is another baby”, que seria algo como “tudo o que ela quer é outro bebê”. Frase estranha para uma música pop. O objetivo, conta o jornalista, era dizer “tudo o que ela quer é outro namorado”. A mesma coisa para “…Baby One More Time”. O nome original da música era igual ao refrão: “Hit Me Baby One More Time”, o que significa, ao pé da letra, “me bata mais uma vez, baby”. O que os autores queriam era dizer “me ligue de novo, baby”.

 

“As letras são menos importantes hoje fora do mundo do hip hop, em que ainda é importante que as frases signifiquem algo, sejam inteligentes ou chocantes. No pop as letras são só levemente melhores que na música disco”, afirma Seabook. “Em parte porque as músicas são construídas em torno da batida e da melodia e a letra é escrita em função delas. Na composição tradicional a letra nasce com a melodia. Agora ela vem no fim do processo.” E, é claro, porque como inglês não é a primeira língua dos compositores, às vezes as frases ficam truncadas.

Sem escrever suas próprias canções, os artistas perdem um pouco de seu controle criativo sobre a própria obra. “Mas eles ganharam poder com a ascensão das mídias sociais e controle sobre a própria imagem. Antes eles precisavam de repórteres musicais. Agora, não. Por isso as revistas de música estão desaparecendo”, afirma. Sobre as cantoras que fazem sucesso hoje, ele diz acreditar que são mais atrizes do que as divas de voz poderosa como Céline Dion e Whitney Houston. “Elas interpretam um papel e a música é como um roteiro. Se elas conseguem fazer diferentes papéis, como Rihanna e Nicki Minaj, melhor. Whitney Houston era sempre Whitney, não importava a música. Mas Rihanna muda a cada canção.”

Após passar anos em estúdio acompanhando processos de composição e produção, Seabrook diz que, embora existam segredos que não lhe contaram, não há uma fórmula secreta para escrever um hit. “Existe um processo industrializado que permite às pessoas que escrevam muitas músicas no mesmo tempo em que compositores levavam para escrever poucas. No livro, chamo isso de ‘track-and-hook’. Mas você ainda deve deixar a arte prevalecer em algum ponto do processo.”

O tal “track-and-hook” se refere à divisão entre a batida (track) e a melodia (hook), inventada por produtores de reggae na Jamaica. Lá, produtores faziam uma batida e convidavam vários cantores para gravar músicas a partir dela. “Hoje, o ‘track-and-hook’ virou o pilar da música popular. É comum que um produtor mande a mesma batida para várias pessoas — em casos extremos, até 50 — e escolha a melhor melodia entre elas.” Para Denniz PoP, conta Seabrook, compor era um esforço coletivo: como num programa de TV, em que vários roteiristas se reúnem numa sala e trocam ideias. Martin compartilha essa filosofia.

No site de John Seabrook há uma série de playlists para serem escutadas enquanto se lê o livro. Há uma divisão por capítulos, que engloba todas as canções citadas em ordem, e por produtor. “Ficou óbvio pela reação dos meus primeiros leitores que as pessoas largavam o livro para ouvir as músicas no YouTube. Idealmente você teria um livro em que você clicaria nas músicas quando elas aparecessem no texto. Mas esse tipo de livro não existe.”

Ouvir as canções dá uma boa dimensão do alcance de um grupo de produtores e compositores tão restrito que se pode contar nos dedos de uma mão. Pense em algum artista pop dos anos 1990 para cá: pelo menos uma música sua estará na playlist. Mas, segundo Seabrook, como todas as tendências na música, esse pop de hoje está fadado a acabar. Em breve? “Já passou da hora!”

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Cinema

Violinos em Heliópolis

Lázaro Ramos não era a primeira opção do diretor Sérgio Machado para interpretar o protagonista do filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia na próxima quinta-feira, dia 3. Na verdade, conta Lázaro, ele teve que implorar como há muito tempo não fazia para ganhar o papel do violinista que, após travar numa audição para a Osesp, começa a dar aulas na favela de Heliópolis, em São Paulo. “Ele me convidou pra fazer o melhor amigo [do protagonista]”, diz o ator, rindo. “Verdade!”

Ao ler o roteiro, Lázaro diz que só conseguia se identificar com Laerte, o professor que encontra uma turma de estudantes cheia de problemas, mas determinados em aprender a tocar instrumentos apesar das adversidades. Então parou de ler o roteiro, ligou para o diretor e disse que não poderia participar do filme. “Eu ia fazer um personagem de olho no outro. Ia jogar uma energia péssima no ator que fizesse o protagonista, porque ia querer estar no lugar dele.”

Sem resposta de Sérgio, Lázaro apelou para o produtor Caio Gullane. “Telefonei pra ele, ele foi almoçar na minha casa. Fiz uma comida bem gostosa. Quando acabou o almoço eu disse: ‘Caio, você não está entendendo. Eu vou fazer esse filme’. Depois de muito insistir, Sérgio foi obrigado a me convidar”, ri o ator. Sentado ao lado dele em um encontro para apresentar o filme à imprensa, Sérgio se defende. “Realmente, não tinha pensado nele. Pra mim, o personagem era eu”, diz. “Mas fico tão feliz. Nenhum ator teria o que Lázaro teve com os meninos. Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi. Teve uma química que não rolaria com mais ninguém.”

[olho]”Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi”[/olho]

Lázaro e Sérgio se identificaram com lados diferentes do personagem. O que interessou o diretor não é como Laerte transforma a comunidade de Heliópolis: é a transformação pela qual ele passa. Talentoso violinista, Laerte vive infeliz, sem trabalho e sem coragem de contar para os pais que não passou no teste para a Osesp, na qual todos seus amigos tocam. Sem saída, é obrigado a aceitar um emprego em Heliópolis. Como é de se esperar, ele acaba por estabelecer uma relação com seus alunos. Mas não é o professor perfeito estilo “Sociedade dos Poetas Mortos”. O começo da relação é difícil, ele é duro, não quer se envolver, está lá por necessidade. É em Heliópolis, porém, que ele reencontra sua confiança como músico.

“Desde criança, quando tinha dez anos de idade, eu falava que queria ser diretor de cinema. Nunca tive um plano B na vida. Quando estava começando esse filme, pensava: e se eu travar? É a única coisa que eu sei fazer”, conta Sérgio. Já o apelo para Lázaro foi a relação entre mestre e alunos, que o lembrou dos tempos de teatro na Bahia. “Trouxe para o filme minha relação com o Zebrinha, um grande coreógrafo baiano. Quando tinha 15 anos, ele resolveu me adotar como pai artístico. Foi um pai em todos em sentidos, desde o que dá carinho até o que dá muita bronca. Ele sempre olhava pra mim com um olhar de crença, de quem acreditava no meu potencial.”

Lázaro quis colocar esse mesmo olhar no filme. “Nos primeiros momentos, eu não olho no olho dos alunos. A gente não se relaciona. A partir de uma hora eu olho e vejo quem eles são”, diz. “Esse olhar eu tive. É o que faz a diferença. Pra mim, o filme é sobre isso. Ver o outro como uma potência, e não algo a ser rejeitado. Não teria outra maneira de fazer o filme que não fosse emprestando essa nossa verdade pros personagens.”

Entre os meninos, destacam-se Samuel (Kaique de Jesus), prodígio do violino, que estuda contra a vontade do pai, e VR (Elzio Vieira), que flerta com o crime. “Aprendi a dançar num projeto social e ganhei uma perspectiva de vida. Quando você sai da escola e vai pra casa, vai fazer o quê? Você está sujeito a seguir vários caminhos ruins, como meus amigos fizeram. Em vez disso, eu tinha algo pra me ocupar”, conta Elzio, que fez o primeiro teste para dançar em uma cena e conquistou o papel depois. “Eu me vejo na tela e me vejo na vida real. É um filme sobre a gente. Relata de onde eu venho e onde vivo.”

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Meninos tocam em 'Tudo que Aprendemos Juntos'
Meninos tocam em ‘Tudo que Aprendemos Juntos’. Crédito: Divulgação

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SEM ROMANTISMO

A sinopse do filme leva a crer que se trata de uma história açucarada de superação. É sim, no fim das contas, uma trama otimista, mas Sérgio fez questão de colocar realidade na mistura. “Os filmes brasileiros que viajaram mais o mundo tinham essa mensagem importante de crítica social, mas sempre me incomodou um pouco o fato de que alguns deles passam um pouco a ideia de que a gente está fadado ao fracasso, que não tem solução pros problemas brasileiros”, afirma. “Queria fazer um filme pra falar de uma maneira realista, sem romantismo, que a gente tem, sim, solução. Tem muita gente trabalhando, em todo lugar que eu vou, se virando pra mudar a situação.”

Não é uma história completamente verídica, mas “Tudo que Aprendemos Juntos” se inspira no real Instituto Baccarelli, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli. Após ver na televisão um incêndio em Heliópolis, ele buscou uma escola pública de lá e sugeriu ensinar música a um grupo de crianças e adolescentes. Hoje, alunos do instituto formam a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky.

No elenco, há alguns alunos do Instituto e membros da Orquestra. “Pra mim era certo que todos os meninos tinham que ser de comunidade. Cem por cento. A gente começou pelo Instituto, fazendo testes. Depois em Heliópolis e outras comunidades”, conta Sérgio. “Uns 30%, 40%, sabiam tocar instrumento. Todos estudaram [música] durante um ano. Eles foram tão dedicados que tinham que se esforçar pra tocar mal [nas cenas iniciais].” Lázaro também estudou no Instituto, esperando tocar violino de verdade — o que não deu certo. Independente disso, a experiência no local foi importante.

“O que me guiou foi estar no Baccarelli, tomando aulas, ensaiando lá dentro, me apropriando disso, compreendendo o poder transformador da música”, conta. Logo que conheceu o Instituto, assistiu a uma apresentação da Orquestra de Heliópolis realizada só para ele. “Comecei a chorar de um jeito descontrolado, sem saber o que aquela música estava provocando em mim. Estava tomado. Naquele dia eu entendi. Não dá nem pra explicar que inspiração é essa, o poder transformador da música, que a gente não sabe de onde vem.”

Por “trabalhar no limite entre realidade e ficção”, alguns cuidados tiveram de ser tomados pela produção. Em um momento do filme, a polícia persegue dois alunos de Laerte que estão numa moto. “Nos meses anteriores a filmagem uns quatro ou cinco meninos tinham sido assassinados pela polícia assim. Foi uma preocupação enorme colocar um aviso enorme de ‘produção’ pras pessoas não acharem que era um carro de verdade de polícia perseguindo os meninos e atirarem”, conta Sérgio. “Foi muito tenso. A gente ficou com medo.”

Em outra cena, que misturou imagens reais às filmadas pela equipe, a população de Heliópolis entra em confronto com a polícia. As pessoas da comunidade pediram ao diretor que não filmasse em Heliópolis, já que o trauma do embate real ainda é muito vivo. “A gente trouxe alguns figurantes da comunidade e encenou tudo. Mas quando eu falava ‘ação’ as pessoas começavam a dar porrada de verdade, jogar pedra na polícia”, conta o cineasta. “A gente tinha que parar e falar: gente, são atores, vamos acalmar. Voltava a cena e era cada vez mais violento. Teve uma voadora no pescoço de um policial que não foi coreografada. Não tinha jeito de a gente convencer as pessoas. Fugia do controle.”

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Criolo como traficante
Criolo como traficante. Crédito: Divulgação

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MOZART E CRIOLO

Focado na música erudita, o filme não deixa o rap de lado. Rappin’ Hood faz uma participação cantando em uma festa em Heliópolis e Criolo, além de ter músicas na trilha sonora, ganhou um pequeno papel como chefe do tráfico. O objetivo, diz Sérgio, era não criar uma hierarquia de valores, chegando ali com a música clássica como se ela fosse superior. “Tem Mozart, tem Criolo, Emicida, Sabotage, Rappin’ Hood… Queria que a música erudita dialogasse no mesmo nível do rap. O cara chega num lugar com uma cultura de altíssimo nível. Saquei isso e queria escolher o melhor do melhor.”

Convidar Criolo para atuar foi pura intuição do diretor. “Ele tem uma teatralidade, eu intuía que ele faria bem. E era dentro dessa ideia de que as pessoas fossem do universo que elas representam. O Criolo sabe falar esse dialeto, ele é do Grajaú”, diz Sérgio. “Por conta de outros trabalhos que já fiz, conheço um pouco esse universo do tráfico e nunca conheci um traficante perto do estereótipo, com colar de ouro. O Criolo é muito mais parecido com os caras que eu conheci do que o estereótipo. E a câmera gosta dele. Fiquei muito surpreso.”

Exibido no Festival de Locarno, na Suíça, e no Festival do Rio, o filme levou o prêmio de melhor longa de ficção nacional pelo público na Mostra de São Paulo. Segundo Sérgio, “Tudo que Aprendemos Juntos” foi feito, porém, para os 25 jovens do elenco. “Entendi que o filme não era só feito pelos meninos, era para os meninos. Queria fazer um filme de que eles se orgulhem.”

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Cultura

As fanfics da vida real

Anna Todd, 25, parece uma americana como qualquer outra. Às 11h já está de cílios postiços e entra na sala com um copo de Starbucks na mão e um vestido de mangas compridas num calor paulistano de 32ºC (“Vim preparada pro frio, é inverno aqui, não?”). Como outras tantas garotas, começou a publicar alguns textos na internet, escritos no celular, sem grandes pretensões. Mas o motivo da visita de Anna ao Brasil em setembro é pouco comum: lançar um dos volumes de sua série de livros — aqueles digitados no telefone –, fenômeno juvenil que vai virar filme e lhe deu um contrato de milhões de dólares. Livros eróticos com os membros da boy band One Direction.

Na internet, o cantor Harry Styles é um stalker. É também um garoto mimado num mundo distópico. Tem um caso com o companheiro de boyband Louis Tomlinson. É ainda um jovem punk, um rebelde sem causa, um apresentador de TV, um psicopata. O cantor Harry Styles é, em suma, uma tela em branco para suas fãs projetarem suas fantasias em fanfics publicadas na internet. A única semelhança entre a maioria das histórias é: Harry Styles é um deus do sexo.

Há uma quantidade absurda de textos de ficção com os cantores da banda — principalmente Harry, o mais conhecido — por aí. Dá para achar os tradicionais textos de comédia romântica, mas também de terror, ficção científica, ação ou religiosos. Nenhuma novidade aí: ler e publicar fanfics na internet é comum entre pré-adolescentes desde pelo menos o início dos anos 2000, auge da era Harry Potter. Mas agora a moda é escrever sobre ídolos reais. E mais: essas ficções, vistas como gênero literário menor, mostram que podem virar livros best-sellers.

A trama de Anna Todd, “After”, era só mais uma nesse mar de histórias e — sucesso à parte — é um caso clássico de como funciona o universo das fanfics. Anna era uma fã da banda, leitora de outras fanfics, que começou a escrever sem grandes planos, um capítulo de cada vez, contando com os comentários de outros leitores. Mas sua história foi crescendo, crescendo, até ser visualizada mais de 1 bilhão de vezes no site de autopublicação Wattpad.

“Há tantas fanfics de One Direction. Até mais que de ‘Crepúsculo’”, diz Anna, citando outro fênomeno juvenil que inspirou, por exemplo, “Cinquenta Tons de Cinza”, de E.L. James. Ela era uma leitora ávida até que se encontrou sem novos capítulos das histórias que acompanhava e resolveu começar sua própria trama. “Eu escrevia ‘imagines’, sabe?”, conta, falando tão rápido que digo que sim antes mesmo de pensar a respeito. Para os não iniciados, uma pequena explicação: são histórias curtas, às vezes de um parágrafo, publicadas no Instagram ou no Tumblr.

Quando teve uma ideia para uma história maior, migrou para o Wattpad. “As ideias surgiam enquanto eu ia escrevendo, eu não tinha noção de para onde estava indo”, diz. Logo Anna passou a escrever loucamente em seu celular (digita mais rápido no telefone do que no computador, afirma) por até seis horas ao dia. “Eu não fazia mais nada. Meu marido me perguntava se eu queria ir ao cinema e eu dizia que estava ocupada. E ele não sabia o que eu estava fazendo, só achou que eu fosse obcecada por meu telefone.”

Anna tentou manter a atividade em segredo, pois tinha medo do que as pessoas diriam se descobrissem que ela passava tanto tempo escrevendo ficção sobre One Direction. Diz que fanfics já não têm tanto prestígio, e que mesmo entre essas ficções os textos sobre a boyband são malvistos. Foi só quando começaram a fazer matérias sobre ela que resolveu contar para o marido e amigos. E, para sua surpresa, ninguém ligou.

 

Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação
Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação

CHRISTIAN STYLES

Sua premissa é bem simples e lembra bastante, em certos pontos, a de “Cinquenta Tons de Cinza”, que teve trajetória parecida com a sua — saiu na internet, foi publicada por uma editora e depois virou filme. Tessa é uma jovem virgem, super careta, que deixa a casa da mãe para ir à faculdade. No primeiro dia por lá, conhece Harry Styles, estudante punk, todo tatuado, do tipo difícil e que não cultiva relacionamentos — até conhecer Tessa (Christian Grey, é você?).

Os capítulos publicados no Wattpad são curtos, para ler em cinco minutos. Quem encarou “Cinquenta Tons” sabe mais ou menos o que esperar: diálogos que beiram o constrangedor e cenas de sexo que não são lá super sexy, mas algo te leva a seguir em frente. Quando você vê, gastou duas horas do seu dia com o casal Hessa, como a dupla ficou conhecida entre os fãs.

Anna diz que demorou para perceber o sucesso que tinha em mãos, apesar de os números não pararem de crescer. O baque veio quando descobriu que haviam criado contas nas redes sociais para seus personagens. Havia o perfil de Tessa, o perfil de Harry, e os dois conversavam como se existissem de verdade. “Como uma fã da banda, sei que quando essas contas aparecem o negócio é grande”, diz. “A conta do Harry no Instagram tinha 25 mil seguidores e eles atualizavam a cada capítulo. Foi aí que vi que os leitores estavam se dedicando à história.”

No Wattpad, pessoas se identificando como agentes literários começaram a procurá-la. “Podia ser real, mas eu pensava: que tipo de pessoa louca iria publicar uma fanfic de One Direction? Eu não respondia, simplesmente ignorava”, lembra. Mas, nos comentários, viu que alguns leitores estavam imprimindo a história para ler no papel e pensou em fazer exemplares para quem quisesse, cobrando apenas o preço de custo. Comunicou a decisão no Twitter e 24 horas depois funcionários do Wattpad mandaram uma mensagem, dizendo que queriam entrar no negócio. Falaram com algumas editoras, Anna foi a Nova York e optou por uma. “Achei que todos os escritores tivessem o privilégio de escolher. Não é verdade.”

MULTIDÃO DE EDITORES

A única exigência que Anna fez foi manter a versão virtual no ar. “A maioria das pessoas tira suas histórias da internet [quando o livro é publicado por uma editora]. A E.L. James tirou. Respeito totalmente essa decisão, cada um tem suas razões, mas acho que o único motivo para o livro ter ficado tão grande foi o fato de que as pessoas estavam lendo. Seria estranho tirar do ar”, diz. “Meu contrato com a editora me permite postar uma parte dos meus próximos quatro livros no Wattpad. As pessoas devem pagar por livros, mas muita gente não pode. Acho importante que eles estejam disponíveis de graça.”

Escrever no Wattpad, em sua opinião, tem como vantagem dar ao escritor uma multidão de editores, fazendo comentários sobre a trama e apontando pequenas discrepâncias que ela não tinha notado — como a cor do carro de Tessa, que era diferente em vários pontos da história. “Geralmente o livro passa pelo editor. O meu foi direto para o público. Eu gostei, porque eu meio que sabia o que estava fazendo, mas não o tempo todo”, ri.

O Wattpad é uma das poucas redes sociais em que quase todos os comentários são positivos, avalia. “Mesmo que fosse algo negativo, normalmente as intenções são boas. Às vezes aparecem uns loucos, mas isso acontece em todo lugar”, diz. “Todo o mundo está lá porque ama ler e escrever. Então não tive medo.”

Quando o texto passou por um editor de verdade, várias pequenas coisas tiveram de mudar para deixar o texto mais com cara de livro e menos com cara de ficção de fã. “Em fanfic você tem liberdade para colocar coisas que não importam para a estrutura da história”, diz. O livro tem mais sexo e “linguagem vulgar”, porque no site crianças poderiam parar ali sem querer. E o fim é diferente, já que ela tinha odiado o desfecho da internet. “Felizmente pude fazer tudo de novo.”

HARRY PUNK

Entre todos os garotos da banda, Harry Styles é o protagonista mais recorrente das fanfics. Por que Harry? “Não faço ideia, de verdade! Geralmente quando leio ficção de One Direction eu prefiro Zayn [Malik]. Mas quando comecei, por alguma razão, ninguém mais me veio à cabeça. Foi estranho.” E, mais importante, por que um Harry punk? “Na época estava na moda a edição punk. As pessoas pegavam fotos dos caras da banda e colocavam tatuagens. Isso antes de eles se cobrirem de tatuagem na vida real. Hoje Harry tem um monte, mas lá atrás só tinha umas duas”, lembra.

Além de achar que ele ficava gato daquele jeito, pensou que teria uma liberdade maior como autora se o personagem não fosse tão parecido com o Harry da vida real. “Eu gosto de fanfics de universos alternativos. Com uma versão oposta, como um Harry punk, posso ser mais criativa. Ele poderia ser totalmente louco por ser tão diferente do Harry real”, explica.

Os textos de fãs sobre One Direction frequentemente deixam de lado a personalidade dos cantores, que são usados apenas pelas suas características físicas. Diferente, por exemplo, das ficções de Harry Potter: apesar de haver algumas mudanças em relação à história de J.K. Rowling (Draco Malfoy gay era uma versão popular), a essência dos personagens era geralmente parecida com a dos livros.

Na versão impressa de “After”, inclusive os nomes dos personagens foram trocados por razões legais. Embora seja permitido criar histórias fictícias sobre celebridades, não se pode vender mercadorias com o nome delas sem sua autorização. Enquanto Anna não ganhava dinheiro, publicando na internet, não havia problema. Mas não poderia usar o nome Harry Styles no livro.

A questão do uso de pessoas reais em livros de ficção não diz respeito só a escritores de livros juvenis. Recentemente, a atriz Scarlett Johansson se envolveu em uma disputa legal pelo uso de seu nome em um livro do francês Grégoire Delacourt. Em “La Première Chose Qu’on Regarde” (a primeira coisa que vemos), o protagonista conhece uma mulher que acredita ser Scarlett. Não se trata, entretanto, da atriz, e sim de uma sósia, com a qual ele começa um relacionamento. Na França, o livro vendeu mais de 140 mil exemplares.

A atriz processou o escritor no ano passado, afirmando que o livro era uma exploração fraudulenta e ilegal de seu nome, sua reputação e sua imagem, e que havia afirmações difamatórias sobre sua vida pessoal. Seu objetivo era impedir a tradução do texto ou uma adaptação para o cinema. Em agosto, porém, suas demandas foram rejeitadas e o livro pôde ser traduzido para o inglês. O juiz concedeu que houve um ataque à sua imagem quando o autor cita dois relacionamentos que ela não teve na vida real e, por isso, ganhou 2.500 euros e uma nova edição do livro sem esses trechos. Delacourt, por sua vez, afirmou que a referência à atriz foi bem-intencionada.

Para evitar esse tipo de problema, Anna tirou os nomes dos cantores, embora toda a publicidade do livro tenha girado em torno do fato de que ele falava do One Direction. Mesmo com essa omissão, alguns fãs da banda não gostaram de ver seu ídolo Harry Styles retratado como um cara tão problemático. “No começo, quase todos os fãs da banda gostavam. Foram eles que fizeram o livro o que é. Mas quando eu fui ficando famosa, eles passaram a se voltar contra mim”, afirma. “Mas são pessoas muito jovens. E não levo as críticas a sério, porque antes elas gostavam e só pararam de gostar porque era ‘cool’ não gostar. Os fãs de One Direction são conhecidos por serem maus na internet.”

Agora, Anna vive o mundo viajando, escrevendo outros livros (inclusive uma versão da história sob o ponto de vista de Harry, tal qual E.L. James fez com “Cinquenta Tons de Cinza”) e acompanhando a versão cinematográfica — na qual não tem direito de palpitar, apesar de agradecer a roteirista por deixar que ela o faça mesmo assim.

Em cada lugar diz ter uma experiência bem diferente. Na Alemanha, por exemplo, seus fãs são homens mais velhos. “Não sei por quê. Cheguei numa sessão de autógrafos e achei que eles fossem pais das meninas, mas não.” Nos países latinos também encontra mais garotos. “Tem uns dez meninos em cada sessão. Nos Estados Unidos tem sempre só um.” E, para provar que fanfic de celebridade não é só coisa de garota, na França encontrou um rapaz de 25 anos que disse imaginar Taylor Swift como Tessa, assim como as meninas veem o protagonista como Harry Styles. “Achei demais.”

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Televisão

As heroínas estão chegando

Em meio aos e-mails sigilosos da Sony Pictures vazados no ano passado, um datado de 7 de agosto listava três exemplos de filmes de super-heroínas que haviam sido um fracasso: “Elektra” (“péssima ideia com resultado muito, muito ruim”), “Mulher-Gato” (“desastre”) e “Supergirl” (“outro desastre”). Com o assunto “filmes femininos”, o e-mail de um executivo para outro procurava provar que, no mundo dos super-heróis, mulheres devem se limitar a papéis coadjuvantes.

Pouco mais de um ano depois, porém, o jogo virou. Este mês, em que o feminismo é o tema do momento no Brasil, marcou a estreia de duas séries praticamente opostas protagonizadas por super-heroínas: “Supergirl”, no ar na Warner, e “Marvel’s Jessica Jones”, que estreou recentemente no Netflix.

Em comum, as duas produções têm uma característica: embora as mulheres se apaixonem (Supergirl) e façam muito sexo (Jessica Jones), seus mundos não giram em torno de homens. Há romance, mas elas estão bem longe de ser comédias românticas. De resto, as duas produções atendem a diferentes tipos de público. Enquanto “Supergirl” é solar, feita para ser vista comendo pipoca num domingo à tarde (algo como “The Flash”, também da Warner), “Jessica Jones” é soturna e super tensa (não por acaso, mais parecida com “Demolidor”, também do Netflix).

Das duas, “Supergirl” é quem faz mais questão de explicitar seu feminismo. Kara (Melissa Benoist) é prima de Clark Kent, o Super-Homem, e foi enviada à Terra com ele para protegê-lo quando ele ainda era um bebê. Sua viagem espacial, no entanto, dá errado e ela passa 24 anos vagando em uma zona na qual o tempo não passa. Quando ela finalmente chega, Clark já é adulto, enquanto ela ainda tem 13 anos. Os papéis se invertem e é ele quem, para ajudá-la, a coloca em uma família humana para que ela viva uma vida normal.

Kara arruma um emprego de assistente em uma grande empresa de mídia cuja dona (fato raro na vida real) é uma mulher: a casca-grossa Cat (Calista Flockhart), uma aprendiz de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”. “Achei que seria legal trabalhar para uma figura feminina poderosa”, diz Kara logo no início, na primeira de várias frases que exaltam o poder de mulheres fortes de influenciar as outras.

Quando Kara vê na televisão que o avião em que viaja sua irmã está prestes a cair, ela resolve usar seus poderes depois de anos para salvá-la. Ao se dar conta do que é capaz de fazer com suas habilidades, ela sorri, legitimamente contente por ter feito o bem. Já é tarde para proteger Clark, pensa ela, mas há um planeta todo cheio de pessoas indefesas a quem ela pode ajudar.

supergirl

Na escolha do uniforme, a série não deixa de alfinetar as tradicionais produções de super-heróis e suas mulheres espremidas em roupas justíssimas, pouco funcionais para lutar. “Eu não usaria isso nem para ir pra praia”, responde Kara quando lhe apresentam um uniforme que lembra a clássica roupa da Mulher Maravilha, mas com mais pele à mostra. Kara também questiona o nome “supergirl” (super menina, vejam bem, e não mulher). Obviamente a série não poderia trocar o nome da personagem, então explicam a escolha assim: se você acha que uma menina é algo menos que incrível, o problema é você.

Outras questões feministas são abordadas logo no primeiro capítulo: a novidade que é finalmente ter uma super-heroína forte para meninas se espelharem, o fato de mulheres não serem levadas a sério por alguns homens e às vezes temerem ser assertivas para não desagradar ninguém — como Jennifer Lawrence declarou recentemente em uma carta explicando como se sentiu após descobrir que ganhava menos que seus colegas homens.

Não se trata, porém, de uma série que bate somente na tecla da desigualdade de gêneros. De cara Kara se interessa pelo fotógrafo James Olsen (Mehcad Brooks), preenchendo o campo “romance” inevitável nessas séries mais leves. Há também boas sequências de ação, indispensáveis para uma produção do gênero. No episódio de estreia Kara descobre que uma nave cheia dos alienígenas mais perigosos do espaço caiu na Terra quando ela chegou. A série dá a entender que seguirá o esquema “vilão da semana”, com a Supergirl enfrentando um antagonista diferente a cada episódio.

É muito cedo para dizer se “Supergirl” será um sucesso, mas os primeiros resultados de audiência nos Estados Unidos mostram que nada impede que uma série protagonizada por uma super-heroína dê certo. Na primeira semana, foi a série nova mais vista da temporada, com 12,95 milhões de espectadores. Na semana seguinte, houve uma queda e 8,86 milhões a assistiram, mas ainda é um número longe do desastre previsto pelos executivos da Sony.

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MARVEL'S JESSICA JONES
Jessica Jones e sua amiga Trish Walker. Crédito: Divulgação

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FORÇA BRUTA

Enquanto “Supergirl” afima com todas as letras que está ali, sim, para discutir questões de gênero, “Jessica Jones” adota uma abordagem menos literal. “Supergirl” é o primeiro passo. Precisa ser tão didática e reforçar o tempo todo como é pouco usual ter uma super-heroína? O ideal é que no futuro isso seja tão normal que não seja mais uma questão e que esse “quer que eu desenhe” seja desnecessário. Mas por enquanto, a série tem suas razões.

Jessica Jones” é o próximo passo. Em nenhum momento alguém estranha o fato de Jessica conseguir parar um carro em movimento ou alcançar a varanda de um prédio com um pulo. Ninguém se espanta por ela ser mulher, ela não reforça sua feminilidade e seu gênero não é mencionado uma só vez. Mas é impossível ver a série e não ter certeza de que mulheres podem ser tão fortes, em todos os sentidos, quanto homens.

LEIA MAIS: Jessica Jones, a anti-heroína que merecemos

Nos quadrinhos da Marvel, Jessica Jones é uma personagem que atuou como a heroína Safira, fazendo uma pequena participação no grupo dos Vingadores. Depois de atacar a Feiticeira Escarlate a mando de Kilgrave (o Homem-Púrpura), que a controlava mentalmente, ela é agredida  e entra em coma. Após despertar, ela larga a vida de heroína e abre uma agência de investigações e procura levar uma vida normal.

A série traz algumas mudanças em relação aos quadrinhos e acompanha a rotina de Jessica (Krysten Ritter) após seu período como super-heroína. Ela toca seu negócio de investigação sofrendo de transtorno do estresse pós-traumático depois de Kilgrave ter feito com que ela cometesse atos horríveis. Depois de descobrir, no episódio de estreia, que ele não está morto como ela pensava, Jessica resolve que sua missão será encontrá-lo e acabar com ele.

Diferente da Supergirl, que é doce e só quer fazer o bem, Jessica é perturbada pelo passado, enche a cara, transa com desconhecidos, e se pudesse cairia fora dali para levar uma vida normal. Jessica é uma mulher como outra qualquer, cheia de defeitos, mas calhou de ter super-poderes. O fato de não ser perfeita a torna ainda mais interessante. Se é comum vermos homens complexos como Don Draper (“Mad Men”) e Walter White (“Breaking Bad”), o mesmo não se podia dizer, até pouco tempo, das mulheres. Jessica é um refresco.

As cenas de luta também diferem bastante das de “Supergirl”. Lá, a heroína voa, enxerga através de portas, ouve tudo, solta raios pelos olhos, tem uma força descomunal. Tudo nela é “super”. As batalhas são cheias de efeitos e fica claro que aquilo nunca, nunca aconteceria no mundo real. Jessica é mais vulnerável. Ela é extremamente forte, mas basta uma bala para pará-la. Suas brigas são no corpo a corpo e embora a gente saiba que a vantagem dela, há uma sensação de que tudo pode acontecer.

Basicamente, as duas séries têm pouco em comum. “Supergirl” é daquelas que você pode passar um mês sem ver e retomar depois, tranquilamente, quando quiser se divertir um pouco. Já “Jessica Jones” é tão eletrizante que dá para ser vista toda num fim de semana. São séries para públicos e momentos distintos, o que é bom. Tanto uma quanto outra provam que a Sony se equivocou. Desde que seja bem feita, não importa se a produção tem um super-herói ou uma super-heroína.

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Cultura

Dois séculos de ‘Emma’

Dos livros de Jane Austen (1775-1817), “Orgulho e Preconceito” é provavelmente o mais conhecido. Entre os fãs mais fervorosos, o preferido talvez seja “Persuasão”. Mas para os críticos e estudiosos é “Emma” a obra-prima da escritora. O livro, que completa 200 anos em dezembro, ganha agora uma edição de luxo pela Penguin, e será tema de um curso na Universidade Oxford, no Reino Unido. O interesse de editores e acadêmicos num livro ambientado na Inglaterra do século 19 tem uma explicação: seus temas, como as barreiras entre classes e, principalmente, a independência feminina, ainda ressoam pelo mundo.

Emma, a protagonista do livro, é uma rica mulher de 20 anos mais interessada em arrumar pretendentes para as pessoas ao seu redor do que encontrar um marido. Convencida de que foi responsável por juntar a melhor amiga com o noivo, Emma resolve se tornar casamenteira, metendo constantemente os pés pelas mãos sem jamais reconhecer que está errada. Enquanto trama com a vida alheia, jura que não vai se casar e que prefere passar a vida a cuidar de seu pai e administrar a casa. Emma preza sua independência.

Apesar de bem-intencionada, a personagem é mimada e um pouco esnobe. Em carta enviada a um amigo, Austen afirmou, inclusive, que provavelmente ninguém gostaria de sua heroína. Mas são justamente seus defeitos que tornam a personagem mais interessante do que a quase perfeita Elizabeth Bennet, de “Orgulho e Preconceito”, por exemplo. Emma não é um modelo a ser seguido, mas alguém que qualquer um poderia ser. O amor por ela dificilmente acontece à primeira vista, mas aos poucos ela conquista o público por ser uma personagem cheia de camadas, real, com a qual o leitor consegue estabelecer uma conexão — numa época em que personagens femininas eram menos complexas.

“Certamente as pessoas se identificam com ela por causa de seus defeitos! O celebrado crítico Lionel Trilling (1905-1975) disse uma vez, nos anos 1950, que era notável que Emma tivesse uma vida moral, como homens têm uma vida moral”, diz Emma Clery, professora da Universidade Southampton que pesquisa Jane Austen e dará uma aula no seminário de Oxford em maio do próximo ano. “Ela representa uma grande mudança em relação às heroínas perfeitas da maior parte da ficção do século 18.”

Clery vê, inclusive, semelhanças entre a Emma de Austen e a Emma Bovary de Gustave Flaubert (1821-1880). “Há um descompasso entre a afirmação, no início do livro, de que Emma tem muito pouco para afligi-la ou aborrecê-la e as informações de que ela perdeu a mãe muito cedo, é efetivamente escrava de um pai velho, bobo e exigente, e vive quase sem amigos, aspirações ou esperança de mudança”, avalia. “Ela pode ser materialmente privilegiada e esnobe, mas tem um vazio espiritual que sugere um parentesco com Bovary.”

LEITURAS MÚLTIPLAS

Como sua protagonista, “Emma” melhora com o passar do tempo. Sandie Byrne, pesquisadora de Austen em Oxford, o leu pela primeira vez na adolescência e o releu “muitas vezes” desde então. “Encontro mais coisas para admirar e me divertir a cada vez”, conta. Octavia Cox, que dá um curso online de Jane Austen na mesma universidade, teve o primeiro contato com o livro aos 12 anos. Não gostou nem um pouco. “Era muito nova para entender as nuances. Jane Austen deve ser relida, na minha opinião.”

Já Juliette Wells, editora do novo volume da Penguin, o leu por obrigação na escola. “Se você tivesse me dito que um diria eu faria minha própria edição do livro, não teria acreditado!”, lembra. “Eu me surpreendi com quanto meu apreço por esse romance cresceu trabalhando com ele. Fiquei particularmente impressionada pelo grande domínio da linguagem de Austen. Ela escolheu as palavras com tanto cuidado e tanta inteligência.”

Para ela, “Orgulho e Preconceito” é o livro de Jane Austen mais fácil de se gostar, por causa da memorável história de amor entre Elizabeth e Mr. Darcy. “Razão e Sensibilidade”, por sua vez, se popularizou com o sucesso de sua versão cinematográfica, de 1995. Mas é em “Emma” que Austen se supera como escritora. “Ela cria uma história envolvente com elementos muito banais”, afirma. Diferente de outros livros, em que os personagens viajam e os cenários variam, “Emma” se passa no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, e mesmo assim consegue impressionar.

“Os críticos muitas vezes descrevem ‘Emma’ como a obra-prima de Austen: é menos agradável — com uma preponderância de personagens ‘difíceis’, incluindo a heroína –, mas é artístico e complexo. Austen tem um controle notável do enredo, construindo suspense e excitação com meios mínimos”, analisa Clery. “É nesse livro que seu uso do discurso indireto livre, que funde a voz do narrador com a perspectiva interna do protagonista, é usado com um estilo realmente virtuoso.”

Na opinião de Clery, “Emma” é um livro totalmente radical, quase como um protesto. “Austen virou as costas para o sucesso de ‘Orgulho e Preconceito’ e desafiou o gosto da época por melodramas, locações exóticas e eventos fantásticos”, diz. “E apesar de sombrio em espírito, tem muitas cenas engraçadas e alguns dos melhores personagens cômicos de sua obra.”

PATRICINHA DE BEVERLY HILLS

Duzentos anos depois, os temas do livro pouco envelheceram, afirma Wells. “Cada um de nós lida com relacionamento familiares, então reconhecemos algo nas descrições do livro de pais, filhos e irmãos. Todos nós pensamos em como achar um parceiro para a vida, então sua preocupação com namoro e esposos compatíveis é algo que compartilhamos”, diz.

“Os detalhes de nosso cotidiano e oportunidades são muito diferentes dos de seus personagens, mas os personagens em si nos lembram de gente que conhecemos graças à genialidade de Austen em observar e a seu talento para criar diálogos e atitudes críveis”, elogia a editora.

Clery concorda. “Críticos literários demonstram a importância de muitos temas de ‘Emma’ que ainda são atuais — feminismo, classes, a chegada da modernidade, a representação da subjetividade. Eu poderia falar mais e mais sobre isso”, afirma. “Eu me interesso particularmente na ênfase da economia na obra de Austen. Thomas Piketty, autor de ‘O Capital no Século 21’, o best-seller de economia do ano passado, discute bastante sua ficção, assim como a de Balzac.”

Talvez por isso a melhor adaptação de “Emma” para as telas seja justamente aquela que tira a trama do século 19. O livro já foi transformado, por exemplo, em minissérie e em um filme com Gwyneth Paltrow. Nenhuma dessas versões, porém, atingiu o sucesso de longas como “Orgulho e Preconceito”, com Keira Knightley, e “Razão e Sensibilidade”, com Kate Winslet, Emma Thompson e Hugh Grant. A adaptação de “Emma” lembrada até hoje tem outro nome: “As Patricinhas de Beverly Hills”.

No filme, que completou duas décadas neste ano, a história de “Emma” é transportada para os Estados Unidos nos anos 1990. Nele, Alicia Silverstone é Cher, uma adolescente riquíssima e bonita que resolve ajudar Tai (Brittany Murphy) a conseguir um namorado, sem perceber que o pretendente que arrumou está interessado nela e não na amiga, aos moldes do que acontece no livro. Como Emma, Cher gaba-se de não precisar de homens até perceber que seu par perfeito estava ali, ao seu lado, na pele de Paul Rudd.

Clery, Wells, Cox e Byrne são unânimes ao dizer que gostam das “Patricinhas”. “É um filme muito divertido e engenhoso ao encontrar equivalentes modernos aos personagens e situações originais”, opina Clery. “‘Patricinhas’ é otimo porque sua criadora, Amy Heckerling, reinterpretou o livro com muita liberdade. É um olhar novo. Amy pega algumas preocupações centrais de Austen — personagens, linguagem, tom — e inventa um mundo novo e colorido para brincar com elas”, completa Wells.

EDIÇÃO AMIGÁVEL

A nova edição de “Emma” (Penguin, 496 págs., R$ 90, em inglês) esteve na cabeça de Juliette Wells por vários anos. Embora seja considerado o melhor livro de Austen, os leitores de hoje podem ter dificuldades em entendê-lo e apreciá-lo, especialmente se não estiverem acostumados com a literatura do século 19, ela diz. “Já existem várias edições do livro maravilhosas, aprofundadas, com comentários de estudiosos. Mas não tinha nenhuma amigável para os leitores, que eu pudesse recomendar a alguém interessado em ler o livro pela primeira vez, ou depois de anos.”

Foi ela quem levou a ideia à Penguin, que gostou da proposta e lhe pediu para criar uma edição nova e acessível de “Emma” em comemoração a seus 200 anos. Seu objetivo declarado é tornar a leitura prazerosa e fácil, para agradar aos fãs antigos e, principalmente, apresentar Austen a quem não a conhece. “Em vez de notas de rodapé ou no fim do livro, que podem ser frustrantes se você não for estudante ou acadêmico, escrevi pequenos ensaios que dão o contexto e explicam tópicos importantes para o livro, desde relacionamento familiares a dança e comida”, conta.

Na introdução, por exemplo, fala sobre o trabalho de Austen e a importância de Emma para sua carreira e sua reputação. “São as questões que estudantes e leitores mais me fazem.” Há também um glossário com palavras que podem confundir o leitor do século 21. “Fiz essas escolhas pensando mais nos americanos, mas espero que leitores do resto do mundo também o aproveitem”, afirma. Tem ainda ilustrações de edições históricas do livro e sugestões de filmes e outros volumes que podem complementar a experiência.

Em 21 de maio do ano que vem, Sandie Byrne, Octavia Cox, Emma Clery e Freya Johnston darão um curso em Oxford, com inscrições abertas, por a partir de 65 libras. Serão dadas, ao longo do dia, quatro aulas, uma por cada professora: “Emma como experimento literário”, “Emma e voz”, “Austen, Emma e escrita” e “Quebra-cabeças e jogos em Emma”.

Tentando explicar por que Jane Austen é tão popular até hoje, Wells diz acreditar que o cinema e a televisão ajudaram a difundir sua obra, atualizando sua linguagem para agradar às novas gerações. Não há mal nenhum nisso, diz ela. Muitas das adaptações são divertidas e verdadeiras obras de arte por si só. A editora só espera que isso leve os espectadores a se tornarem leitores. E fazer seminários ou novas edições de seus romances ajudam a fazer isso acontecer. “Toda vez que você voltar aos textos de Jane Austen você vai ver que seu brilhantismo continua radiante como sempre”, complementa Clery.

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Crítica Televisão

Jessica Jones, a anti-heroína

Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.

A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.

Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.

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Marvel's Jessica Jones
Jessica Jones dando o famoso enquadro. Crédito: Divulgação

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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).

Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.

Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.

Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.