Refazer “Tarzan” a essa altura do campeonato não parece, a princípio, a mais sábia das decisões. Na história original de Edgar Rice Burroughs, publicada em 1912, Tarzan (nome que significa “homem branco” — dá pra imaginar o que vem por aí) é um filho de ingleses criado por macacos na África. Inimigo dos negros que lá vivem, tratados como bárbaros, Tarzan é o rei (branco) das selvas africanas. É uma história espinhosa para um filme, ainda mais em um ano de forte debate racial, principalmente nos EUA – do movimento Black Lives Matter ao Oscar com baixa representatividade. “A Lenda de Tarzan”, que estreia na quinta, dia 21, é um filme ciente dessas questões e cheio de boas intenções. Mas só isso.
Sua Jane (Margot Robbie) é uma mulher com opiniões, destemida, engenhosa, nada submissa. Os vilões são brancos europeus colonialistas que escravizam e matam congoleses para poder explorar os recursos naturais do país. Há um herói negro, George Washington Williams (Samuel L. Jackson), que encara qualquer perigo para denunciar os horrores que acontecem no Congo e seus nativos não são retratados como inimigos nem como selvagens. Mas, no fim das contas, continua sendo a história de Tarzan, o homem branco responsável por salvar tanto sua mulher — que apesar de dizer com todas as letras que não é “a donzela em perigo”, é a donzela em perigo — quanto os africanos, incapazes de se libertar sem ele.
Logo no início, um letreiro explica que na Conferência de Berlim o continente africano foi dividido por países europeus e que o Congo, rico em diamantes, ficou com a Bélgica. Dado esse contexto, a história começa com Tarzan (o sueco Alexander Skarsgård, cujo abdômen faz Chris Evans parecer um cara normal) diferente daquele que conhecemos, descamisado e cruzando a selva por seus cipós. Casado com Jane, vive na mansão de sua família na Inglaterra e atende por seu nome de batismo, John — ou por seu título, Lorde Greystoke. Leva uma vida pacata, até que recebe um convite do rei da Bélgica, Leopoldo II, para ir ao Congo numa missão diplomática. Tarzan não quer voltar às origens, mas é convencido por Jane, saudosa da África e das aventuras, e por Washington Williams, um americano que quer a ajuda de Tarzan para coletar provas de que a Bélgica está escravizando os congoleses.
O que Tarzan não sabe é que o convite para ir ao Congo é uma armadilha arquitetada por Leon Rom (Christopher Waltz, adicionando mais um vilão à sua coleção), braço direito do rei belga. Ele promete entregar Tarzan para o líder de uma tribo no Congo, que quer sua cabeça, em troca de diamantes, dos quais a Bélgica precisa para sair de uma situação financeira delicada. Como o trailer revela, Jane é capturada por Rom e cabe a Tarzan tirar a camisa para salvar não só a África como a mulher que ama, com Washington Williams ao seu lado.
A partir daí “A Lenda de Tarzan” vira um tipo de filme de super-herói. Os poderes de Tarzan são uma força descomunal (ele luta com um gorila. Crescer com gorilas não torna alguém forte como um gorila, é bom notar), uma capacidade de se mover por cipós que praticamente equivale a voar, e a habilidade de se comunicar com animais. Em vez de salvar Nova York, como os Vingadores, ou outra cidade americana qualquer, Tarzan quer libertar a África da escravidão e tornar o mundo um lugar melhor. Seu arqui-inimigo, um vilão que só falta torcer o bigode, também tem um ou outro truque na manga. E o que não faltam são efeitos especiais e cenas grandiosas.
Mas, se você quer ver um filme de super-herói, é melhor alugar um da Marvel em casa. Não ajuda que o foco seja colocado no personagem menos interessante entre os protagonistas — tanto Jane quanto George Washington Williams, ou até Rom, seriam melhores escolhas, personagens mais interessantes, complexos e divertidos que Tarzan. Skarsgård claramente se preparou horrores para o papel e passou meses em dieta para ficar com aquela barriga, mas seu Tarzan meio soturno, meio atormentado, não gera muita empatia. “A Lenda de Tarzan” tenta ser um Tarzan moderno, mas é previsível do começo ao fim. Da primeira cena ao confronto final, passando pelos flashbacks da origem de Tarzan, que todo o mundo conhece, não há surpresas, não há emoção.
Na tentativa de ser uma versão mais politicamente consciente do que as outras, “A Lenda de Tarzan” não só não atinge plenamente seus objetivos (não tem como, enquanto Tarzan for protagonista ele será um “branco salvador”) como é pouco original — um pecado grave no cinema. Depois de “Caça-Fantasmas” e com um novo “King Kong” à vista, fica o desejo de ver algo novo. Refazer “Tarzan” não é a mais sábia das decisões.
Sequências, remakes e afins não são novidade em Hollywood. Aliás, neste ano o que não faltou foram filmes desse tipo, de “Procurando Dory” a “Truque de Mestre 2” — sim, até “Truque de Mestre” ganhou uma continuação em 2016. Nenhum desses filmes, porém, foi recebido com tantas pedras na mão quanto “Caça-Fantasmas”, que estreia na próxima quinta, dia 14. Além de ter o trailer com maior número de avaliações negativas no YouTube (mais de 928 mil), o filme tem uma avaliação de 3,7 numa escala que vai até dez no IMDb, antes mesmo de estrear — portanto, antes de as pessoas que deram a menor nota possível terem visto mais que um punhado de cenas.
Entre os argumentos contra o novo “Caça-Fantasmas” alguns se destacam: 1) está na hora de Hollywood começar a investir em produções originais e deixar de lado as franquias estabelecidas, 2) refazer um filme de sucesso é uma estratégia caça-níquel e 3) mexer num clássico desses vai estragar de alguma forma a infância das pessoas. O primeiro ponto faz sentido, e provavelmente pouca gente discorda de que é bom ver coisas novas no cinema. Também é verdade que o número de remakes e continuações da vida é bem alto (quando “Branca de Neve e o Caçador” ganha uma sequência é realmente a hora de Hollywood parar pra pensar no rumo que está tomando). Mas onde estavam essas pessoas quando saiu um novo “Jurassic Park”, pra ficar em só um exemplo? Se partimos do princípio de que reboots vão ser feitos quer a gente queira, quer não, por que não com mulheres no elenco? Então quer dizer que mulheres não podem caçar fantasmas?
Em relação ao segundo argumento, o diretor de “Caça-Fantasmas”, Paul Feig, respondeu que todo filme lançado tem como objetivo ganhar dinheiro. Filmes não são feitos sem perspectiva de lucros, não há executivos bonzinhos querendo financiar produções porque o mundo merece ver aquela história nas telas. Se você pensar muito, também é um argumento defensável, seria muito bom se lucro não fosse a primeira coisa na cabeça das pessoas. Mas, para Hollywood, isso é inviável.
Sobre o terceiro: se a infância de alguém vai ser arruinada com um novo “Caça-Fantasmas”, sinto muito mesmo. Não deve ter sido fácil.
Ajuda a entender o ódio em relação a “Caça-Fantasmas” descobrir quem são seus maiores detratores. Para a surpresa de ninguém, eles são, em maior parte, homens. O site Screen Crush analisou o perfil de quem havia avaliado o filme no IMDb e constatou que 1.865 homens haviam se manifestado, contra 169 mulheres, uma diferença e tanto. Entre todas as pessoas que votaram, 57,7% deram a menor nota possível — novamente: sem ter visto o filme, que ainda não estreou –, mostrando a profundidade do ódio. Mas, comparativamente, as notas dadas por mulheres foram mais altas que as dos homens. Entre a crítica o filme vai bem melhor, com 75% de avaliações positivas no Rotten Tomatoes. Mas a Slate revela outro dado interessante: 88% das críticas escritas por mulheres são positivas, contra 71% entre os homens.
Não dá para falar do novo “Caça-Fantasmas” sem falar da questão de gênero no cinema. Dando uma olhada bem rápida nos comentários do YouTube você encontra várias opiniões estilo “lixo feminista polui Hollywood de novo!” ou “[mulheres] nem conseguem criar seus próprios esportes ou personagens” (argumento baseado no fato de que mulheres praticam boxe, “copiando” os homens. Tão absurdo que nem vale a pena rebater). Para esse tipo de comentarista, que sempre se viu no cinema nos inúmeros protagonistas homens, fazer com que mulheres se sintam representadas não só não importa como é um defeito, um fator que torna inviável a possibilidade de o filme ser bom.
“Caça-Fantasmas” chega ao cinema com uma responsabilidade grande. Se fosse ruim, poderia ser usado como prova de que não vale a pena investir em filmes protagonizados por mulheres — enquanto Melissa McCarthy é criticada cada vez que um filme seu não corresponde às expectativas, Johnny Depp faz há anos projetos fracassados sem maiores consequências. A boa notícia é que não é o caso. “Caça-Fantasmas” fica o tempo todo num terreno bem seguro e é menos original que “Missão Madrinha de Casamento”, pra ficar em outra comédia encabeçada por Kristen Wiig e Melissa McCarthy, mas é um bom passatempo e não ofende ninguém que entrar na sala de cinema com um espírito minimamente receptivo. Tiremos logo esse elefante da sala: não, “Caça-Fantasmas” não vai estragar sua infância.
No filme, Wiig é Erin, professora do departamento de física da Universidade de Columbia assombrada por um livro sobre fantasmas que escreveu anos antes com Abby (McCarthy). Prestes a receber uma promoção, ela descobre que a ex-amiga colocou o livro à venda e a reencontra depois de anos para pedir que ela tire o volume de circulação. Não é difícil prever que ela acabará convencida a abraçar novamente o entusiasmo pelo sobrenatural, formando um grupo de caça-fantasmas com Jillian Holtzmann (Kate McKinnon), colega de Abby responsável pelas invenções malucas, e Patty (Leslie Jones), funcionária do metrô e especialista na história de Nova York. A história é um pouco previsível: elas serão vistas como malucas até que uma grande crise que só elas podem resolver aparece. O que não chega a ser um problema — o sétimo episódio de “Star Wars”, que em muito lembra “Uma Nova Esperança”, está aí para provar.
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O problema é que “Caça-Fantasmas” está mais para divertidinho que hilário — o que tinha potencial para ser. Seu elenco é muito bom: Kristen Wiig é uma das melhores atrizes que saíram do “Saturday Night Live” nos últimos tempos, Melissa McCarthy é uma das comediantes mais famosas da atualidade (foi inclusive indicada ao Oscar, coisa rara na comédia hoje em dia) e Kate McKinnon e Leslie Jones são boas revelações, talvez o que o filme tenha de melhor. Até Chris Hemsworth, o Thor, mostra que sabe fazer comédia como Kevin, o secretário hipster hiper burro contratado por ser bonito. Com esse elenco “Caça-Fantasmas” poderia ser engraçadíssimo, mas é somente legal, uma comédia na média. Os fantasmas são muito bonitos, os efeitos são bons, você leva alguns sustos e, sim, dá algumas risadas (algumas piadas, infelizmente, são prejudicadas pela tradução). Também há um apelo aos saudosistas, com participações de quase todo elenco de “Os Caça-Fantasmas” de 1984, aparições do homem de marshmallow, do logo original do grupo e da famosa música-tema.
É um filme que tenta afagar os fãs do original, mas sem deixar de alfinetar quem o gongou na internet. Piadas com a repercussão negativa do filme aparecem aqui e ali: quando elas colocam no YouTube o vídeo de um encontro com um fantasma alguém escreve algo como “mulheres não caçam fantasmas” e Abby diz que não se deve ler comentários na internet. Outra referência é quando o vilão do filme diz que cansou de ser motivo de chacota e que agora vai se vingar fazendo bullying com os outros — o elenco disse em entrevistas que seus críticos eram nerds amargurados que viviam no porão da casa dos pais. Mas a melhor forma de responder a quem criticou sem ver teria sido fazer um filme excelente.
Numa visão “copo meio cheio”: “Caça-Fantasmas” não é o desastre que vai prejudicar outras comédias encabeçadas por mulheres e já é original pelo fato de que tem quatro (quatro!) protagonistas femininas. Para quem cresceu se vendo na tela na pele de secretárias, irmãs chatas, namorada do mocinho sem nenhuma profundidade, isso já é uma vitória. Mas é uma pena que Paul Feig não tenha usado as críticas precoces para jogar tudo pra cima e fazer algo mais fora da caixinha, tão bom que convertesse os céticos e acabasse de uma vez com essas críticas machistas.
Marcada por superações, a história do lutador José Aldo da Silva Júnior é daquelas que daria um filme. O campeão das artes marciais mistas, o MMA, venceu sua origem pobre e seu núcleo familiar violento para virar estrela do UFC, evento mundial mais importante da modalidade, em 2010. Seis anos depois, veja só, sua trajetória deu em filme mesmo: “Mais Forte que o Mundo”, de Afonso Poyart (diretor de “Presságios de um Crime”, com Anthony Hopkins), que estreia nesta quinta (16).
É bem verdade que o cinema brasileiro carecia de filmes “de lutador”, levando em conta que somos um “celeiro de craques” do UFC. Em conversa com jornalistas após a pré-estreia, Claudia Ohana até se confundiu: “É o primeiro filme de lutador brasileiro, não é? Para mim, ao menos, é”. Não é, embora seja a produção sobre esse universo mais relevante desde o documentário “Anderson Silva: Como Água”, de 2011. Com o bônus de abordar causas sociais pertinentes: o rincão amazonense nem sempre retratado no cinema, a violência doméstica, a pobreza.
A história começa com um jovem José Aldo, interpretado por José Loreto, frequentando aulas de jiu-jitsu de dia e se divertindo com amigos à noite. A Manaus em que vive é retratada de maneira sombria, e isso nada tem a ver com as chuvas equatoriais diárias — mesmo porque a locação real é a cidade de Santos, berço do diretor. É lá que habitam os demônios de José Aldo: o pai alcoólatra, que espanca a mãe, o inimigo da juventude que humilha sua família.
O tempo abre com sua chegada ao Rio de Janeiro, marcada por uma fotografia mais iluminada. Lá um antigo amigo, interpretado por Rafinha Bastos (uma “escolha polêmica”, como reconhece o diretor), lhe arranja estadia na academia de Dedé Pederneiras, papel de Milhem Cortaz. Para retribuir a hospedagem, o rapaz trabalha na limpeza e espera pelo dia em que o treinador lhe aceitará como pupilo. A semelhança com “Karatê Kid” vira até piada em cena.
O garoto finalmente chama a atenção de seu professor ao se meter em uma briga na lanchonete onde faz bicos por tentar proteger Vivianne Oliveira, par romântico de José Aldo, vivido por Cleo Pires. O casal se apaixona durante as aulas de muay thai da moça, o que ilustra bem a relação vindoura de intensidade e atritos. A partir daí, a jornada do herói foca mais em sua construção e conflitos que em seus feitos.
A certa altura, a personagem de Thaila Ayala, namorada do esportista e amigo Tony Mendigo (interpretado por Felipe Titto), diz: “Bom lutador é aquele que sabe brigar consigo mesmo”. A metáfora que dá forma ao conflito psicológico do protagonista surge logo no início do filme, com uma história de seu pai, que adora contar parábolas. Uma delas discorre sobre o abate de um boi por uma sucuri: o mamífero não percebe a serpente se esgueirando enquanto bebe água. A cobra sorrateiramente envolve sua presa, que, quando se dá conta, já é tarde demais.
José tem de lidar constantemente com a figura paterna em sua vida. A atuação de Jackson Antunes como o pai, inclusive, é brilhantemente delicada: não é vilão, mas também não é um herói. O nome não é o único atributo que José Aldo herda do progenitor, um dos principais responsáveis pela raiva destemperada do filho, ao mesmo tempo em que é apontado pelo atleta como seu “maior incentivador”. O ódio é um sentimento dicotômico, a gasolina que pode ser combustível para o sucesso ou explosivo para o fracasso. Essa é preocupação de seu treinador: “Você gosta de brigar, eu quero te ensinar a lutar”. Será José Aldo o boi ou a sucuri?
O diretor calcula que “cerca de 30%” da trama foi inventada. A personagem de Paloma Bernardi, por exemplo, é um dos recursos fictícios usados. A garota é meio amiga, meio caso adolescente do protagonista e serve como ponte entre ele e seu passado. Do lado da realidade, fica a boa ideia de usar o cinturão real na cena de seu triunfo no UFC, artigo emprestado do próprio lutador.
O elenco reúne nomes conhecidos, inclusive em papéis menores, como o humorista Robson Nunes e os atores Thaila Ayala, Jonathan Haagensen e Felipe Titto. As personagens femininas têm importância na trama e são fortes, não tolerando os abusos que sofrem.
O filme tem a intenção de ser um “divisor de águas na carreira de José Loreto”, como profetiza o colega Jackson Antunes. Primeiramente oferecido a Malvino Salvador, a expectativa é de que o papel principal transforme o ator — apesar de pálido demais para viver o manauara— em mais que um rostinho bonito. A direção de Poyart traz a característica violência já conhecida em “2 Coelhos”, com cenas de brigas bem coreografadas, perseguições em automóveis e embates no octógono. O filme funciona em várias camadas: a ação, o romance, o drama. Quem vai ao cinema para assistir a um filme “de lutador” sairá da sala mais que satisfeito.
Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.
Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.
É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.
Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.
[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]
De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.
No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.
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Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.
Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.
A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.
Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.
Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.
É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.
Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.
Quando “Mad Max: Estrada da Fúria” estreou em maio do ano passado, George Miller já havia passado mais de uma década trabalhando no projeto. Catorze anos antes, o diretor atravessava a rua quando teve uma ideia para mais um “Mad Max” — coisa que não pensava em fazer. Deixou o pensamento de lado. Mas dois anos depois, num voo dos Estados Unidos para a Austrália, não conseguiu dormir e começou a desenvolver a ideia. A princípio, o protagonista seria Mel Gibson, o mesmo dos três filmes anteriores da série. Mas depois do 11 de Setembro, em 2001, o dólar americano se desvalorizou em relação ao australiano e eles perderam boa parte da verba para fazer o filme.
O projeto atrasou, mas de vez em quando uma notícia ou outra a respeito do filme pipocava. Em 2013, por exemplo, o site IGN afirmou que uma de suas fontes havia assistido a uma versão não finalizada do filme e que estava incrível. “‘Mad Max’ talvez seja ótimo”, dizia o título da reportagem. Mas quando estreou, “Mad Max” era mais um de uma série de sequências, remakes, reboots que tanto aparecem hoje em dia em Hollywood. Quando o último “Mad Max” tinha chegado aos cinemas, em 1985, o ator Nicholas Hoult — o Nux de “Estrada da Fúria” — não era nem nascido. Fazia muito tempo. Entre esses filmes, Miller havia dirigido dois filmes sobre o porquinho Babe e duas animações sobre pinguins que cantam e dançam (“Happy Feet”). O que esperar de um novo “Mad Max”?
UM ANO ATRÁS
Qualquer que fosse a expectativa, a realidade provavelmente a superou — só o fã mais incrivelmente otimista poderia ter esperado um sucesso maior. A crítica foi praticamente unânime e “Mad Max: Estrada da Fúria” foi um dos filmes mais bem avaliados do ano passado. No Rotten Tomatoes, que dá uma nota aos filmes baseado em críticas de muitos veículos, o longa tem hoje 97% de aprovação — um pouco mais que o vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, “Spotlight”, que tem 96%.
Um exemplo, da Atlantic: “Foram 30 anos desde que o diretor George Miller (ou qualquer um) fez um filme de Mad Max, e era fácil ver essa nova sequência/reboot/o que for com certa quantia de ceticismo. Mas o ceticismo queima como vapor no calor da árida distopia que Miller criou. Estrada da fúria é um filme B nota A+, um filme de ação tão vívido e visceral, tão impactante em concepção e extraordinário em execução, que é quase uma revelação”. Para a New Yorker, é uma das raras ocasiões em que uma continuação é melhor que os filmes anteriores e que, embora não dê pra saber se vai sobreviver ao tempo “pro bem ou pro mal, ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ tem tudo que a gente deseja de um filme agora e leva isso ao limite”.
Além de sucesso de crítica, “Mad Max” foi bem em público. Segundo o site Box Office Mojo, o filme arrecadou no mundo US$ 378,4 milhões — o custo foi de aproximadamente US$ 150 milhões. Mais: o filme ganhou mais prêmios no Oscar deste ano que qualquer outro (foram seis vitórias). Não só dominou as categorias técnicas como também chegou como candidato com chances em categorias como melhor filme e, principalmente, diretor. Mas como “O Discurso do Rei” (sucesso de crítica e vencedor do Oscar) e “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (sucesso de público) estão aí para provar, nada disso basta para que um filme não caia no esquecimento ou seja lembrado com carinho.
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NOS DIAS DE HOJE
Na semana passada, um ano depois do lançamento de “Mad Max: Estrada da Fúria”, um novo trailer do novo “Os Caça-Fantasmas” — com uma equipe de mulheres caça-fantasmas — foi recebido com desdém no YouTube — o primeiro foi o trailer com mais avaliações negativas no site (mais de 800 mil). Alguns exemplos de comentários, entre os primeiros na página do vídeo enquanto este texto era escrito (sério, não é preciso muito esforço pra achar opiniões do gênero): “Vamos arruinar um filme original e colocar só mulheres pra agradar feministas misândricas! Se isso não é sexista, eu não sei o que é” ou “Tá vendo? Feminismo e igualdade não funcionam”.
No dia 16, um usuário do YouTube postou um vídeo que já passou de 1 milhão de visualizações em que diz que não irá assistir ao filme, irritado com o fato de que o elenco original não voltou e que o uso do nome “Os Caça-Fantasmas” é uma forma fácil de o estúdio ganhar dinheiro. No caso, ele não chega a dizer que não quer assistir ao filme porque as protagonistas são mulheres, mas em um minuto é fácil elencar pelo menos 20 filmes que sejam reboots/continuações de outros com atores diferentes — de “Jurassic World” a “Onze Homens e um Segredo” passando por vários filmes de super-heróis. Vamos ter o terceiro Homem-Aranha desde 2002 e ninguém reclamou assim quando Tom Holland ganhou o papel.
Nem o sucesso de “Mad Max: Estrada da Fúria” foi capaz de mudar essa discussão. Apesar de o personagem de Tom Hardy estar no título, a verdadeira protagonista do filme é a Furiosa de Charlize Theron. A história toda é sobre mulheres, na verdade, e Max é apenas um auxiliar na história delas. Furiosa é parte da equipe do tirano Joe, que controla o acesso da população à água num mundo árido. Mas, sem que ele saiba, ela resgata suas cinco jovens esposas, selecionadas para que ele se reproduza, e parte de carro em busca a um paraíso verde controlado por mulheres. Em uma das cenas, bastante simbólica, Furiosa usa Max para se apoiar enquanto atira. Elas não são donzelas em perigo, são personagens completas, que partem para a ação. Não à toa, grupos de direitos masculinos manifestaram seu descontentamento à época do lançamento. Familiar?
Outro exemplo recente: neste mês, Kevin Feige, da Marvel, disse que, dentre os personagens dos filmes lançados até agora que não tinham ganhado um filme solo, eles estavam “mais comprometidos emocionalmente e criativamente” em fazer um longa da Viúva Negra. Scarlett Johansson estreou no papel em “Homem de Ferro 2”, em 2010. Desde então Capitão América, Thor e Homem Formiga ganharam seus próprios filmes, e já há datas para que Homem-Aranha (de novo: o terceiro desde 2002!) e Pantera Negra se juntem a eles. Que bom que a Marvel está comprometida a fazer um filme da Viúva Negra — uma personagem com ótima história e interpretada por um dos nomes mais conhecidos do universo dos Vingadores –, mas enquanto não houver planos concretos isso significa pouco mais que nada.
Uma última notícia relacionada, também da última semana (não precisa ir longe): Shane Black, diretor de “Homem de Ferro 3”, declarou que o papel de Rebecca Hall no filme, como vilã, seria bem maior, mas que a Marvel vetou a ideia, dizendo que eles venderiam menos brinquedos assim. Afinal, todo o mundo sabe que meninas não gostam de brincar com bonecas, né?
Nesse sentido, “Mad Max” continua tão relevante um ano depois quanto no dia de seu lançamento. Pra quem, surpreendemente, ainda duvida que mulheres possam protagonizar bons filmes de ação ou acha que fazer sequências/reboots/remakes com mulheres nos papéis principais só pode dar errado, o filme prova que tudo isso é uma grande bobagem. Porque “Mad Max: Estrada da Fúria” é um filme de ação muito bom.
George Miller quis fazer algo que qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo pudesse entender sem legendas e deu muito certo. São poucas falas e um roteiro bem simples — tanto que foi pensado como um storyboard –, e o espectador já é jogado no meio da ação, sem muita explicação para quem são aquelas pessoas ou o que está acontecendo. Não é um filme que destaca as atuações, não é um filme para quem gosta de histórias complicadas e nem tem diálogos que as pessoas citarão daqui anos. Mas não há buracos, acontecimentos sem sentido, personagens incoerentes. É o anti “filme isca de Oscar” que alcançou o feito de competir de igual com igual com os dramas, raro para comédias ou filmes de ação.
Por ser um filme mais visual, vê-lo fora do cinema, numa tela de computador, por exemplo, é bem pior. Taí um filme para não ver no avião. Quanto maior a tela e melhor a resolução, melhor. Também sempre há o risco de que os efeitos especiais envelheçam mal, como em “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (e, possivelmente, “X-Men: Apocalipse” — palpite pessoal). Por enquanto, não é o caso. Um ano depois de estrear nos cinemas, “Mad Max: Estrada da Fúria” continua 100% atual.
O novo filme dos X-Men estreia nesta semana, né?
Sim, na quinta (19). “X-Men – Apocalipse”.
E aí, é tão bom quantos os últimos?
Nossa, não.
Mas é ruim?
Não chega a ser ruim, ruim. Mas é bem médio. Pra se ver uma vez na vida — no avião, se não der pra ver no cinema.
O filme tem o Oscar Isaac, não? Como pode ser ruim?
Sim, ter o Oscar Isaac costuma ser ótimo, mas nesse caso não é tão legal na prática quanto parece na teoria.
Mas é o Oscar Isaac.
Verdade, mas…
Ai, jura?
Infelizmente. É um desperdício de Oscar Isaac.
Por quê?
Bom, pra começar a gente só vê o Oscar Isaac de verdade durante uns 30 segundos, no comecinho do filme. Depois ele aparece todo azul — mas não de um jeito legal, tipo Noturno azul, ou Fera azul ou Mística Azul (tem muita gente azul nesse filme). É um azul meio tosco, meio vilão dos Power Rangers. Você escala o Oscar Isaac, o namorado dos sonhos de metade da internet, e deixa ele irreconhecível! Seria ok se a maquiagem fosse bem feita, se o Apocalipse desse medo, fosse imponente. Mas não. Longe disso.
Ok, tudo bem que a aparência dele não seja das melhores, mas e o papel? Deve ser um bom vilão, né? Afinal, é o Apocalipse. Não faz sentido escalar o Oscar Isaac se for pra cobri-lo completamente e ainda ser um papel ruim.
Concordo, não faz sentido mesmo. Mas a vida é assim. As motivações do Apocalipse não chegam a ser incompreensíveis como as do Lex Luthor em “Batman vs. Superman” e esse é o maior elogio que podemos fazer a ele.
Mas qual é a dele?
A história começa no Egito antigo, com o En Sabah Nur, o primeiro mutante da Terra, adorado como um Deus. Ele é hiper poderoso e consegue transferir sua consciência de um corpo pro de outro mutante. Assim, ele fica eternamente jovem e ainda consegue pegar os poderes da pessoa. No comecinho do filme ele se transfere para o corpo do Oscar Isaac, só que durante essa passagem ele é traído, acaba soterrado e passa milênios debaixo da terra, adormecido. Esses são os primeiros cinco minutos do filme.
Certo, e aí?
Aí ele acorda nos anos 1980 de uma forma bem idiota que vamos deixar passar porque é spoiler. Ele acorda meio chocado com o fato de que os humanos estão dominando a Terra e resolve acabar com o mundo e recomeçar do zero com os mutantes que estiverem do seu lado. O plano não é lá muito elaborado mesmo: recrutar uns mutantes pra ajudá-lo (apesar de que ele conseguiria fazer tudo sozinho), tocar o terror e destruir tudo.
E esse En Sabah Nur é o Apocalipse?
Isso, apesar de não se referir a si mesmo assim. Quando a Moira MacTaggert, da CIA, vai explicar qual é a dele pro Professor Xavier, ela diz que ele é capaz de causar um… Apocalipse.
Uau.
Sim.
Continua.
Certo. O Apocalipse sempre tem quatro capangas mutantes. A primeira que ele recruta é a Tempestade, no Egito mesmo. Além do poder dela de controlar o clima, é a primeira mutante que ele encontra, então faz sentido ele trazer ela pro time. Entre os poderes do Apocalipse está fortalecer o poder dos outros e criar uniformes super legais. Depois de deixar a Tempestade mais forte e, no processo, deixar o cabelo dela branco, eles viajam e encontram a Psylocke, que também se junta a eles — apesar de ela não acrescentar muito ao time. É ela quem apresenta o Anjo, que é ainda menos relevante como guarda-costas de um vilão tão poderoso — tipo muito poderoso mesmo. Quase nem tem graça ver um vilão desses em ação.
Pô, mas legal, eu adoro esses personagens novos!
Não se anime muito, cada um deles tem tipo três falas no filme todo. O capanga que importa mesmo é o Magneto.
Por que eles escolhem o Magneto?
Não fica muito claro. Mas deve ser porque ele ficou famoso no último filme, depois de tentar assassinar o presidente americano. Não questiona muito, vai.
Ok.
Agora que esses quatro mutantes estão mais fortes e bem vestidos (com exceção da Psylocke, que podia estar menos “sexy” e mais confortável pra lutar), eles resolvem ir atrás do Professor Xavier. O Apocalipse é quase onipotente, mas ele acha o poder do Xavier o máximo e quer isso pra ele. Então ele vai atrás do Xavier e é aí que entram na história Mística, Fera e Mercúrio — que já apareceram nos dois últimos filmes da série — e Ciclope, Jean Grey e Noturno, que lutam pra destruir o Apocalipse.
É bastante personagem.
Sim, e é feito de um jeito em que nem todas as histórias ganham o espaço que merecem. É tudo bem corrido, muitas tramas diferentes.
Mas todos se encontram numa grande luta final?
Isso mesmo.
Então, no fim, tem vários super-heróis lutando uns contra os outros? Parece que eu já vi isso antes.
Sim, só neste ano aconteceu com o Batman e o Superman e com uma dúzia de heróis em “Capitão América: Guerra Civil”.
E esse filme tá mais pra Batman ou Capitão América?
Rapaz, bem no meio. No “Guerra Civil” a gente conhece bem todos os personagens e dá pra entender tanto as motivações de cada lado quanto as consequências dessa briga. Nesse X-Men não dá pra entender exatamente o que leva os capangas do Apocalipse (com exceção do Magneto, cuja versão Michael Fassbender já conhecemos de outros carnavais) a se juntarem a ele. O conflito simplesmente não é muito interessante. Não que seja uma briga totalmente sem pé nem cabeça, mas é só… um pouco previsível. Dominar o mundo é um plano genérico. O objetivo do Apocalipse é bem parecido com o do Cérebro de “Pinky e o Cérebro” em nível de profundidade.
Que desperdício de Oscar Isaac.
Nem me fale.
Tá, e a parte boa do filme?
As atuações são boas, apesar de o roteiro ser bem mais ou menos. O “bromance” entre o Magneto de Fassbender e o Professor Xavier de James McAvoy continua forte e os dois fazem o que podem com a história que recebem. Os novos atores também estão bem, principalmente aqueles do time Xavier, que têm mais tempo de cena. É legal ver o começo da relação do Ciclope com a Jean Grey, ver a Tempestade ganhar seu cabelo branco e ver o Professor Xavier finalmente ficar careca. O Mercúrio de Evan Peters também é bem legal, apesar de sua melhor cena ser repetida de “Dias de um Futuro Esquecido”.
Aquela em que ele vai mexendo nas coisas enquanto tudo está em câmera super lenta?
Essa mesmo. Foi a melhor parte do último filme e a demonstração dos poderes dele é um dos destaques desse. O papel não é dos maiores, mas Evan Peters mostrou que tinha carisma e humor lá em 2004 no filme tão ruim que chega a ser (quase) bom “Dormindo Fora de Casa” (que também tem a atual vencedora do Oscar Brie Larson, surpreendentemente) .
Peraí, não muda de assunto. E as lutas? São boas? Diz que sim?
Olha, pra quem gosta de destruição (pontes caindo, prédios indo pelos ares, explosões variadas) é um prato cheio. Tem muitos efeitos especiais — julgue como quiser. O trailer dá uma boa ideia.
Ok, então no fim das contas, é pra eu ver ou não?
Vá ver, claro. Você não vai sair achando que gastou duas horas e meia da sua vida à toa. Mas, como na primeira trilogia de “X-Men”, o terceiro é o pior. Depois de “Primeira Classe” e “Dias de um Futuro Esquecido”, e depois de filmes como “Deadpool” e “Capitão América: Guerra Civil” lançados neste ano, a gente esperava mais.
Neville D’Almeida começa o papo perguntando quanto tempo a entrevista vai demorar. Sugere duas conversas, de 15 minutos cada uma, para não cansar. Sabe como é, não é lá muito confortável falar tanto tempo seguido no celular. Mas logo de cara dá pra perceber que é impossível conversar por apenas 15 minutos com Neville. A conversa vai crescendo, crescendo, indo por caminhos improváveis — passando pelos dois únicos estadistas do mundo, em sua opinião, pela fase pornográfica de Picasso e pela série “Breaking Bad” — até que, quando você vê, já se passou uma hora. Neville também é daqueles que pergunta, como se estivesse numa conversa mesmo, não numa entrevista. Pergunta minha idade, minha opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e não fica satisfeito com uma resposta evasiva. “Quando você vier pro Rio a gente faz um vídeo”, promete.
Diretor de “A Dama do Lotação”, uma das cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, Neville volta ao cinema depois de 18 anos sem lançar um longa, com “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que estreou no dia 28 de abril. O cineasta não mede as palavras para explicar a ausência de quase duas décadas das salas de cinema. “A resposta é: [por causa da] mediocridade e hipocrisia dos produtores brasileiros. Falta de visão, burrice, incapacidade diante dos verdadeiros talentos, que é o meu caso”, diz. Fazer cinema hoje sem fazer parte de panelinhas é praticamente impossível, em sua opinião. “Dá pra fazer, sim, mas os produtores não vão querer produzir e os exibidores não vão querer exibir.”
Segundo Neville, o Brasil é uma “república de filhos”. Só quem é parente de alguém bem relacionado consegue fazer cinema. “Os filhos estão sempre fazendo, fazendo. É uma coisa… Como chama isso? Essa coisa de família, dentro da política?” Nepotismo? “Isso, total. O cinema também é vítima disso.” Sem ter contatos em festivais, por exemplo, é dificílimo de emplacar um filme. “O Festival do Rio é um exemplo de nepotismo total e absoluto. Mais do que isso. Da falta de alternância de poder”, diz. Como dois casos positivos, cita os festivais de Brasília e Gramado, em que há uma rotatividade maior de curadores (“déspotas medíocres”, diz Neville). “Isso é muito saudável pra democracia. Mas aqui no Rio não é assim que se faz. Está há 20 anos a mesma turma. E é a ditadura do gosto. ‘Aqui é o que eu gosto, o que eu acho, o que eu penso.’ A censura acontece através das comissões dos festivais, de uma forma violenta, ditatorial, sem dar nenhuma satisfação pro cineasta. Seu filme não foi escolhido e acabou.”
O hiato terminou graças a um convite do produtor Carlos Alberto de Carvalho, que lhe chamou para fazer um filme baseado num texto do dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “A gente escolheu ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’ pela originalidade de falar de festas em favela”, diz ele. No filme, um grupo de fúteis jovens ricos do Rio de Janeiro aluga uma laje na favela para fazer festas cheias de sexo e drogas pelo fetiche de estar no morro. É um longa bem teatral: poucos personagens, ação que se passa em um único dia, concentrada em pouquíssimos cenários e muitos diálogos carregados de palavrões. Caras menos conhecidas dividem espaço com Bruna Linzmeyer e Chay Suede, em papéis que pouco lembram seus trabalhos em novelas da Globo — ela, uma prostituta que vai às festas atrás de drogas; ele, um cara que troca drogas por boquetes das amigas.
Mesmo sendo convidado para fazer o longa, a jornada de Neville não fácil nem curta. Foram sete anos desde o início do projeto até sua conclusão, “devido a censura dos editais e da Ancine”, segundo o cineasta. Sem financiamento, o filme demorou a sair. “Eles preferem diretores que fazem tudo politicamente correto. É espantoso”, reclama o diretor.
Se tem algo que Neville não é é politicamente correto. Um dos fundadores do cinema marginal, teve vários filmes censurados na época da ditadura militar. “A coisa mais importante pra um artista é um instrumento chamado liberdade. Eu, numa ditadura militar, numa caretice total, fiz um cinema desses a vida inteira. As consequências foram terríveis. Cinco filmes proibidos, jamais exibidos, falta de dinheiro, frustração, sofrimento, ansiedade. Mas valeu a pena. Não vou fazer o que a censura diz”, afirma. “Vou fazer o que não pode. Outros pensaram de forma diferente. Não faço filme pra puxar saco, pra agradar. Faço o que tem que ser feito porque sou um artista. Até no Vaticano tem o Davi pelado com o pau pra fora. O cinema hoje não tem isso.”
[olho]”Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar”[/olho]
A cruzada contra a caretice, usada para garantir público, é uma coisa que ele leva a sério. Quase não vai ao cinema “pra não ficar mal influenciado, pra não ficar vendo essas porcarias”. “Star Wars”? Careta. “Agora reeditaram ‘Star Wars’. ‘Star Wars’ é uma chanchada. Chanchada é o nome daquela porcaria. E os caras voltaram a fazer. A moda continua anos 70 careta. A caretice continua. Hoje é tudo anos 60 e 70: Batman, Superman, Star Wars. Só porcarias. O mundo está perdido”, diz. “Eles levaram a guerra pro espaço. Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar. Isso é lixo total.” Também não poupa críticas a seriados americanos. “Sei de todos, mas acho todos um lixo, um retrato medíocre da sociedade americana. Mais ainda: são todos iguais.” “Breaking Bad”? Porcaria. Em série americana, diz, só se reafirma a cultura da violência, do “quanto mais escroto melhor”. “Todo cara acaba com um revólver na mão e daqui está matando um, ou por causa de dinheiro ou sexo. Quem faz sexo tem que morrer. É um moralismo.”
Para seu jovem elenco, só elogios, justamente pela disponibilidade em sair da zona do conforto. Bruna foi a única convidada pelo diretor, que já tinha visto alguns de seus trabalhos e ficado impressionado com sua força dramática. “Ela tem 23 anos, mas parece que tem 40 em maturidade, em coragem de viver intensamente um personagem marginal”, elogia. Em sua opinião, muitos atores censuram os próprios personagens e só querem saber de fazer propaganda de sandália Havaianas. “É fácil ficar fazendo novela: abre a porta, fecha a porta, atende o telefone, desliga o telefone. Essas coisas medíocres estão em alta. Atrizes medíocres gostam de fazer propaganda de produtos medíocres mais do que de grandes personagens”, opina. Bruna foi chamada à casa de Neville, que lhe perguntou se ela estava disposta a viver o personagem intensamente. Topou. Já Chay Suede chegou ao diretor por meio de testes e foi “brilhante”. “Eu o considero um ator extraordinário. É muito bom trabalhar com ele, nos tornamos amigos. É um homem simples, honrado, sério, honesto, talentoso. Não é mascarado.”
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Depois de estourar como protagonista da primeira fase da novela “Império” e de interpretar um mocinho em “Babilônia”, Chay Suede realmente mostra outra faceta. “A Frente Fria que a Chuva Traz” mostra, de fato, pouca coisa. Moças de sutiã e olhe lá. Mas os diálogos são bem carregados e os temas, bem diferentes do que se vê na televisão, de onde veio. Liberdade, afirma Neville, é a única coisa que resta ao cinema para se manter relevante frente às outras formas de produção audiovisual. O que não sair da casinha ou a TV ou a internet podem fazer tranquilamente, e fazem. O bom cinema deve ser livre — o que não acontece no momento. “O cinema não é uma arte livre. É uma arte cativa, amarrada em correntes. Isso pode, isso não pode. É cheio de amarras. Não pode ser com a luz acesa, tem que ser com a luz apagada. O cinema do futuro é um cinema de arte”, diz. “Deus não está aqui pra reprimir. Ele quer os artistas livres. ‘Não pode fumar, não pode foder, não pode peidar.’ Deus quer os artistas com liberdade pra expressar sua época. Ele não trabalha na censura.”
Agora, Neville D’Almeida trabalha em dois projetos. Um deles se chama “A Dama da Internet”, sobre a mulher no Brasil de hoje. O segundo, “Bye Bye Amazônia”, é sobre a morte anunciada da floresta, causada por quatro fatores: “o etanol, a soja, o gado e a madeira”. “Você vê, por exemplo, que a Dilma colocou como ministra da agricultura a Katia Abreu, líder do agronegócio, da destruição não só da Amazônia, mas dessas coisas todas.” Espera não ficar mais tanto tempo afastado do cinema. “Acho que vou poder fazer”, diz, otimista.
Sem meias palavras: “Capitão América: Guerra Civil” é um filme ótimo – e não só um “filme de herói” ótimo. Lançado pouco tempo depois de “Batman vs Superman”, fica ainda melhor (desculpe, Ben Affleck, você fez o que pôde). No papel, há bastante coisa em comum entre os dois filmes: uma discussão sobre a destruição nas cidades causadas pelas épicas batalhas entre heróis e vilões, o valor de vidas individuais em comparação com o bem maior, que é conter os tais vilões, super-heróis cujas visões divergem e, por isso, brigam em longas sequências de ação. O ponto de partida é mais ou menos parecido, mas os caminhos tomados por cada filme são muito diferentes.
Enquanto por décadas estudiosos debaterão as motivações de Batman, Superman e, principalmente, Lex Luthor, em “Capitão América” é possível entender o lado de cada personagem, sentir as dúvidas que cada um deles tem sobre suas posições e a dificuldade que é ficar contra um amigo. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois e vamos à premissa: uma batalha dos Vingadores em Lagos, na Nigéria, resulta na destruição de um prédio e na morte de inocentes. Não é a primeira vez que isso acontece, como o filme lembra a seguir, retomando lutas como as de “Vingadores: Era de Ultron”, na fictícia Sokovia, e de “Os Vingadores”, em Nova York. Cada vitória contra um vilão vem com um preço. Até então, os Vingadores agiam por conta própria, e o governo americano quer colocar o fim nessa situação, fazendo um acordo para controlá-los, num esforço entre outros países do mundo. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades e a nova regra é: super-heróis também devem se sujeitar à regulação.
Logo dois lados se formam. Tony Stark, o Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), movido pela culpa, é a favor do acordo. Do seu lado ficam Visão (Paul Bettany), Máquina de Combate (Don Cheadle) e a Viúva Negra (Scarlett Johansson) — e os novos recrutas Homem-Aranha (Tom Holland) e Pantera Negra (Chadwick Boseman). Cada um ali tem uma razão, que não cabe aqui explicar. Capitão América, porém, acha que é fundamental que eles mantenham a liberdade. E se houver uma ameaça e eles não puderem agir? Para ele, o mundo estará mais seguro se os heróis puderem resolver os problemas do jeito que acharem melhor — é um mundo estranho em que o bilionário quer mais regulação do Estado e o ex-militar patriota vai contra o governo – algo que só faz sentido por causa de todos os outros filmes da série, que nos prepararam para esse momento.
Com o Capitão América ficam a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), Falcão (Anthony Mackie) e o Homem-Formiga (Paul Rudd). O clima ali já não era dos melhores e fica ainda pior quando Bucky Barnes (Sebastian Stan), melhor amigo do Capitão América, entra no meio da história: um lado quer capturá-lo, outro quer salvá-lo.
[olho]Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados[/olho]
É uma boa discussão e o roteiro, redondinho, faz com que todos os lados da questão sejam razoáveis, coerentes. Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados. Sabemos quem é o Capitão América, já o vimos em vários filmes diferentes. Também sabemos quem é o Homem de Ferro, sabemos o quanto está em jogo para cada um deles. Quando, na cena do trailer, Capitão América diz para o Homem de Ferro que Bucky é seu amigo e ele responde “eu também era”, há um peso ali. Com tantos personagens em cena (realmente, são muitos), é difícil dar a cada um seu próprio arco, construir pessoas complexas, com motivações compreensíveis e diferenças difíceis de serem resolvidas.
Os novos personagens, aliás, são quase todos introduzidos com perfeição. O Pantera Negra de Chadwick Boseman, que tem um papel importante na trama, anima para seu primeiro filme solo, que estreia em 2018. Como alguém que não tinha embarcado completamente na ideia de um terceiro Homem-Aranha em tão pouco tempo, devo dar o braço a torcer e reconhecer que a participação de Tom Holland é excelente. Seu herói tem personalidade, empolga e é engraçado. Outro ponto a favor de “Capitão América”: o filme não é só (ótimas) lutas e grandes discussões. Ele é divertido — e as melhores piadas não foram reveladas no trailer. O ponto fraco é o vilão, Zemo (Daniel Brühl). Ele não compromete, mas é apenas ok. Em um filme com tantos heróis, era de se esperar um vilão mediano.
Que Robert Downey Jr. seja todo o ano o ator mais bem pago do mundo, à frente de, por exemplo, Jennifer Lawrence com seu conjunto “Jogos Vorazes + X-Men + várias indicações ao Oscar”, não cansa de me surpreender. Mas foi com seu Homem de Ferro que a Marvel inaugurou esse universo, com tantas histórias entrelaçadas. Foi uma estratégia e tanto, do ponto de vista deles (quem acompanha o universo provavelmente vai continuar vendo os filmes) e do espectador, que sabe que em algum ponto do ano vai ter um filme que pode ser incrível, mas no mínimo será reconfortante como uma macarronada de domingo. No caso de “Capitão América: Guerra Civil”, felizmente, o nível está mais próximo do “incrível”.
Os vídeos que antecederam a estreia de “Ave, César!”, nesta quinta (14), no Brasil, formam um retrato curioso. Em um deles, Channing Tatum, vestido de marinheiro, canta uma música sobre a ausência de damas no período em que estará no mar. Em outro, Ralph Fiennes tenta repetidas vezes ensinar Alden Ehrenreich a pronunciar uma frase simples, sem muito sucesso. Há ainda cenas com George Clooney, Tilda Swinton, Josh Brolin e Scarlett Johansson. Muitos personagens, pouca revelação sobre a trama da história. É um bom prenúncio do que vem pela frente. O filme dos irmãos Joel e Ethan Coen é quase que uma sucessão de esquetes frouxamente ligados — e muitos deles bem engraçados.
O elo comum entre as histórias é Eddie Mannix (Josh Brolin), responsável por resolver qualquer problema no estúdio de cinema em que trabalha: encobrir escândalos, lidar com os colunistas de fofocas, resolver queixas de diretores, antecipar reclamações do público em relação aos filmes, entre outros pepinos que aparecem pela frente. Seu maior desafio é lidar com o desaparecimento do ator Baird Whitlock (George Clooney), galã meio canastrão protagonista de um filme sobre a relação de um romano com Jesus Cristo, também chamado de “Ave, César!”.
Enquanto tenta descobrir o que aconteceu com Whitlock (a suposição inicial é que ele tenha enchido a cara ou sumido com alguma colega), Mannix interage brevemente com diferentes tipos do cinema. Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) é o astro de filmes de faroeste, hábil com um laço e especialista em manobras arriscadas sobre um cavalo, promovido a protagonista de filme de drama artístico para desespero do diretor esnobe (Ralph Fiennes) — e uma das melhores coisas do filme, ainda que seja um dos atores mais desconhecidos do elenco. DeAnna Moran é a desbocada atriz de musicais com números de nado sincronizado com um problema para resolver. Tilda Swinton interpreta Thora e Thessaly Thacker, gêmeas que assinam colunas rivais sobre os bastidores de Hollywood e pressionam Mannix de todos os lados. A maioria entra e sai rapidamente de cena, como se os atores fizessem apenas participações especiais bem ilustres (a lista tem ainda Jonah Hill, Frances McDormand e Alison Pill).
“Ave, César!” é uma grande homenagem ao cinema, principalmente com o de décadas atrás, com números musicais de diferentes tipos, filmes bíblicos grandiosos e produções em branco e preto com diálogos rebuscados. Talvez por isso quem seja muito fã de cinema goste particularmente da história — o filme é muito bem avaliado nos dois maiores sites agregadores de críticas pelo mundo: tem 84% de aprovação no Rotten Tomatoes e 72% no Metacritic.
Mas é curioso observar, nesses dois sites, as avaliações do público: 46% no Rotten Tomatoes e 59% no Metacritic. Muitos dos comentários dizem que nada de fato acontece no filme e que as cenas são avulsas e não resultam em nada somadas (“uma coleção de piadas alinhavadas e vendidas como um longa metragem”, diz um dos usuários). Verdade. Mas se as piadas e cenas avulsas são boas, como é o caso deste filme, isso não é um problema. “Ave, César!” é um daqueles filmes que passam voando.
Em tempos de trailers super revelatórios, que contam a história do começo ao fim, e notícias do set publicadas muito antes de os filmes estrearem, o mistério em torno de “Rua Cloverfield, 10” é espantoso. Só se soube que o longa produzido por J.J. Abrams e gravado com diferentes nomes falsos estava sendo feito poucos meses antes de chegar ao cinema. Seu trailer, lançado em janeiro, também é bem vago e mostra o clima do filme — que estreia hoje (7) no Brasil — sem revelar quase nada da história. É ótimo: esse é um dos casos em que quanto menos se sabe da trama, melhor (por isso, o texto não conta nada que vá estragar a experiência de alguém e fala o mínimo possível sobre a história — apesar de falar um pouco sobre a história).
Nas cenas iniciais, Michelle (Mary Elizabeth Winstead) arruma as malas e pega o carro, fugindo do namorado. Após sofrer um acidente na estrada, acorda numa casa desconhecida, acompanhada de Howard (John Goodman), dono do lugar, e Emmett (John Gallagher Jr.), vizinho dele. Howard diz a Michelle que enquanto ela estava desacordada houve um ataque no local — possivelmente de extraterrestres, talvez de inimigos dos Estados Unidos, químico ou nuclear, ele não sabe bem –, que todo o mundo morreu e que o ar fora daquele lugar, um bunker construído por ele, está tóxico. Em um ou dois anos eles podem sair de lá, mas por enquanto ninguém sai, avisa ele. Michelle fica confusa, e Howard não ajuda muito — se você quer que alguém se sinta seguro acorrentar a pessoa na parede e mostrar o revólver no seu bolso não é a melhor das estratégias.
Como Michelle, o espectador não sabe o que de fato aconteceu e nem quem são aquelas pessoas. Howard pode tanto ser um visionário que salvou sua vida quanto um psicopata mentiroso. E John Goodman, com sua cara bonachona, é 100% assustador mesmo quando Howard tenta ser fofo colocando músicas alegres e oferecendo sorvete aos companheiros. Ainda que haja alguns momentos de paz — como mostra o trailer, em cenas com os três habitantes do bunker jogando jogos de tabuleiro ou vendo filmes –, o roteiro de Josh Campbell, Matthew Stuecken e Damien Chazelle (de “Whiplash”) evolui devagar e mantém a tensão no ar no tempo inteiro — com um trecho de mais ou menos meia hora tensíssimo, de fazer gente mais suscetível a isso pular da cadeira algumas vezes.
Como a lista de personagens que aparecem em cena pode ser contada nos dedos de uma mão e o cenário varia pouquíssimo (“O Quarto de Jack” e “The Wolfpack”, pra ficar em filmes sobre pessoas enclausuradas, têm bem mais diversidade de paisagens que “Rua Cloverfield, 10”), se o elenco não fosse bom e as personalidades de cada um não fossem bem construídas, as chances de o filme dar errado seriam grandes. Felizmente, não é o caso. Michelle, aliás, é uma mocinha de filme de suspense das mais inteligentes e Mary Elizabeth Winstead merece receber mais papéis de destaque por aí. Independente do que ele diz ser verdade ou não, Howard é bem doido e Emmett, o personagem menor da história, é o bonitinho simpático — ter um desses no filme costuma cair bem.
Mais que isso, infelizmente, não dá pra contar. Mas é quase refrescante ir ao cinema sem saber quase nada sobre o filme. A equipe de “Rua Cloverfield, 10” mostra que, às vezes, a melhor campanha de marketing possível é fazer a menor campanha que der.
Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.
O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”
E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.
Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.
Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.
Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.
De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.
Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.
“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.
Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.
A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”
“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.
Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”
Enquanto “Spotlight”, vencedor do Oscar de melhor filme neste ano, é o sonho dos jornalistas e um retrato de tudo aquilo que a profissão pode fazer quando tudo dá certo, “Conspiração e Poder” (em inglês, “Truth”, “verdade”) é o lado oposto da moeda. O filme, que estreia nesta quinta (24), conta a história real de uma reportagem danosa ao presidente George W. Bush, exibida num dos principais programas jornalísticos do país, o “60 Minutes”, e contestada por ter usado documentos que teriam sido forjados. Basicamente, o pesadelo de um jornalista.
Era 2004, perto das eleições presidenciais americanas em que George W. Bush enfrentava John Kerry para se manter no carro, quando a equipe comandada por Mary Mapes — cujo livro serviu de base para o filme — se deparou com uma história e tanto. O político Ben Barnes, fonte de Mary, disse a ela que havia dado uma força para que Bush entrasse na concorrida Guarda Nacional do Texas, escapando de ir à Guerra do Vietnã. Investigando o histórico militar de Bush, a equipe de Mapes, papel de Cate Blanchett, encontrou um ex-militar que disse ter provas de que Bush não havia cumprido as regras de seu serviço militar e que havia sumido durante um período em que deveria estar na Guarda.
Primeiro problema: o militar não tinha os originais dos tais documentos, assinados por um superior de Bush já morto, só cópias. Segundo problema: a equipe não conseguia encontrar alguém que atestasse que o conteúdo dos documentos correspondesse à realidade. Terceiro problema: o canal CBS queria que a reportagem fosse ao ar em menos de uma semana para preencher um buraco na grade. Quatro especialistas foram contactados para confirmar a autenticidade dos papéis. Um deles afirmou que sem os originais não dava para concluir nada. Outro levantou dúvidas a respeito de um sobrescrito, que não estaria disponível nas máquinas de escrever da época. Mas um deles disse que era possível dizer que eram verdadeiros, sim. Quando eles confirmaram com um militar que conhecia os envolvidos que o teor dos documentos condizia com a opinião do superior de Bush, resolveram colocar a matéria no ar.
A alegria da equipe dura pouco. Depois de a matéria ser exibida, blogs conservadores começam a questionar a autenticidade dos documentos. Pela fonte e pelos espaçamentos utilizados, eles parecem ter sido feitos com as configurações básicas do Word. Alguém levanta a questão do sobrescrito que o especialista tinha apontado. A fonte volta atrás e diz que os documentos eram falsos. O ex-militar que trouxe os papéis para a equipe confessa que mentiu e que recebeu aqueles documentos de dois desconhecidos, e não de alguém confiável.
“Conspiração e Poder” levanta várias questões sobre o jornalismo, ainda mais importantes no contexto de hoje. Questionam Mary: mas como você sabia que o político te disse a verdade? Só porque uma pessoa disse algo, não quer dizer que tenha acontecido — depoimentos precisam ser acompanhados de provas. Ela não considerou o interesse das fontes? Graças a ela o dono dos documentos tinha entrado em contato com a equipe de Kerry. Ela não se questionou a respeito de onde vieram esses documentos vazados, a respeito do caminho que o papel fez até chegar a ela?
Em certo ponto perguntam a Mary a respeito de sua posição política. Ela diz que não é importante, mas a pressionam: ela recebeu os documentos e assumiu que eles eram verdadeiros, ficando satisfeita com qualquer evidência de que eles realmente eram. Se ela fosse realmente imparcial, e não uma esquerdista anti-Bush, ela teria presumido que o presidente fosse inocente e assumido que os documentos eram falsos até que encontrasse provas substanciais do contrário. Num filme chamado “verdade”, fica clara a dificuldade de saber a realidade sobre qualquer coisa. Mary escolheu acreditar nas suas fontes e, depois de falhar no processo de apuração, teve sua carreira completamente destruída — desde então ela nunca mais trabalhou na televisão, apesar de ser uma jornalista premiada.
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Outro ponto interessante apontado pelo filme é o tratamento que Mary recebe na internet depois que o escândalo estoura. O apresentador do programa, Dan Rather (Robert Redford), era um jornalista estimado, que havia ancorado o maior número de telejornais nos Estados Unidos. Era ele a cara da reportagem, e além de Mary havia toda uma equipe por trás da reportagem — dos pesquisadores aos chefes da emissora que apressaram a produção. Mas é ela quem é malhada publicamente. Chamada de feminazi, esquerdista, feia, vadia, e ameaçada de morte.
As questões que o filme suscita a respeito do jornalismo e do tratamento dado às mulheres online são, porém, melhores que o filme em si. “Conspiração e Poder” não chega a conclusão nenhuma no fim das contas, e passa superficialmente sobre todos esses assuntos. Um dos jornalistas do time, interpretado por Topher Grace (o Eric de “That 70’s Show”), faz um discurso inflamado acusando a emissora de queimar Mary porque a Viacom, dona da CBS, precisava da ajuda de Bush para um projeto que a favoreceria. Mas fica só nisso.
O filme passa ao lado de assuntos realmente dignos de serem discutidos e prefere apostar em platitudes como “o mundo precisa do jornalismo” e “não devemos parar de questionar nunca”. Sim, é verdade, mas essa mensagem “Spotlight” transmitiu com mais eficiência. “Conspiração e Poder” perde a oportunidade de discutir de verdade de que tipo de jornalismo o mundo precisa.