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O ídolo nipo-brasileiro dos anos 80

 

Recomendamos a leitura acompanhada desta mixtape produzida pelo pessoal do Suppaduppa. Boa viagem:

O chão está coberto por gelo seco simulando as nuvens. Várias telas de TV reproduzem cenas do mar, uma imagem do céu é plano de fundo, e uma banda com quatro integrantes usando paletós e camisas sociais em tons azuis e beges domina o palco. O vocalista tem uma voz suave e um penteado à la Tom Cruise no filme “Negócio Arriscado”. Seus movimentos de um lado pro outro formam uma espécie de dança sincronizada e o som é uma mescla de sintetizadores com jazz, o mais puro City Pop. O ano é 1986, o local é Tóquio. 30 anos depois, sem gelo seco e com uma réplica de um castelo japonês como imagem de fundo, em Curitiba, mas com a mesma voz e um penteado mais contido, me encontrei com Carlos Toshiki, o ídolo nipo-brasileiro que abrilhantou as paradas musicais japonesas dos anos 80.

Anônimo no Brasil e ídolo no Japão, Carlos Toshiki viveu no Japão por 13 anos, onde fez sucesso com a  banda 1986 OMEGA TRIBE. Foi presença frequente em centenas de programas de música e variedades, teve três álbuns no topo das paradas japonesas, além de diversos hits. Seu rosto estampou revistas e propagandas. Uma carreira pela qual ele possui muito orgulho. Meu encontro com Carlos aconteceu na Praça do Japão, em Curitiba. Assim que o encontro tento quebrar o gelo falando que todo mundo ao nosso redor estava jogando Pokemon Go ali na praça. Ele ri mas confessa não entender nada do tal jogo. Nos sentamos e Carlos começa a contar sua história, que tem início, naturalmente, na sua infância.

Nascido numa colônia japonesa em Maringá, Carlos foi criado de acordo com os costumes nipônicos. Seu pai era DJ da rádio da colônia e era conhecido por sempre tocar novidades vindas do Japão, desde músicas pops ao tradicional enka. Por este motivo, Carlos acabou criando um gosto pela música e pelo canto. Ele lembra que aos 9 anos, chegava do colégio e se trancava no quarto para cantar por horas. “O tempo voava”, fala com um sorriso saudoso. Como não sabia escrever os ideogramas japoneses, escrevia as letras das músicas da maneira que ele ouvia e as decorava. Seu pai começou então a notar o dom do filho para o canto e queria que ele se envolvesse nos concursos de canto que a colônia fazia. O pânico de Carlos, porém, era subir no palco e enfrentar uma plateia – apesar de também ser seu maior sonho. “Eu não gostava de cantar para as pessoas. Era um paradoxo. Eu gostava de cantar só para mim.” Para incentivá-lo, seu pai prometeu que o daria uma passagem para Tóquio caso ele fosse o campião brasileiro do Concurso de Canto.

Carlos me falou que a ideia de ir a Tóquio despertou nele o desejo de seguir um sonho que estava cada vez mais próximo. Primeiro, ficou em terceiro lugar no concurso municipal de Maringá. Depois tornou-se o melhor no Paraná. Ele tinha orgulho de falar para todo mundo que se ganhasse o concurso nacional, iria para o Japão estudar canto. Todos ao seu redor torciam pelo seu sucesso. “O universo conspira a teu favor, né? Quando você tem uma paixão as coisas começam a girar a teu favor, as pessoas te ajudam”, ele conta.

Gratidão é o termo que o Carlos citou inumeras vezes durante nossa conversa. E foi nessa vibe positiva que ele chegou ao concurso nacional e ganhou primeiro lugar como melhor cantor, em 1981, aos 17 anos. “Eu não sei se os jurados tiveram dó de mim, mas eu fui campeão”, diz, rindo.

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Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Seu pai teve que pagar a promessa e assim Carlos finalmente viajaria para o Japão. Apesar da certeza de que iria viajar, ainda era incerta a maneira como viveria lá. O Brasil passava pela ditadura militar e não tinha nenhum acordo diplomático com o Japão. Financeiramente, era impossível enviar dinheiro do Brasil para lá. O sonho parecia distante – mas ao mesmo tempo muito próximo. Mais uma vez, rodeado de positividade, Carlos se apegou às boas energias e embarcou para Tóquio. Depois de 42 horas de viagem e 3 escalas, chegou ao Japão, onde viraria uma estrela nacional. Mas não foi tão fácil assim.

Chegar em Tóquio foi uma explosão de emoções e alegrias para Carlos. Foi lá que ele descobriu novos estilos musicais e se aprofundou em artistas que antes conhecia muito pouco por conta da ditadura militar – ele era fã dos Beatles mas nem imaginava toda a grandiosidade em torno da banda, que no Brasil ficava limitada a tocar uma outra música na rádio. Não tinha mordomia ou luxo algum, se alimentava de amostras grátis de supermercado e amendoim porque “enche a barriga, né”. Sofreu com o preconceito de ser um estrangeiro dentro da sua terra mãe – os japoneses não aceitavam o fato de Carlos ser um nipo-brasileiro. A comunicação também não ajudava: seu japonês soava ultrapassado ao tentar conversar com as pessoas. A solidão assolou sua vida. Porém, a música e o sonho de ser cantor o mantinham esperançoso. Contanto que ele tivesse um microfone e uma caixinha de som, ele ficava feliz.

Foi no seu emprego como lavador de pratos – em que ele ganhava menos por ser brasileiro – que começaram a surgir as oportunidades musicais. Por pedido de seu chefe, começou a cantar no karaokê durante os intervalos. Aos poucos, Carlos começou a ficar conhecido entre os clientes. Algumas pessoas passaram a frequentar o restaurante só para ouvi-lo cantar e uma delas o convidou para gravar comerciais de rádio. Pela grana “fácil”, ele topou e gravou seus primeiros jingles. Ao ouvir sua voz na rádio, seu orgulho em cantar só aumentava.

Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Durante os três primeiros anos de sua estadia em Tóquio, dedicou seu tempo entre os bicos que fazia, as aulas de canto e gravação de demos e ensaios com banda. Após inúmeras tentativas de entrar em uma gravadora e desenvolver sua carreira musical, Carlos pensou em desistir – achava que tinha chegado ao seu limite e precisava dar um rumo na sua vida. Decidiu que tentaria mais um ano e, caso não conseguisse, seguiria sua vida em uma nova carreira. Três meses depois, após ouvir uma das fitas demo do Carlos, o produtor Koichi Fujita queria conhecê-lo. Fujita era o produtor da banda OMEGA TRIBE, que acabava de perder seu vocalista e estava a procura de um novo. “Timing perfeito”, segundo o Carlos. Ele fez o teste e de cara gostaram do resultado. E em pouco tempo, Carlos Toshiki tornou-se o vocalista do 1986 OMEGA TRIBE, rebatizada pela nova formação.

Carlos me contou que a banda tinha uma imagem de veraneio, resort, uma estética bem tropical. E, por isso, o produtor decidiu levá-lo ao Havaí para poderem se conhecer mais e imergir Carlos na estética do grupo. Entre uma conversa e outra, Carlos comentou que achava engraçado que em japonês o numeral 1000 se fala “sen” e no Brasil “cem” é 100. A partir daí, o produtor teve a ideia para o primeiro single de Carlos com a 1986 OMEGA TRIBE: “Kimi wa 1000%” (você é 1000%), uma brincadeira entre Brasil e Japão. Carlos então gravou a música que consolidaria sua carreira e que, mais tarde, seria eleita como uma das músicas da geração. Mesmo sem entender muito o japonês da letra, Carlos gravou “Kimi wa 1000%” focando na energia que colocava em cada melodia. O single, que marca a estreia de Carlos como vocal do grupo, foi lançado em maio de 1986 e virou o tema da novela Doyou Grand Gekijou, que passava em horário nobre da televisão japonesa.


Abertura da novela Doyou Grand Gekijou com a música Kimi Wa 1000%

1986 foi um ano importante para o Japão. Marcou o início de uma bolha econômica pós-guerra, época em que o dinheiro rolava solto e os japoneses consumiam bens de consumo como nunca antes. Musicalmente, era o auge do City Pop, gênero musical que mesclava jazz, sintetizadores, rock adulto e mais um monte de referência absorvida da cena musical americana. O City Pop e a bolha econômica estavam intimamente ligados. O gênero musical representava a imagem urbana e tecnológica pela qual a bolha econômica estava guiando o “novo Japão”. Nesta época, diversos músicos e bandas surgiram (na época chamados de idol), e a música era um negócio super rentável. Novos programas de música surgiam todos os dias, cada vez mais glamurosos.

Recentemente, a internet reviveu o City Pop. O vaporwave, gênero musical que tem como base o uso de samples de músicas oitentistas misturado a outros beats, permitiu o conhecimento de diversos artistas japoneses. Até o Ed Motta tem revivido o som através das suas mixtapes. O Youtube também é uma fonte preciosa de músicas city pop. É impressionante a quantidade de vídeos gravados dos programas de música da época. Eu mesmo conheci o Carlos Toshiki e a OMEGA TRIBE através do Youtube. E isso foi um choque pra ele! Como era possível que eu, aos meus 24 anos, recifense, sem descendência japonesa conhecia uma banda que fez sucesso 30 anos atrás?

“Kimi wa 1000%” foi lançada e atingiu o 17° lugar no Oricon, parada musical japonesa. Com isso, foram chamados para se apresentar pela primeira vez na televisão, no programa mais importante da época, The Best Ten. Como o nome indica, o programa chamava os 10 melhores artistas da parada musical e fazia um segmento chamado de Spotlight, mostrando as apostas da música. Foi nesse segmento que o 1986 OMEGA TRIBE fez sua estreia. Em poucos dias, a música pulou de 17° para 7°, até que chegou ao 2° lugar nas paradas.

Primeira apresentação na TV que Carlos fez no programa “The Best Ten” 

Carlos lembra perfeitamente do dia após sua primeira apresentação na TV. “Eu saí na rua no dia seguinte e as pessoas começaram a falar meu nome, a falar: ‘Olha lá, o Carlos da ÔMEGA TRIBE’!” Da noite pro dia, Carlos tinha virado um idol. Ele brinca que sua história foi igual ao conto da Cinderela: ele dormiu como aspirante a cantor que lavava pratos em restaurante e acordou como um astro da música japonesa. Depois de três anos persistindo o sonho, finalmente conseguiu alcançá-lo. A solidão que ele sentia, entretanto, intensificou. Repentinamente, começaram a surgir inúmeros “amigos” e parentes que nunca tinham procurado o Carlos em seus quatro anos de Japão. O dinheiro não faltava, assim como as amizades por interesse. Sua essência, entretanto, continuava a mesma: contanto que pudesse cantar e expressar sua paixão, tudo estava bem.

A bolha econômica unida às tradições japonesas aumentou a pressão sobre os adolescentes da época. Eles precisavam ser os melhores na escola, na universidade e no trabalho. A concorrência era acirrada e, aqueles que ficavam na margem da excelência, se entregavam ao desespero. O suicídio era uma saída comum dessa situação. A música teve um papel importante para os jovens dessa época pois servia como válvula de escape da vida real. De alguma forma, ela ocupava a mente e evitava pensamentos perturbadores. Carlos percebia a importância que sua música e imagem tinham sobre os fãs. “Eu descobri que a musica é um instrumento que faz com que você entre no coração das pessoas na maior naturalidade”, comenta. Agradar os fãs era sua maior motivação.

O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Sua conexão com os fãs era o elo mais valioso para ele. Diariamente, Carlos recebia cartas das fãs comentando a paixão por ele e também relatando as dificuldades da vida adolescente nos Japão dos anos 80. O sentimento dos fãs inspiravam as composições de Carlos, que de alguma maneira queria retribuir o amor e admiração e ajudá-los a superar as dificuldades, assim como ele estava tentando superar a própria solidão. “Era uma relação de troca.”

Por 5 anos, a 1986 OMEGA TRIBE lançou 6 álbuns, 12 singles, mudou de nome para Carlos Toshiki & OMEGA TRIBE, se apresentou em centenas de programas, virou um dos hinos da geração. Álbum após álbum, os interesses da gravadora e os de Carlos iam se contrastando. Carlos queria seguir sua paixão, fazer músicas que tocassem seus fãs, mas a gravadora da banda não conseguiu acompanhar o amadurecimento dos fãs e começou a forçar Carlos – que na época já tinha seus 27 anos – a fazer músicas cada vez mais adolescentes e com temáticas que não condiziam com seu momento de vida. “Hoje eu vejo que a música é modismo. Se você não cantar de certo modo, você não vende. Música não é arte, é comércio.”. Esse foi um dos motivos do fim da banda, em 1991.

O ano também foi marcado pelo “estouro” da bolha econômica. Com isso, a economia japonesa entrou declínio, influenciando diretamente no modo de vida da população e na música ouvida. O City Pop, que representava toda a prosperidade da bolha, tornou-se obsoleto e ultrapassado. O som não representava mais o Japão contemporâneo. Este novo momento foi crucial para os artistas que marcaram os anos 80. Grande parte deles decaiu das paradas musicais até desaparecer no ostracismo. Carlos Toshiki, após o fim da banda, decidiu seguir carreira solo. Lançou três álbuns solos que mesclavam músicas em japonês e português.

Em certo momento da entrevista, Carlos decidiu mostrar seus vinis, revistas e CDs que guardava numa mala. Após folhear várias pastas com recortes de revista e nos mostrar com orgulho seus vinis, Carlos nos conta qual foi sua maior realização profissional nos seus 11 anos de Japão: entrevistar Zico e Ayrton Senna.

Assim como Carlos, Zico e Ayrton eram dois brasileiros que o Japão idolatrava. Senna, conhecido no Japão após o circuito de Suzuka em que conquistou três títulos, era símbolo de conduta e profissionalismo – princípios marcantes na cultura japonesa – e encantava pelo seu carisma e humor. Zico, por sua vez, conhecido pelos japoneses como “Deus do Futebol”, jogava no Kashima Antlers e ajudou a consolidar a paixão local pelo futebol. Ele abre o Youtube no seu celular e nos mostra a entrevista com muito orgulho.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Em 1995, após operar de hérnia de disco, Carlos decidiu voltar para o Brasil e deixar a carreira musical de lado. A paixão que sentia pela música tinha se transformado em um peso e cantar já não o satisfazia. De volta ao Brasil, tocou o restaurante que a família tinha em Curitiba e, atualmente, trabalha em uma biofábrica, onde reencontrou a paixão que sentia apenas pela música. Após ser um astro no Japão, Carlos é hoje um dos maiores especialistas em alho do Brasil. Mas sua carreira como artista não teve fim.

Neste ano, 30 anos depois do lançamento de sua primeira música, Carlos foi convidado pela sua banda de apoio para fazer uma turnê de comemoração no Japão. Nervoso com a ideia de voltar aos palcos e retomar a carreira que estava parada há mais de 15 anos, mas empolgado com a ideia de encontrar novos e antigos fãs, Carlos aceitou. Quando perguntei sobre suas expectativas ele respondeu, bem sincero: “Eu não faço ideia! A turnê surgiu do nada e foi toda organizada pela banda de apoio. Eu sei que estou empolgado por que vai ser um show com o Carlos de 52 anos mas com a energia que eu sentia no passado”. A turnê vai ter 12 shows – e dois deles, em Tóquio e Yokohama, tiveram os ingressos esgotados no primeiro dia de vendas. É um novo momento – agora misturando nostalgia, gelo seco, passado e presente – para Carlos ser um ídolo no Japão.

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Cinema Entrevista

Fitas de alta periculosidade

Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.

Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.

É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.

Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.

[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]

De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.

No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.

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Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação
Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação

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Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.

Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.

A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.

Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.

Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.

É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.

Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.

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Música

O novo mundo de Mahmundi

Marcela Vale trocou os chinelos na areia pelos sapatos no asfalto. Desde sua recente mudança para São Paulo, a cantora carioca está feliz de uma forma diferente. Abre a janela, repara nos prédios, contempla as pessoas e suas relações. A mudança geográfica, afinal, não veio só. Coincidiu com a chegada de seus 30 anos, uma transformação mais íntima – e com o lançamento de seu primeiro álbum.

Mahmundi é seu nome. Tanto do disco, como do projeto, como da cantora. O termo tem diversos significados. “Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era. Não é a projeção de um personagem”, define. “É um processo de entendimento enquanto indivíduo.”

O álbum nasce dessa autopercepção artística. Em um processo de imersão, sua casa no Rio de Janeiro tomou as formas de um estúdio em janeiro de 2015. A produção foi feita por ela mesma. O resultado é um compilado de canções que lhe agradavam, algumas inclusive já publicadas. “Quase uma mixtape”, em suas palavras.

[olho]“Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era”[/olho]

A comparação com o retrô das fitas cassetes caseiras é adequada. Isso porque Mahmundi tem uma pegada oitentista que não é intencional, mas é natural dado o ressurgimento dos anos 1980 na cultura pop. Essa é sua inspiração: aquilo que escutava nas rádios ou nos discos que comprava, “de Calypso a Phil Collins, tudo que soa bem, que é confortável, que é bom”.

Foi assim, aliás, que ela aprendeu música: a partir daquilo que era ouvido e cantado pelas pessoas. Desde a descoberta musical com o gospel durante a pré-adolescência no bairro de Marechal Hermes, periferia do Rio; até o trabalho como produtora musical da casa de shows Disco Voador.

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“Não quis direcionar para essa ou aquela época, para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Acho que consegui unificar ali um sentimento do mundo. Tem piano e sintetizador; tem o trap de Wild, a refrescância de Hit, a volta de Calor do Amor”, diz. “Quis fazer canções boas o bastante para você me ligar e batermos esse papo sobre música.”

Sua busca por algo intimista neste primeiro trabalho não foi um processo solitário. Ao contrário, contou com olhares alheios como o de seu amigo Hugo Braga, o Yugo, pesquisador musical que está por trás da direção de seus clipes e do visual do álbum. “Foi alguém que olhou para mim quando eu não me via”, lembra ela.

A grande vitória de Mahmundi, para ela, é que seu som esteja tocando em fones de ouvido mundo afora, sua intenção desde o início. Se, há cinco anos ela começava em sites MySpace e Soundcloud; agora ela lança sua obra em serviços de streaming e no YouTube. Muito disso é possível pela direção artística de Carlos Eduardo Miranda, acostumado a trabalhar com artistas independentes no selo Stereomono.

Marcela, assim, fica livre para desenvolver sua criatividade. E Mahmundi se beneficia disso. Seu processo de composição, por exemplo, é próprio. Como toca mais do que escreve, suas letras vêm depois da composição melódica. Assim, Mahmundi é um álbum que fala de amor, verão e mar de forma polifônica. Tanto na voz quanto na melodia.

“O objetivo do meu trabalho é que ele se comunique com as pessoas. A mudança pra São Paulo me deu esse olhar sobre o indivíduo. Eu posso estar aqui, mas sempre projetei minha música para ser de qualquer lugar.”

Talvez por isso ela diga que sua “alma continua com o pé na areia” mesmo com a chegada do (fraco) inverno paulistano. “Acho bonito como os espaços estão sendo apropriados aqui em São Paulo. Os grafites, os estudantes ocupando as escolas…”

Enquanto descobre uma nova cidade, Marcela não se preocupa com o tempo. Sabe que está em trânsito aqui, ainda quer ir para Portugal, para o Japão, para o Nordeste. Na bagagem, tem material e interesse em novos timbres. “Quem sabe não lanço um disco de pagode”, ela ri. “Mahmundi é caminhada. Mas a música é o centro disso tudo. E, sem música, eu não estaria em nenhum lugar.”

Mahmundi toca no Festival Path, neste fim de semana, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.

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‘Wolfpack’: Juventude enclausurada

Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.

O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”

E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.

Cena do documentário 'The Wolfpack'
Cena do documentário ‘The Wolfpack’

Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.

Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.

Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.

De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.

Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.

“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.

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Os irmãos Angulo, em foto de Dan Martensen, que lançou o livro “Wolves Like Us”. Crédito: Divulgação

Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.

A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”

“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.

Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”

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‘O Quarto de Jack’ acha luz no horror

Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.

A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.

A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”

Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”

Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.

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Jacob Tremblay e Brie Larson
Jacob Tremblay e Brie Larson

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Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.

O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”

Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.

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‘Tangerine’: humor e realismo trans

No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.

Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.

Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”

Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.

O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”

[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]

Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”

Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”

Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em "Tangerine"
Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em “Tangerine”

COM HUMOR

Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.

A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”

“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”

Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”

A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.

O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.

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O fim do silêncio na Indonésia

Joshua Oppenheimer foi à Indonésia em 2001 para ajudar a contar uma história difícil. Numa plantação de palma para produção de óleo, propriedade de uma empresa belga, trabalhadoras espirravam pesticidas e herbicidas sem ganharem roupas de proteção. Muitas ficaram doentes e morreram por problemas no fígado perto dos 40 anos de idade. Joshua foi ali ensinar o grupo de trabalhadores a fazer seu próprio documentário sobre as tentativas de formar um sindicato para lutar por melhores condições. O que descobriu por lá foi uma história ainda pior, sobre um massacre que desconhecia.

A empresa respondeu às demandas de seus empregados contratando o grupo paramilitar Pancasila Youth para ameaçá-los. As demandas foram retiradas imediatamente. “Eles me disseram: ‘Apesar de ser uma questão de vida e morte para a gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa em 1965 simplesmente por serem membros do sindicato nacional de trabalhadores de plantações’”, conta Joshua.

Naquele ano, pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a um milhão) foram assassinadas por supostamente serem comunistas. Artistas, ativistas, intelectuais e jornalistas foram mortos em um ataque coordenado pelo exército — que derrubou o presidente Sukarno — e realizado por grupos como o Pancasila Youth. A desculpa foi o assassinato de seis generais, atribuído na época aos comunistas, que cresceram durante o governo Sukarno. Hoje acredita-se que os militares usaram isso como desculpa para dar um golpe no presidente.

Na época, os trabalhadores sindicalizados, considerados ameaça ao regime, foram colocados em campos de concentração ou mortos. “Eles estavam com medo de que isso pudesse acontecer de novo, já que o Pancasila Youth estava mais poderoso que nunca.” Joshua viu ali uma oportunidade de falar sobre o massacre em um filme seu. A história acabou rendendo dois documentários: “The Act of Killing”, indicado ao Oscar em 2014, e “The Look of Silence”, que disputa o prêmio neste ano.

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Cena de 'The Act of Killing'
Cena de ‘The Act of Killing’

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“Percebi naquele momento que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, mas também o medo. Encontrei lá o tema dos meus filmes: não o que aconteceu em 1965. Eles não são sobre o passado, nenhum dos dois é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que permanece até hoje. É sobre um estado presente”, afirma.

“The Act of Killing” é o menos convencional da dupla — um documentário não é continuação do outro, são duas metades de um todo. Para o filme, Joshua conversou com todos os assassinos que conseguiu encontrar durante anos, tentando entender o que havia acontecido. Surpreendentemente, seus entrevistados estavam abertos falar. E mais: eles pareciam se gabar do que tinha acontecido. Não só contavam a história como se ofereciam para levar Joshua até os locais onde tinham matado e até encenar os assassinatos.

Assim nasceu “The Act of Killing”. Em vez de mostrar as vítimas, o cineasta joga luz sobre os assassinos e dá a eles meios para fazer seu próprio filme sobre o massacre. Inspirados por Hollywood, os autointitulados gângsteres transformam a história real numa trama surrealista: meio musical, meio western, inteiramente bizarro. A morte vira um espetáculo e o resultado é aterrorizante — ver o filme uma vez é necessário, ver duas é tortura. “É um filme sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos, e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo e possibilitou que eles se safassem com uma corrupção imensa”, diz Joshua.

As primeiras imagens do estranho experimento foram responsáveis por trazer Werner Herzog (“Encontros no Fim do Mundo”) ao projeto, como produtor-executivo. Herzog estava no aeroporto, tomando um café antes de embarcar em seu voo, quando um colega disse que um rapaz queria desesperadamente falar com ele sobre um trabalho. Joshua tinha dez minutos para atrair o cineasta e utilizou-os para mostrar imagens aleatórias que tinha captado. A apresentação foi convincente. Naquela época, Joshua, hoje com 41 anos, tinha um currículo curto: formado em Harvard, tinha só dois documentários no portfólio, um de 1997 e outro de 2003. Foi com “The Act of Killing” que fez seu nome, e em 2014 ganhou uma “bolsa para gênios” da Fundação MacArthur, para qual as pessoas não se candidatam — são escolhidas.

Mas estamos nos adiantando na história, porque embora “The Look of Silence” tenha sido lançado depois, sua origem antecede “The Act of Killing”. Voltemos a 2003, quando Joshua, ainda um documentarista iniciante, viajou novamente à Indonésia após o trabalho inicial. Assim que chegou ao país, o cineasta foi apresentado à família de Ramli Rukun, cuja história era conhecida no país. Capturado e esfaqueado, Ramli havia conseguido voltar para sua casa, até que dois homens bateram à porta e disseram a sua mãe que o levariam ao hospital. Ramli foi amarrado nu, forçado a andar enquanto pedia por piedade e chorava, até ser castrado e jogado num rio.

Um dos irmãos de Ramli, na época com oito anos de idade, ouviu na escola o professor comentando que naquela noite eles matariam o irmão. Quando chegou em casa, contou o que tinha ouvido, mas não houve nada que a família pudesse fazer. Ramli de fato morreu naquele dia e o menino voltou à escola, onde tinha como mestre um dos membros do esquadrão da morte que havia matado o irmão mais velho.

ESCAPISMO E CULPA

Adi Rukun não era vivo quando Ramli, seu irmão, morreu, mas é ele a figura central de “The Look of Silence”. Foi ele quem convocou um grupo de sobreviventes do massacre e seus familiares para ajudar Joshua com o documentário, antes mesmo de “The Act of Killing” ser um projeto. Três semanas depois, militares ameaçaram todos que participassem do filme. Eles desistiram, mas pediram para que Joshua não engavetasse o projeto e que fosse atrás dos assassinos. Foi o que ele fez. Quando terminou as primeiras filmagens, mostrou as imagens ao grupo. “E eles me disseram: ‘Você deve continuar filmando os assassinos. Isso está levando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando vai ser forçado a entender que o genocídio não terminou. Apesar de as mortes terem parado, os assassinos ainda estão no poder. O público vai entender que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos’”, relembra o cineasta.

Depois de dois anos de pesquisa, Joshua encontrou Anwar Congo, seu 41º entrevistado e personagem principal de “The Act of Killing”. Congo é uma figura curiosa: embora se vanglorie de ter matado comunistas, confessa que tem pesadelos à noite e parece ter alguma crise de consciência. “Fiquei com ele porque conseguia ver que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder completamente a dor de suas memórias. Comecei a entender, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse realmente orgulho, e sim o oposto: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que fizeram a coisa certa. Porque eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes explorando essa relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro.”

Em 2012, após dois anos de edição, Joshua voltou a Adi, que havia acompanhado o processo durante todo aquele tempo e ouviu um pedido. “Ele disse para mim: ‘Passei anos vendo suas imagens dos assassinos e algo mudou em mim. Preciso conhecer os homens que mataram meu irmão. Preciso ver se eles assumem a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los’.” Joshua negou. Era perigoso demais que Adi se expusesse daquela forma, ele dizia. “Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontam assassinos que ainda estão no poder”, afirma. Mas Adi o convenceu, mostrando uma imagem que tinha filmado naquele período. Na cena, que faz parte do filme, o pai de Adi, já com mais de cem anos e cego, se arrasta pelo chão, achando que está na casa de um estranho e pedindo ajuda sem que ninguém o acuda. É uma imagem pesada, que parece desconectada do filme.

Aquele foi o primeiro dia, contou Adi, em que o pai não havia reconhecido ninguém da família. Sempre que alguém tentava ajudá-lo o pai se desesperava ainda mais. “Foi insuportável para Adi não poder confortar seu pai. Então ele pegou a câmera e começou a filmar, usando-a como um escudo para se proteger emocionalmente ao ver o pai se arrastando, com medo”, diz Joshua. Naquele momento, Adi viu que era tarde demais para as feridas do pai cicatrizarem. Ele tinha se esquecido da morte de Ramli, mas não do medo. “Depois de me mostrar a cena, Adi me disse: ‘Não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo. Acho que se eu chegar gentilmente nos assassinos, mostrando que os vejo como seres humanos e que estou disposto a perdoá-los caso eles admitam que aquilo foi errado, talvez eles parem de se gabar. Eu devo aos meus filhos essa tentativa de estabelecer a paz com meus vizinhos para que eles não cresçam com medo’. Fiquei muito tocado com isso.”

Joshua Oppenheimer.
Joshua Oppenheimer.

O OLHAR DO SILÊNCIO

“The Look of Silence” é um retrato desses confrontos, cada um com resultados diferentes. Como oculista, Adi chegava à casa dos assassinos sem revelar sua verdadeira identidade e o que estava fazendo ali. Começava uma conversa fazendo um exame de vista, enquanto a câmera de Joshua registrava tudo. Não era uma tarefa simples, mas Joshua se aproveitou do fato de que “The Act of Killing” não tinha sido lançado ainda. A comunidade sabia que ele estava filmando líderes paramilitares nacionais. Como Adi só queria falar com gente da região, acharam que esses peixes menores tivessem medo de agredi-los, pensando que a equipe de Joshua era amiga de seus chefes.

Mesmo assim, tomaram medidas de segurança. Durante cada conversa, a família de Adi o esperava no aeroporto, pronta para fugir. Um carro também estava sempre a postos para levá-lo — todos tinham vistos para a Dinamarca, caso precisassem sair do país. Uma equipe de cinco pessoas acompanhava a família o tempo todo e todos eles se mudaram para uma outra região do país. As crianças foram transferidas para uma escola melhor, Adi ganhou um consultório próprio para não ter que bater de porta em porta vendendo óculos. “Mas desde o lançamento Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia. Ele tem um papel central no movimento por verdade, justiça e reconciliação. Não só ele não foi ameaçado como parece que sua família está segura e muito, muito bem.”

Como pode-se esperar a partir dessa premissa, as conversas de Adi com os responsáveis pela morte de seu irmão não são de fácil digestão. O primeiro entrevistado conta como bebia o sangue das vítimas para “não enlouquecer” após os assassinatos. Ele não reage bem aos questionamentos e acusa Adi de politizar a conversa — que não poderia ser mais política. Adi é estoico e aguenta todos os confrontos com uma calma impressionante mesmo quando é pego de surpresa. Ao aparecer na casa do tio para uma consulta, começa a falar sobre o irmão e descobre que o tio havia sido guarda na prisão de Ramli e que não fez nada para impedir sua morte. “Ele fica bravo, defensivo, e usa a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio que diz que Ramli mereceu a morte e que se Adi continuasse a investigar também mereceria. É um momento horrível em que um relacionamento amoroso se despedaça. A cena revela como essa ferida aberta corta a família toda”, lembra Joshua.

Em outra cena, Adi visita um assassino que está surdo e cuja filha, que cuidava dele, descobre pela primeira vez o que o pai fez. “Ela percebe, de uma forma horrível, que o pai é um estranho para ela e que fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso”, diz o cineasta. “Mas em vez de fazer o que eu teria feito, que é entrar em pânico e botar a equipe para fora para poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede perdão. Ela força Adi a perdoar, algo que ele disse no início que faria e que nunca tinha feito, já que até ali ninguém havia reconhecido o que fez de errado. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi.”

MURO INVISÍVEL

Essa foi a única conversa que não terminou num impasse. Quando a discussão ficava tensa demais, Joshua agia como um mediador. “Eu acalmava a situação dizendo que estava ali para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendia a irritação, era uma história pessoal para os dois, mas eles deviam tentar se escutar. Não fiz isso porque me sentia neutro em relação à situação, mas porque não queria que saíssemos feridos”, afirma. Do lado de fora, muitos dos assassinos tinha capangas prontos para colocar pra fora quem incomodasse seus patrões.

“Em todas as cenas chegávamos a um muro que não conseguíamos ultrapassar. O título ‘The Look of Silence’ [em português, ‘O Peso do Silêncio’] se refere a essa parede. O que ela é? Como é viver com ela?” Os vilarejos da Indonésia, diz o cineasta, podem parecer bucólicos e adoráveis porque a tensão não se vê. Como torná-la visível?

“Percebi que isso podia ser feito pelos confrontos. Disse a Adi que não acreditava que ele teria o pedido de desculpas que queria. Falei: ‘Acho o contrário. Você os vê como seres humanos e eles vão reciprocar seu olhar gentil e te ver como um ser humano também. Eles vão ver Ramli como um ser humano e todas as vítimas como humanas, e nesse momento as mentiras que eles se contaram vão entrar em colapso. Tudo aquilo a que eles se ativeram se baseia em tirar a humanidade das vítimas. Você as está humanizando só pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, bravos, e vamos falhar. Mas acho que se conseguirmos mostrar esse impasse, esse muro, quem assistir ao filme vai sentir a pressão incrível que os sobreviventes sentem’”, lembra.

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A mãe de Adi em 'The Look of Silence'
A mãe de Adi em ‘The Look of Silence’

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RESPOSTA

Os filmes, diz Joshua, trouxeram a discussão do passado à tona na Indonésia. “A mídia era silenciosa a respeito e agora fala do que aconteceu como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: fala do regime criminoso que está no poder desde o genocídio”, diz. Quando “The Act of Killing” foi indicado ao Oscar, o presidente também se manifestou e disse que sabia que o que aconteceu em 1965 foi um crime e que em algum momento uma reconciliação seria necessária, mas que eles não precisavam de um filme para forçá-los a isso. “Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo era errado”, diz Joshua.

Dois órgãos governamentais, inclusive, se ofereceram para distribuir o filme. Com a ajuda da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho de Arte de Jacarta, “The Look of Silence” foi exibido no maior cinema do país, com capacidade para mil pessoas. Dois mil espectadores foram à abertura e o cinema teve de fazer duas sessões — depois das quais Adi foi aplaudido de pé. Depois disso, foram feitas mais de 500 exibições públicas e agora o filme está disponível na internet no país.

Mas nem tudo são flores. Gângsteres foram contratados para atacar exibições e 30 sessões tiveram de ser canceladas por questões de segurança. Como o órgão censor de filmes está no guarda-chuva do comitê de defesa do parlamento e é dominado pelo exército (“Parece louco, mas é só autoritário”), o documentário foi proibido de passar nos cinemas. “É uma situação peculiar. ‘The Look of Silence’ é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar — ‘The Act of Killing’ não era uma produção formalmente indonésia — e está banido dos cinemas”, diz.

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Adi vê imagens captadas por Joshua Oppenheimer

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DEDO AMERICANO

O filme de Joshua não aponta só o dedo para o governo indonésio, mas também para os Estados Unidos. O diretor inclui um trecho de uma reportagem na TV americana exaltando o ocorrido como a maior batalha vencida contra o comunismo. Tem também imagens de um grupo de trabalhadores num campo de concentração para extrair látex para a empresa americana de pneus Goodyear. A crítica é ainda mais clara: em um momento, um dos assassinos olha para a câmera e diz que merecia um prêmio dos americanos, porque foram eles que os ensinaram a odiar e a matar os comunistas.

“Para os americanos é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para o público. Ele está implicando a gente, dizendo que não é só a história da Indonésia, mas também a nossa. Essa é uma das muitas vezes em que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros lugares”, critica.

“E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam”, continua. “Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa.”

O senador americano Tom Udall levou no ano passado, aos 50 anos do massacre, um projeto ao Senado para que o selo de sigiloso seja tirado de documentos que falam do papel dos Estados Unidos no que aconteceu na Indonésia. “Nosso governo continuou o apoio militar e financeiro à Indonésia naquela época. Ao chegarmos ao aniversário desse período horrível, há apenas 50 anos, os Estados Unidos e a Indonésia devem trabalhar para fechar esse capítulo horrível liberando informações e reconhecendo oficialmente as atrocidades que aconteceram. Muitos dos assassinos ainda estão vivos e soltos, e sua impunidade impede a Indonésia de verdadeiramente realizar seu potencial democrático”, diz o texto de Udall.

Joshua apoia a iniciativa. “Sabemos de ouvir por aí que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento a eles. Também sabemos que eles fizeram uma lista com 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia — jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais — e a entregaram ao Exército pedindo para devolverem os nomes quando tivessem se livrado de todos. Uma lista de morte. Essa é uma mancha grande na afirmação americana de que é uma força para a liberdade e a democracia no mundo pós-guerra”, diz.

Para o documentarista, enquanto esses documentos não forem públicos e os Estados Unidos não reconhecerem sua responsabilidade, tudo o que o país diz sobre direitos humanos é retórica e “será visto, corretamente, pelas pessoas do mundo como um disfarce hipócrita para avançar os interesses estratégicos e corporativos do país”. Circulam agora petições de americanos para que senadores de seus Estados apoiem a proposta de Udall. “Estamos tentando fazer agora com que isso passe pelo Senado e vire lei.” A discussão da história, diz ele, é fundamental. “Não haverá democracia genuína até que se lide com essa questão. Não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando uns têm medo dos outros.”

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As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

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HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”