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Violinos em Heliópolis

Lázaro Ramos não era a primeira opção do diretor Sérgio Machado para interpretar o protagonista do filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia na próxima quinta-feira, dia 3. Na verdade, conta Lázaro, ele teve que implorar como há muito tempo não fazia para ganhar o papel do violinista que, após travar numa audição para a Osesp, começa a dar aulas na favela de Heliópolis, em São Paulo. “Ele me convidou pra fazer o melhor amigo [do protagonista]”, diz o ator, rindo. “Verdade!”

Ao ler o roteiro, Lázaro diz que só conseguia se identificar com Laerte, o professor que encontra uma turma de estudantes cheia de problemas, mas determinados em aprender a tocar instrumentos apesar das adversidades. Então parou de ler o roteiro, ligou para o diretor e disse que não poderia participar do filme. “Eu ia fazer um personagem de olho no outro. Ia jogar uma energia péssima no ator que fizesse o protagonista, porque ia querer estar no lugar dele.”

Sem resposta de Sérgio, Lázaro apelou para o produtor Caio Gullane. “Telefonei pra ele, ele foi almoçar na minha casa. Fiz uma comida bem gostosa. Quando acabou o almoço eu disse: ‘Caio, você não está entendendo. Eu vou fazer esse filme’. Depois de muito insistir, Sérgio foi obrigado a me convidar”, ri o ator. Sentado ao lado dele em um encontro para apresentar o filme à imprensa, Sérgio se defende. “Realmente, não tinha pensado nele. Pra mim, o personagem era eu”, diz. “Mas fico tão feliz. Nenhum ator teria o que Lázaro teve com os meninos. Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi. Teve uma química que não rolaria com mais ninguém.”

[olho]”Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi”[/olho]

Lázaro e Sérgio se identificaram com lados diferentes do personagem. O que interessou o diretor não é como Laerte transforma a comunidade de Heliópolis: é a transformação pela qual ele passa. Talentoso violinista, Laerte vive infeliz, sem trabalho e sem coragem de contar para os pais que não passou no teste para a Osesp, na qual todos seus amigos tocam. Sem saída, é obrigado a aceitar um emprego em Heliópolis. Como é de se esperar, ele acaba por estabelecer uma relação com seus alunos. Mas não é o professor perfeito estilo “Sociedade dos Poetas Mortos”. O começo da relação é difícil, ele é duro, não quer se envolver, está lá por necessidade. É em Heliópolis, porém, que ele reencontra sua confiança como músico.

“Desde criança, quando tinha dez anos de idade, eu falava que queria ser diretor de cinema. Nunca tive um plano B na vida. Quando estava começando esse filme, pensava: e se eu travar? É a única coisa que eu sei fazer”, conta Sérgio. Já o apelo para Lázaro foi a relação entre mestre e alunos, que o lembrou dos tempos de teatro na Bahia. “Trouxe para o filme minha relação com o Zebrinha, um grande coreógrafo baiano. Quando tinha 15 anos, ele resolveu me adotar como pai artístico. Foi um pai em todos em sentidos, desde o que dá carinho até o que dá muita bronca. Ele sempre olhava pra mim com um olhar de crença, de quem acreditava no meu potencial.”

Lázaro quis colocar esse mesmo olhar no filme. “Nos primeiros momentos, eu não olho no olho dos alunos. A gente não se relaciona. A partir de uma hora eu olho e vejo quem eles são”, diz. “Esse olhar eu tive. É o que faz a diferença. Pra mim, o filme é sobre isso. Ver o outro como uma potência, e não algo a ser rejeitado. Não teria outra maneira de fazer o filme que não fosse emprestando essa nossa verdade pros personagens.”

Entre os meninos, destacam-se Samuel (Kaique de Jesus), prodígio do violino, que estuda contra a vontade do pai, e VR (Elzio Vieira), que flerta com o crime. “Aprendi a dançar num projeto social e ganhei uma perspectiva de vida. Quando você sai da escola e vai pra casa, vai fazer o quê? Você está sujeito a seguir vários caminhos ruins, como meus amigos fizeram. Em vez disso, eu tinha algo pra me ocupar”, conta Elzio, que fez o primeiro teste para dançar em uma cena e conquistou o papel depois. “Eu me vejo na tela e me vejo na vida real. É um filme sobre a gente. Relata de onde eu venho e onde vivo.”

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Meninos tocam em 'Tudo que Aprendemos Juntos'
Meninos tocam em ‘Tudo que Aprendemos Juntos’. Crédito: Divulgação

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SEM ROMANTISMO

A sinopse do filme leva a crer que se trata de uma história açucarada de superação. É sim, no fim das contas, uma trama otimista, mas Sérgio fez questão de colocar realidade na mistura. “Os filmes brasileiros que viajaram mais o mundo tinham essa mensagem importante de crítica social, mas sempre me incomodou um pouco o fato de que alguns deles passam um pouco a ideia de que a gente está fadado ao fracasso, que não tem solução pros problemas brasileiros”, afirma. “Queria fazer um filme pra falar de uma maneira realista, sem romantismo, que a gente tem, sim, solução. Tem muita gente trabalhando, em todo lugar que eu vou, se virando pra mudar a situação.”

Não é uma história completamente verídica, mas “Tudo que Aprendemos Juntos” se inspira no real Instituto Baccarelli, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli. Após ver na televisão um incêndio em Heliópolis, ele buscou uma escola pública de lá e sugeriu ensinar música a um grupo de crianças e adolescentes. Hoje, alunos do instituto formam a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky.

No elenco, há alguns alunos do Instituto e membros da Orquestra. “Pra mim era certo que todos os meninos tinham que ser de comunidade. Cem por cento. A gente começou pelo Instituto, fazendo testes. Depois em Heliópolis e outras comunidades”, conta Sérgio. “Uns 30%, 40%, sabiam tocar instrumento. Todos estudaram [música] durante um ano. Eles foram tão dedicados que tinham que se esforçar pra tocar mal [nas cenas iniciais].” Lázaro também estudou no Instituto, esperando tocar violino de verdade — o que não deu certo. Independente disso, a experiência no local foi importante.

“O que me guiou foi estar no Baccarelli, tomando aulas, ensaiando lá dentro, me apropriando disso, compreendendo o poder transformador da música”, conta. Logo que conheceu o Instituto, assistiu a uma apresentação da Orquestra de Heliópolis realizada só para ele. “Comecei a chorar de um jeito descontrolado, sem saber o que aquela música estava provocando em mim. Estava tomado. Naquele dia eu entendi. Não dá nem pra explicar que inspiração é essa, o poder transformador da música, que a gente não sabe de onde vem.”

Por “trabalhar no limite entre realidade e ficção”, alguns cuidados tiveram de ser tomados pela produção. Em um momento do filme, a polícia persegue dois alunos de Laerte que estão numa moto. “Nos meses anteriores a filmagem uns quatro ou cinco meninos tinham sido assassinados pela polícia assim. Foi uma preocupação enorme colocar um aviso enorme de ‘produção’ pras pessoas não acharem que era um carro de verdade de polícia perseguindo os meninos e atirarem”, conta Sérgio. “Foi muito tenso. A gente ficou com medo.”

Em outra cena, que misturou imagens reais às filmadas pela equipe, a população de Heliópolis entra em confronto com a polícia. As pessoas da comunidade pediram ao diretor que não filmasse em Heliópolis, já que o trauma do embate real ainda é muito vivo. “A gente trouxe alguns figurantes da comunidade e encenou tudo. Mas quando eu falava ‘ação’ as pessoas começavam a dar porrada de verdade, jogar pedra na polícia”, conta o cineasta. “A gente tinha que parar e falar: gente, são atores, vamos acalmar. Voltava a cena e era cada vez mais violento. Teve uma voadora no pescoço de um policial que não foi coreografada. Não tinha jeito de a gente convencer as pessoas. Fugia do controle.”

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Criolo como traficante
Criolo como traficante. Crédito: Divulgação

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MOZART E CRIOLO

Focado na música erudita, o filme não deixa o rap de lado. Rappin’ Hood faz uma participação cantando em uma festa em Heliópolis e Criolo, além de ter músicas na trilha sonora, ganhou um pequeno papel como chefe do tráfico. O objetivo, diz Sérgio, era não criar uma hierarquia de valores, chegando ali com a música clássica como se ela fosse superior. “Tem Mozart, tem Criolo, Emicida, Sabotage, Rappin’ Hood… Queria que a música erudita dialogasse no mesmo nível do rap. O cara chega num lugar com uma cultura de altíssimo nível. Saquei isso e queria escolher o melhor do melhor.”

Convidar Criolo para atuar foi pura intuição do diretor. “Ele tem uma teatralidade, eu intuía que ele faria bem. E era dentro dessa ideia de que as pessoas fossem do universo que elas representam. O Criolo sabe falar esse dialeto, ele é do Grajaú”, diz Sérgio. “Por conta de outros trabalhos que já fiz, conheço um pouco esse universo do tráfico e nunca conheci um traficante perto do estereótipo, com colar de ouro. O Criolo é muito mais parecido com os caras que eu conheci do que o estereótipo. E a câmera gosta dele. Fiquei muito surpreso.”

Exibido no Festival de Locarno, na Suíça, e no Festival do Rio, o filme levou o prêmio de melhor longa de ficção nacional pelo público na Mostra de São Paulo. Segundo Sérgio, “Tudo que Aprendemos Juntos” foi feito, porém, para os 25 jovens do elenco. “Entendi que o filme não era só feito pelos meninos, era para os meninos. Queria fazer um filme de que eles se orgulhem.”

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Perfil

Um fotógrafo contra as remoções

Em uma quarta-feira de novembro, o fotógrafo Maurício Hora recebia, no amplo salão do Zona Imaginária, uma cooperativa de artes visuais criada por ele na Zona Portuária do Rio de Janeiro, a artista alemã transgênera Tobi Möring, adepta de instalações com materiais descartados. Tobi — ou Miss Tobi, como é conhecida — voltava de um ferro velho da redondeza, os braços repletos de resíduos. Ela foi depositando a matéria prima no chão da sala, ao lado de três esboços de esculturas feitas em papelão, que dias depois seriam revestidas de metal e instaladas ali perto, no alto do Morro da Providência, para festejar o aniversário da mais importante favela da região. Explicitamente contestadoras, as formas desenhavam, com traços quase infantis, um político engravatado falando no microfone, um policial com um fuzil, e um trator – símbolo máximo das remoções que ameaçam a favela.

Em um espanhol um tanto enferrujado, Tobi me explicou que usa os espaços públicos para fazer perguntas pertinentes. No caso da Providência, as esculturas indagavam: para quem são as Olimpíadas do Rio de Janeiro? Quais são as consequências para as pessoas que moram na favela? Quem se beneficia com os Jogos?

Era uma tarde quente. Colocando-se em frente a um velho ventilador de metal, cujas hélices enferrujadas giravam ruidosamente, Maurício observou por um instante a obra de sua colega estrangeira. Depois, balançou a cabeça de leve e soltou uma risadinha. Sua expressão era muito mais de ironia resignada do que de reprovação.

“Acho que isso não vai durar muito lá em cima, não…”, lamentou. “É uma crítica às Olimpíadas. Ele quer fazer um pódio com esses três elementos [o trator, o político e o policial], cada um em uma marcha.”

Perguntei por que a instalação não iria durar. Ele respondeu com naturalidade. “Ah, porque é uma crítica… A prefeitura certamente vai criar um argumento: ‘Isso não pode estar aqui, está atrapalhando um lugar público’.”

Maurício Hora. Crédito: Divulgação
Maurício Hora. Crédito: Divulgação

Maurício sabe do que está falando. Nascido e criado na favela da Providência, onde ainda reside, o fotógrafo sempre negociou seu trabalho com os agentes dominantes do morro: o tráfico, a polícia e o poder público, todos muito sensíveis a qualquer tipo de crítica. Homem baixo, de cabelo preto encaracolado e olhos estreitos, escondidos atrás de óculos de aros enormes, Maurício é descendente de escravos, filho do primeiro chefe de boca de fumo do Rio. Fotógrafo autodidata, foi pioneiro ao retratar o cotidiano cordial e pouco conhecido da favela, longe do clichê da violência: crianças brincando, famílias em seus momentos domésticos, pessoas tentando viver normalmente em meio à pobreza e à vulnerabilidade.

Ao colocar as ruas e as casas da Providência em primeiro plano, suas fotos chamaram a atenção das universidades de arquitetura em todo mundo. Artistas e fotógrafos de outros países passaram a visitar Maurício com regularidade. Em 2005, ele ajudou a criar o projeto Favelité, que colocou o cenário da favela no metrô parisiense. Em 2009, o artista multimídia francês JR, que havia descoberto suas fotos em Paris, viajou ao Rio para conhecê-lo e lhe propôs a parceria em um projeto internacional de intervenção em áreas de conflito. O resultado foi exposto no Centro Cultural da Casa França Brasil no ano seguinte.

[olho]Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro[/olho]

Aos 47 anos, Maurício é hoje um verdadeiro embaixador da Providência, com raízes fincadas em sua comunidade e uma abertura invejável fora dela. Mas a permanência em um lugar tão problemático tem seu preço. Conhecido por seu trabalho com longa exposição, que captura cenas noturnas de uma favela etérea e fantasmagórica, Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro. Há lugares onde ele simplesmente não pode puxar a câmera — e inúmeras fotos já foram perdidas pela falta de liberdade.

“Através da fotografia, consegui identificar o território: andei por tudo, fotografei o morro todo, conheço muito bem as pessoas”, diz. “Isso me deu uma noção e uma capacidade de discutir o território. Agora, me frustra porque, no fim, vale o que o tráfico determina. Por causa do descaso das administrações, é ele que tem força. O tráfico consegue transformar e fazer ações, às vezes sem pensar, e a comunidade aceita, e até gosta. E eu, que estou ali, não consigo fazer nada. Já aprendi que não posso brigar contra isso.”

O tráfico, contudo, não é o único a impor obstáculos. Apesar de discordar dos novos planos da prefeitura para a favela, Maurício precisa maneirar suas críticas e contar com a boa vontade dos órgãos públicos em patrocinar alguns de seus projetos. Seja no Estado paralelo ou no oficial, a diplomacia é uma questão de sobrevivência.

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Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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O momento é especialmente delicado para Maurício e os residentes da Providência, que, dentro do plano de revitalização da Zona Portuária da cidade, vive um intenso processo de gentrificação. Em junho de 2012, uma quantidade impressionante de obras foi iniciada. Em função do Projeto Porto Maravilha e da megatransformação da região, moradias foram deslocadas e os alugueis inflacionaram, afetando a permanência de alguns dos moradores mais antigos.

Segundo dados da própria prefeitura, até este ano mais de 80 mil pessoas foram tiradas de suas casas em todo o Rio de Janeiro. A urgência das obras das Olimpíadas de 2016 impulsionaram a especulação imobiliária na Zona Portuária, apontam os pesquisadores Lena Azevedo e Lucas Faulhaber, que publicaram este ano o livro “SMH 2016: Remoções no Rio e Janeiro Olímpico” (Mórula Editorial). Não foi diferente com a Providência, que inicialmente previa o reassentamento de 760 famílias. Em 2012, cinquenta e cinco delas já haviam sido deslocadas para empreendimentos em áreas próximas à favela. Segundo os moradores, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) comunicava as desapropriações através de pichações nas paredes das casas.

Originalmente conhecida como Morro da Favela – o nome deu origem ao termo mundialmente difundido – a Providência é o primeiro assentamento urbano informal da cidade. Situado entre os bairros do Santo Cristo e da Gamboa, foi ocupado em 1897 por soldados veteranos da Guerra de Canudos, que regressaram ao Rio para receber casas prometidas pelo governo. Como a promessa não foi cumprida, instalaram-se em construções provisórias no local. Machado de Assis nasceu em um imóvel ao pé do morro, que ainda abriga uma escadaria do século 19 e um capela construída em 1905.

[olho]”A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores”[/olho]

Mesmo sem o apelo das favelas do Vidigal ou do Chapéu Mangueira, a Providência interessa por seu valor histórico e cultural, somado à espetacular vista para o porto e para o Centro. Muitos moradores se dizem descontentes com os rumos das obras, que estariam mais focadas no futuro potencial comercial e turístico do morro do que com o bem estar dos que vivem lá. Um símbolo do novo projeto é o teleférico inaugurado em julho do ano passado, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa. Além da pouca utilidade para os moradores – a maioria dos seus usuários, explica Maurício, são pessoas de outros lugares que o utilizam para evitar a travessia a pé do túnel da Central – sua construção eliminou uma quadra de esportes, até então o único espaço recreativo da favela.

“As remoções são cruéis porque não estão sendo pensadas pelos moradores, e sim pelo poder público, que não tem nada a ver com aquilo ali, que não participa, não sabe o que é um tiroteio, não sabe o que é a ação da polícia dentro do morro. É injusto”, desabafa. “A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores.”

A questão, porém, é complexa. As melhorias da prefeitura foram aprovadas por muitos moradores. Quem tem título de propriedade, por exemplo, anseia em vender sua casa recém-valorizada e se mudar do morro.

“Acho que tudo é uma grande armadilha”, argumenta Maurício. “As pessoas vivem numa ideia de ascensão de vida, de melhorar, de sair de lá. Mas por que não transformar aquilo em um lugar melhor para as pessoas que já estão lá? Se já é uma expectativa da cidade de que isso vire um lugar melhor, por que não transformar para essas pessoas, que seguraram essa onda até agora? É digno que elas permaneçam de uma forma melhor, não que sejam removidas.”

Os artistas locais e visitantes que desejam denunciar essa realidade se apoiam em Maurício. Com seu bom trânsito e conhecimento do local, seu nome sempre pipoca quando pessoas de fora trocam ideias sobre a Providência. Foi assim com Tobi — que ouviu pela primeira vez sobre o fotógrafo ao conversar com uma amiga sobre seu projeto — e com Cecília Cipriano, autora de uma crítica contundente sobre as remoções na favela. Em seu projeto “O corte”, a artista fez uma intervenção em uma das casas marcadas para demolição pela SMH — da construção original, restam hoje apenas as ruínas, mas as fotos da iniciativa estiveram em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Coube a Maurício fazer a ponte entre Cecília e os moradores.

“Maurício é um líder de grande atuação na luta de melhorias de vida da comunidade do Morro da Providência”, disse-me dias depois Cecília, em entrevista por e-mail. “Participou ativamente na tentativa de criar uma política alternativa de moradia e faz parte da terceira geração de moradores na comunidade, o que o faculta a contribuir intensamente na preservação da memória da toda a Região Portuária. Recebe cordialmente inúmeros visitantes, geralmente críticos do projeto urbanístico da Região Portuária, inclusive eu.”

Os dois conversaram pela primeira vez em 2012. Com a ajuda de Maurício, Cecília foi conhecendo os moradores das casas marcadas pela SMH para a construção de uma suposta “moto-via”, que ligaria a Vila Portuária à praça do teleférico, e também os moradores do topo do morro, no Cruzeiro, onde está localizado o oratório construído em 1902 e tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal.

“Nesse local, apesar das marcações das casas, e da demolição de uma delas, o objetivo da desocupação não ficou claro para os moradores e nada foi construído”, diz Cecília. “Alguns moradores acreditavam, inclusive, que seria construído um grande hotel do empresário Eike Batista.”

Localizado em um imóvel de 400 metros quadrados da Rua Pedro Ernesto, no coração do bairro da Gamboa, a própria Zona Imaginária – o espaço criado por Maurício para que artistas urbanos e visuais desenvolvessem seus trabalhos – tem sofrido com os ataques do Rio Olímpico. Com as obras a todo vapor, demolindo e martelando ao longo do dia, a rua mais parece uma zona de guerra ou um cenário de filme apocalíptico. É como se a região sofresse uma autópsia: asfalto aberto como veias e esgoto correndo como sangue. O barulho de obras é constante.

“E olha que agora está bem melhor”, disse Maurício. “Você tinha que ver antes…”

A poeira das obras invadia o salão do imóvel, que Maurício transformou em ateliê. Pelo vidros quebrados das janelas, de frente para a Pedro Ernesto, vê-se a favela da Providência erguer-se desordenadamente por trás dos prédios e uma pequena ponta do Museu José Bonifácio, que sempre expõe obras do fotógrafo. No ateliê improvisado espalham-se sofás e poltronas e uma mesa de trabalho. Encostada em uma das paredes, um amontoado de portas soltas formam uma obra do português Alexandre Farto, o Vhils, que recentemente cravou retratos de moradores nas ruínas das casas demolidas da Providência. Na parede do outro lado, telas da carioca Vanessa Rosa, que transformou fotos de Maurício em pintura.

Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres
Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres

Vanessa chegou no espaço logo depois de Tobi. É uma jovem de cabelo preto ondulado e pele branca. Protegia-se do sol da tarde com um largo chapéu. Sua figura contrastava com a de Tobi, germânica esguia e desengonçada, de cabelo loiro longo amarrado em um rabo de cavalo. Tobi vestia uma bermuda masculina estilo tenista. Ao encontrar qualquer pessoa, soltava instintivamente uma risada amistosa e desarmada. Vanessa, que já morou e expôs em Berlim, foi apresentada a Tobi e trocou algumas palavras com ela em alemão.

Maurício interrompeu a conversa em tom de brincadeira. “Quantas línguas você fala, Vanessa?” Ao descobrir que ela também se virava em francês, inglês e espanhol, ele se voltou para mim: “Aí é outra coisa. Classe média…”

Vanessa escolheu recriar fotos bastante representativas do universo de Maurício. Pendurada em cima da entrada do estúdio, aos fundos do espaço, uma tela mostrava duas crianças negras – uma menina de vestido e um menino de bico na boca e mão dentro da bermuda – posando em frente a um barraco. Um vira lata passa faceiro na rua ao lado deles, como se quisesse voluntariamente ser registrado na cena.

Dias antes, Vanessa levara o quadro debaixo do braço até a Providência para mostrá-lo aos moradores. Os pedestres a olharam com curiosidade ao longo do trajeto entre o Zona Imaginária e a favela, e alguns até a pararam para perguntar sobre a obra. Daí veio a ideia de um futuro projeto: trazer as telas para a Providência e fotografá-las nos espaços que elas retratam, evidenciando a passagem do tempo e possibilitando um novo enquadramento.

“Toda minha relação com a Providência é através do Maurício”, contou-me Vanessa. “Como alguém que vem de fora, acho difícil se inteirar completamente com a região, interpretar todos os seus códigos. É um pouco como se eu passasse a entender a região pelos olhos do Maurício. Não fosse assim, a gente [os artistas de fora] fica muito invasivo.”

Ela vê Maurício como um grande articulador, que não apenas consegue se comunicar com grupos diferentes, como também sabe “valorizar a estética além do entendimento social”.

[olho]”Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”[/olho]

“Acho difícil para alguém de fora ter uma compreensão das dificuldades que esta região passou nesses anos todos”, continua Vanessa. “O Maurício tem um olhar particular da política interna, de saber o posicionamento de pessoas ligadas ao tráfico, pessoas que conviveram com ele desde pequeno, ou de ter que negociar com a associação de moradores, com o policial, com a prefeitura… Mas ele também tem uma visão do externo, do mundo da fotografia, do contexto artístico, tendo contato com artistas de fora da Providência e com eventos de movimentos sociais do mundo todo.”

Nascida em uma família de editores, Vanessa está ajudando Maurício na preparação editorial de seu mais novo livro, “Morro da Favela à Providência de Canudos”, um ensaio fotográfico que mostra as relações entre Canudos e a Providência. Com patrocínio master da Fundação Ford, Maurício viajou ao Nordeste Baiano e fotografou as ruínas da antiga Canudos, que apareceram após a seca.

“Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”, observou Maurício, sem esconder seu orgulho. “Você imagina que os primeiros ocupantes da Providência foram soldados de Canudos. Os caras passaram os maiores massacres. Degolar pessoas era uma prática comum. Foram essas pessoas que vieram para cá… É algo interessante quando se pensa a origem da violência na favela.”

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Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora
Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora

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Na Providência, Maurício foi testemunha privilegiada de uma história de extremos: viu de perto a gênese do tráfico nos anos 60 e teve um papel ativo, a partir dos anos 90, na formação de uma cena cultural e artística no morro. A atípica trajetória pessoal fascinou o desenhista André Diniz, que publicou uma biografia em quadrinhos do fotógrafo. Lançada em 2011, a graphic novel “Morro da favela” (Barba Negra) é uma espécie de romance de formação de um morador da favela. Através das memórias de Maurício, retrata as dificuldades de se viver no morro, desde a falta de recursos aos abusos da polícia e à proximidade com os grupos criminosos. Mas também tenta, assim como as fotos de Maurício, divulgar uma outra favela: a dos afetos familiares, da solidariedade e da joie de vivre.

A obra responde a uma pergunta que o biografado já está cansado de ouvir: por que não ir embora da favela e de seus perigos? Porque ele não vê nada de diferente lá embaixo, porque ele é e sempre será um fotógrafo favelado, e porque nem todo favelado é “bagunceiro e ladrão”, responde Maurício logo na abertura do livro. Embora essa visão generosa seja apenas uma entre as milhões possíveis de cada morador, Diniz acredita que ela ajuda a desmistificar as certezas criadas a partir das manchetes de jornais – o retrato monocromático que a população do “asfalto” já se habituou a ver na mídia.

“Ao longo de alguns meses, encontrei com Maurício diversas vezes no alto da Providência”, contou-me Diniz, alguns dias antes, por email. “Sou carioca e morei no Rio até os meus 28 anos e, no entanto, foi minha primeira vez em uma favela. Entrei lá a primeira vez zerando qualquer expectativa ou ideia pré-concebida, dentro do que me era possível. Eu queria que o livro fosse de fato a visão de Maurício e só dele. Ao longo dos meses e das visitas, claro, fui formando também a minha visão, que de fato me fez crescer muito e a entender que falarmos “o favelado” é tão impreciso como falarmos “o europeu”. Não há “o favelado”, há o Maurício, há o Antonio, há a Maria, há a Daniele. Cada um é um, cada pessoa é diferente, tem a sua própria história.”

[olho]”Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele.”[/olho]

Publicado na França e em Portugal, o livro também joga luz sobre a evolução do tráfico na cidade. Na década de 60, o pai de Maurício, Seu Luizinho, inaugurou, segundo o fotógrafo, a primeira boca de fumo do Rio. Era ainda o tempo romântico do tráfico: pouca fiscalização da polícia e bandidos malandros.

“O tráfico mais antigo é o da Providência”, afirmou Maurício. “Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele. O que também acontecia muito era o freguês ser preso e contar onde comprou. Então, quando o meu pai sai da prisão, ele decide vender na rua. Fixaram um ponto para vender. Mas marginal na época não era o tráfico, era o jogo de ronda. Polícia subia o morro por causa do jogo.”

Aos poucos, o cenário começou a mudar. Seu Luizinho foi preso pela segunda vez e, ao sair da prisão nove meses depois, decidiu abandonar o crime. Dedicou-se à pacata vida de estivador, enquanto o tráfico tomava outros caminhos, com a adoção da artilharia pesada e a formação do crime organizado. Um rumo que Luizinho lamentou até a sua morte, em 2014, de câncer.

“Na segunda vez que o meu pai foi preso ia ser uma pena pesada”, lembrou ele. “Mas como os policiais roubaram o que ele tinha, o promotor acreditou na história dele e, na acusação, incriminou os policiais também. Dos quinze policiais, só cinco apareceram no tribunal e meu pai foi absolvido por falta de provas. Eu tinha dez anos e aquilo me fez entender como funcionava um tribunal. Antes do julgamento o promotor foi lá, cumprimentou meu pai, desejou boa sorte… Durante o julgamento, não parou de malhar ele.”
Maurício nunca se meteu com tráfico. Herói de infância, seu irmão, Jorge, começou praticando crimes leves e logo entrou no pesado negócio do assalto a bancos. Aos 27 anos, desapareceu. A família descobriu que ele havia sido preso em Botafogo, mas não o encontrou por lá. Tempos depois, uma ossada com 19 corpos foi descoberta em Sumaré. Maurício acredita que um deles era o do irmão, mas nunca conseguiu comprovar.

Formado em um ambiente em que traficantes não raro ajudam a comunidade e em que os policiais muitas vezes roubam e forjam flagrantes, Maurício aprendeu desde cedo que a noção de “bandido” podia ter muitas nuances. Ele, porém, nunca se meteu com crime. Na adolescência, arranjou um emprego como ourives. Na oficina com 21 funcionários, ele era o único que não usava drogas. Um dia, ao visitar um cliente, bateu o olho em uma câmera Pentax. Comprou a máquina com o dinheiro das joias e nunca mais parou de fotografar.

“Meu pai tinha uma vida muito tranquila na adolescência, era um cara que estudou legal. Mas [a Providência] era um lugar muito marginal. Imagina se você tiver que morar hoje na Central do Brasil. Cara, você vai se marginalizar. Talvez você não mude o seu caráter, mas você vai ter que ser malandro.”

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Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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Ao mesmo tempo em que ajuda artistas de fora a se localizar e se familiarizar com a comunidade, Maurício também ajuda os jovens moradores a entrar em contato com o mundo cultural fora dela. Mistura de antropólogo, historiador e assistente social, ele ministra oficinas e coordena uma cooperativa de fotógrafos, que usa o estúdio montado nos fundos do imóvel do Zona Imaginária. Composta principalmente de aspirantes da periferia que não conseguem evoluir na carreira por falta de dinheiro, a organização permite o compartilhamento de equipamentos caros. Além do Zona Imaginária, Maurício também toca a Casa Amarela, um espaço cultural e de aprendizado situado no alto da Providência.

Todas as ações estão ligadas ao Instituto Favelarte, criado em 2010 por Maurício e por seu sócio Renato Barbosa para fomentar uma política de progresso nas comunidades carentes e superar a exclusão social. Na graphic novel de André Diniz, uma cena chama atenção: é quando um garoto problemático, que tinha muita vergonha de sua casa humilde, se emociona ao vê-la fotografada por Maurício. A transformação pela arte foi tão forte, que a sua vergonha sumiu instantaneamente.

Maurício me levou até a Casa Amarela, uma construção de dois andares em frente à praça em que Tobi iria instalar suas esculturas. Com todas as portas e janelas fechadas, ela parecia estar abandonada. Na verdade, o espaço vinha sendo pouco utilizado desde que o Zona Imaginário passou a monopolizar as energias do Favelarte. Atrás do portão da entrada, resíduos jogados em uma caixa exalavam um cheiro forte. Havia lixo espalhado por todo pátio. Lá dentro, algumas das peças estavam sem luz. Maurício foi me mostrando o espaço de leitura, no segundo andar. Os livros estavam jogados pelos cantos, como se alguém tivesse feito uma varredura.

De fato, a polícia invadiu o local recentemente. Em uma de suas batidas na favela, arrombou portas e foi embora sem deixar aviso. Durante três dias, a casa ficou abandonada, toda aberta. A garotada do morro aproveitou para invadir. Comeram os biscoitos da provisão, roubaram lápis e caneta e bagunçaram o espaço.

“Nesse tempo em que a casa ficou aberta, ninguém tocou em nenhum objeto de valor” ressaltou Maurício. “Eu tinha máquina fotográfica, tinha equipamentos caros, e eles deixaram tudo lá, direitinho.”

Ex-aluno da Casa Amarela, Diego de Deus da Conceição, conheceu Maurício aos 15 anos. Hoje com 27 anos, ele trabalha como office boy no Museu de Arte do Rio – um dos mais ambiciosos investimentos culturais na Zona Portuária. Durante uma folga em seu trabalho no museu, ele me encontrou na esquina da rua Sacadura Cabral com a Pedra do Sal, núcleo simbólico da antiga Pequena África do Rio. Diego foi iniciado por Maurício na fotografia, ganhou prêmios com um trabalho sobre as Unidades Pacificadoras, e agora está tentando trabalhar com vídeo. Seu projeto é fazer um documentário centrado na figura do morador Eron César dos Santos, que vive há mais de 40 anos na Providência.

Responsável pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, no alto do morro, Eron reúne contos e lendas sobre a favela, estudando, através do pouco conhecido folclore local, outras visões da história dela.

“Você ouve muitos coletivos artísticos baseados na favela dizendo muita coisa, mas fazendo pouco”, lamentou Diego. “Tem muito mais para ser trabalhado e muito mais gente a ser atingida. No próprio morro onde fico, no ponto mais alto, ali no Largo do Cruzeiro e na Praça Américo Brum, tem uma quantidade significativa de crianças que não estão fazendo nada. Maurício mudou muito meu olhar sobre a comunidade, e agora quero mudar o olhar dessas crianças. Quero trazê-las para os nossos projetos, mas nem todo mundo tem a mesma curiosidade, o mesmo olhar. Acho que falta uma maior união. Vejo muita gente trabalhando fechada em si próprio, levando o nome da Providência para fora, mas nunca para dentro.”

Crédito: Maurício Hora
Crédito: Maurício Hora

Menos de uma semana depois, com o pódio de Miss Tobi já instalado na Providência e imune — até o momento — a qualquer restrição da prefeitura (“Acho que o pessoal não entendeu”, brincou Maurício), descubro que o Zona Imaginária foi assaltado. No dia em que as esculturas foram inauguradas, ladrões entraram no espaço, roubaram equipamentos e o dinheiro do patrocínio do livro sobre Canudos. “Levaram muita coisa, mas tudo bem”, me disse Maurício por telefone, em uma voz conformada.

Dias antes, Maurício havia me confidenciado: “Sempre briguei pela favela, porque acho que tenho uma divida com a comunidade. Eu tenho uma divida por conta do meu pai. A coisa do tráfico é tão importante na favela… Não que eu seja importante aqui dentro, não é nada disso. E talvez nem seja tanto uma questão de culpa, talvez seja de pertencimento. Aquilo ali, o morro, também é meu. Eu me sinto tão parte daquilo que tenho uma pretensão, talvez idiota, de achar que eu possa ajudar. Tento unir os jovens, fazer eles entenderem o território, deslocá-los por diferentes partes da comunidade… Acho que isso é importante para eles.”

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As fanfics da vida real

Anna Todd, 25, parece uma americana como qualquer outra. Às 11h já está de cílios postiços e entra na sala com um copo de Starbucks na mão e um vestido de mangas compridas num calor paulistano de 32ºC (“Vim preparada pro frio, é inverno aqui, não?”). Como outras tantas garotas, começou a publicar alguns textos na internet, escritos no celular, sem grandes pretensões. Mas o motivo da visita de Anna ao Brasil em setembro é pouco comum: lançar um dos volumes de sua série de livros — aqueles digitados no telefone –, fenômeno juvenil que vai virar filme e lhe deu um contrato de milhões de dólares. Livros eróticos com os membros da boy band One Direction.

Na internet, o cantor Harry Styles é um stalker. É também um garoto mimado num mundo distópico. Tem um caso com o companheiro de boyband Louis Tomlinson. É ainda um jovem punk, um rebelde sem causa, um apresentador de TV, um psicopata. O cantor Harry Styles é, em suma, uma tela em branco para suas fãs projetarem suas fantasias em fanfics publicadas na internet. A única semelhança entre a maioria das histórias é: Harry Styles é um deus do sexo.

Há uma quantidade absurda de textos de ficção com os cantores da banda — principalmente Harry, o mais conhecido — por aí. Dá para achar os tradicionais textos de comédia romântica, mas também de terror, ficção científica, ação ou religiosos. Nenhuma novidade aí: ler e publicar fanfics na internet é comum entre pré-adolescentes desde pelo menos o início dos anos 2000, auge da era Harry Potter. Mas agora a moda é escrever sobre ídolos reais. E mais: essas ficções, vistas como gênero literário menor, mostram que podem virar livros best-sellers.

A trama de Anna Todd, “After”, era só mais uma nesse mar de histórias e — sucesso à parte — é um caso clássico de como funciona o universo das fanfics. Anna era uma fã da banda, leitora de outras fanfics, que começou a escrever sem grandes planos, um capítulo de cada vez, contando com os comentários de outros leitores. Mas sua história foi crescendo, crescendo, até ser visualizada mais de 1 bilhão de vezes no site de autopublicação Wattpad.

“Há tantas fanfics de One Direction. Até mais que de ‘Crepúsculo’”, diz Anna, citando outro fênomeno juvenil que inspirou, por exemplo, “Cinquenta Tons de Cinza”, de E.L. James. Ela era uma leitora ávida até que se encontrou sem novos capítulos das histórias que acompanhava e resolveu começar sua própria trama. “Eu escrevia ‘imagines’, sabe?”, conta, falando tão rápido que digo que sim antes mesmo de pensar a respeito. Para os não iniciados, uma pequena explicação: são histórias curtas, às vezes de um parágrafo, publicadas no Instagram ou no Tumblr.

Quando teve uma ideia para uma história maior, migrou para o Wattpad. “As ideias surgiam enquanto eu ia escrevendo, eu não tinha noção de para onde estava indo”, diz. Logo Anna passou a escrever loucamente em seu celular (digita mais rápido no telefone do que no computador, afirma) por até seis horas ao dia. “Eu não fazia mais nada. Meu marido me perguntava se eu queria ir ao cinema e eu dizia que estava ocupada. E ele não sabia o que eu estava fazendo, só achou que eu fosse obcecada por meu telefone.”

Anna tentou manter a atividade em segredo, pois tinha medo do que as pessoas diriam se descobrissem que ela passava tanto tempo escrevendo ficção sobre One Direction. Diz que fanfics já não têm tanto prestígio, e que mesmo entre essas ficções os textos sobre a boyband são malvistos. Foi só quando começaram a fazer matérias sobre ela que resolveu contar para o marido e amigos. E, para sua surpresa, ninguém ligou.

 

Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação
Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação

CHRISTIAN STYLES

Sua premissa é bem simples e lembra bastante, em certos pontos, a de “Cinquenta Tons de Cinza”, que teve trajetória parecida com a sua — saiu na internet, foi publicada por uma editora e depois virou filme. Tessa é uma jovem virgem, super careta, que deixa a casa da mãe para ir à faculdade. No primeiro dia por lá, conhece Harry Styles, estudante punk, todo tatuado, do tipo difícil e que não cultiva relacionamentos — até conhecer Tessa (Christian Grey, é você?).

Os capítulos publicados no Wattpad são curtos, para ler em cinco minutos. Quem encarou “Cinquenta Tons” sabe mais ou menos o que esperar: diálogos que beiram o constrangedor e cenas de sexo que não são lá super sexy, mas algo te leva a seguir em frente. Quando você vê, gastou duas horas do seu dia com o casal Hessa, como a dupla ficou conhecida entre os fãs.

Anna diz que demorou para perceber o sucesso que tinha em mãos, apesar de os números não pararem de crescer. O baque veio quando descobriu que haviam criado contas nas redes sociais para seus personagens. Havia o perfil de Tessa, o perfil de Harry, e os dois conversavam como se existissem de verdade. “Como uma fã da banda, sei que quando essas contas aparecem o negócio é grande”, diz. “A conta do Harry no Instagram tinha 25 mil seguidores e eles atualizavam a cada capítulo. Foi aí que vi que os leitores estavam se dedicando à história.”

No Wattpad, pessoas se identificando como agentes literários começaram a procurá-la. “Podia ser real, mas eu pensava: que tipo de pessoa louca iria publicar uma fanfic de One Direction? Eu não respondia, simplesmente ignorava”, lembra. Mas, nos comentários, viu que alguns leitores estavam imprimindo a história para ler no papel e pensou em fazer exemplares para quem quisesse, cobrando apenas o preço de custo. Comunicou a decisão no Twitter e 24 horas depois funcionários do Wattpad mandaram uma mensagem, dizendo que queriam entrar no negócio. Falaram com algumas editoras, Anna foi a Nova York e optou por uma. “Achei que todos os escritores tivessem o privilégio de escolher. Não é verdade.”

MULTIDÃO DE EDITORES

A única exigência que Anna fez foi manter a versão virtual no ar. “A maioria das pessoas tira suas histórias da internet [quando o livro é publicado por uma editora]. A E.L. James tirou. Respeito totalmente essa decisão, cada um tem suas razões, mas acho que o único motivo para o livro ter ficado tão grande foi o fato de que as pessoas estavam lendo. Seria estranho tirar do ar”, diz. “Meu contrato com a editora me permite postar uma parte dos meus próximos quatro livros no Wattpad. As pessoas devem pagar por livros, mas muita gente não pode. Acho importante que eles estejam disponíveis de graça.”

Escrever no Wattpad, em sua opinião, tem como vantagem dar ao escritor uma multidão de editores, fazendo comentários sobre a trama e apontando pequenas discrepâncias que ela não tinha notado — como a cor do carro de Tessa, que era diferente em vários pontos da história. “Geralmente o livro passa pelo editor. O meu foi direto para o público. Eu gostei, porque eu meio que sabia o que estava fazendo, mas não o tempo todo”, ri.

O Wattpad é uma das poucas redes sociais em que quase todos os comentários são positivos, avalia. “Mesmo que fosse algo negativo, normalmente as intenções são boas. Às vezes aparecem uns loucos, mas isso acontece em todo lugar”, diz. “Todo o mundo está lá porque ama ler e escrever. Então não tive medo.”

Quando o texto passou por um editor de verdade, várias pequenas coisas tiveram de mudar para deixar o texto mais com cara de livro e menos com cara de ficção de fã. “Em fanfic você tem liberdade para colocar coisas que não importam para a estrutura da história”, diz. O livro tem mais sexo e “linguagem vulgar”, porque no site crianças poderiam parar ali sem querer. E o fim é diferente, já que ela tinha odiado o desfecho da internet. “Felizmente pude fazer tudo de novo.”

HARRY PUNK

Entre todos os garotos da banda, Harry Styles é o protagonista mais recorrente das fanfics. Por que Harry? “Não faço ideia, de verdade! Geralmente quando leio ficção de One Direction eu prefiro Zayn [Malik]. Mas quando comecei, por alguma razão, ninguém mais me veio à cabeça. Foi estranho.” E, mais importante, por que um Harry punk? “Na época estava na moda a edição punk. As pessoas pegavam fotos dos caras da banda e colocavam tatuagens. Isso antes de eles se cobrirem de tatuagem na vida real. Hoje Harry tem um monte, mas lá atrás só tinha umas duas”, lembra.

Além de achar que ele ficava gato daquele jeito, pensou que teria uma liberdade maior como autora se o personagem não fosse tão parecido com o Harry da vida real. “Eu gosto de fanfics de universos alternativos. Com uma versão oposta, como um Harry punk, posso ser mais criativa. Ele poderia ser totalmente louco por ser tão diferente do Harry real”, explica.

Os textos de fãs sobre One Direction frequentemente deixam de lado a personalidade dos cantores, que são usados apenas pelas suas características físicas. Diferente, por exemplo, das ficções de Harry Potter: apesar de haver algumas mudanças em relação à história de J.K. Rowling (Draco Malfoy gay era uma versão popular), a essência dos personagens era geralmente parecida com a dos livros.

Na versão impressa de “After”, inclusive os nomes dos personagens foram trocados por razões legais. Embora seja permitido criar histórias fictícias sobre celebridades, não se pode vender mercadorias com o nome delas sem sua autorização. Enquanto Anna não ganhava dinheiro, publicando na internet, não havia problema. Mas não poderia usar o nome Harry Styles no livro.

A questão do uso de pessoas reais em livros de ficção não diz respeito só a escritores de livros juvenis. Recentemente, a atriz Scarlett Johansson se envolveu em uma disputa legal pelo uso de seu nome em um livro do francês Grégoire Delacourt. Em “La Première Chose Qu’on Regarde” (a primeira coisa que vemos), o protagonista conhece uma mulher que acredita ser Scarlett. Não se trata, entretanto, da atriz, e sim de uma sósia, com a qual ele começa um relacionamento. Na França, o livro vendeu mais de 140 mil exemplares.

A atriz processou o escritor no ano passado, afirmando que o livro era uma exploração fraudulenta e ilegal de seu nome, sua reputação e sua imagem, e que havia afirmações difamatórias sobre sua vida pessoal. Seu objetivo era impedir a tradução do texto ou uma adaptação para o cinema. Em agosto, porém, suas demandas foram rejeitadas e o livro pôde ser traduzido para o inglês. O juiz concedeu que houve um ataque à sua imagem quando o autor cita dois relacionamentos que ela não teve na vida real e, por isso, ganhou 2.500 euros e uma nova edição do livro sem esses trechos. Delacourt, por sua vez, afirmou que a referência à atriz foi bem-intencionada.

Para evitar esse tipo de problema, Anna tirou os nomes dos cantores, embora toda a publicidade do livro tenha girado em torno do fato de que ele falava do One Direction. Mesmo com essa omissão, alguns fãs da banda não gostaram de ver seu ídolo Harry Styles retratado como um cara tão problemático. “No começo, quase todos os fãs da banda gostavam. Foram eles que fizeram o livro o que é. Mas quando eu fui ficando famosa, eles passaram a se voltar contra mim”, afirma. “Mas são pessoas muito jovens. E não levo as críticas a sério, porque antes elas gostavam e só pararam de gostar porque era ‘cool’ não gostar. Os fãs de One Direction são conhecidos por serem maus na internet.”

Agora, Anna vive o mundo viajando, escrevendo outros livros (inclusive uma versão da história sob o ponto de vista de Harry, tal qual E.L. James fez com “Cinquenta Tons de Cinza”) e acompanhando a versão cinematográfica — na qual não tem direito de palpitar, apesar de agradecer a roteirista por deixar que ela o faça mesmo assim.

Em cada lugar diz ter uma experiência bem diferente. Na Alemanha, por exemplo, seus fãs são homens mais velhos. “Não sei por quê. Cheguei numa sessão de autógrafos e achei que eles fossem pais das meninas, mas não.” Nos países latinos também encontra mais garotos. “Tem uns dez meninos em cada sessão. Nos Estados Unidos tem sempre só um.” E, para provar que fanfic de celebridade não é só coisa de garota, na França encontrou um rapaz de 25 anos que disse imaginar Taylor Swift como Tessa, assim como as meninas veem o protagonista como Harry Styles. “Achei demais.”

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Televisão

As heroínas estão chegando

Em meio aos e-mails sigilosos da Sony Pictures vazados no ano passado, um datado de 7 de agosto listava três exemplos de filmes de super-heroínas que haviam sido um fracasso: “Elektra” (“péssima ideia com resultado muito, muito ruim”), “Mulher-Gato” (“desastre”) e “Supergirl” (“outro desastre”). Com o assunto “filmes femininos”, o e-mail de um executivo para outro procurava provar que, no mundo dos super-heróis, mulheres devem se limitar a papéis coadjuvantes.

Pouco mais de um ano depois, porém, o jogo virou. Este mês, em que o feminismo é o tema do momento no Brasil, marcou a estreia de duas séries praticamente opostas protagonizadas por super-heroínas: “Supergirl”, no ar na Warner, e “Marvel’s Jessica Jones”, que estreou recentemente no Netflix.

Em comum, as duas produções têm uma característica: embora as mulheres se apaixonem (Supergirl) e façam muito sexo (Jessica Jones), seus mundos não giram em torno de homens. Há romance, mas elas estão bem longe de ser comédias românticas. De resto, as duas produções atendem a diferentes tipos de público. Enquanto “Supergirl” é solar, feita para ser vista comendo pipoca num domingo à tarde (algo como “The Flash”, também da Warner), “Jessica Jones” é soturna e super tensa (não por acaso, mais parecida com “Demolidor”, também do Netflix).

Das duas, “Supergirl” é quem faz mais questão de explicitar seu feminismo. Kara (Melissa Benoist) é prima de Clark Kent, o Super-Homem, e foi enviada à Terra com ele para protegê-lo quando ele ainda era um bebê. Sua viagem espacial, no entanto, dá errado e ela passa 24 anos vagando em uma zona na qual o tempo não passa. Quando ela finalmente chega, Clark já é adulto, enquanto ela ainda tem 13 anos. Os papéis se invertem e é ele quem, para ajudá-la, a coloca em uma família humana para que ela viva uma vida normal.

Kara arruma um emprego de assistente em uma grande empresa de mídia cuja dona (fato raro na vida real) é uma mulher: a casca-grossa Cat (Calista Flockhart), uma aprendiz de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”. “Achei que seria legal trabalhar para uma figura feminina poderosa”, diz Kara logo no início, na primeira de várias frases que exaltam o poder de mulheres fortes de influenciar as outras.

Quando Kara vê na televisão que o avião em que viaja sua irmã está prestes a cair, ela resolve usar seus poderes depois de anos para salvá-la. Ao se dar conta do que é capaz de fazer com suas habilidades, ela sorri, legitimamente contente por ter feito o bem. Já é tarde para proteger Clark, pensa ela, mas há um planeta todo cheio de pessoas indefesas a quem ela pode ajudar.

supergirl

Na escolha do uniforme, a série não deixa de alfinetar as tradicionais produções de super-heróis e suas mulheres espremidas em roupas justíssimas, pouco funcionais para lutar. “Eu não usaria isso nem para ir pra praia”, responde Kara quando lhe apresentam um uniforme que lembra a clássica roupa da Mulher Maravilha, mas com mais pele à mostra. Kara também questiona o nome “supergirl” (super menina, vejam bem, e não mulher). Obviamente a série não poderia trocar o nome da personagem, então explicam a escolha assim: se você acha que uma menina é algo menos que incrível, o problema é você.

Outras questões feministas são abordadas logo no primeiro capítulo: a novidade que é finalmente ter uma super-heroína forte para meninas se espelharem, o fato de mulheres não serem levadas a sério por alguns homens e às vezes temerem ser assertivas para não desagradar ninguém — como Jennifer Lawrence declarou recentemente em uma carta explicando como se sentiu após descobrir que ganhava menos que seus colegas homens.

Não se trata, porém, de uma série que bate somente na tecla da desigualdade de gêneros. De cara Kara se interessa pelo fotógrafo James Olsen (Mehcad Brooks), preenchendo o campo “romance” inevitável nessas séries mais leves. Há também boas sequências de ação, indispensáveis para uma produção do gênero. No episódio de estreia Kara descobre que uma nave cheia dos alienígenas mais perigosos do espaço caiu na Terra quando ela chegou. A série dá a entender que seguirá o esquema “vilão da semana”, com a Supergirl enfrentando um antagonista diferente a cada episódio.

É muito cedo para dizer se “Supergirl” será um sucesso, mas os primeiros resultados de audiência nos Estados Unidos mostram que nada impede que uma série protagonizada por uma super-heroína dê certo. Na primeira semana, foi a série nova mais vista da temporada, com 12,95 milhões de espectadores. Na semana seguinte, houve uma queda e 8,86 milhões a assistiram, mas ainda é um número longe do desastre previsto pelos executivos da Sony.

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MARVEL'S JESSICA JONES
Jessica Jones e sua amiga Trish Walker. Crédito: Divulgação

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FORÇA BRUTA

Enquanto “Supergirl” afima com todas as letras que está ali, sim, para discutir questões de gênero, “Jessica Jones” adota uma abordagem menos literal. “Supergirl” é o primeiro passo. Precisa ser tão didática e reforçar o tempo todo como é pouco usual ter uma super-heroína? O ideal é que no futuro isso seja tão normal que não seja mais uma questão e que esse “quer que eu desenhe” seja desnecessário. Mas por enquanto, a série tem suas razões.

Jessica Jones” é o próximo passo. Em nenhum momento alguém estranha o fato de Jessica conseguir parar um carro em movimento ou alcançar a varanda de um prédio com um pulo. Ninguém se espanta por ela ser mulher, ela não reforça sua feminilidade e seu gênero não é mencionado uma só vez. Mas é impossível ver a série e não ter certeza de que mulheres podem ser tão fortes, em todos os sentidos, quanto homens.

LEIA MAIS: Jessica Jones, a anti-heroína que merecemos

Nos quadrinhos da Marvel, Jessica Jones é uma personagem que atuou como a heroína Safira, fazendo uma pequena participação no grupo dos Vingadores. Depois de atacar a Feiticeira Escarlate a mando de Kilgrave (o Homem-Púrpura), que a controlava mentalmente, ela é agredida  e entra em coma. Após despertar, ela larga a vida de heroína e abre uma agência de investigações e procura levar uma vida normal.

A série traz algumas mudanças em relação aos quadrinhos e acompanha a rotina de Jessica (Krysten Ritter) após seu período como super-heroína. Ela toca seu negócio de investigação sofrendo de transtorno do estresse pós-traumático depois de Kilgrave ter feito com que ela cometesse atos horríveis. Depois de descobrir, no episódio de estreia, que ele não está morto como ela pensava, Jessica resolve que sua missão será encontrá-lo e acabar com ele.

Diferente da Supergirl, que é doce e só quer fazer o bem, Jessica é perturbada pelo passado, enche a cara, transa com desconhecidos, e se pudesse cairia fora dali para levar uma vida normal. Jessica é uma mulher como outra qualquer, cheia de defeitos, mas calhou de ter super-poderes. O fato de não ser perfeita a torna ainda mais interessante. Se é comum vermos homens complexos como Don Draper (“Mad Men”) e Walter White (“Breaking Bad”), o mesmo não se podia dizer, até pouco tempo, das mulheres. Jessica é um refresco.

As cenas de luta também diferem bastante das de “Supergirl”. Lá, a heroína voa, enxerga através de portas, ouve tudo, solta raios pelos olhos, tem uma força descomunal. Tudo nela é “super”. As batalhas são cheias de efeitos e fica claro que aquilo nunca, nunca aconteceria no mundo real. Jessica é mais vulnerável. Ela é extremamente forte, mas basta uma bala para pará-la. Suas brigas são no corpo a corpo e embora a gente saiba que a vantagem dela, há uma sensação de que tudo pode acontecer.

Basicamente, as duas séries têm pouco em comum. “Supergirl” é daquelas que você pode passar um mês sem ver e retomar depois, tranquilamente, quando quiser se divertir um pouco. Já “Jessica Jones” é tão eletrizante que dá para ser vista toda num fim de semana. São séries para públicos e momentos distintos, o que é bom. Tanto uma quanto outra provam que a Sony se equivocou. Desde que seja bem feita, não importa se a produção tem um super-herói ou uma super-heroína.

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Os documentos do Lobo

Para contar a história de Marcus Elias, da LAEP e da Parmalat no Brasil – história que, segundo o Ministério Público Federal, é a maior fraude já registrada na bolsa de valores brasileira – utilizamos diversas fontes. Entre elas, documentos públicos que dizem respeito a todos os envolvidos no caso. Em prol da transparência, publicamos aqui todos os documentos públicos utilizados na apuração.

1.

Remuneração dos Diretores

2.

CVM suspende LAEP

3.

Compra da Daslu

4.

Autorização para que diretores vendam os BDRs

5.

LAEP compra fazenda da RE Partners do Brasil

6.

Valor de Mercado Da Fazenda Cruzília Em 2009

7.

Contrato Social da RE Partners

8.

Receita Federal confirma que RE Partners é de Marcus Elias

9.

Bens da Integralat passados para SYMDOGIM, incluindo Fazenda Cachoeira, em Cruzilia

10.

Contrato Social da Symdogim

11.

Santander confirma que Marcus Elias comanda a Central Veredas

12.

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Investigação

Parte III: Em busca da paz

Marcus Elias não fala sobre o assunto. Sua defesa alega, no entanto, que todos os procedimentos eram legais, e que a culpa da queda do preço das BDRs não foi das centenas de novas emissões de ações, mas dos próprios minoritários, que teriam especulado na bolsa e gerado más notícias contra a companhia. Em uma conversa com um alto executivo da LAEP, ele me mostrou uma série de documentos que considera “provas de que os minoritários estariam mancomunados com um fundo inglês chamado GLG, que quer falir a LAEP e vender tudo”.

Uma das maiores dívidas da LAEP estava com o banco Morgan Stanley. Em 2008, a empresa tentou protelar o pagamento, mas se disse surpreendida quando chegou nos Estados Unidos para negociar: a dívida, em forma de debêntures — papéis que davam direito a juros quando quitados —, teria sido vendida ilegalmente ao fundo inglês GLG Partners. “Só poderiam vender essa dívida com autorização da Parmalat”, me disse o executivo da LAEP.

O GLG entrou nessa história como o grande vilão, no entendimento desse mesmo executivo. “Eles são um fundo abutre, desses que compram dívidas de empresas apertadas e que tenham ativos que possam ser vendidos.” O objetivo do GLG seria, segundo a versão do executivo, quebrar a companhia e pegar os ativos para venda. “Os caras vêm com armas de grosso calibre!”

Ele me mostra uma mensagem de um fórum especializado em mercado financeiro publicada em 10 de abril de 2012, 17:56: “Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”. Mais tarde, outra mensagem: “Por falta de matador, xxxxxx.xxx@gmail.com aumenta a oferta para 350 mil.”

O executivo me mostrou também um e-mail privado trocado entre uma pessoa chamada Nícolas e outro funcionário da GLG, não-identificado na mensagem. Nícolas, o negociador do fundo, escreveu: “Ideia de fazer contato com a Abrimec”. Em outro e-mail interno do GLG, um dos funcionários cita a empresa de espionagem Kroll, sem dizer se ela seria contratada e com que objetivo. A mensagem é vaga mas, para o executivo, os dois e-mails são provas de que Abrimec e GLG são sócios em uma cruzada para quebrar a LAEP. “Nós é que somos vítimas de um golpe”, defende.

Quando eu contei sobre meu encontro com o executivo da LAEP para Valdemir João de Melo ele se levantou da cadeira e bateu com as duas mãos na mesa. “Meu amigo, eu nasci em uma cidade no sertão nordestino na qual o símbolo municipal é um jegue. Um jegue! Você acha que eu tenho capacidade de falar alguma coisa com tal de fundo inglês?” Valdemir é um dos minoritários que se sente enganado por Marcus Elias — foram 200 mil reais investidos em BDRs que viraram nada. “Ainda por cima a gente sofrendo com a LAEP e ele fazendo festa.”

[olho]“Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”[/olho]

Se a CVM e os tribunais são as melhores fontes de pesquisa sobre a vida empresarial de Marcus Elias, o site de mexericos Glamurama rouba a cena quando se trata de sua vida social. Em 2010, de fato, o empresário foi personagem de diversas notas sobre festas e convescotes badalados em São Paulo. Na inauguração do Bar Número, da amiga Fernanda Barbosa, ele apareceu “em plena segunda-feira, com frio intenso e garoa típica de São Paulo” para curtir “o espaço charmoso, de atmosfera superelegante e extremamente acolhedora, com sofás de couro marrom, luz baixa e cortinas de veludo”.

Em outra inauguração, desta vez da Brasserie Kosebasi, Elias foi citado ao lado de Teresa Fitipaldi, Letícia Brikheuer, Marcos Faria, Ricardinho Goldfard, Eliza Joenck e Gloria Coelho. A festa, “em clima de véspera de jogo do Brasil” — lotada com mais de mil “bacanas” — teve seu buchicho principal em torno do controlador da LAEP: “o assunto mais comentado da noite? A compra da Daslu por Marcus Elias, que comemora seu aniversário na próxima quarta-feira, no bar Número”.

***

A empresa não se limitou a emitir ações apenas para quitar dívidas — ela também fez emissões para captar dinheiro novo, mais uma vez derramando ações no mercado e corroendo os preços. O caso que mais chama atenção é o relacionado ao fundo de investimentos Global Emerging Markets, o GEM.

Em 15 de janeiro de 2010, a LAEP comunicou ao mercado, em nota oficial, que o GEM faria um aporte de 120 milhões de reais ao caixa da companhia. O título do comunicado era “LAEP obtém nova capitalização de R$120 milhões junto a investidor institucional norte-americano”. No rodapé do documento, a empresa reforçava a importância do acordo assinado com os investidores: “A administração da Companhia considera esta transação determinante para o seu fortalecimento”.

A nota foi replicada na imprensa, soprando ventos positivos à conturbada Parmalat. Em 15 de julho daquele mesmo ano, outro comunicado informava que o GEM aportaria mais 75 milhões de reais no caixa da LAEP. Valdemir viu as notícias e se animou. “Com 195 milhões na conta a LAEP poderia se capitalizar e, enfim, aproveitar o mercado. A ação dela ta muito barata, vai se valorizar. Vou comprar”, pensou.

Valdemir investiu 200 mil reais em BDRs da LAEP sem saber que seria ele próprio, e não o GEM, que iria capitalizar a empresa.

Conclusões imprestáveis

O Global Emerging Markets (GEM) se apresenta como um fundo alternativo de investimentos com 3,4 bilhões de dólares em caixa focado em mercados emergentes. Ele e seus parceiros dizem ter investido em 305 companhias de 65 países. Mas o GEM não tira dinheiro dos seus declarados 3,4 bilhões de dólares para fazer seus investimentos. A operação é complexa, e diferente do que as notícias fazem pensar.

Para aportar dinheiro na LAEP, o GEM pegou emprestadas ações do próprio laticínio, e as vendeu na Bovespa ao longo de semanas. Investidores como Valdemir compraram os BDRs, empolgados com a notícia de que um “investidor institucional norte-americano” estaria financiando a companhia. O GEM, de fato, não colocou um centavo na LAEP. Foi com o dinheiro de Valdemir que o fundo bombou o caixa da empresa, derramando mais ações no mercado e diluindo ainda mais a participação de quem já tinha papéis da LAEP. Os preços dos BDRs, como era de esperar, caíram ainda mais.

O Inquérito Administrativo “13” aberto pela CVM em 2013 chama a operação de “irregular”, “captação de poupança pública travestida de subscrição privada”, utilizando de “artifícios fraudulentos para induzir o mercado ao erro”, fazendo com que “investidores incautos e desinformados” participassem sem saber do aumento de capital. Um “comportamento malicioso”.

O inquérito ainda mostra que o GEM teve, por 10 vezes, fatia maior do que 5% da LAEP, e que deveria, por lei, ter comunicado isso ao mercado — só não o fez porque a informação poderia chamar atenção dos acionistas e mostrar que o fundo não era um investidor com interesses em ser sócio da LAEP, mas um especulador que jorrava novos BDRs na bolsa.

A CVM pediu punição ao GEM e a LAEP, e também a Marcus Alberto Elias, que assinou toda a documentação.

O envolvimento do empresário foi além das assinaturas de autorização: um e-mail enviado à CVM pelo departamento jurídico do banco Santander e obtido por esta reportagem garante que Elias é o representante legal no Brasil de um fundo chamado Brightness Investments LLC, sediado no número 874 da Walker Road, em Delaware, Estados Unidos. O fundo era o único cotista de outra empresa, a Central Veredas Fundo de Investimento em Participações. Foi a Central Veredas que atuou na Bovespa para vender os BDRs que o GEM pegou emprestado da LAEP. No e-mail, o Santander explica que o dinheiro arrecadado pela Central Veredas no mercado não ficou na conta da empresa — foi reinvestido em outra companhia, a Kewalam Empreendimentos e Participações S/A. Fundada meio ano antes da operação do GEM, a Kewalan viu seu capital social explodir do dia para noite, saltando de 1.000 reais para 92,7 milhões com o investimento da Central Veredas. Os sócios da Kewalan, segundo documentos da Junta Comercial de São Paulo, eram Marcelo Duarte e Diego Carrero Mesa. Os dois atuavam como uma espécie de criadores seriais de empresas, e já haviam prestado serviços para LAEP e Marcus Elias antes da operação financeira do GEM.

Marcus Elias se defendeu na CVM. Para ele, a operação foi legal, e a LAEP precisava de dinheiro por conta da crise internacional de 2008. Marcus Elias observou, em sua defesa, que a própria CVM não havia encontrado irregularidades na operação com o GEM diante de uma reclamação de um investidor, em 2011. De fato, à época, a CVM achou a operação normal, tendo dado atenção a ela somente em 2013, quando o dinheiro captado e os papéis já tinham virado história.

Em sua defesa, Marcus Elias apresentou o parecer de quatro professores de direito comercial. O mais fundamentado é o de Eliseu Martins, contabilista do Piauí e membro da diretoria da própria CVM entre outubro de 2008 a dezembro de 2009. Martins declarou que não havia nenhum erro na operação com o GEM, onde reinaria a mais pura legalidade. A CVM não deixou margem para interpretações em sua resposta: “Com todo o devido e mais do que merecido respeito ao professor Eliseu Martins, as suas conclusões são absolutamente imprestáveis”.

Estava escrito

Investir em papéis da LAEP era um negócio arriscado desde o início. No prospecto que norteou os investidores antes da abertura de capital a empresa listava, em 13 páginas, uma série de fatores que poderiam tornar o negócio perigoso, capaz de transformar qualquer real gasto em pó. “Investir nas nossas Ações ou BDRs envolve riscos significativos”, abria o primeiro parágrafo da página 62 do documento, que começa com uma série de alertas sobre a possível incapacidade da empresa de colocar seu plano de recuperação em marcha, citando, inclusive, eventuais mortes de seus executivos. “Nosso sucesso futuro depende, em grande parte, do trabalho e dedicação contínuos de nossa equipe de executivos. A perda de alguns deles pode nos afetar adversamente.”

Em outro trecho, a companhia parece antever a operação Ouro Branco, que detectou substâncias ilegais no leite e afetou a venda dos produtos Parmalat. “Mesmo que nossos próprios produtos não sejam afetados por contaminação, nosso setor poderá sofrer publicidade negativa se os produtos de terceiros forem contaminados, e isso poderia resultar na queda de demanda do consumidor por nossos produtos da categoria afetada.”

A parte que descreve os fatores de risco no prospecto da LAEP dá particular atenção aos BDRs. “Os detentores de BDRs não são e não serão considerados detentores das nossas Ações e não têm o direito de comparecer ou votar nas assembléias gerais de acionistas”, esclarece a página 68. Nos poucos casos em que os compradores dos papéis no Brasil teriam voz, a companhia não garantia que avisaria a tempo os investidores sobre data e horário das reuniões.

Os títulos vendidos pela companhia no Brasil davam direitos extremamente limitados a seus donos. De fato, a empresa seria controlada pela “Ações Classe B”, jamais negociadas em bolsa, e detidas inteiramente pela LAEP —  quase todas por Marcus Elias. Ele controlava a empresa com apenas 11% das ações totais. Para terem poder de voto, os donos dos BDRs deveriam ter quórum de ao menos 30% entre todos os detentores dos papéis, e comparecer no dia e hora marcada para a votação, em Bermudas.

“Eu liguei para um dos diretores da empresa e disse que queria participar de uma reunião. Ele me respondeu, irônico: ‘Você sabe que a empresa fica nas Bermudas, não sabe?’ Eu disse que sabia, e que iria de qualquer modo. Mal termino de falar ele já me replica: ‘Mas você pode ir no dia marcado e nós podemos mudar a data, jogar para 15 dias na frente, conforme permite nosso estatuto’. Ali eu entendi com que eu estava lidando”, me contou um investidor da LAEP que prefere permanecer anônimo. “Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue.”

O controle da empresa estava na mão apenas de seus diretores, e isso poderia confrontar os interesses dos demais acionistas.

O prospecto era ainda mais enfático em outras questões envolvendo as Ações Classe A, chamadas de BDRs no Brasil. “Podemos alterar o Contrato de Depósito e alterar os direitos dos titulares de BDRs de acordo com os termos do referido contrato, sem o consentimento dos titulares de BDR.”

[olho]“Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue”[/olho]

A história da LAEP não seria possível sem a regulamentação que permite que empresas listadas em outros países operem no Brasil através de BDRs. O sistema é comum em outras bolsas do mundo — a Petrobras, por exemplo, opera de modo semelhante nos Estados Unidos — , mas na Bovespa a norma não especificava o que, exatamente, era uma empresa estrangeira. No caso da LAEP, sequer um copo de leite jamais foi envasado fora do Brasil.

Após o escândalo da LAEP, a CVM decidiu mudar a norma dos BDRs: hoje, uma empresa precisa ter ao menos 50% de seus ativos no exterior para negociar recibos de ações no Brasil. Caso contrário, deve negociar papeis comuns e respeitar a Lei das S.A., que oferece proteções legais aos acionistas  –  muitas das quais poderiam ter evitado que a LAEP operasse como operou.

A mudança aconteceu em dezembro de 2009, e não atingiu companhias como a própria LAEP, já estabelecida no sistema de BDRs.

Os controladores poderiam também abandonar o mercado, sem garantia de que os investidores fossem ressarcidos. “Poderemos decidir deixar de ser uma companhia registrada na CVM para a negociação de BDRs e deixar de ser listados na Bovespa. Nesse caso, não podemos assegurar que nós ou nossos acionistas controladores farão uma oferta pública de aquisição de todos os BDRs em circulação em condições que atendam às expectativas dos titulares de BDRs.”

Mais adiante, a LAEP adverte que poderia não cumprir as leis brasileiras. “Somos uma companhia estrangeira, sujeita à legislação estrangeira, e a CVM pode não ter condições de supervisionar as nossas atividades ou fazer valer suas decisões contra nós.”

Na parte final, a LAEP deixa claro que os investidores em BDRs abririam mão de processar os executivos da empresa caso algo desse errado. “Nosso Estatuto Social contém uma previsão de renúncia por parte de nossos acionistas ao direito de promover qualquer ação ou reclamação, individualmente ou em nosso nome, contra quaisquer de nossos administradores. Tal renúncia aplica-se a qualquer ação ou reclamação envolvendo um administrador ou irregularidade por ele praticada no exercício de seus deveres, exceto com relação a qualquer questão que envolva qualquer fraude ou desonestidade por parte do diretor ou conselheiro.”

E, como gran finale, o prospecto previa que diretores, como Marcus Elias, poderiam ser indenizados pela própria LAEP em casos de “omissões ou atos” praticados por eles próprios. Ou seja: diante de uma avaliação incorreta do mercado feita por Marcus Elias que causasse prejuízos a empresa, o próprio Marcus Elias poderia ser indenizado por sua avaliação incorreta.

O prospecto, no entanto, não trazia a informação completa. O Estatuto Social da empresa, aprovado em 14 de agosto de 2007, é mais claro. O documento atesta que, caso qualquer um dos diretores fossem responsabilizados judicialmente por algum ato ou omissão no comando da empresa, a própria LAEP deveria indenizá-los, se necessário, com os bens da empresa. Eles estariam, assim, não só livres de “todas e quaisquer ações, custos, encargos, prejuízos, perdas e danos e despesas que eles, ou qualquer deles, seus herdeiros, testamenteiros ou inventariantes venham ou possam a vir a incorrer”, mas também poderiam pedir dinheiro por isso. “Tudo ilegal. Não tem nem discussão. Essas cláusulas ferem várias leis brasileiras, não estão acima delas. Não valem nada”, analisa Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

O prospecto é um documento que parecia alertar os futuros acionistas que tudo poderia dar errado. E deu.

A mão amiga do BNDES

Em dezembro de 2010, quando a empresa parecia em um beco sem saída, um salvador apareceu no horizonte: o banco público federal BNDES investiu 700 milhões de reais na criação da LBR — Lácteos Brasil, uma fusão de alguns laticínios brasileiros encrencados, entre eles a LAEP. O nome de Marcus Elias não constava entre os 10 conselheiros da companhia. Sem acento, ele perdeu poder, entregou suas fábricas aos novos diretores e foi afastado das decisões.

A nova aposta do banco estatal seria cumprir o plano que o próprio Elias havia proposto para a LAEP: unificar o setor leiteiro e formar uma gigante brasileira capaz de competir no exterior. A dinheirama do BNDES cumpria à risca o discurso político das “campeãs nacionais”, as multinacionais brasileiras bombadas com dinheiro público federal. Jorge Rubez, presidente da LeiteBrasil, associação que representa os produtores de leite, declarou à imprensa na época: “Se for para sanar os problemas, parabéns. Mas, se for para pegar dinheiro do BNDES e falir daqui a pouco, não dá.”

Em 15 de fevereiro de 2013 o juiz da 1ª Vara de Falências aceitou o pedido de Recuperação Judicial da LBR. Era o fim do laticínio do BNDES, e a terceira morte da Parmalat no Brasil.

Em resposta a esta reportagem, o BNDES declarou que fez um estudo de viabilidade que mostrava que investir na LBR seria um bom negócio para o país. O banco declarou que não pode, contudo, divulgar o estudo, alegando sigilo contratual. O BNDES declarou ainda que não sabe qual o valor de mercado da LBR, hoje.

Três dias após o pedido de recuperação judicial da LBR, Marcus Elias tentou fazer uma fusão da LAEP com a companhia Prosperity Overseas, também das Bermudas. Os minoritários temeram que a empresa sumisse com o que restava de ativos e alertaram as autoridades, alegando fraude na operação. Forçada por uma cautelar judicial emitida no Brasil a pedido do Ministério Público Federal de São Paulo e da CVM, a LAEP anunciou desistência da fusão por conta de “incertezas jurídicas”.

Documento emitido em 22 de setembro daquele mesmo ano e obtido por esta reportagem mostra, no entanto, que a Prosperity Overseas se tornou de fato uma das sócias da LAEP —  ao contrário do que a empresa havia declarado — , tendo adquirido mais de 40 milhões de ações Classe A da companhia em 21 de fevereiro daquele ano, se tornando o maior acionista da LAEP. A Prosperity Overseas pertence a outra empresa de nome semelhante, a Prosperity Investments Fund Inc, sediada no Panamá e dissolvida em 3 de dezembro de 2013. Seus diretores são ligados a centenas de outras empresas no país.

Em 23 de setembro daquele mesmo ano, os BDRs da LAEP foram suspensos pela Bovespa. A bolsa tomou essa decisão porque o fundo inglês GLG pediu a liquidação da companhia na Suprema Corte de Bermudas, onde a LAEP se encontra em estado de espera por decisões judiciais no Brasil. Em 19 de agosto de 2014, a LAEP parou de entregar documentos obrigatórios de prestação de contas ao mercado, o que reforçou a suspensão dos BDRs.

Quando abriu seu capital, a LAEP declarou que venderia seus BDRs para “investidores institucionais qualificados”. Logo nos primeiros meses de operação da empresa a maioria desses investidores venderam suas posições, colocando as ações no mercado comum. Cerca de 18 mil investidores minoritários esperam ressarcimento.

Ao longo dos anos, a CVM abriu dezenas de processos contra a companhia, o que não a impediu de atuar no mercado acionário, talvez, por tempo demais até que alguma medida definitiva fosse tomada. Em resposta oficial, a CVM disse que atuou para investigar a LAEP em 2013, mas não respondeu à pergunta que eu fiz: “Dados os diversos sinais de que a LAEP era uma empresa no mínimo problemática, porque a CVM demorou tanto tempo até tomar medidas que afastassem o risco dos acionistas perante os BDRs da LAEP na Bovespa?”.

Em 2010, a LAEP informou ter liquidado dívidas de 48 milhões de reais com credores. A auditoria KPMG vasculhou o livro-caixa da LAEP e diz não ter conseguido confirmar a existência de parte do que chamou de “supostas dívidas”. “Só esse dinheiro poderia nos pagar”, observa Valdemir João de Melo, que investiu 200 mil reais na empresa.

Por conta do parecer da KPMG, a LAEP culpou a auditoria pela queda no preço de suas ações e a processou. E perdeu. Em sua sentença, o juiz Gustavo Coube de Carvalho observou que o processo da LAEP contra a KPMG poderia parecer “estratégia diversionista, buscando desviar ou suspender, ao menos temporariamente, a atenção de acionistas e investidores que tenham sofrido prejuízos com os papeis da empresa”.

Apesar de contestada pela CVM à época, a empresa de Marcus Elias continuou operando, mesmo sob fortes desconfianças.

Em busca de alguma paz

No dia 2 de julho deste ano, a procuradora federal Karen Louise Jeanette Kahn denunciou Marcus Alberto Elias por uma série de crimes. Em sua denúncia, ela chama Marcus Elias de “o grande protagonista de toda a fraude”, mente por trás da “quebra fraudulenta da empresa LAEP, desviando, senão a totalidade, uma relevante parcela dos recursos captados na Bolsa de Valores, em benefício próprio e de familiares”. Para isso, Marcus Elias e os demais diretores da empresa teriam “se utilizado de mais de 100 empresas, para transferência de bens e direitos, supostamente também ao exterior, em clara gestão fraudulenta seguida de lavagem de dinheiro”. Segundo a denúncia, “a LAEP só serviu como veículo indispensável à prática do golpe ao mercado financeiro do Brasil”.

O documento vai além: acusa Marcus Elias — dono de uma “meteórica evolução patrimonial” — de comandar “autêntica formação de bando ou quadrilha”. Para a procuradora, o controlador da LAEP tem, em seu nome ou de familiares, ao menos 150 milhões de reais, incluindo imóveis, um helicóptero e um avião. “A LAEP sempre fez uso de informações falsas e/ou prejudicialmente incompletas, o que permitiu aos controladores e administradores da empresa empreenderem, de forma exitosa, fraudes e golpes contra o sistema financeiro nacional”, completa a denúncia.

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Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress
Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress

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Acolhendo o pedido da procuradora, naquele mesmo mês a Justiça ordenou que Marcus Elias se afastasse do mercado financeiro. Os magistrados também bloquearam seus bens, inclusive a herança a qual Marcus teria direito após a morte do pai, que seria um dos laranjas do empresário, segundo a acusação. Ela poderá ser usada para pagar os investidores prejudicados pela LAEP caso a Justiça assim determine. “Estamos rastreando o dinheiro”, me disse a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn em seu gabinete, ironicamente colado parede a parede com o escritório do advogado Sérgio Bermudes, onde Marcus Elias me recebeu.

A investigação já rastreou mais de 100 empresas de Marcus Elias, ou ligadas a ele, e agora tenta remontar a história. Ao menos um dos bens da LAEP, no entanto, pode ser encontrado sem muito esforço: em um vídeo no Youtube. A fazenda Cruzília, adquirida pela Integralat da empresa RE Partners do Brasil, à época de Marcus Elias, está a venda por 13 milhões de reais, dobro do valor pago pela Integralat. Documentos obtidos por esta reportagem mostram que, em 2010, a Cruzília foi repassada pela Integralat para outra empresa, a Symdogim Empreendimentos e Participações S/A. A Symdogim era comandada por Carlos Enrique Ferraz — que trabalhava para a própria Integralat antes de se aventurar como empreendedor.

O ex-controlador da LAEP se declara inocente de todas as acusações e procura levar sua vida com normalidade. A vida social de Elias não parou nem mesmo nos momentos judiciais mais críticos. Em julho de 2015, na semana em que o MPF oferecia denúncia contra ele, o empresário fez pose ao lado de um ramalhete de flores em um salão iluminado à luz de velas na França — terno bem cortado, mãos unidas em postura quase zen. A manchete do site de celebridades Glamurama dava o tom do momento: ‘Numa boa, Marcus Elias curte show de Caetano e Gil em Paris’.”

Em seu perfil publicado na Folha de S. Paulo, em abril de 2008, o empresário é retratado como dono de uma biblioteca de mais de mil livros. Entre eles, no entanto, conforme a reportagem, “é difícil encontrar um exemplar que trate de negócios”. Elias é mesmo fã de estudos religiosos. “A grande maioria das obras nas suas estantes versa sobre religião oriental e filosofia.”

Nem mesmo a busca pela iluminação consegue trazer paz de espírito a Marcus Elias. Grato ao lama tibetano Gangchen Rimpoche pelos conselhos recebidos, o empresário retribuiu com um presente contestado pelos investidores que se julgam lesados pela LAEP: Elias teria investido mais de 10 milhões de reais na construção de um templo budista em Campos do Jordão, em um terreno de sua propriedade, além de uma sede do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e outro imóvel na mesma cidade para um centro de reiki.

Reportagem da revista IstoÉ de outubro de 2010 retrata o monje Gangchen como “ex-companheiro de cela do líder chinês Deng Xiao Ping, que sucedeu Mao Tsé-tung na China”. Em sua denúncia à Justiça, a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn pediu a prisão preventiva de Marcus Elias, negada pelo juiz. Caso o ex-controlador da LAEP tenha a desfortuna de ser encarcerado, o lama pode ser um ombro experiente a recorrer.

***

Leandro Demori, 34, é jornalista investigativo e editor do Medium Brasil. Issao Nakabachi, 28, é designer e ilustrador do Colletivo.

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Investigação

Parte II: Soda no leite, meio bilhão na Bolsa

Naquele 22 de outubro de 2007 fazia quatro meses que os agentes da Polícia Federal se encontravam com ex-funcionários de duas cooperativas de Minas Gerais, que lhes explicavam como era operada uma fraude no leite. Os informantes haviam indicado o nome de um químico de São Paulo que seria o responsável por criar a fórmula da fortuna: água oxigenada, soda cáustica, ácido cítrico, citrato de sódio, sal e açúcar em proporções ainda desconhecidas que, quando adicionados ao leite, burlavam os controles de qualidade e aumentavam o volume vendido em até 8%. Os depoimentos indicavam que milhares de litros eram fraudados todos os dias e revendidos a fábricas.

A ação que envolveu a prisão de 27 pessoas mobilizou 200 policiais e servidores do Ministério da Agricultura. A fraude ultrapassou as fronteiras de Minas — as cooperativas envolvidas vendiam leite cru para diversas marcas, que depois distribuíam o leite processado em várias regiões do país. Entre elas estava a Parmalat.

Por decisão do governo, todos os lotes deveriam ser recolhidos dos supermercados e incinerados, às custas da empresa. “Só essa operação de recolher e destruir o leite, além de ficar sem vender até que o governo autorizasse, nos deu 300 milhões de reais de prejuízo”, me contou um alto executivo da LAEP que, por razões judiciais, não quer ser identificado.

O escândalo do leite seria prejudicial para qualquer marca, mas caiu como um míssil na Parmalat. A Polícia Federal deflagrou a Operação Ouro Branco uma semana antes de a LAEP abrir seu capital na bolsa. A coleção de boas notícias sobre a reestruturação do laticínio italiano cessou, e a marca foi parar nas páginas policiais.

A notícia derrubou pela metade o preço estipulado pelos papéis.

Em reunião de emergência realizada em 26 de outubro, os sócios decidiram baixar as expectativas e precificar as ações em R$ 7,50. A ideia de captar um bilhão de reais parecia distante frente ao escândalo do leite — contestado pela empresa, que processa a Anvisa alegando que o órgão teria utilizado um teste fora das normas para detectar a presença de aditivos químicos proibidos. O frenético 2007 não poderia, no entanto, passar em branco. Até o final daquele ano, 64 companhias abririam seu capital na bolsa brasileira, um recorde. A LAEP não queria se desgarrar da boiada.

Marcada para o dia 29 de outubro, a abertura de capital só aconteceu no dia 31. As ações que seriam negociadas pela LAEP na Bolsa de Valores de São Paulo tinham uma particularidade: não eram de fato ações. Chamados de Brazilian Depositary Receipts, ou BDRs, os papéis eram recibos das verdadeiras ações da empresa, negociadas, estas sim, na Bolsa de Luxemburgo, a partir daquele mesmo 31 de outubro. Vendendo-se ao mercado como empresa estrangeira, e aceita pela Bovespa como tal, a LAEP tinha o direito de negociar seus BDRs no Brasil. Os papéis vendidos no país tinham aspecto de ações — eram cotados na Bovespa sob o código MILK11 e apareciam para qualquer investidor, profissional ou amador, nos sistemas de compra e venda de ações, misturados a todos os papéis disponíveis no mercado — , mas, na letra fria dos contratos, os BDRs davam menos proteção e direitos a quem os comprasse.

Mesmo em meio ao furacão, a LAEP conseguiu vender seus BDRs na Bovespa. A empresa convenceu o que chamou de “investidores institucionais qualificados”, basicamente fundos de investimentos com apetite para o risco, dispostos a encarar uma companhia em recuperação judicial com a marca arranhada no mercado. A divulgação da abertura de capital deu ênfase a esses “investidores qualificados”. Parecia coisa de gente grande do mercado, fundos experientes que sabiam o que estavam fazendo. Não foram só os especialistas em risco, num total de 49 compradores, no entanto, que apostaram no futuro da LAEP. Ao bater do gongo, às 17 horas daquele mesmo 31 de outubro, a empresa liderada por Marcus Alberto Elias tinha levantado 507 milhões de reais na bolsa — também com dinheiro de 556 pessoas físicas, 7 pessoas jurídicas, 7 clubes de investimento e 44 outros fundos. O total de compradores do mais novo papel da Bovespa, o MILK11, foi de 706. A Parmalat estava de volta à Bolsa. Outra jogada de mestre.

“Nós temos a visão do negócio”

Apesar do revés de expectativas durante a abertura de capital, o meio bilhão amealhado na Bovespa serviria para dar fôlego à companhia. Deduzidas as comissões e despesas pagas durante a abertura de capital, 477,9 milhões de reais entraram no caixa da LAEP. Nas semanas seguintes, Marcus Elias colocaria seu plano de administração à prova.

A principal medida que Elias deveria tomar seria um investimento pesado na Integralat. Na página 76 do Prospecto Definitivo de Oferta Pública, documento que guiou os compradores antes da decisão de compra das ações, a LAEP garantia que investiria “aproximadamente 60% dos recursos captados, ou R$ 286,7 milhões, nas atividades da Integralat”. A Integralat não era um acessório na estratégia da nova Parmalat. Em anúncios ao mercado, seu logotipo aparecia colado ao da empresa italiana, em igual tamanho.

Mais da metade do dinheiro investido na Integralat seria gasto, segundo o Prospecto, com “compra de rebanho, investimentos em equipamentos e tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, melhoria da qualidade genética do rebanho e treinamento e qualificação dos produtores”. A jogada fazia sentido. Mirando os grandes frigoríficos nacionais, Marcus Elias esperava amarrar os produtores de leite em um sistema integrado que os tornasse parte de uma cadeia compacta e azeitada, aumentando a produção e diminuindo custos e problemas. A empresa saberia de antemão de quem estava comprando. Os produtores fariam parte da indústria. A ideia aparece diversas vezes no Prospecto publicado pela LAEP, e era uma das grandes apostas para o futuro da multinacional do leite.

Contrariando o documento assinado de próprio punho, Marcus Elias mudou de ideia. Em vez de seguir os planos que estimularam investidores a comprar os papéis da LAEP, o controlador secou as torneiras da Integralat e saiu pelo Brasil arrematando fábricas. Com o dinheiro, Elias concretizou aquisições iniciadas antes da abertura de capital e fechou novos negócios, comprando estabelecimentos para aumentar o tamanho do laticínio a fórceps. Em poucos meses a Parmalat tinha dobrado sua estrutura — era dona 14 fábricas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia. Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava.

O apetite de Elias preocupou o mercado. Em junho de 2008, o banco UBS Pactual — o mesmo que havia coordenado a abertura do capital da LAEP na Bovespa e que detinha 5,87% das ações da companhia — publicou um relatório arrasador. Discordando da estratégia de Elias, o UBS rebaixou o preço-alvo das ações: de R$ 11,50 para R$ 4. O argumento principal foi justamente o que parecia ser um abandono financeiro da Integralat, coração do projeto de recuperação da nova Parmalat. Como notou o UBS, dos 286,7 milhões de reais captados na Bovespa que deveriam ser investidos na Integralat apenas 80 milhões de reais de fato foram.

[olho]Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava[/olho]

A Comissão de Valores Mobiliários, responsável por supervisionar o mercado acionário, abriu processo interno e pediu explicações à LAEP. A empresa, em sua defesa, garantiu que seu estatuto social e também o Prospecto autorizavam a mudança de planos sem cerimônias. “É possível que eles tenham se dado conta que investir na Integralat era furada. A Parmalat tinha problemas urgentes de caixa, não poderia se dar ao luxo de imobilizar tanto dinheiro em fazendas que demoram para dar resultado”, me disse um analista de mercado que prefere não se identificar. “De todo modo, mostrou logo de cara que o comandante da LAEP não sabia o que estavam fazendo”, completou.

Mesmo nos investimentos abaixo do esperado feitos na Integralat, um dos negócios assinados por Marcus Elias — e que poderia suscitar dúvidas ao mercado — passou em branco aos órgãos de controle à época. Esta reportagem obteve documentação que comprova que em abril de 2008, menos de dois meses antes do relatório do UBS, a LAEP aprovou em assembléia o arrendamento, com opção de compra, de uma propriedade na cidade de Cruzília, em Minas Gerais. A fazenda Cachoeira, avaliada em cerca de 6 milhões de reais, seria efetivamente comprada pela Integralat. O arrendante da Cruzília, com o qual a Integralat negociara, era uma empresa chamada RE Partners do Brasil, de propriedade do próprio Marcus Elias. O controlador da LAEP assinou a compra de sua própria fazenda.

Pressionadas pela série de eventos, as ações da companhia tomaram um tombo arrasador: caíram 20% no dia do anúncio do relatório do UBS, e desceriam até bater 70% de desvalorização em poucas semanas. O papel, que havia sido vendido a R$ 7,50 em seu primeiro dia na bolsa, valia, naquele junho de 2008, menos da metade do valor original.

Em reunião com acionistas no dia 8 de julho, Marcus Elias foi questionado por Rodrigo Glatt, analista da administradora de recursos GTI, que tinha comprado ações da LAEP meses atrás. Rodrigo acompanhava a empresa de perto, esperando que ela recuperasse a marca Parmalat e desse a volta por cima.

“Vocês pensam em mudar alguma coisa considerando a queda que a ação teve nessas últimas três semanas?”, perguntou Glatt.

“Nós não entendemos esse pânico”, replicou Marcus Elias. “Por outro lado, claro, nós estamos prestando atenção em outros detalhes ou fatores psicológicos que podem ajudar a companhia”, emendou, sem mencionar o puxão de orelha do UBS.

Na mesma reunião, Glatt questionou se a estrutura organizacional da LAEP não estaria penalizando os papéis.

“E qual que é a vantagem de ter a holding nas Bermudas se todos os ativos estão no Brasil?”

[olho]“Nós não entendemos esse pânico”[/olho]

Marcus Elias explicou: “A vantagem é que nós podemos controlar a companhia mesmo não tendo 51% dela, certo? A grande vantagem é você poder controlar sem ter o controle matemático das ações.” E complementou, dando pistas de seus planos: “Se esse é um projeto de capital intensivo, talvez a ideia que nós tínhamos em outubro de 2007 é que muito provavelmente nós não ficaríamos em uma só emissão de ações, mas talvez viéssemos a mercado em certas datas para mais emissões. Então a estrutura atual trouxe esse conforto de poder voltar a mercado sem perder o controle, porque nós entendemos que nós temos a visão do negócio, nós temos o diagnóstico, nós somos os empresários, então temos que levar o projeto até o fim, para dele extrair a melhor valorização, o melhor benefício.”

Dois meses após a reunião, Marcus Elias decidiu se desfazer de ativos que ele recém tinha adquirido: a empresa Poços de Caldas e a licença da marca Paulista seriam negociados com um concorrente pelo mesmo valor de compra. Da aquisição dos negócios da Danone até a venda haviam se passado apenas quatro meses. Com o caixa sufocado — castigado também pelos altos custos do leite in natura em 2008 —, a companhia ainda fechou unidades e reduziu turnos. O investimento abaixo do esperado na Integralat gerou um mea culpa da LAEP, que em seu balanço de meio de ano admitiu estar em busca de um sócio para a subsidiária. A salvação da Parmalat parecia cada vez mais apenas um respiro antes do próximo mergulho.

***

Eram cerca de seis horas da manhã do dia 15 de agosto quando Marcus Elias levantou da cama e ligou a TV antes de encarar o dia. O empresário ficou paralisado diante da notícia que corria o mundo como rastilho de pólvora: uma das maiores e mais antigas instituições financeiras do planeta estava falida  —  era o fim do banco americano Lehman Brothers.

A Bovespa, como as demais bolsas do mundo, entrou em queda livre. As ações da LAEP, que já claudicavam, foram jogadas aos centavos. Marcus Elias teria uma reunião emergencial com investidores dois dias depois, na qual pediria desculpas e tentaria acalmar a todos. “Sinto muitíssimo pelos resultados que apresentei. Erramos no timing ao dobrar a companhia de tamanho em um momento totalmente adverso.”

O mercado não cedeu aos lamentos de Elias. Ao final daquela reunião, a Bovespa informou que uma grande administradora de recursos com sede em Delaware, nos Estados Unidos, queimaria todas as ações da LAEP que tinha em carteira, fazendo um leilão na bolsa. A fatia era portentosa: equivalia a 24,36% do total de papéis da companhia. O leilão derrubou ainda mais o valor das ações, que já acumulavam perdas de 80% em meio ano. Outros investidores com grande quantidade de papéis também pularam fora, entregando seus BDRs a preços muito menores do que haviam pago. Com o pânico, os bancos fecharam as portas; o crédito secou.

Sem saída, Marcus Elias olhou novamente para a Bolsa. Em pouco tempo, ele voltaria ao mercado emitindo mais ações em busca de dinheiro. A oferta atrairia milhares de pequenos investidores, que entrariam em um labirinto sem saída.

A casa da moeda 666

Era inverno, mas Otávio Vargas Valentim suava. Com quase 40 anos e sobrepeso aparente, o terno de advogado o castigava sob o sol abrasivo daquele atípico julho de 2012. Otávio carrega nos braços alguns volumes de processos judiciais que acabara de pegar no carro. A dois passos da porta de seu escritório, esbaforido, notou um estranho trajando touca e roupas pretas. O homem parecia um lutador de artes marciais. No mesmo instante ouviu o barulho de um Nextel — o estranho apertou o botão e ouviu uma voz masculina do outro lado confirmando o que parecia o alvo de uma missão: “É ele”.

Atabalhoado com os processos que carregava, o advogado respondeu no instinto quando o homem guardou o celular, caminhou até ele e o cumprimentou com um “bom dia”. Otávio tomou um soco no rosto e se estatelou na calçada. Os processos se espalharam pelo chão. Com os braços livres, ele tentou proteger o rosto enquanto era atingido pelo agressor a chutes. “Fui salvo pelo pessoal do escritório, a galera saiu correndo atrás do cara.”

O estranho entrou em um carro onde um motorista o esperava, e desapareceu.

Otávio Valentim conseguiu identificar seu algoz e dias depois o encontrou em uma delegacia, na qual prestou queixa. “Ele disse que bateu em mim porque eu olhei feio pra ele. Coisa sem sentido.” Para Valentim, a surra teria outro motivo: Marcus Alberto Elias. O controlador da LAEP seria o mandante da agressão.

Foi conversando com um gerente de banco que Otávio Valentim decidiu investir nas ações da LAEP depois da crise de 2008. A empresa estava em um setor relevante, a marca Parmalat tinha força e os papéis estavam demasiadamente desvalorizados, argumentou o gerente. Nas primeiras compras, Otávio fez algum dinheiro rápido. Gostou de operar as ações e decidiu investir pesado. Nos meses seguintes, no entanto, os papéis não paravam de cair, sem qualquer motivo aparente. Tentando recuperar os sucessivos prejuízos, Otávio investiu mais, e mais, e mais — gastou em BDRs da LAEP cerca de meio milhão de reais, triturando suas economias e destruindo seu moral.

As constantes quedas sem sentido no preço dos BDRs entre 2009, 2010 e 2011 levaram Otávio e um grupo de investidores minoritários à sede da empresa. Em 20 de janeiro de 2012, por volta do meio-dia, eles marcharam do quartel-general da companhia, na Vila Olímpia, zona sul da capital paulista, até a Bovespa, no centro da cidade, usando fantasias e máscaras do filme Pânico. No caminho, os investidores passaram pela loja de luxo Daslu, recém-adquirida por uma LAEP em estado financeiro catastrófico. A negociação levantou mais uma pulga atrás da orelha dos minoritários por um comportamento que eles reprovavam: a falta de transparência.

Marcus Elias teria comprado a Daslu, também em recuperação judicial, por 65 milhões de reais. No entanto, o empresário seria um dos credores da butique ─ ele teria emprestado dinheiro à loja por conta de sua amizade pessoal com Eliana Tranchesi, dona da Daslu, que viria a falecer um mês após o protesto dos minoritários. Elias propôs o abatimento de dívidas de 44 milhões de reais que a Daslu teria com duas de suas empresas, e prometeu investir 21 milhões no futuro.

O empresário criou uma Sociedade de Propósito Específico para assumir todas as dívidas da loja, e, como havia feito com a Parmalat, negociou abatimentos: os credores só receberiam 40% do valor devido, em 60 meses. Entre eles estavam muitos fornecedores da loja, que só veriam dinheiro se a nova Daslu desse lucro.

Durante uma assembleia de cinco horas, dois grandes credores defendiam que Elias deveria pagar um valor maior para levar a marca Daslu junto com a loja. A marca não estava no plano de recuperação judicial. Foram voto vencido: o banco HSBC, que tinha dívidas a receber, aprovou o plano inicial apoiado pelo voto de duas outras grandes credoras, a Chiplands e a Retail, ambas empresas ligadas ao próprio Marcus Elias. O empresário apresentou uma proposta e votou a favor de si mesmo. Assim como fizera com a Parmalat, ele assumiu o controle da Daslu em uma tacada perfeita.

[olho]A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações[/olho]

A revolta dos minoritários da Parmalat foi potencializada pelo caso Daslu. Sem informações claras por parte da LAEP, eles acreditavam estar financiando a compra da loja e perdendo participação na companhia por conta da emissão massiva de novos BDRs. A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações. Alegando estar pagando as antigas dívidas da Parmalat, a empresa, em vez de quitar os débitos em dinheiro, emitia BDRs e passava aos credores. O procedimento é considerado legal no Brasil, mas a LAEP bateu um recorde: fez 212 emissões de ações. “Eu nunca vi isso em nenhum mercado de capitais em qualquer país do mundo”, me disse um investidor experiente que preferiu não se identificar. Como era vista pela Bovespa como empresa estrangeira, a LAEP não era obrigada a cumprir a norma brasileira que protege os investidores dono de papéis da companhia: eles têm direito de preferência sobre novas emissões. Precisam ser informados antes que os papéis sejam vendidos no mercado, para saber se querem ou não comprar os novos BDRs — ou se querem pular fora de um negócio que, para sobreviver, está emitindo ações às dezenas.

As constantes emissões derretiam o preço das ações sem que os investidores soubessem, já que a LAEP, além de não dar direito de preferência, não prezava pela transparência. Quanto mais ações a companhia jogava no mercado, menor o valor unitário de cada uma delas. Otávio, que investiu 500 mil reais e era, portanto, dono de uma parte considerável da empresa, viu seu dinheiro evaporar. “Era uma casa da moeda”, disse Gisele Menezes, advogada da Abrimec, Associação Brasileira dos Investidores no Mercado de Capitais, criada por cerca de 80 minoritários que processam Marcus Elias para tentar reaver o dinheiro investido. O total investido pelos associados da Abrimec na Parmalat chega a 40 milhões de reais. “A perda de valor dessas ações não tem a ver com o risco inerente da Bolsa, tem a ver com fraude. A LAEP é uma empresa ilegal.” Gisele defende a tese de que a companhia não é uma empresa estrangeira e que não poderia negociar BDRs e se livrar da lei brasileira que dá mais proteção aos investidores. “Me diz uma fábrica da LAEP fora do Brasil?”, desafia.

Todas as fábricas, funcionários, fornecedores e clientes do laticínio estão, de fato, no Brasil — e toda a sua gestão é tocada em São Paulo. A companhia declarava, no entanto, sua sede legal nas ilhas Bermudas, mais precisamente na Clarendon House, número 2 da Church Street, em Hamilton.

O endereço não é exatamente o dos escritórios da LAEP: nenhum executivo da empresa despacha cotidianamente da principal rua da ilha, onde igrejas, um teatro, bares, o mercado municipal, edifícios do governo, lojas e agências de automóveis se enfileiram em um leve aclive de mão única. O prédio onde a LAEP declara endereço abriga o escritório de advocacia Conyers Dill & Pearman, especializado em auxiliar juridicamente firmas de todo o mundo.

A companhia não envasava leite nas Bermudas. Sua presença no país se limitava a administrar uma caixa postal de número sugestivo: 666.

Corra ou morra

As avalanches de novos papéis obedeciam a critérios sigilosos que a LAEP estabelecia com cada um dos credores, sem comunicar aos acionistas. Em tese, os BDRs dados em troca de dívida poderiam ser mantidos pelos credores, que esperariam, caso desejassem, uma valorização dos papéis conforme a Parmalat se recuperasse. Os credores se tornariam investidores da empresa, e apostariam no futuro dela junto com seus diretores e os demais acionistas.

Não era assim que o plano funcionava, no entanto. O Risca Faca teve acesso a alguns desses contratos. Um deles, entre a LAEP e a empresa Vida Indústria de Laticínios LTDA, de Goiás, assinado em 29 de janeiro de 2010, é ilustrativo. A LAEP reconhece uma dívida com a Vida Laticínios de 2,1 milhões de reais. Para quitar, a LAEP emitiria BDRs no valor da dívida — um programa de conversão de dívida em capital. No entanto, a Vida tinha 15 dias para vender os papéis na Bolsa, sob pena de ver sua dívida quitada sob a cotação dos BDRs no oitavo dia após a assinatura do contrato. Caso o valor dos papéis caísse, a Vida perderia dinheiro. A dívida poderia virar nada.

Sob essas condições, era evidente que a Vida — e outras empresas — não esperariam para ver no que ia dar: assim que colocavam as mãos nas ações, os credores corriam para a Bovespa e despejavam os papéis no mercado. Com excesso de oferta, os BDRs se desvalorizavam.

Dezenas de procedimentos como esse foram feitos ao longo dos anos, jogando milhões de novas ações no mercado, derrubando o preço dos papéis dia após dia, reduzindo a participação e o investimento dos acionistas a pó. Em 2011, ano anterior ao protesto dos minoritários, o preço dos BDRs na Bovespa havia caído mais de 90%.

O contrato com a Vida Laticínios tinha ainda uma cláusula peculiar: caso a empresa captasse na bolsa um valor acima daquele que a Parmalat lhe devia, era obrigada a depositar a diferença na conta da própria LAEP. Além de quitar as dívidas às custas dos investidores — muitos deles compradores empolgados de BDRs por conta de notícias animadoras sobre a Parmalat publicadas na imprensa nas mesmas épocas das novas emissões de ações —, a LAEP ainda fazia caixa com as operações com alto potencial de derrubar o preço de seus próprios papéis no mercado.

A emissão de bilhões de novos papéis serviu também para remunerar diretamente diretores da LAEP para além de seus salários, mesmo em momentos de crise extrema. Documentos mostram que ao menos uma vez a companhia usou do expediente: em 20 de fevereiro de 2009 o Conselho de Administração aprovou a emissão de 400 mil dólares em BDRs para “incentivar o desempenho de determinados executivos da companhia”, sem divulgar seus nomes ou cargos. Os executivos poderiam ficar com os BDRs em carteira, esperando que se valorizássem, também, por conta do próprio trabalho na empresa. Quanto melhor dirigissem a companhia, mais as próprias ações se valorizariam. Em tese, o Plano de Incentivo de Ações deveria dar novo gás aos executivos e melhorar suas performances para o bem da LAEP. Menos de um ano depois de serem bonificados, em 14 de janeiro de 2010, no entanto, nova reunião do Conselho presidido por Marcus Elias autorizou que “determinados empregados” – novamente sem especificar nomes e funções – pudessem vender os BDRs que a companhia havia presenteado.

Pelos cálculos da Abrimec, a LAEP captou, entre sua abertura de capital até a última das 212 emissões de ações, cerca de 2,5 bilhões de reais. “Esse dinheiro sumiu. Cadê? Sumiu. Só o Marcus Elias pode dizer onde esse dinheiro está”, provocou Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

Uma carona para Naomi Campbell

A terça-feira estava particularmente abafa naquele 27 de outubro de 2015 quando o táxi entrou na avenida Berrini até parar no engarrafamento. Desci do carro antes do endereço pretendido e caminhei por meia quadra até entrar no elevador e apertar o andar de uma grande administradora de recursos. A empresa investiu tempo e dinheiro na LAEP em 2008, quando as boas notícias que saiam na imprensa pareciam levar o laticínio de volta aos trilhos. “Temos um perfil de arriscar, mas sabíamos que por ter um mercado enorme e uma boa marca nas mãos a Parmalat tinha condições de voltar com tudo”.

Na mesa estão dois dos sócios da administradora. Em um microcosmo como o do mercado de capitais, onde todo mundo se conhece, é natural que eles prefiram permanecer anônimos. “Tinha toda aquela ideia da LAEP de investir na Integralat, na In Vitro, melhorar a produtividade e integrar o setor. Aquilo parecia um bom plano”, disse um dos sócios, mais falante. O outro pontuou: “Levantamos a ficha do Marcus Elias, por assim dizer, e realmente não tinha nada que mostrasse que ele era um pilantra”.

Antes de cruzar o caminho da LAEP, os dois haviam investido em ações da Perdigão, e acreditavam que o laticínio poderia seguir os passos do frigorífico, consolidando a cadeia e se tornando uma gigante do setor. Em agosto de 2008, com a debandada dos grandes investidores, os sócios resolveram vender seus BDRs e remoer o prejuízo.

A história parecia mais uma das tantas de má gestão empresarial quando, meses depois, um deles viu uma pequena nota no jornal noticiando que a LAEP estava emitindo stock options — a possibilidade de alguns gestores e diretores da empresa de comprar ações a preços menores do que o valor dos papéis no mercado, e revendê-los se desejassem. “Aquilo me subiu o sangue. Na hora eu liguei pra um dos diretores e perguntei, por curiosidade, por que os diretores poderiam comprar ações a 1 centavo de dólar quando a cotação dos papéis na bolsa era muito maior do que aquilo, algo em torno de 70 centavos.” A pergunta ficou sem resposta. “Percebi naquele momento que tudo era um grande golpe. Os caras estavam emitindo ações para si mesmos a 1 centavo de dólar e vendendo no mercado a valores superiores, lucrando em um momento péssimo da companhia”, avaliou um dos sócios.

Não satisfeito — e sabendo da situação crítica da LAEP — ele decidiu ir até o aeroporto de Jundiaí, onde Marcus Elias teria um avião de primeiro nível guardado em algum hangar. “Pensei: se a coisa está tão feia, e ele é comprometido com o futuro da empresa, por que não vende o avião?”. A tática usada pelo sócio da administradora de recursos para descobrir se a aeronave existia foi insólita. “Perguntei para uma moça que trabalhava no aeroporto se ela já tinha visto a Naomi Campbell por lá. Ela me disse que sim, e mostrou onde. Fui ver e lá estava um Citation 10”. A aeronave tinha preço de mercado de 12 milhões de dólares, um respiro e tanto em um caixa vazio como o da LAEP. Marcus Elias chegou a anunciar que venderia o avião, mas sua venda efetiva, se houve, jamais foi divulgada. Em 2013, a justiça bloqueou três aeronaves da empresa, sem declarar marca ou modelo.

A pergunta sobre Naomi Campbell fazia sentido. Marcus Elias era um dos empresários mais colunáveis de São Paulo — costumava desfilar em festas com suas namoradas, em geral, modelos. Uma delas foi a inglesa Naomi Campbell — affair que Elias sempre negou. Em 2008, ao ser questionado pela colunista da Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, sobre o romance, Elias desconversou: “Querida, vamos falar de leite?”.

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Investigação

Parte I: Quem é Marcus Elias?

Marcus Alberto Elias entrou na ampla sala de reuniões como se tivesse acabado de sair de um yacht club: camisa polo e calças azuis, tênis baixo sem meia, boné de cotelê tapando a cabeça calva e óculos de armação leve — tudo de boa marca. Preparo o gravador enquanto ele se acomoda tirando o boné e passando uma das mãos sobre a careca bronzeada. A conversa duraria quase três horas.

Mas ele não está aqui para me dar uma entrevista.

Sentado na cabeceira de uma longa mesa, Elias, 56 anos, é observado por uma foto do papa Francisco, emoldurada sobre o aparador às suas costas. Seu advogado e dono do escritório, Sérgio Bermudes, aparece na imagem, ajoelhado, beijando a mão do santo padre. Na conversa, gravada em um notebook e assistida por dois advogados e uma assessora de Elias, o principal executivo da Latin America Equity Partners, a LAEP, empresa que arrematou a Parmalat brasileira em 2006, se debruçaria para frente e para trás, amaciando ou levantado o tom de voz conforme a narrativa, por vezes ficando a poucos centímetros do meu rosto enquanto seus defensores manuseavam papéis e fuçavam em computadores. Ele me recebeu com a condição de que nenhuma palavra sua poderia ser usada nesta reportagem.

Para o Ministério Público Federal, o homem à minha frente é “o grande protagonista de toda a fraude”, acusado de ser a mente criativa por trás de um minhocário de túneis financeiros por onde teriam escapado 2,5 bilhões de reais, captados de fundos de investimentos e de milhares de pequenos investidores que se consideram vítimas de uma arapuca. Os advogados de Marcus Elias discordam da tese: o controlador da LAEP não só seria inocente, como também vítima de uma armação engendrada por um “fundo abutre” interessado em destruir a empresa e se apropriar de suas fábricas.

Os fatos narrados a seguir foram obtidos a partir de relatos de fontes da cúpula da LAEP, confirmados por documentos privados — e-mails trocados entre advogados, executivos e acionistas minoritários —, além de entrevistas, materiais produzidos pela imprensa, arquivos pessoais e documentos públicos. A maioria das pessoas com que conversei preferiu o anonimato.

***

Marcus Alberto Elias não era um personagem da mídia quando fez seu primeiro milhão. Pouco mais de 15 anos haviam passado desde a promessa que tinha feito a si mesmo após a falência do pai, Mário, um contador que pilotava uma empresa de ônibus em São Paulo na década de 70. Elias jurou que iria ganhar dinheiro para nunca mais caminhar na penúria.

Foi com empregos no mercado financeiro que ele começou a levantar fortuna nos anos posteriores à expulsão do colégio por rebeldia, efeito psicológico da derrocada financeira da família.

Aos 30 anos, o segundo dos cinco filhos de um casal de imigrantes libaneses trocara a inquietação juvenil por uma vida de magnata.

Seu currículo sugeria o estereótipo do homem médio do mercado financeiro: graduado em Economia pela Universidade Mackenzie, Elias se apresentava como um dos fundadores de um grupo que gerenciava 225 milhões de dólares para investimentos na América Latina. A montanha de dinheiro em suas mãos se devia à experiência que o financista teria em cargos de gerência e direção de bancos como Credibanco, Pactual e SRL, com ênfase, como garantia seu currículo oficial, “na condução de reestruturações empresariais”.

Terno e gravata não eram, no entanto, suas roupas prediletas. O traje sport com o qual me recebeu no escritório de seu advogado nas imediações da Av. Paulista, em São Paulo, é seu estilo habitual, complementado costumeiramente por uma japamala, espécie de rosário budista de 108 contas que servem para marcar cada etapa de uma oração. Ao completar o percurso meditativo, reza a lenda, o discípulo alcança um estágio superior de consciência.

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Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress
Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress

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Elias não é adepto das japamalas por moda ou capricho. Em 2006, depois de vagar por religiões de diversos santos em busca de paz de espírito, o empresário conheceu o lama tibetano Gangchen Rimpoche, e não desgrudou mais da divindade: viajou com o líder espiritual por Tibete, Índia e Nepal, ouvindo seus conselhos e iluminações. A partir daquele momento, Marcus Elias passou a consultar o monge — uma reencarnação de um grande médico, segundo o budismo — antes de tomar qualquer decisão importante. “Ele é muito espiritualizado”, garante Fernanda Barbosa, amiga íntima de Elias.

[olho]Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares[/olho]

O empresário fez da religião parte fundamental de sua rotina. Em abril de 2008, um perfil de Elias publicado na Folha de S. Paulo dava ideia da vida que ele levava: meditação por volta das 6 horas da manhã, seguida da prática do tai chi chuan. Depois, atividades físicas corriqueiras: natação – 2.000 metros diários na piscina de casa –, esteira e musculação, acompanhado por seus três personal trainers.

As excentricidades conviviam bem com atividades mais mundanas. Diz a Folha:

“Marcus Elias pode ser visto quase todos os dias nos melhores restaurantes de São Paulo apreciando um dos mais de mil vinhos de sua adega — ele leva suas próprias garrafas — e está sempre vestindo grifes internacionais como Armani, Prada, Gucci e Ermenegildo Zegna. Fora do trabalho, não gosta de falar de negócios.

O som ambiente está sempre ligado em música popular brasileira. às vezes, promove festas em casa para os amigos. No seu aniversário, sempre contrata o MPB 4 para tocar. Entre obras de arte de pintores como Mário Gruber e enormes esculturas que trouxe da Tanzânia, é lá que ele pratica seu lado esotérico.”

O texto retratava um personagem já distante do anonimato comum às pessoas do mercado financeiro. Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares, seu rosto começava a ser exposto em sites de fofocas em meio à elite paulistana, ladeado quase sempre por jovens mulheres do mundo do entretenimento e das passarelas. A porta para a fama se abriu em meados de 2006, quando Elias comprou a operação brasileira da Parmalat, a maior e mais famosa marca de leite do país.

Fincada em dívidas, a Parmalat definhava em um escândalo financeiro bilionário envolvendo a matriz italiana. A operação no Brasil caminhava para o precipício levando junto milhares de credores quando Elias apareceu e arrematou o laticínio apresentando um plano de recuperação agressivo. Suas ideias para reerguer a Parmalat animaram o mercado. Em pouco tempo, a companhia voltaria aos intervalos comerciais mais caros da TV — e frequentaria as manchetes da imprensa nacional com uma série de acontecimentos inimagináveis.

Sentindo-se enganada pelo empresário, uma das fontes ouvidas para esta reportagem aponta Marcus Elias como a versão brasileira de Jordan Belfort, empresário americano autor de uma autobiografia que virou filme. “Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”

O salvador da pátria

A principal anedota que circulou pelos corredores da Procuradoria de Milão sobre a quebra do laticínio italiano Parmalat seria contada pelos investigadores que tomaram a sede da empresa em dezembro de 2003: de paletó, gravata e sapatos lustrosos, os principais executivos da multinacional destruíam a golpes de marreta os teclados e monitores dos computadores da tesouraria, na esperança de eliminar provas.

São milhares as páginas da investigação que contam a história contábil da maior empresa leiteira do mundo para além do anedotário policial.

Com um plano de expansão planetário, no final dos anos 1990, sem o mercado desconfiar, o endividamento da Parmalat ameaçou explodir. Desesperados com a possibilidade de publicar um balanço negativo e sem ter de onde tirar recursos, os diretores partiram para uma saída engenhosa: resolveram fabricar dinheiro.

Diversos italianos compraram ações e títulos da empresa baseados em balancetes falsos emitidos pela companhia, muitos deles grosseiramente fabricados com tesoura, papel, cola e caneta nos salões da sede da empresa em Parma. O laticínio sangrou por dentro sem que ninguém notasse até que, no dia 17 de dezembro de 2003, um banco italiano descobriu que uma conta com 500 milhões de dólares depositados em Nova York – usados como garantia pela Parmalat para emitir novos papéis na Itália – não existia. Foi como apertar o botão do fim do mundo.

Pelos cálculos finais, o buraco nos cofres chegava a 3 bilhões de euros, capital que deveria estar no caixa da Parmalat, mas só existia nos documentos falsificados. Dinheiro inventado.

A catástrofe da Parmalat na Itália estremeceu o Brasil. Mais de 10 mil credores  —  muitos deles pequenos fornecedores de leite  —  esperavam receber 2,5 bilhões de reais da empresa, que começou a claudicar no mercado. Inerte, a fábrica brasileira operava em marcha lenta enquanto esperava nos tribunais de recuperação judicial por um salvador. Era a última instância antes do fim. A recém aprovada Lei de Falências, que pretendia evitar que empresas sumissem deixando dívidas impagáveis, teria na Parmalat do Brasil sua primeira grande cobaia.

Em maio de 2006, a LAEP, sediada nas ilhas Bermudas, se apresentou ao leilão do laticínio italiano como uma empresa de private equity altamente vencedora  —  seu currículo declarado incluía recuperação de companhias de diversos setores, de pescados a aluguel de carros. Era sua especialidade: comprar firmas em dificuldade, dar um rumo aos negócios e encontrar novos compradores quando as coisas endireitassem. Após analisada pela assembleia de credores, a proposta da LAEP venceria os concorrentes. A Parmalat do Brasil seria salva.

No comando do laticínio, Marcus Elias conseguiu um feito inédito: negociou um desconto de 83% com bancos credores, pagando o saldo à vista, em vez do parcelamento em 12 anos negociado antes da LAEP entrar na jogada. A dívida foi quitada quase integralmente com recursos da própria Parmalat, levantados com a venda da Batavo para a Perdigão, e de plantas usadas por uma unidade de tomates e vegetais, alguns centros de distribuição e fábricas de menor porte. Com a fome dos bancos saciada, ainda restavam os fornecedores de matéria-prima, mas Elias teria um plano para eles em um futuro não muito distante.

[olho]“Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”[/olho]

Apesar do volume de dinheiro divulgado nas várias negociações passar da casa do bilhão, na prática a LAEP tirou do próprio bolso 20 milhões de reais para arrematar uma empresa que, mesmo em crise, havia lucrado 25 milhões nos seis primeiros meses daquele ano. Manobra de mestre.

O primeiro ano de Marcus Elias no comando da Parmalat foi, a julgar pelas notícias publicadas na imprensa, de lua de mel. Logo após arrematar o laticínio, Elias deu declarações públicas garantindo que novos investimentos seriam feitos, e que o objetivo da empresa era crescer 60%. A imagem da LAEP no mercado, passada por seus controladores em comunicados e entrevistas, era poderosa: o fundo teria à disposição 300 milhões de dólares, dinheiro que viria de investidores estrangeiros. Em poucos meses, Elias começou a mostrar resultados.

A participação da Parmalat no mercado de leites longa vida, antes na casa dos 6%, saltara para 12,7%, fazendo com que a empresa reassumisse a liderança perdida para a Elegê em meio à crise de confiança. A captação de leite aumentara, o número de clientes subia a cada mês, e o endividamento havia sido rebaixado a níveis mundanos, compatíveis com o tamanho da companhia. O custo de mão de obra caíra drasticamente por causa do enxugamento do número de funcionários a menos da metade em relação aos anos antes da crise. Com as medidas, o lucro da Parmalat reapareceu nos balanços, e a empresa finalmente via uma saída para a insolvência. Seus executivos acreditavam que o valor estimado da controlada LAEP, que até pouco tempo atrás era um atoleiro de dívidas, beirava os 600 milhões de dólares em 2007. Caso encontrasse um comprador, Marcus Elias teria feito o maior negócio de sua vida.

Mas Elias não queria encontrar um comprador. Seu objetivo era duplicar o número de fábricas, que eram sete, e transformar a companhia em uma superpotência do leite. A estratégia previa uma série de aquisições de indústrias menores e investimento pesado em genética animal, para melhorar a produtividade das vacas brasileiras. O grande salto seria dado naquele mesmo ano de 2007. Em vez de gastar os dólares que o fundo LAEP declarava ter em caixa, no entanto, a empresa recorreu ao mercado.

Em 26 de abril de 2007, a Parmalat Brasil emitiu papéis no valor de 180 milhões de reais para, segundo documentos da própria companhia, “capital de giro, realização de investimentos (incluindo a manutenção do parque fabril), pagamento antecipado de credores no âmbito do Plano de Recuperação Judicial e aquisição de maquinário e tecnologia”. O comprador desses debêntures — títulos de dívida que seriam pagos em 36 parcelas, com juros —  foi um fundo de investimentos do grupo Morgan Stanley. Caso não pagasse, a Parmalat cedia ao Morgan Stanley o direito a receber dívidas dos clientes do laticínio, no valor de 270 milhões de reais.

Com dinheiro em caixa, Marcus Elias foi às compras. Dois meses após a emissão dos debêntures, em julho, ele assinou um contrato de arrendamento da Cooperativa de Frutal, em Minas Gerais. O acordo valia por dez anos e incluía os bens utilizados na industrialização e envase de leite, além de imóveis e benfeitorias. Três semanas depois, o executivo assinaria mais dois contratos: compra de 52,3% da In Vitro, sociedade que produzia e comercializava embriões bovinos, e compra da Integralat Agro — 28 mil hectares de propriedade rural localizados na cidade de Bonito de Minas, também em Minas Gerais.

In Vitro e Integralat Agro eram controladas por uma firma fundada pela LAEP no final de junho daquele ano, a Integralat. O objetivo da empresa era investir em tecnologia para melhorar a bacia leiteira no Brasil, inclusive por meio de clones bovinos. À época, a LAEP divulgou que sua controlada Integralat tinha “cerca de 66 mil produtores espalhados pelas principais bacias leiteiras do Brasil”.

O apetite da LAEP gerou números grandiosos em manchetes, comunicados à imprensa e notícias positivas sobre o futuro da empresa. O arrendamento e as aquisições eram parte fundamental da preparação de terreno que Marcus Elias planejava para a segunda fase de sua administração. Ele recorreria novamente ao mercado em busca de dinheiro. Só que desta vez, o caminho seria a bolsa de valores.

Em outubro daquele ano, a LAEP abriria capital e atrairia milhares de investidores. Nada indicava que a chegada da companhia na bolsa seria o começo do fim.

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Uma década a 45rpm

Em uma manhã chuvosa, fim do verão de 2004, eu assinava o certificado de reservista na junta militar do Viaduto Jacareí, no centro de São Paulo, e entrava oficialmente na idade adulta, embora sem muita convicção. Longe dos estudos, sem trabalhar e tensionado pela imaturidade, eu sentia no alto dos meus dezoito anos o peso do rito de passagem. Mas essa não era a única metamorfose latente. O rock, especialmente punk e hardcore, que ditara meu comportamento desde a adolescência, influenciando a forma com que eu percebia o mundo e me via perante ele, já não me bastava. Uma necessidade quase física me empurrava a novos ritmos e melodias.

Naquele dia, enquanto aguardava o burocrático processo, rodava no meu discman um CD que eu baixara na internet por influência de um primo, com clássicos do reggae. Gênero que, até então, eu praticamente desconhecia e que há um par de meses absorvia completamente minhas atenções. Ainda que eu não fosse muito afeito à natureza e viagens místicas. Coisas que, pensava eu, faziam, obrigatoriamente, parte da vida de quem curtia Bob Marley. Apesar do meu próprio preconceito e autocensura, não podia disfarçar que a febre jamaicana tinha me acometido.

Descobri, na velocidade de um modem 56K, mais informações sobre aquele ritmo hipnótico e sua cultura. Bob Marley não era o único mito da pequena ilha caribenha; o reggae era apenas uma das possibilidades dentre as vertentes da música jamaicana; sua origem era urbana, nada tinha a ver com som de cachoeira ou trampos de Durepoxi; e o melhor de tudo: em São Paulo, havia uma festa, bem na Boca-do-Lixo, quando o centro ainda não estava na moda, a Susi in Dub. De quebra, ela era comandada por um DJ japonês, que tocava reggae de verdade, com discos de vinil e caixas potentes. Melhor rolê da cidade, diziam.

O disco dá voltas

Lá, ouvi e vi, pela primeira vez, a destreza de Fabio Murakami, ou melhor, Yellow-P, nas pick-ups. Era uma sexta-feira. Logo ao entrar no local, um forte grave irrompeu no meu tórax. Combinado às intermitentes guitarras, o som formava uma espécie de colchão sonoro que dava um toque inebriante ao ambiente. O DJ de olhos puxados, envolto a uma fumaça branca e densa, soltava pedradas musicais, uma atrás da outra. O chiado dos vinis reverberava nas paredes sem reboco, fuzilando de ricochete os ouvidos de no máximo 100 pessoas, apertadas e em transe, dançando ao sabor daquela que, para mim, era a maior novidade do ano.

Passados onze anos, reencontro o paulistano descendente de orientais em outra situação, dessa vez em sua casa, na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, com o reggae emancipado e atraindo cada vez mais público. A cultura sound system, na forma de coletivos e festas, já não é novidade e se multiplica por todos os cantos. Hoje, é possível curtir música jamaicana, seja qual for a vertente, quase que diariamente, sem exageros. Os discos ficaram mais acessíveis por conta da internet e a capital paulista entrou na rota de grandes nomes da cena, com a vinda de cantores, produtores e DJs, jamaicanos ou não, a exemplo de Lee Perry, U-Roy, Skatalites, Mad Professor, Roy Ellis, Tommy Far East, entre outros. Mas nem sempre foi assim, digamos, fácil. Principalmente para os primeiros que se aventuraram a fazer das vitrolas suas vidas.

Apesar de a cultura sound system e a cena reggae serem populares no Maranhão há algumas décadas, sob o nome de “radiolas”, aqui em São Paulo a coisa se desenrolou apenas na virada do século. Lutar contra a escassez de discos e recursos, a estigmatização do ritmo, além da desinformação do público sobre em que consistiam as festas, eram algumas das missões mais árduas para os iniciantes do negócio. Foi necessário muito empenho para que o status do ritmo fosse aos poucos se alterando.

Influenciado por uma tia que frequentava shows de reggae no início dos anos 90 e que chegou a namorar o baixista do Shabba Ranks, Fabio Murakami, 35 anos, começou sua coleção com CDs, ainda adolescente, e comprou seus primeiros discos de vinil por telefone, de uma loja britânica descoberta através do livro “Rough Guide”. “Aqui não havia discos de vinil de reggae, era mais pop e rock. Em Londres, sim, a loja se chamava Dub Vendor. Liguei e tive a sorte de ser atendido por uma portuguesa. Fiz uma seleção dos produtores que eu mais gostava e deu certo”, recorda-se sobre o início da saga. “Aproveitei que minha tia estava na casa da melhor amiga, na Inglaterra, ela que me trouxe os discos. Ainda me lembro: foram 15 vinis de sete polegadas; Lloyd Parks, King Tubby, Johnny Clark… Coisas que toco até hoje.”

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Yellow P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: Divulgação
Yellow-P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: André Freitas

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Com os discos em mãos e algumas parcerias firmadas, não levou muito tempo para que pintassem as primeiras festas e o pseudônimo, Yellow-P, trocadilho com a ascendência japonesa (Yellow Power). Afinal, “DJ Fabinho” lembrava uma coisa meio rádio FM e festa de praia, tudo o que à época ele queria evitar. O primeiro evento com organização própria, oficialmente, aconteceu no fim de 2001, na Green Express, pico tradicional da comunidade maranhense em São Paulo. Falantes ruins, mais de dois mil cartazes colados à mão, trabalho braçal de divulgação. Ali nascia o coletivo de sound system Dubversão, que alcançaria, anos mais tarde, grande projeção devido às famigeradas noites no Susi, culminando na festa mensal Java, que rola desde 2006, e influenciando as novas gerações de DJs que surgiriam ao longo da década.

Aqueles foram anos de militância. Onde quer que abrisse um espaço para o reggae, lá estaria Yellow-P e o Dubversão. A casa de show KVA — conhecida pelo forró –, uma praça na Lapa e até um acampamento do MST abrigaram suas caixas de som e seus vinis. A convite de uma amiga, para um dia cultural na ocupação, ele foi parar em um acampamento do movimento, perto de Mairiporã, debaixo de uma chuva torrencial. “Essa festa no MST foi inesquecível, legal pra caralho. Fomos muito bem recebidos. No dia, caiu um temporal absurdo e, na cabana onde estávamos, entrava água por todos os lados, o equipamento ficou encharcado. Foi a primeira vez que tomei uma chuvarada na cabeça”, diverte-se ele.

Se o pessoal do MST recebeu a festa de braços abertos, não se pode dizer o mesmo do público clássico do reggae, acostumado às tradicionais versões tupiniquins do roots internacional, feitas por bandas como Tribo de Jah e Planta & Raiz. “Cadê os músicos?”, indagavam. É só um DJ? É instrumental e não tem vocal? O que é isso? A estranheza era tamanha que, no início, nos versos dos flyers das festas, a equipe se prontificava a explicar, como numa cartilha, que dub é um recurso de mixagem das bases do reggae em estúdio, com efeitos eletrônicos, criado nos anos 70. Para Yellow-P, o público do reggae não só não entendeu o que era como virou as costas. E os leigos nem frequentavam, porque existia uma imagem estereotipada do gênero. Algo que o Dubversão em muito ajudou a desconstruir.

De lá para cá, tudo mudou. Se no início, Fabio discotecava com apenas 100 discos, ou menos, hoje ele possui aproximadamente dois mil. Não sabe nem dizer. Além disso, tocou em eventos como a Virada Cultural, e recepcionou a vinda de muitos artistas estrangeiros ligados à cena ao Brasil. “Realmente, os gringos descobriram São Paulo. A cena hoje é grande e completamente diferente. Não tínhamos pretensão alguma naqueles primeiros anos, mas sonhávamos com isso. Quem pensou que um dia teríamos dois artistas jamaicanos tocando na mesma semana?”, questiona, fazendo referência a junho deste ano, quando apenas alguns dias separaram as apresentações de Johnny Osbourne e Danny Red.

As facilidades, de certa forma, impuseram uma realidade não programada à ideia de crescimento. Atualmente, é possível encontrar discos de reggae até na feirinha da Teodoro Sampaio. Vendedores na internet disputam compradores ávidos por montarem seus próprios sistemas de som. Há lojinhas espalhadas por todos os lugares, mas este fácil acesso, diz ele, diminuiu a pesquisa e a profundidade necessárias. Tudo está mais superficial. “Há 10 anos, ninguém sabia o que era dub, hoje muitos pensam que conhecem tudo”, comenta o DJ, que enxerga o panorama com certa desconfiança: “Tá bizarro. Claro que o crescimento, a popularização, isso tudo é bom, mas existem poréns. Todo mundo, agora, quer ter um sound system, mas ser DJ, seletor, não é apenas colocar o vinil pra rodar; há um conceito por trás, e, para atingir este nível, exige estudo e dedicação”, sentencia Yellow.

Do outro lado do atlântico

Em 2005, Yellow-P já fazia sucesso tocando dub em São Paulo, mas foi na cidade portuária de Santos que um grupo de skinheads – adeptos da tradicional cultura nascida no fim dos anos 60, mescla da troca entre jovens ingleses e imigrantes jamaicanos, que nada tem a ver com a cena neonazista inventada a partir da década de 80 –, inaugurava uma nova fase na cena sound system regional. Nada de dub ou reggae dos anos 70: o que fazia a cabeça dessa rapaziada eram os antigos sons da ilha, chamados de “oldies”, a música jamaicana produzida até 1969. Ou seja, o ska, o rocksteady e o early reggae. “Entrei em contato com a cultura sound system através das subculturas skinhead e punk. Já frequentávamos festas de reggae em São Paulo, mas nada do que a gente gostava era tocado. A gente curtia as músicas dos anos 60 e foi por isso que as coisas começaram a acontecer”, conta o DJ e produtor musical Felix Barreira, um dos fundadores do que viria a ser o coletivo Reggay 420, um dos mais atuantes do sound system paulista na atualidade.

O Gordão, como é conhecido, fala pausadamente e quase que de maneira enciclopédica. Lembra-se da primeira festa, a Bomboclat, ocorrida no clube Atlético, no canal 3. Um ônibus inteiro de skinheads paulistanos descendo a serra, sentido à Baixada Santista, para curtir a velharia jamaicana, que, naquele momento, ainda era tocada em stereos domiciliares e através de CDs. As informações e os vinis foram chegando aos poucos, as festas cresceram, o reconhecimento do público, também. Ele, que é designer, mas segue na luta tentando viver dos eventos e de música, chegou a ser colunista da revista Sexy por sua pesquisa em relação aos ritmos jamaicanos.

Convidado para tocar fora do país, mostrou a força do sound system brasileiro nos vizinhos Argentina, Paraguai, Colômbia, e também na Europa, quando esteve na Espanha e na Holanda. Deve tudo o que tem conquistado à música jamaicana, que considera como a sua escola. O sucesso e os frutos colhidos, no entanto, não chegam nem aos pés do que lhe aconteceu em 2010, quando atravessou o atlântico para materializar algo experimentado só nos mais loucos devaneios.

Com quase dois mil discos na coleção, decidiu ir buscar na fonte a matéria-prima de seu trabalho. Foi na Jamaica, em dez dias de viagem, acompanhado por outros parceiros de cena, que Felix conseguiu seus discos mais importantes e vivenciou situações impagáveis. Experimentou a sensação de estar perto de seus ídolos jamaicanos, de aprender com eles, e, sobretudo, entender que, por maior e mais significativo que seja o trabalho do seletor e DJ, nada pode superar o que os verdadeiros artistas fizeram, e o que a música jamaicana representa.

[citacao credito=”Felix Barreira” ]Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae[/citacao]

“Teve época de eu ser mais marrudo, entrar na dança, falar e me achar demais. Isso aconteceu, sim. Mas hoje, especialmente depois do rolê que fiz em 2010, só agradeço o reggae por ter entrado na minha vida. Foi uma felicidade conhecer tudo isso. Uma graça. Fizemos as primeiras festas, mas perto dos caras, do que eles construíram, a gente não é nada. Só devemos a eles. Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae. Os amigos que eu fiz, aqui e lá fora, são por causa da música. A cultura sound system, acima de tudo, é amizade e amor pelo som, não status”, confessa, com voz embargada, a lição aprendida.

Na capital Kingston, além de acrescentar algumas dezenas de discos ao seu repertório, Felix conheceu ícones como Derrick Harriot, Stranger Cole e King Stitt. Presenciou, inclusive, os caras na ativa, ali, na sua frente, soltando a voz. Visitou lojas e estúdios, a exemplo da mítica Randys, na North Parade 17, onde Peter Tosh gravou “Whistling Jane”, o Gaylads, “I Love The Reggay”, e onde muitos outros clássicos do early reggae foram registrados. Caminhou por ruas e lugares que até então conhecia somente através de canções.

Lá, notou logo que as principais raridades não se encontravam em lojas oficiais, mas na mão do cidadão corriqueiro. Muitas vezes são parentes que estão se desfazendo da coleção de um ente já falecido; uma viúva vendendo os discos de um marido ou um filho se livrando das velharias do pai. Eles descobrem, de boca em boca, que grupos de turistas estão à procura de discos antigos e vão até os hotéis com caixas de vinis. Sem cerimônia, batem à porta e os oferecem. Para eles, é apenas um disco senil de ska ou rocksteady. Para colecionadores, como o Gordão, a chance de adquirir uma joia rara, um tune para o baile. E foi numa visita assim, de um vendedor comum, que Felix fez valer a visita.

Felix Barreira. Crédito: Divulgação
Felix Barreira. Crédito: Divulgação

Era logo cedo quando um deles apareceu no hotel para oferecer sua mercadoria. E a rapaziada toda acordou para garimpar as preciosidades entre caixas e mais caixas. Menos Felix, que dormiu até mais tarde, e chegou atrasado ao leilão. “Fiquei até puto que os caras não me acordaram.” Esbaforido, foi metendo a mão no primeiro arquivo que viu e, no terceiro disco zapeado, encontrou uma raridade. “Tea House From Emperor Rosko”, do Dice The Boss, de selo amarelo, prensagem original de 1970, alcançava a bagatela de 300 libras esterlinas na internet e, ainda por cima, era a música que representava a Moonstompers Crew, a turma skinhead de Santos. Sem titubear, falou: “Eu quero esse”. “Não, não, eu disse para ninguém mexer nessa caixa”, retrucou o vendedor, visivelmente irritado. “Eu acabei de chegar, você não falou nada pra mim.” Argumentação vai, conversa vem, e o acordo foi selado.

Se a sorte bateu à porta de Felix, ela o brindou por mais de uma vez na mesma viagem. Voltando para o hotel depois de um dia de andanças, os brasileiros, por insistência de um deles e a despeito do cansaço que sentiam, resolveram entrar em uma praça onde parecia acontecer um show. Era O show. Ainda que apenas poucas pessoas o assistissem. Ali, viram monstros da música jamaicana, ao vivo e de graça: Ken Boothe, U-Roy e Dennis Alcapone, este último após oito anos sem se apresentar em sua própria terra natal. “A gente parecia louco, os dez brasileiros mais animados que todo mundo. A gente tava tipo chorando. Os caras olhavam aquilo como um evento na praça, não era uma virada cultural ou algo do tipo, era um show na praça. E foi uma coincidência termos entrado ali”, conta, surpreso como no dia.

Conseguiu, inclusive, tomar umas cervejas com os ídolos – para falar de música, das origens da cultura, trocar experiências e até ser agradecido por um gesto de solidariedade. Enquanto bebia com Stranger Cole, Felix deu um trocado para uma moça, uma pedinte de rua que o abordou de repente. “Não foi muito que eu dei, talvez alguns poucos centavos de dólares.” Mas a ocasião tornou-se especial segundos mais tarde. “O Stranger me pegou pelo braço e disse: ‘Isso o que você fez é lindo, filho, e Deus vai te dar em dobro’. Porra, eu fico arrepiado até de contar.” A cena de humildade lhe arrebatou. Felix teve a plena consciência da dádiva de estar ali. Compreender que os caras são os protagonistas da história e o resto, apenas meros expectadores. Sem eles, nada haveria. Ainda bem.

A novidade de meio século atrás

Ao mesmo tempo em que a internet auxiliou na difusão dos ritmos jamaicanos em São Paulo, impulsionando o colecionismo e habilitando novos ouvintes, houve um período em que o Youtube, e suas sugestões de artistas similares, não reinava soberano. A música por streaming ainda estava a galáxias de distância do panorama atual e o garimpo musical era feito através de programas pouco intuitivos, como o Soulseek, e divulgado por canais hoje tidos como obsoletos. Quem não se lembra das comunidades do Orkut e os infindáveis blogs repletos de mp3 à disposição? A época de ouro dos Ipods Classic e da máxima “quanto mais espaço, melhor”. Foi justamente nesse contexto, da era arqueozóica da digitalização musical, no qual veio à luz uma das mais importantes contribuições da internet para a cena sound system e a música jamaicana em geral: o blog You And Me On A Jamboree.

No ar desde o dia 31 de março de 2006, o blog surgiu da interação entre alguns usuários da comunidade “Skinhead Reggae”, até então a mais efervescente do gênero no Orkut, e não demorou muito para que se tornasse referencial da música caribenha na rede. Aqui e lá fora. Todos os dias por volta de 40 e 50 mil visitantes, metade eram brasileiros e a outra metade formada por estrangeiros – principalmente vizinhos latinoamericanos –, baixavam freneticamente as coletâneas compartilhadas em mp3 e liam as resenhas que contavam um pouco sobre a história das canções, dos ritmos e da cultura sound system.

“Até o surgimento da comunidade ‘Skinhead Reggae’ do Orkut, o público era disperso. Existia quem gostasse de música jamaicana, os ‘oldies’, ska e rocksteady, por exemplo, mas essas pessoas não se conheciam. Eu mesmo passei muito tempo isolado, e minha vontade era interagir mais, conhecer gente, falar sobre o assunto. Foram anos reprimidos”, conta o jornalista Greg Fernandes, 28 anos, um dos primeiros colaboradores do You And Me, como era carinhosamente chamado o blog. Sobre o início, ele recorda: “Lembro quando o Sono, ele fez o blog, postou a página na comunidade. O primeiro post se chamava ‘Skinhead Generation’ e tinha uma coletânea para baixar. Eu achei sensacional e mandei uma mensagem para ele, dando sugestões de conteúdo, porque eu queria participar. De tanto que eu enchi o saco, virei colaborador, no segundo dia de existência do blog”, gargalha.

A diligência foi tanta que resultou em sucesso. Com a disponibilização das músicas para download – agora era possível escutar o que antes apenas se lia sobre – e a organização e concentração da informação em somente um único espaço, sedimentou-se um nicho de público voltado, exclusivamente, para os “oldies”. E foram necessários 21 meses para que o You And Me extrapolasse os limites virtuais da internet e se convertesse em festa.

“A galera começou a se questionar por que não havia festas de som jamaicano dos anos 60 em São Paulo e os pedidos para fazermos uma viraram constantes”, relata Greg. Os primeiros encontros ainda eram rústicos, sem vinis, e tinham a finalidade de divulgar o som, ocupar a lacuna de carência entre os assíduos visitantes do blog e o mundo real. Até que o Alex Jurássico, da Jurassic Sound System, entrou em cena. “Eu e o Sono fomos a um baile em Osasco, em 2007, e lá conhecemos um seletor, com vários discos que curtíamos no case, no meio daquele monte de dub e roots. Convidamos ele, que já conhecia o blog, para fazer uma festa só de ‘oldies’, ele topou na hora. Aprendemos muito com ele, e aí entramos de cabeça no lance de comprar discos, de se aprimorar.” A eles somaram-se Luiz e Neggo. A trupe estava completa.

Pouco mais de dois anos depois das primeiras postagens, um convite vindo da MTV levaria o blog a se hospedar no site da emissora e ingressar na onda dos podcasts. “A MTV, no fim das contas, culminou mais em desaprovação do que resultado. Uma galera, que também havia conhecido a música jamaicana recentemente, começou a nos criticar, porque existe um orgulho de o negócio ser alternativo. Mas, pra mim, sempre vai ser um nicho. Se é moda, para alguém, vai durar um ano. Se alguém se identificar com a coisa, mesmo que sejam 10 pessoas entre 100, é o mais importante”, salienta.

“Para nós, da Jamboree, nunca foi trampo. Eu sempre tive meu trabalho, os caras também. Achar que as festas dão lucro é ingenuidade. Nessa época, comprávamos tunes, como ‘This Life Makes Me Wonder’, do Delroy Wilson, por dois mil reais. A festa apenas sustenta o hobby”, conclui Greg, sem antes acrescentar o significado de todo essa devoção: “Meu sonho sempre foi divulgar ao máximo a música jamaicana. Que todo mundo saiba, pelo menos, o que é rocksteady, o que é ska. Não precisam virar fãs. O mais importante, para mim, é que a música seja conhecida”.

Com o surgimento dos novos modos de se consumir música, o blog, que sofreu o primeiro baque em 2011, depois de seu conteúdo ser apagado da rede por completo, definhou. Já os bailes, não. Após mais dois anos sem atividades e para comemorar o aniversário de oito anos da primeira festa, a You And Me terá uma edição especial, em dezembro. Uma nova oportunidade para que Greg transforme seus anseios em realidade.

Lugar dela é na vitrola

Na cena reggae, como em todos os outros segmentos sociais, não é diferente: as mulheres ainda lutam para ter voz. Elas colam aos grupos nos bailes, dão coro à cultura e, da mesma forma que eles, ajudam a construir a cena. Mas admitir o protagonismo delas, ah, isso é outra coisa. Quando o assunto, por exemplo, é comandar as vitrolas, é inegável perceber que elas não são tantas.

Renata Aguiar Fernandes, 32 anos, é uma das representantes de um movimento em ascensão. Chef de cozinha em um restaurante em São Paulo, ela se desdobra para dar conta de uma rotina atarefada, que, além da gastronomia, envolve criar um filho. Ela é DJ e seletora de música jamaicana, considerada a primeira entre as mulheres paulistanas. Seu som é o dancehall, um ritmo dançante e acelerado, o mais popular entre os jovens da ilha. E o gênero, controverso mesmo lá – existem acusações de homofobia nas letras –, se confunde com o pseudônimo Rude Sistah, adotado por ela em 2008, quando começou a colecionar seus primeiros exemplares.

Renata. Crédito: Divulgação
Renata Aguiar. Crédito: Groovin Mood/Divulgação

Atualmente, ela comanda as picapes de uma das festas mais cultuadas da cidade, Dance Hall Fever, que rola uma vez por mês em uma casa do Centro. O sucesso de suas seleções é inquestionável, mas ainda assim alguns pontos a incomodam. Numa conversa por telefone, ela me explicou, laconicamente, o motivo de não haver tantas garotas discotecando: “Tem muito cara machista na cena.” Contou que, apesar de ter mais amigos homens que mulheres, poucos foram os que lhe deram uma oportunidade. Ainda hoje, escuta que não sabe tocar, e sente seu trampo ser menosprezado. Chegou a ser convidada para se apresentar em um baile e, na hora de acertar o cachê pela noite, veio à tona a frustração. Só os DJs homens foram pagos. Ela, a única mulher, foi ignorada.

“Não é só colocar disco para tocar, eu pesquiso, estudo, crio meu conceito. Cheguei a ouvir que estavam me fazendo um favor, e eu cobrei a pessoa, que no fim acabou me pagando”, disse. Ter de chegar a este limite é péssimo, mas nem de longe isso a desanima. “Dá mais força para continuar. Você não tem ideia o tanto de mensagens que eu recebo no Facebook, de mulheres e de homens. Me elogiam na cena, que eu sou guerreira, mãe, mulher, DJ. Tiram dúvidas sobre como começar a coleção. Para mim, esse reconhecimento vale muito”, confessou, antes de lembrar um causo recente, enquanto ria: “Fui tocar em Brasília faz uns 3 meses. No aeroporto, do nada, uma mina me gritou: ‘Hey, Rude Sistah!’. Eu nem sabia quem era. Mas eu curto muito isso, troco ideia com todo mundo, sou povão”.

Questionei também Andrea Soriano, 29 anos, seletora e DJ brasiliense radicada em São Paulo, sobre a força das mulheres dentro da cultura sound system. Atenta, ela, que é da safra influenciada pelo trabalho seminal da Rude Sistah, desabafou: “O machismo existe no rolê e no mundo. Cada dia mais temos sentido nossa força e temos batalhado pelo nosso espaço. Muitas seletoras estão produzindo suas próprias festas e eventos, com isso estamos fomentando uma cena mais feminina e incentivando as próximas gerações, abrindo caminhos.”

Pensando na abertura de caminhos citada por ela, me vi sentado na fila do serviço militar, com o offbeat invadindo meus fones de ouvido e revolucionando minha breve vida de 18 anos. Depois de uma década, tudo já se modificou ao redor, até que rápido demais. O gosto pela música jamaicana continua. O resto é questão de fase.

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Cultura

Dois séculos de ‘Emma’

Dos livros de Jane Austen (1775-1817), “Orgulho e Preconceito” é provavelmente o mais conhecido. Entre os fãs mais fervorosos, o preferido talvez seja “Persuasão”. Mas para os críticos e estudiosos é “Emma” a obra-prima da escritora. O livro, que completa 200 anos em dezembro, ganha agora uma edição de luxo pela Penguin, e será tema de um curso na Universidade Oxford, no Reino Unido. O interesse de editores e acadêmicos num livro ambientado na Inglaterra do século 19 tem uma explicação: seus temas, como as barreiras entre classes e, principalmente, a independência feminina, ainda ressoam pelo mundo.

Emma, a protagonista do livro, é uma rica mulher de 20 anos mais interessada em arrumar pretendentes para as pessoas ao seu redor do que encontrar um marido. Convencida de que foi responsável por juntar a melhor amiga com o noivo, Emma resolve se tornar casamenteira, metendo constantemente os pés pelas mãos sem jamais reconhecer que está errada. Enquanto trama com a vida alheia, jura que não vai se casar e que prefere passar a vida a cuidar de seu pai e administrar a casa. Emma preza sua independência.

Apesar de bem-intencionada, a personagem é mimada e um pouco esnobe. Em carta enviada a um amigo, Austen afirmou, inclusive, que provavelmente ninguém gostaria de sua heroína. Mas são justamente seus defeitos que tornam a personagem mais interessante do que a quase perfeita Elizabeth Bennet, de “Orgulho e Preconceito”, por exemplo. Emma não é um modelo a ser seguido, mas alguém que qualquer um poderia ser. O amor por ela dificilmente acontece à primeira vista, mas aos poucos ela conquista o público por ser uma personagem cheia de camadas, real, com a qual o leitor consegue estabelecer uma conexão — numa época em que personagens femininas eram menos complexas.

“Certamente as pessoas se identificam com ela por causa de seus defeitos! O celebrado crítico Lionel Trilling (1905-1975) disse uma vez, nos anos 1950, que era notável que Emma tivesse uma vida moral, como homens têm uma vida moral”, diz Emma Clery, professora da Universidade Southampton que pesquisa Jane Austen e dará uma aula no seminário de Oxford em maio do próximo ano. “Ela representa uma grande mudança em relação às heroínas perfeitas da maior parte da ficção do século 18.”

Clery vê, inclusive, semelhanças entre a Emma de Austen e a Emma Bovary de Gustave Flaubert (1821-1880). “Há um descompasso entre a afirmação, no início do livro, de que Emma tem muito pouco para afligi-la ou aborrecê-la e as informações de que ela perdeu a mãe muito cedo, é efetivamente escrava de um pai velho, bobo e exigente, e vive quase sem amigos, aspirações ou esperança de mudança”, avalia. “Ela pode ser materialmente privilegiada e esnobe, mas tem um vazio espiritual que sugere um parentesco com Bovary.”

LEITURAS MÚLTIPLAS

Como sua protagonista, “Emma” melhora com o passar do tempo. Sandie Byrne, pesquisadora de Austen em Oxford, o leu pela primeira vez na adolescência e o releu “muitas vezes” desde então. “Encontro mais coisas para admirar e me divertir a cada vez”, conta. Octavia Cox, que dá um curso online de Jane Austen na mesma universidade, teve o primeiro contato com o livro aos 12 anos. Não gostou nem um pouco. “Era muito nova para entender as nuances. Jane Austen deve ser relida, na minha opinião.”

Já Juliette Wells, editora do novo volume da Penguin, o leu por obrigação na escola. “Se você tivesse me dito que um diria eu faria minha própria edição do livro, não teria acreditado!”, lembra. “Eu me surpreendi com quanto meu apreço por esse romance cresceu trabalhando com ele. Fiquei particularmente impressionada pelo grande domínio da linguagem de Austen. Ela escolheu as palavras com tanto cuidado e tanta inteligência.”

Para ela, “Orgulho e Preconceito” é o livro de Jane Austen mais fácil de se gostar, por causa da memorável história de amor entre Elizabeth e Mr. Darcy. “Razão e Sensibilidade”, por sua vez, se popularizou com o sucesso de sua versão cinematográfica, de 1995. Mas é em “Emma” que Austen se supera como escritora. “Ela cria uma história envolvente com elementos muito banais”, afirma. Diferente de outros livros, em que os personagens viajam e os cenários variam, “Emma” se passa no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, e mesmo assim consegue impressionar.

“Os críticos muitas vezes descrevem ‘Emma’ como a obra-prima de Austen: é menos agradável — com uma preponderância de personagens ‘difíceis’, incluindo a heroína –, mas é artístico e complexo. Austen tem um controle notável do enredo, construindo suspense e excitação com meios mínimos”, analisa Clery. “É nesse livro que seu uso do discurso indireto livre, que funde a voz do narrador com a perspectiva interna do protagonista, é usado com um estilo realmente virtuoso.”

Na opinião de Clery, “Emma” é um livro totalmente radical, quase como um protesto. “Austen virou as costas para o sucesso de ‘Orgulho e Preconceito’ e desafiou o gosto da época por melodramas, locações exóticas e eventos fantásticos”, diz. “E apesar de sombrio em espírito, tem muitas cenas engraçadas e alguns dos melhores personagens cômicos de sua obra.”

PATRICINHA DE BEVERLY HILLS

Duzentos anos depois, os temas do livro pouco envelheceram, afirma Wells. “Cada um de nós lida com relacionamento familiares, então reconhecemos algo nas descrições do livro de pais, filhos e irmãos. Todos nós pensamos em como achar um parceiro para a vida, então sua preocupação com namoro e esposos compatíveis é algo que compartilhamos”, diz.

“Os detalhes de nosso cotidiano e oportunidades são muito diferentes dos de seus personagens, mas os personagens em si nos lembram de gente que conhecemos graças à genialidade de Austen em observar e a seu talento para criar diálogos e atitudes críveis”, elogia a editora.

Clery concorda. “Críticos literários demonstram a importância de muitos temas de ‘Emma’ que ainda são atuais — feminismo, classes, a chegada da modernidade, a representação da subjetividade. Eu poderia falar mais e mais sobre isso”, afirma. “Eu me interesso particularmente na ênfase da economia na obra de Austen. Thomas Piketty, autor de ‘O Capital no Século 21’, o best-seller de economia do ano passado, discute bastante sua ficção, assim como a de Balzac.”

Talvez por isso a melhor adaptação de “Emma” para as telas seja justamente aquela que tira a trama do século 19. O livro já foi transformado, por exemplo, em minissérie e em um filme com Gwyneth Paltrow. Nenhuma dessas versões, porém, atingiu o sucesso de longas como “Orgulho e Preconceito”, com Keira Knightley, e “Razão e Sensibilidade”, com Kate Winslet, Emma Thompson e Hugh Grant. A adaptação de “Emma” lembrada até hoje tem outro nome: “As Patricinhas de Beverly Hills”.

No filme, que completou duas décadas neste ano, a história de “Emma” é transportada para os Estados Unidos nos anos 1990. Nele, Alicia Silverstone é Cher, uma adolescente riquíssima e bonita que resolve ajudar Tai (Brittany Murphy) a conseguir um namorado, sem perceber que o pretendente que arrumou está interessado nela e não na amiga, aos moldes do que acontece no livro. Como Emma, Cher gaba-se de não precisar de homens até perceber que seu par perfeito estava ali, ao seu lado, na pele de Paul Rudd.

Clery, Wells, Cox e Byrne são unânimes ao dizer que gostam das “Patricinhas”. “É um filme muito divertido e engenhoso ao encontrar equivalentes modernos aos personagens e situações originais”, opina Clery. “‘Patricinhas’ é otimo porque sua criadora, Amy Heckerling, reinterpretou o livro com muita liberdade. É um olhar novo. Amy pega algumas preocupações centrais de Austen — personagens, linguagem, tom — e inventa um mundo novo e colorido para brincar com elas”, completa Wells.

EDIÇÃO AMIGÁVEL

A nova edição de “Emma” (Penguin, 496 págs., R$ 90, em inglês) esteve na cabeça de Juliette Wells por vários anos. Embora seja considerado o melhor livro de Austen, os leitores de hoje podem ter dificuldades em entendê-lo e apreciá-lo, especialmente se não estiverem acostumados com a literatura do século 19, ela diz. “Já existem várias edições do livro maravilhosas, aprofundadas, com comentários de estudiosos. Mas não tinha nenhuma amigável para os leitores, que eu pudesse recomendar a alguém interessado em ler o livro pela primeira vez, ou depois de anos.”

Foi ela quem levou a ideia à Penguin, que gostou da proposta e lhe pediu para criar uma edição nova e acessível de “Emma” em comemoração a seus 200 anos. Seu objetivo declarado é tornar a leitura prazerosa e fácil, para agradar aos fãs antigos e, principalmente, apresentar Austen a quem não a conhece. “Em vez de notas de rodapé ou no fim do livro, que podem ser frustrantes se você não for estudante ou acadêmico, escrevi pequenos ensaios que dão o contexto e explicam tópicos importantes para o livro, desde relacionamento familiares a dança e comida”, conta.

Na introdução, por exemplo, fala sobre o trabalho de Austen e a importância de Emma para sua carreira e sua reputação. “São as questões que estudantes e leitores mais me fazem.” Há também um glossário com palavras que podem confundir o leitor do século 21. “Fiz essas escolhas pensando mais nos americanos, mas espero que leitores do resto do mundo também o aproveitem”, afirma. Tem ainda ilustrações de edições históricas do livro e sugestões de filmes e outros volumes que podem complementar a experiência.

Em 21 de maio do ano que vem, Sandie Byrne, Octavia Cox, Emma Clery e Freya Johnston darão um curso em Oxford, com inscrições abertas, por a partir de 65 libras. Serão dadas, ao longo do dia, quatro aulas, uma por cada professora: “Emma como experimento literário”, “Emma e voz”, “Austen, Emma e escrita” e “Quebra-cabeças e jogos em Emma”.

Tentando explicar por que Jane Austen é tão popular até hoje, Wells diz acreditar que o cinema e a televisão ajudaram a difundir sua obra, atualizando sua linguagem para agradar às novas gerações. Não há mal nenhum nisso, diz ela. Muitas das adaptações são divertidas e verdadeiras obras de arte por si só. A editora só espera que isso leve os espectadores a se tornarem leitores. E fazer seminários ou novas edições de seus romances ajudam a fazer isso acontecer. “Toda vez que você voltar aos textos de Jane Austen você vai ver que seu brilhantismo continua radiante como sempre”, complementa Clery.

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Crítica Televisão

Jessica Jones, a anti-heroína

Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.

A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.

Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.

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Marvel's Jessica Jones
Jessica Jones dando o famoso enquadro. Crédito: Divulgação

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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).

Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.

Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.

Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.

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Xênia França é uma força da natureza

“Você não percebeu, mas naquela mesa as pessoas me olharam de um jeito quando a gente chegou”, me diz Xênia França numa padaria bacana na Vila Madalena, em São Paulo. Na verdade eu tinha reparado que as pessoas olharam. Só não sabia se eles estavam olhando por ela ser bonita, por causa de suas roupas estilosas, de seu lindo cabelo volumoso, ou por ela ser negra.

Xênia é a única mulher da banda Aláfia. Ela divide com Eduardo Brechó e Jairo Pereira os vocais da banda de 11 integrantes que combina diferentes gêneros da música negra com letras sobre negritude de uma forma tão bonita que é fácil dizer que Corpura, lançado em setembro, é um dos melhores discos nacionais do ano. E quando se fala de Xênia, não é possível dizer apenas que é uma cantora. É preciso dizer que ela é negra. É preciso dizer que ela é linda. Porque, em 2015, isso ainda importa.

“A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”, me diz. O Aláfia é daquelas bandas que não estão no underground, mas também não pertencem ao mainstream. Mesmo assim, Xênia é uma grande referência, especialmente para mulheres negras, o que a deixa desesperada – “porque eu sou uma pessoa”, e não uma fada como algumas crianças acreditam que ela é.

“Diva”, “linda” e “musa” são palavras que se ouve da plateia quando o Aláfia se apresenta. Mas, quando estava na escola, Xênia não era considerada bonita. Não era da turminha das garotas populares, e não era a mais desejada pelos meninos. Era uma das poucas alunas negras de um colégio particular em Camaçari, na Bahia, e nem sempre participava dos passeios e viagens escolares porque a mãe era muito preocupada. Quando falamos sobre a importância da beleza, ela resgata uma “lembrança triste” da infância. Ela tinha nove ou dez anos, era junho e as crianças se preparavam para o São João. Sua mãe havia comprado um vestido lindo, xadrez e rodado, e ela estava na expectativa de dançar quadrilha, mas não foi escolhida.

“Quando as pessoas falam que eu sou linda e maravilhosa eu aceito, porque eu realmente acho que eu sou linda e maravilhosa. Eu não nego isso, não tenho vergonha disso, porque é importante pra mim, pelas coisas que já passei na infância, e por saber que hoje em dia eu tenho uma responsabilidade”, desabafa. “A beleza pra mim não é uma coisa efêmera, é uma ferramenta de trabalho. Como eu trabalho praticamente com militância, a gente precisa pegar tudo que for positivo e transformar em propaganda pra nós.”

[olho]”A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”[/olho]

Quando Xênia conheceu Eduardo Brechó, em 2011, apresentada por um amigo em comum, a ideia era que ele a ajudasse a montar seu disco solo. Ela frequentava a casa dele (“tem muito vinil, ele é pesquisador musical, conheci ele como DJ”), que também era visitada por outras pessoas como Jairo Pereira. Um dia o gaitista Lucas Cirillo chegou e eles ficaram tocando Michael Jackson. As pessoas foram chegando, os encontros viraram semanais, e três meses depois o Aláfia fazia seu primeiro show. “Quando fomos ensaiar com o Fi, que era baterista, chegou o [baixista] Gabiru e falou ‘como assim? Ele é meu primo’. Foi tudo muito sincrônico.”

Foi no dia 11 de junho de 2011, no Bar B, em São Paulo, que o Aláfia fez seu primeiro show. Xênia passou na casa de um amigo para se arrumar e chegou em cima da hora do show. “Quando entrei o bar estava lotado e 80% das pessoas que estavam lá eram negras, achei aquilo foda. Era muita gente preta no lugar, e eu nunca tinha visto aquilo em São Paulo. Eu vinha de outra realidade, trabalhava com moda. Nessas festas de moda não tem negro, era eu e mais um, e os outros negros que estão lá são os cozinheiros, os faxineiros.”

Falar de negritude e de racismo sempre foi a intenção da banda, mas Xênia diz que isso tomou uma proporção maior quando eles perceberam que as pessoas iam aos shows para ouvir o que eles tinham para falar. “A gente não tá falando pra eles, a gente tá se comunicando. Essas pessoas também têm um monte de coisa pra dizer.” O Aláfia é uma banda interracial. “Tem preto e tem branco. As pessoas brancas entraram pra tocar, só que a nossa vivência é muito séria e muito forte. Quem não pensava sobre isso acabou entrando [na militância]. Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade.”

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A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação
A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação

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Me encontrei com Xênia França pela primeira vez num restaurante nordestino simplão na Santa Cecília. Acompanhada de cinco belas amigas, o que fazia com que a mesa em que estavam sentadas se destacasse, ela estava levemente bêbada após tomar uma caipirinha. Por sugestão dela, pedi uma também. Estava nervosa e tinha calculado quais perguntas fazer naquela ocasião e em qual ordem, com medo de ser invasiva demais, e esperando que ela pudesse ganhar confiança em mim pra se abrir. A pergunta “qual seu signo?” estava no fim da lista, mas foi a primeira coisa que ela falou, assim que me sentei. “Sou Peixes com ascendente em Leão e Lua em Virgem. Por isso que sou chata”, brincou. Ela disse que era por isso que, apesar de ser essa pessoa expansiva e “pró-ativa na amizade” quando encontra as pessoas, precisa de um tempo sozinha, só pra ela.

Culpa ou não dos astros, Xênia tem realmente essa dualidade. Ela fala bastante, chora de rir, imita Marília Gabriela, se mostra bem à vontade e usa muitas gírias do universo gay na hora de conversar sobre coisas corriqueiras. Mas também fala baixo, é introspectiva, articulada, e sobretudo inteligente. Xênia pensa muito sobre a sociedade e o mundo em sua volta, mas também se dedica bastante ao auto-conhecimento.

[olho]”Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade”[/olho]

Não tem religião, mas sempre foi ligada com o “invisível”. “Sempre tive muita curiosidade mas também muito medo, porque a religião põe medo nas pessoas.” Na infância, foi batizada na Igreja Católica e fez primeira comunhão, mas na adolescência já não se identificava mais com o catolicismo. Ela vem de um estado onde o candomblé é forte, mas foi se aproximar e pesquisar mais sobre o assunto com o Aláfia. “Tem muitas pessoas no Aláfia que são filhas de santo mesmo, e por causa da pesquisa musical, que passa por esse lugar.” Ela é filha de Xangô e Iemanjá, e procura saber a influência dos orixás em sua vida. Frequenta o Terreiro do Bogum quando vai a Salvador. “Faz parte de um lance de identidade, ancestralidade, mas não tenho a cabeça feita e acho que nunca vou ter.”

A cantora frequenta o Templo Sukyo Mahikari Dai Dojo, onde recebe “umas energias pelas mãos” e consegue estabelecer uma conexão com o invisível. Tudo faz parte de sua busca para se achar e “ser uma pessoa mais confortável dentro de mim”. “Todo mundo que me conhece me acha super engraçada. Sou uma pessoa muito expansiva, tô sempre falando. Falando da minha vida, das minhas coisas, e mesmo assim o que é importante mesmo, o que me choca, o que me magoa, eu não falo.” Foi na terapia de florais que ela encontrou a possibilidade de se abrir e falar sobre o que ficava guardado.

Tudo isso ajudou para que ela saiba lidar “relativamente bem com a minha vida”, mas não impede que ela tenha crises, como todos nós. “Eu me sinto tão realizada cantando, sei que é isso que eu deveria estar fazendo, mas tem horas que bate um negócio assim, que acho que deve ser do meu signo, meu ascendente, da mistura que é meu mapa [astral], um número de frustrações.”

Xênia não fez aula quando começou a trabalhar com música; hoje em dia, faz aula de canto e fonoaudiologia. “Quando escutava qualquer coisa [que gravei] eu ficava triste, porque achava que não tava bom. Não gostava da minha voz.” No Aláfia, ela cumpre a função que lhe é dada – “estou ali mais como instrumento do que como cantora, é como se eu fosse uma guitarrista” –, imprimindo um registro de voz de black music que gosta, mas que não encerra suas ambições estéticas. “Não consigo me expressar tanto como se eu fosse uma cantora solo, colocar pra fora quem eu sou de verdade.”

Fora do Aláfia, ela faz participações em shows de amigos e vem apresentando um espetáculo em homenagem ao Gonzaguinha. “É muito diferente poder cantar canção, poder ser mais sereno. E cantar sozinho é muito diferente, você mostra um outro lado artisticamente.” A ideia do álbum solo, que surgiu em 2011, só está tomando forma agora. Na época ela tinha medo de gravar, e não se sentia preparada. “Não tinha nada em mente, só queria cantar”, lembra. Após dois anos pensando no disco, ela começa a se dedicar mais à escolha do repertório e a linguagem que quer passar.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 10-10-2015, 19h: Retrato da cantora Xênia França. (Foto: Lucas Lima/riscafaca).
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

Quando Xênia era adolescente, queria ser jornalista, inspirada pela Glória Maria, repórter da Rede Globo. “Não pensava muito na coisa da negritude nessa época, mas já sentia uma diferença ali, que só existia uma mulher preta ali na televisão que a gente assistia.” Mas seu professor de português, que já havia sido jornalista, recomendou um texto sobre a falta de liberdade de expressão causada pelas famílias que controlam as grandes mídias, e ela desanimou. Fez Comunicação Social, mas com a especialização em Publicidade. “Na escola eu não suportava estudar, mas quando entrei na faculdade achava o máximo estudar e ler coisas que estavam diretamente ligadas à minha personalidade”, recorda. Mesmo assim, viu que a profissão não era pra ela.

Aos 17 anos, Xênia se inscreveu num concurso da revista Raça Brasil. Não ganhou, mas ficou entre as dez primeiras e foi para São Paulo em 2004 trabalhar como modelo em uma agência especializada em negros. A primeira pessoa que conheceu na capital paulista foi Samira Carvalho, a garota que estava na capa da revista Raça quando ela se inscreveu no concurso. “Ela tava sentadinha no chão, fazendo tricô”, conta Xênia. Samira é top model e agora vende suas belíssimas criações em tricô e crochê na marca que criou, a Sambento. Ela também é uma espécie de consultora de estilo de Xênia, emprestando roupas e ajudando no styling. Foi Samira quem fez o vestido sob medida usado por Xênia no show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera. “Assim que a Xênia chegou rolou uma conexão boa entre a gente”, conta Samira.

A vida de modelo não foi fácil. Eram poucas as ofertas para as negras, e o que ela mais fazia era, ironicamente, trabalhos para publicidade. Grande parte do sustento vinha da mãe, e ela diversas vezes fazia as malas, preparada para voltar à Bahia, até que alguma coisa a fazia ficar. “Cheguei aqui [em São Paulo] querendo ser a Gisele Bündchen e tomei um baque.” Mas ela fez amigos, entre eles os integrantes da banda de rock Sorriso Vertical, que costumava tocar no Sarajevo, casa noturna da rua Augusta que ela frequentava.

Em 2007 ela mudou da região da Augusta para o Itaim Bibi, e os amigos do Sorriso Vertical sempre apareciam para encontros na casa dela. Eles se juntavam para cozinhar, assistir filmes, e principalmente tocar violão na cozinha, quando ela cantava despretensiosamente. O guitarrista da banda, Caio Echem, elogiava sua voz, mas ela não dava muita bola. Porém, na metade daquele ano, Caio a convidou para montar uma banda de samba rock (“nessa época estava no auge”), e ela aceitou. Uma semana depois, ela faria sua primeira apresentação como cantora no aniversário de uma amiga do baterista.

Ela ainda trabalhava como modelo, mas momentos importantes foram acontecendo — rápido e aos poucos — em sua carreira musical. Em 2008, ela foi assistir ao VMB e reencontrou Fred Ouro Preto, também do Sorriso Vertical, que concorria pela direção do clipe “Triunfo”, do Emicida. Fred apresentou os dois, passou o telefone da Xênia para o Emicida, e um belo dia, enquanto ela estava em um casting, o rapper ligou perguntando se ela podia aparecer no estúdio, porque ele precisava de uma voz feminina. Ela saiu da prova de roupa, foi encontrá-lo e gravou pela primeira vez em um estúdio.

A vida de modelo/cantora foi sendo levada, com anos de apresentações na noite paulistana na bagagem. Mas só tocar na noite não a satisfazia mais, e ela começou a montar o Aláfia, onde realizaria seus desejos artísticas no momento. E ser modelo também já não era legal. “Sentia que estava insistindo numa coisa que não era pra mim”, diz. A transição de modelo para cantora foi bem difícil, o dinheiro faltava, e ela passou dez meses trabalhando em uma loja na Oscar Freire, para se sustentar enquanto o Aláfia preparava o primeiro disco. “Mas cada vez que eu tava num estúdio, me sentia muito satisfeita. Muito diferente de quando eu era modelo e tava num trabalho já pensando em quando seria o próximo.” Ser cantora não estava nos planos quando Xênia saiu de Camaçari, na Bahia (ela foi criada lá, mas nasceu em Candeias), mas a música foi um canal para ela encontrar o melhor de si.

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Xênia no show de lançamento do disco "Corpura", do Aláfia. Crédito: Divulgação
Xênia no show de lançamento do disco “Corpura”, do Aláfia. Crédito: Divulgação

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“Ela é uma deusa e vai ganhar o mundo”, me disse a cantora Tássia Reis quando perguntei se ela poderia falar sobre a Xênia. Tássia gravou com o Aláfia, participa dos shows, e acabou “fazendo uma ocupação na casa dela” por alguns meses, quando chegaram a compor juntas. “Ela me chamou pra uma música. Escrevi uma parte, acompanhei de ver ela compondo na sala, ficou incrível. Ainda não gravamos”. A Xênia tinha me dito que “quebra a cabeça para aprender a tocar violão”, e fico surpresa em saber que ela já está compondo com o instrumento. “Ela é muito talentosa e sagaz”, explica Tássia.

A Xênia tem essa aura que encanta, atrai a atenção pra ela. Coisa de deusa mesmo. E ainda essa facilidade de se conectar com as pessoas instantaneamente. “Tenho a imagem daquele dia que, quando olhei pra cara dela e começamos a conversar, foi um tal de dar risada geral. E guardo essa sensação — parece até reencontro, manja?”, recorda Pipo Pegoraro, músico solo e companheiro de Aláfia, sobre o dia em que conheceu a cantora.

Vê-la falar com propriedade sobre política, racismo, ou mesmo os quasares reforça essa impressão de que ela é uma mulher perfeita (e ainda assim acessível). E por mais que Xênia gaste muito tempo falando sobre ter evoluído em sua relação com o mundo e consigo mesma, ela às vezes gosta de lembrar da sua humanidade. “Tenho meus traumas, mas tento resolvê-los, não fico sofrendo. Às vezes fico, porque eu sou uma pessoa.” Se livrar do drama que acompanha todo pisciano é um exercício diário. Ela explica que, no dia anterior, foi dormir às 3h da manhã, em crise, achando que tinha se “comportado de maneira errada com uma pessoa”. Quando acordou, leu um livro (“O Poder do Agora” é sua Bíblia), foi ao templo, e fugiu do limbo do sofrimento. “Pra poder eu ser isso aqui, tenho que me esforçar muito, porque não sou tão calma.”

Xênia tem esse jeito particular de resolver seus conflitos. Seu pai morreu jovem, “acho que com 51 anos”, e chegou a acompanhá-la em um desfile, mas nunca a viu cantar. “Minha mãe é um pouco mais fria com esse lance de música, e acho que meu pai ia pirar. Fico pensando que ele podia ver, e agora não dá mais tempo.” Naquela semana, ela teve um sonho com seu pai. Estava conversando com um amigo – que no momento ela ainda não sabia, mas também era órfão de pai – sobre o assunto, e comentou: “Tanta coisa que a gente tinha pra resolver, né? Como faz pra resolver isso com eles? Acho que só em sonho”.

O pai dela se sentava ao piano e fazia uma música. Ela ouvia com clareza a letra e a melodia. “Acordei arrasada e mandei [uma mensagem de] áudio para o meu amigo na mesma hora. Aí eu cantei a melodia pra ele. Não lembro a letra, mas ele falou que a gente vai fazer essa música.”

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Crédito: Lucas Lima/Risca Faca
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

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Nas duas vezes que nos encontramos, Xênia falou que, se ela estava ali conversando comigo, era por causa de sua mãe. Mais especificamente, por causa de uma professora que se encantou com a dona Dalva Estrela, achou que ela tinha potencial e a levou pra Salvador para estudar. Dalva acabou de se formar em sua segunda faculdade, e pretende cursar a terceira. “O vislumbre que a professora [que ela considera vó postiça] deu à minha mãe, minha mãe passou para mim. Nenhuma outra pessoa na minha família teve o deslumbre de viver de arte, só eu.” Xênia menciona o tempo todo a admiração que tem pela mãe, e como ela é um exemplo de superação.

“Tenho muitas lembranças dela pequenina, nossos passeios no Club da Fábrica onde o pai trabalhava, as peraltices dela, subindo nas árvores, e eu correndo atrás dela para não se machucar. Estava sempre tentando protegê-la”, conta Dalva. Xênia é filha única de mãe solteira, e as duas criaram um laço forte, tornando o impacto da mudança da cantora para São Paulo ainda maior, e bastante sofrido para Dalva.

Os pais de Xênia se conheceram numa festa, “tipo uma quermesse”. Ele era técnico de som, mas tocava violão e cantava. “Era alucinado pelo Emílio Santigao, que é uma das minhas influências musicais por causa dele”, confessa a cantora. O casal se separou, e Xênia cresceu sem muita proximidade do pai, o que tornou a morte ainda mais difícil para ela. E ele pode nunca ter visto a filha cantar, mas com certeza influenciou a veia artística dela. Seus brinquedos de infância eram todos instrumentos, de tecladinho a harpa.

***

Ser uma cantora negra, mesmo de boca fechada, já é ser a própria militância. Xênia faz essa observação antes de me dizer que acha importante se posicionar, para poder quebrar os esterótipos. “Nem posso dizer que sou uma militante; sou uma figura que contribui para que essa falta de representatividade seja menor.” E ela faz isso não só por meio de sua arte, mas também pelo jeito como vive, se dando o prazer e o “direito” de frequentar onde quiser, de andar na rua balançando um leque em um dia de calor. “Não me vejo como uma pessoa negra, eu me vejo como uma pessoa.”

Ela acredita que, em 2015, começamos a ter um vislumbre de democracia racial. Mas ainda há um racismo institucionalizado que impede que as pessoas negras se desenvolvam no Brasil, mantendo os negros em subempregos. Além, é claro, do racismo mais óbvio, na forma de agressões. “Não sei se é porque eu imprimo uma consciência muito forte de quem eu sou, esse racismo não me atinge”, diz, explicando que sabe muito bem o que dizer caso alguém tenha o “equívoco de me agredir com essa pobreza de espírito”, mas que isso nem a ocorre. “Mas não posso achar que porque minha vida é boa que a vida de todo mundo tá legal.”

Alguns dias depois da entrevista, Xênia me envia um texto sobre a solidão da mulher negra, para que eu entendesse melhor do que ela estava falando quando disse que “a mulher negra não namora, ela está sempre ficando”. Vem sendo abordado recentemente por ativistas a preterição da mulher negra nos relacionamentos afetivos heterossexuais, tanto por homens brancos quanto por homens negros. É um reflexo do estereótipo da negra como mulher “quente”, que é objeto de fantasias sexuais mas não “serve” para um relacionamento sério.

Xênia tem 27 anos, e teve seu primeiro namorado aos 24. Antes disso, ela só ficava. “Na hora do ‘vamo ver’ os caras não queriam namorar. Ficava pensando ‘será que sou chata, que sou feia, será que é por que eu sou negra?’ Hoje em dia não penso mais nada disso, mas nessa época tinha esses conflitos.” Ela conheceu Lucas Cirillo, gaitista do Aláfia, quando a banda estava se formando, no começo de 2011. Eles se tornaram grandes amigos, mas só foram ficar em outubro – ele já estava encantado por ela, mas Xênia não dava muita bola. “Ficava eu bobão, aí eu desencanei de correr atrás dela, aí inverteu a história. Foi ela que enquadrou”, resume Cirillo. Xênia foi quem pediu o gaitista em namoro, e em março eles completam quatro anos juntos.

“A gente tenta limitar a hora que vai falar de banda e a hora que vai falar de namoro”, explica Cirillo. A parceria, é claro, se estende na música, e um ajuda o outro na hora de avaliar as composições ou opinar no trabalho. “Quando ele me mostrou ‘Cala’, na cozinha de casa, eu falei ‘essa música é a cara do Aláfia’, porque existe um tipo de composição que é para o Aláfia”, tinha me contado Xênia quando falávamos de Corpura.

Os dois demonstram imensa admiração pelo outro. “A gente conversa sobre tudo, traição, ciúme, eu ser preta, ele ser branco”, diz Xênia. Ela elogia bastante o fato de Cirillo não ter ciúme, ainda mais por ela ser uma pessoa expansiva – dessas que beija, abraça e é atenciosa com todo mundo. “Fui eu que escolhi ele. E foi uma ótima escolha.”

Depois de resolver tantos conflitos internos, a vida afetiva de Xênia é uma aspecto que ela “não tem do que reclamar”. E o sentimento parece mútuo: “É claro ver como ela é encantadora onde ela chega, não só pela beleza mas pelo espírito alegre e contagiante. Ela tem um ímpeto, uma garra, um espírito guerreiro que é muito bonito de ver”, elogia Cirillo.

No show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera, Xênia era inevitavelmente o centro das atenções, com seu vestido longo com fendas nas pernas e brincos enormes. Mas em dado momento, quando Brechó e Jairo cuidavam dos vocais, ela foi para o canto, como se ninguém tivesse olhando, e conversou por alguns momentos com o gaitista. O brilho que ela tinha nos olhos era algo que não dá pra fingir.

***

Xênia Eric Estrela França ganhou esse nome inspirado na jornalista Xênia Bier. “Achava ela incrível e muitíssimo inteligente. Acho que acertei, pois também acho minha filha incrível e inteligentíssima”, ri Dalva, mãe da cantora. Xênia é um nome de origem grega que significa estrangeira, hospitaleira. “Não sei se o significado é tão impactante quanto o nome, porque acho meu nome muito forte. E acho que sou Xênia mesmo. Não teria outro nome. Acho que é assim que me sinto no mundo também, meio estrangeira. Me sinto muito de passagem aqui. Vim aqui pra aprender, muitas vezes fico bastante chocada. Não consigo entender direito o porquê das coisas, das injustiças.”

Ela me diz que gosta de dar conselhos. Já tinha reparado: suas respostas, sempre longas e elaboradas, costumam terminar com algum tipo de conselho (“acho que todo mundo tem que fazer terapia”). Mas Xênia também gosta de aprender, de receitas saudáveis a como tomar vinho até ao cosmos, o assunto que ela mais se dedica. Música ela só ouve em casa se tiver fazendo alguma pesquisa.

A padaria chiquezinha da Vila Madalena fecha, e Xênia senta comigo num parklet. Cai uma chuva fina. Ela fala sobre suas grandes amigas, Indira e Samira, que são como irmãs; sobre a magnitude do planeta; sobre energia. “Esses dias o seu Mateus Aleluia descobriu que tem uma pantera na África que chama ‘tchênia’. Ele ficava no palco falando ‘tchênia’, e eu achava o máximo, ficava me sentindo”, lembra, rindo. Suas roupas coloridas ficam ainda mais estilosas em seu corpo de 1,73m de altura. Seu cabelo volumoso continua impecável. Xênia olha no seu olho, pega no seu braço, por poucas vezes parece calcular as palavras, e quase sempre fala com uma espontaneidade de quem é segura de si. Xênia domina o ambiente. Como uma pantera.