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A panela de pressão do PCC

A data era propícia. Terminava a noite de Finados de 2009 quando Orlando Motta Júnior, o Macarrão, um dos líderes dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, ligou desesperado, de dentro de sua cela, para o 190 pedindo socorro: “Querem me matar! Me tirem daqui. Quero ser transferido!”

No dia anterior, um domingo, os “passarinhos” usaram o horário de visitas para levar a ordem (também conhecida como “salve”) da facção aos detentos da Penitenciária 1 de Avaré. Macarrão, então com 36 anos e condenado a 48 anos de reclusão, que cumpria pena em uma das celas do raio 1, deveria morrer. A ordem — acompanhada de uma arma de fogo — era da cúpula do PCC com aval do líder máximo da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola.

Os detentos da P1 de Avaré passaram a segunda-feira serrando as grades e continuaram noite adentro. A intenção era chegar à cela de Macarrão e executá-lo ainda na madrugada de terça-feira. Mas o barulho imprevisível na noite dos mortos acordou a presa que, apavorada e acuada, usou o celular escondido na cela para pedir ajuda. Foi retirado e salvo pelos agentes penitenciários.

macarrao01Segundo uma testemunha mantida em uma penitenciária de segurança máxima do Oeste Paulista, a execução seria em represália a um motim interno da facção promovido por Macarrão no final de 2008. Insatisfeito com a administração de Marcola, Macarrão teria obtido apoio de outros integrantes da Sintonia Final Geral, como é chamada a diretoria da facção, sediada na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, e se rebelado com seu grupo.

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Macarrão era da alta cúpula do PCC. Na década de 1990, tinha cumprido pena na mesma penitenciária de Avaré com Marcola e outros líderes da facção e participado em 1999 da rebelião da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, onde o PCC foi fundado, em 1993. Depois dos ataques, foi levado junto com Marcola para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, unidade em que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) colocou todos os líderes da facção na esperança de evitar as rebeliões em série e de controlar os criminosos.

Em Venceslau, Macarrão se tornou um dos homens fortes do PCC, responsável pela Sintonia dos Gravatas, a ala dos advogados da facção. E também era uma espécie de porta-voz da Sintonia Final Geral, formada por nove integrantes. No entanto, desentendimentos com Marcola e a prisão de advogadas que prestavam serviços para a facção teriam causado o rompimento da relação.

Em julho de 2008, a polícia prendeu advogadas da facção após escutas feitas no celular de Macarrão. Segundo pessoas envolvidas na ação em conversas com a reportagem do Risca Faca, Marcola se irritou porque um informante do PCC já havia alertado para o monitoramento dos celulares e pediu que ninguém usasse os aparelhos. Macarrão desobedeceu e facilitou com isso a prisão das advogadas. Marcola decidiu que o custo das prisões seria bancado com dinheiro particular de Macarrão. Revoltado com a decisão do chefe da facção, Macarrão tentou derrubá-lo.

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Durante o motim, Marcola teria sido agredido, sendo espancado por alguns companheiros, um deles essa testemunha, de codinome Chocolate, cujo nome é mantido em segredo pelas autoridades do sistema penitenciário. Marcola sofreu ferimentos e, sob ameaça de morte, aceitou repassar o comando para Macarrão e seu grupo. Assim, Macarrão assumiu durante cinco dias a chefia e tomou conhecimento de todas as atividades da facção mais perigosa do Brasil.

No entanto, por falta de controle da situação, Macarrão enfrentou resistência dentro do próprio grupo, que à sua revelia, negociava a volta de Marcola, e acabou expulsando Macarrão da Sintonia Final Geral. A expulsão ocorreu apenas cinco dias depois de Macarrão assumir o comando. Parece pouco, mas foi tempo suficiente para que ele conhecesse as principais informações da facção.

Ao reassumir o controle da Sintonia Final Geral, Marcola aceitou acordo com o grupo dissidente ao prometer não eliminar nenhum dos líderes, mas manteve a sentença de morte para os detentos que o espancaram. Ao ser derrotado e expulso do grupo, Macarrão conseguiu transferência da P2 de Venceslau. Mas só descobriu que também estava jurado de morte na noite de Finados de 2009.

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O caso é mantido em segredo pelas autoridades do sistema e pelo próprio PCC. Há cerca de duas semanas, Chocolate, um dos agressores de Marcola, teve de ser transferido para uma ala mais segura do sistema, porque integrantes do PCC descobriram o presídio onde ele cumpre pena no Seguro – uma ala destinada aos jurados de morte. “Ele está pedido e certamente, cedo ou tarde, será localizado e morto”, disse um agente que participou de sua remoção. Outros detentos que participaram do motim contra Marcola foram distribuídos pelo sistema e não há informação se foram executados ou não.

Atualmente, a localização de Macarrão é desconhecida por grande parte do sistema prisional – ele possivelmente vive agora com outra identidade.

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Isso só foi possível porque, jurado de morte e pressionado pelo PCC, Macarrão tomou uma importante decisão: tornou-se colaborador das autoridades para delatar o PCC, transformando-se na figura mais emblemática da facção após os ataques de 2006. Resguardado por um programa de proteção de testemunhas, o ex-integrante do PCC colaborou com o Ministério Público na maior investigação sobre o crime organizado feita no País, concluída e divulgada em 2013.

A investigação, que durou três anos, produziu um raio X da facção: revelou quantos eram seus principais chefes (8), seu contingente (11,4 mil homens, 7,8 mil em SP), atuação (22 estados e DF), arsenal (100 fuzis, 30 metralhadores, 100 pistolas), movimentação (R$ 120 milhões por ano), planos e resgate de presos, ataques a policiais e nomes dos traficantes que forneciam cocaína e maconha à facção.

Oficialmente, Macarrão começou a colaborar com o Ministério Público em 19 de março de 2010, quando prestou depoimento sobre a morte de sua mulher, Maria Jucinéia da Silva, assassinada a tiros em 7 de setembro de 2009, então com 41 anos.

Na manhã daquele feriado, por volta das 8h30, Néia, como era conhecida, saía para a frente da casa de sua mãe para varrer a calçada, na Rua dos Evangélicos, bairro Campo dos Alemães, na zona sul de São José dos Campos. Distraída com a limpeza, Neia não percebeu que um carro preto se aproximou. Do banco de carona, um homem armado disparou várias vezes. Neia ainda conseguiu correr para dentro de casa, mas não resistiu e caiu, sem vida, no banheiro da residência, atingida por oito tiros.

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O homicídio foi encomendado por um tribunal paralelo do PCC, reunido pela Sintonia Final Geral dentro da P-2 de Venceslau. Na incapacidade de matar Macarrão, a facção optou por executar sua mulher. O Ministério Público obteve a gravação na qual Edilson Borges Nogueira, o Birosca, integrante da Sintonia Final Geral, afirma que o “salve” fora dado por conta de uma traição ocorrida dentro do PCC. Oficialmente, a traição seria a delação de Macarrão, que teria apontado outro integrante do PCC, Elvis Riola de Andrade, o Cantor, como autor dos disparos que mataram o agente Denilson Dantas Jerônimo, no dia 3 de maio de 2009, na cidade de Alvares Machado, próxima a Venceslau.

Considerado linha-dura, Jerônimo era agente do Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) em Presidente Bernandes, unidade de internação e isolamento de presos periculosos. Jerônimo foi surpreendido com a namorada, dentro de seu carro, e morto com diversos tiros de pistola calibre 380. A namorada escapou ilesa. Segundo Macarrão, dois líderes da facção, Biroska e Gegê do Mangue (Rogério Jeremias Simone), além de Wagner Martins de Oliveira, o Boca, e José Luís Soares, o Nininho, planejaram o crime. Elvis, o Cantor, era puxador de samba da Gaviões da Fiel e foi preso em 27 de maio de 2010.

O assassinato da mulher de Macarrão agravou a crise interna na facção. O caldeirão começou a ferver. Macarrão prometeu eliminar todos os parentes dos detentos da cúpula do PCC e a facção jurou revidar matando mais parentes de Macarrão. A ameaça de Macarrão fez com que as mulheres dos líderes usassem carros blindados e escoltados com seguranças nas visitas aos maridos na P-2. A movimentação chamava atenção das pessoas que passavam pelo local, com os carrões à prova de bala e dos seguranças. No entanto, recolhido e sob proteção do programa de testemunhas, Macarrão não cumpriu sua promessa.

“Não tínhamos essa noção de que Macarrão pudesse ganhar tanta força dentro da facção”, disse um ex-diretor de inteligência da SAP, especialista em PCC, que participou das ações para frear a facção. “Para nós, ele era apenas o quinto na ordem de importância, embora fosse um organizador de rebeliões, talvez o principal incentivador do PCC, além de porta-voz da diretoria e responsável pelos advogados”, contou. “Mas não duvido de que ele possa ter derrubado Marcola e ficado no comando por alguns dias”, completou a fonte, que foi ameaçada de morte por Macarrão por ter influenciado em decisão que levou o detento a cumprir pena no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) após uma rebelião.

Outra autoridade do sistema confirmou as informações, dizendo que Chocolate, por motivos de segurança, está em uma ala de seguro de uma Penitenciária de Segurança Máxima do interior de São Paulo. “Logicamente, trata-se de um detento que está condenado à morte pelo PCC, que controla grande parte das penitenciárias e por isso há necessidade de muitos cuidados”, disse a autoridade. “A informação que temos é de que ele é procurado pelo PCC por ter espancado Marcola durante um motim interno do PCC.”

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A história da delação de Macarrão colocou em risco anos da construção daquela que é chamada de fase “Paz e Amor” do PCC. Depois dos ataques de 2006, o PCC, influenciado pelos ensinamentos do ex-guerrilheiro chileno Maurício Hernandez Norambuena, sequestrador de Washington Olivetto, mudou sua estratégia de atuação, deixando de praticar grandes assaltos para fazer do tráfico de drogas (maconha e cocaína, principalmente) sua principal fonte de receita. Com isso, em 2010, o PCC já participava de 90% dos pontos de tráfico do Estado de São Paulo.

“Além das bocas que já existiam, o PCC abriu novos pontos em praticamente todas as cidades do Estado, incluindo municípios pequenos, de 10 ou 15 mil habitantes”, diz o juiz corregedor Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba, responsável por 30 mil processos de 15 mil detentos.

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A intenção era se desfazer da imagem de violência que ficara após os ataques, quando o PCC matou também civis, e reduzir a possibilidade de penas longas ou mesmo a morte de seus integrantes. A estratégia deu certo, auxiliada pelos interesses da segurança pública estadual em ver reduzidos os crimes de homicídios no Estado. “A queda das estatísticas de violência é proporcional ao sucesso da atividade do PCC”, afirma um ex-diretor da SAP, especialista em PCC, que atuou na custódia de líderes da facção e prefere não ter o nome revelado por motivos de segurança.

A facção tem entre seus maiores clientes os detentos do sistema penitenciário do Estado de São Paulo, que abrigava, até dia 9 de maio de 2016, um total de 230.743 detentos em 164 presídios — 90% deles, segundo o Ministério Público Estadual, sob o controle da “família”, como é chamado o PCC entre seus “irmãos”.

Enquanto paralisava as ações midiáticas, o PCC aprimorava a venda de drogas. Passou a entregar maconha e cocaína em consignação, o que fez com que usuários se transformassem em pequenos traficantes. A tática de arrecadação é simples: o PCC entrega a droga, que é vendida em consignação, e depois passa para fazer o recolhimento do dinheiro e ainda cobra uma comissão da venda, o chamado “bicho-papão”. Com isso, na ânsia de vender mais para comprar droga para uso, os novos traficantes passaram a vender indiscriminadamente, atingindo como público crianças de 10 e 11 anos, que até então eram preservadas pelos antigos traficantes.

Além disso, o PCC afrouxou suas regras, dentro e fora dos presídios. “Para se ter uma idéia, a facção incluiu em seu regimento dois artigos em que os tribunais passam a atuar em pequenas causas, como brigas de vizinhos e de marido e mulher, numa tentativa de apaziguar os ânimos”, diz o especialista. “Até mesmo os ‘ratos de mocó’, que são os presos que furtam pertences dos colegas de presídio são perdoados, o que não acontecia antes”, conta.

Outra mudança foi deixar de pressionar os detentos dos presídios controlados pela facção, que antes dos ataques eram obrigados a entrar para a facção. “Hoje não há mais isso, o detento entra para a facção e também colabora só se quiser”, relataram agentes ouvidos pela reportagem. A intenção é deixar a situação calma dentro dos presídios, com os detentos fazendo uso do entorpecente e os traficantes atuando sem ser incomodados. “A automação de presídios possibilitou isso, porque afasta o agente dos detentos. O preso fica de um lado e os agentes de outro”, diz o especialista. Segundo ele, o fim das blitze semanais simultâneas nos presídios, comuns antes de 2006 para impedir as rebeliões em série, também deu mais tranquilidade aos traficantes para vender a droga aos colegas da prisão.

A estratégia “Paz e Amor” do PCC, somado ao constante aumento de consumo de drogas causado pela superpopulação carcerária, deu tão certo que praticamente quadruplicou a receita do crime organizado com o tráfico. O faturamento, que segundo um livro-caixa do PCC era de R$ 4,8 milhões/mês em 2008, saltou para R$ 16 milhões/mês em 2015, de acordo com dados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário.

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Arte: Rafael Coutinho

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No fim de semana do mais recente Dia das Mãescentenas de mulheres, todas vestidas num único traje — calças legging, camisetas largas e chinelos — subiam a rua que dá acesso à Penitenciária de Valparaíso, onde há dez anos foi iniciada a megarrebelião promovida pelo PCC durante os ataques de maio. Naquele mês, 76 unidades prisionais enfrentaram motins. Desde então a situação está aparentemente calma nos presídios paulistas. Mas só aparentemente.

Carregando grandes sacolas plásticas, com diversos tipos de produtos (de papel higiênico a alimentos preparados horas antes), essas mulheres — algumas com crianças e bebês, filhos de detentos, alguns gerados em visitas íntimas — reclamavam das péssimas condições do presídio. Elas avisavam que os 1.800 detentos da unidade não estão satisfeitos com o tratamento recebido, e que, por isso, voltavam, depois de muitos anos, a falar sobre a possibilidade de ocorrer uma nova “megarrebelião”, independentemente da vontade do crime organizado, que controla 90% dos presídios paulistas.

Cristiane de Oliveira Silva, que mora em São Paulo, gastou cerca de R$ 500,00 em passagens para viajar 1,2 mil km de ida e volta a Valparaíso, mas não pôde visitar o irmão, preso há 20 dias na unidade. “Eles disseram que os documentos que enviei para autorizar minha visita não chegaram, mas meu irmão confirmou o recebimento. Eu ainda telefonei aqui e ninguém me disse nada. Poderiam ter evitado essa despesa para minha família”, disse ela, antes de cair no choro.

A falta de assistência jurídica aos presos é apenas um dos problemas. “Temos de trazer de tudo, desde sabonete e materiais de limpeza a alimentos, porque a comida é pouca. Faltam remédios e até água e papel higiênico”, contava Marizene Pereira Souza, 42 anos, acompanhada da filha, Barbara Souza Rocha, de 18 anos, que saíram na noite de sexta-feira de São Paulo para visitar Marcelo Souza Rocha, filho de Marizene e irmão de Barbara, preso há sete meses em Valparaíso.

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) negou que haja precariedade nas unidades prisionais do Estado. Em nota, a assessoria da SAP informa que não faltam remédios, produtos de higiene e que a assistência judiciária funciona a contento. Segundo a SAP também não há racionamento de água, “porém é feito um controle (principalmente no horário noturno), visando evitar o desperdício”.

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A precariedade com que vivem os presos no interior das cadeias voltou a acender a panela de pressão do sistema carcerário paulista e pode colocar abaixo a política atual do PCC. Três dias dias antes da visita da reportagem, o serviço de inteligência da SAP havia interceptado mensagens que davam conta de infiltração de armas de fogo no presídio e de ações para promover rebeliões em Valparaíso e Itirapina.

“Recebemos a informação de que haveria ações de fora para dentro e de dentro para fora para quebrar as cadeias”, disse um agente da inteligência. “Então tivemos de chamar a PM e transferir presos”, afirmou. A Força Tática da PM foi chamada, mas não precisou entrar nos presídios. Mesmo assim, cerca de 120 detentos foram transferidos das duas unidades.

As últimas rebeliões nessas unidades foram em 7 de outubro de 2009 em Valparaíso, com dez reféns, e em 15 de julho de 2013 em Itirapina, com 68 reféns e dois detentos mortos. Em um levantamento rápido, a reportagem apurou a ocorrência de dez rebeliões após 2006, metade delas após 2011, embora a SAP informe que desde 2011 não há rebeliões no Estado de São Paulo.

Em Valparaíso a principal reclamação é com a falta de assessoria jurídica, alimentação e falta de espaço para os presos dormirem. “Há um colchão para cada preso, mas por falta de espaço, eles ficam fora da cela. Os presos se viram lá dentro com a quantidade de colchões que conseguem colocar na cela”, disse um agente. Segundo ele, em uma cela para oito presos, convivem 14 ou 16 homens.

“Eles se viram como podem, dois por cama, dividem o chão da cela e em alguns casos dormem até no espaço do banheiro”, disse outro agente. O fornecimento de água é cortado à noite por economia e nos dias quentes, o corte é feito durante o horário do banho de sol para que haja água suficiente para todos tomarem banho e matarem a sede.

O presídio de Valparaíso tem capacidade para 873 presos, mas contava 1.747 na quinta-feira, 12 de maio. Há dez anos, durante a megarrebelião, a unidade estava com 1.161 detentos. A superlotação é praticamente a mesma em todas as unidades. De acordo com dados da SAP, atualmente há cerca de 231 mil detentos em 164 unidades prisionais. Em 2006, eram 121 mil detentos para 144 unidades prisionais. A média subiu de 840 para 1.408 detentos por unidade, um aumento de 70% em dez anos, enquanto o número de unidades aumentou apenas 13%. Reportagem da Ponte sobre o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em que mais de 5 mil presos vivem, relata o local como “o novo Carandiru”.

“É um problema do Executivo, que deveria construir mais presídios. O lógico seria educar a população para reduzir os índices de criminalidade, mas a curto prazo somente a construção de novas unidades é que pode amenizar esse problema”, comentou o juiz Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba.

A SAP diz que as medidas de segurança, aliadas ao trabalho dos agentes penitenciários, “permitem que a SAP opere suas unidades dentro dos padrões de segurança estabelecidos, inclusive sem qualquer registro de motim, rebelião ou fugas ao longo dos últimos cinco anos”.

Se depois de 2006 o PCC manteve-se como um monstro adormecido dentro dos presídios e bocas do Estado de São Paulo, a situação precária do sistema prisional está criando a mais perigosa das situações: a explosão da panela de pressão e a volta de dias de terror, como aqueles vividos há dez anos.

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A ressurreição de Augusto Ruschi

Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.

Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.

“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.

O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.

“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”

A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.

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Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.

Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.

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O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould
O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould

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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.

[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]

Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.

Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.

“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.

Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.

“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”

O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.

Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.

Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.

“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.

Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.

A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).

Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.

“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.

[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]

“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”

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Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.

“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.

Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.

“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.

***

Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.

Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.

Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.

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Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.

[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]

Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:

“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”

Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.

A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.

Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.

“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”

***

Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.

Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.

“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.

Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.

“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”

Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.

“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”

[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]

Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.

“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”

No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.

“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”

Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.

“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.

Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.

“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”

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Os documentos do Lobo

Para contar a história de Marcus Elias, da LAEP e da Parmalat no Brasil – história que, segundo o Ministério Público Federal, é a maior fraude já registrada na bolsa de valores brasileira – utilizamos diversas fontes. Entre elas, documentos públicos que dizem respeito a todos os envolvidos no caso. Em prol da transparência, publicamos aqui todos os documentos públicos utilizados na apuração.

1.

Remuneração dos Diretores

2.

CVM suspende LAEP

3.

Compra da Daslu

4.

Autorização para que diretores vendam os BDRs

5.

LAEP compra fazenda da RE Partners do Brasil

6.

Valor de Mercado Da Fazenda Cruzília Em 2009

7.

Contrato Social da RE Partners

8.

Receita Federal confirma que RE Partners é de Marcus Elias

9.

Bens da Integralat passados para SYMDOGIM, incluindo Fazenda Cachoeira, em Cruzilia

10.

Contrato Social da Symdogim

11.

Santander confirma que Marcus Elias comanda a Central Veredas

12.

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Parte III: Em busca da paz

Marcus Elias não fala sobre o assunto. Sua defesa alega, no entanto, que todos os procedimentos eram legais, e que a culpa da queda do preço das BDRs não foi das centenas de novas emissões de ações, mas dos próprios minoritários, que teriam especulado na bolsa e gerado más notícias contra a companhia. Em uma conversa com um alto executivo da LAEP, ele me mostrou uma série de documentos que considera “provas de que os minoritários estariam mancomunados com um fundo inglês chamado GLG, que quer falir a LAEP e vender tudo”.

Uma das maiores dívidas da LAEP estava com o banco Morgan Stanley. Em 2008, a empresa tentou protelar o pagamento, mas se disse surpreendida quando chegou nos Estados Unidos para negociar: a dívida, em forma de debêntures — papéis que davam direito a juros quando quitados —, teria sido vendida ilegalmente ao fundo inglês GLG Partners. “Só poderiam vender essa dívida com autorização da Parmalat”, me disse o executivo da LAEP.

O GLG entrou nessa história como o grande vilão, no entendimento desse mesmo executivo. “Eles são um fundo abutre, desses que compram dívidas de empresas apertadas e que tenham ativos que possam ser vendidos.” O objetivo do GLG seria, segundo a versão do executivo, quebrar a companhia e pegar os ativos para venda. “Os caras vêm com armas de grosso calibre!”

Ele me mostra uma mensagem de um fórum especializado em mercado financeiro publicada em 10 de abril de 2012, 17:56: “Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”. Mais tarde, outra mensagem: “Por falta de matador, xxxxxx.xxx@gmail.com aumenta a oferta para 350 mil.”

O executivo me mostrou também um e-mail privado trocado entre uma pessoa chamada Nícolas e outro funcionário da GLG, não-identificado na mensagem. Nícolas, o negociador do fundo, escreveu: “Ideia de fazer contato com a Abrimec”. Em outro e-mail interno do GLG, um dos funcionários cita a empresa de espionagem Kroll, sem dizer se ela seria contratada e com que objetivo. A mensagem é vaga mas, para o executivo, os dois e-mails são provas de que Abrimec e GLG são sócios em uma cruzada para quebrar a LAEP. “Nós é que somos vítimas de um golpe”, defende.

Quando eu contei sobre meu encontro com o executivo da LAEP para Valdemir João de Melo ele se levantou da cadeira e bateu com as duas mãos na mesa. “Meu amigo, eu nasci em uma cidade no sertão nordestino na qual o símbolo municipal é um jegue. Um jegue! Você acha que eu tenho capacidade de falar alguma coisa com tal de fundo inglês?” Valdemir é um dos minoritários que se sente enganado por Marcus Elias — foram 200 mil reais investidos em BDRs que viraram nada. “Ainda por cima a gente sofrendo com a LAEP e ele fazendo festa.”

[olho]“Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”[/olho]

Se a CVM e os tribunais são as melhores fontes de pesquisa sobre a vida empresarial de Marcus Elias, o site de mexericos Glamurama rouba a cena quando se trata de sua vida social. Em 2010, de fato, o empresário foi personagem de diversas notas sobre festas e convescotes badalados em São Paulo. Na inauguração do Bar Número, da amiga Fernanda Barbosa, ele apareceu “em plena segunda-feira, com frio intenso e garoa típica de São Paulo” para curtir “o espaço charmoso, de atmosfera superelegante e extremamente acolhedora, com sofás de couro marrom, luz baixa e cortinas de veludo”.

Em outra inauguração, desta vez da Brasserie Kosebasi, Elias foi citado ao lado de Teresa Fitipaldi, Letícia Brikheuer, Marcos Faria, Ricardinho Goldfard, Eliza Joenck e Gloria Coelho. A festa, “em clima de véspera de jogo do Brasil” — lotada com mais de mil “bacanas” — teve seu buchicho principal em torno do controlador da LAEP: “o assunto mais comentado da noite? A compra da Daslu por Marcus Elias, que comemora seu aniversário na próxima quarta-feira, no bar Número”.

***

A empresa não se limitou a emitir ações apenas para quitar dívidas — ela também fez emissões para captar dinheiro novo, mais uma vez derramando ações no mercado e corroendo os preços. O caso que mais chama atenção é o relacionado ao fundo de investimentos Global Emerging Markets, o GEM.

Em 15 de janeiro de 2010, a LAEP comunicou ao mercado, em nota oficial, que o GEM faria um aporte de 120 milhões de reais ao caixa da companhia. O título do comunicado era “LAEP obtém nova capitalização de R$120 milhões junto a investidor institucional norte-americano”. No rodapé do documento, a empresa reforçava a importância do acordo assinado com os investidores: “A administração da Companhia considera esta transação determinante para o seu fortalecimento”.

A nota foi replicada na imprensa, soprando ventos positivos à conturbada Parmalat. Em 15 de julho daquele mesmo ano, outro comunicado informava que o GEM aportaria mais 75 milhões de reais no caixa da LAEP. Valdemir viu as notícias e se animou. “Com 195 milhões na conta a LAEP poderia se capitalizar e, enfim, aproveitar o mercado. A ação dela ta muito barata, vai se valorizar. Vou comprar”, pensou.

Valdemir investiu 200 mil reais em BDRs da LAEP sem saber que seria ele próprio, e não o GEM, que iria capitalizar a empresa.

Conclusões imprestáveis

O Global Emerging Markets (GEM) se apresenta como um fundo alternativo de investimentos com 3,4 bilhões de dólares em caixa focado em mercados emergentes. Ele e seus parceiros dizem ter investido em 305 companhias de 65 países. Mas o GEM não tira dinheiro dos seus declarados 3,4 bilhões de dólares para fazer seus investimentos. A operação é complexa, e diferente do que as notícias fazem pensar.

Para aportar dinheiro na LAEP, o GEM pegou emprestadas ações do próprio laticínio, e as vendeu na Bovespa ao longo de semanas. Investidores como Valdemir compraram os BDRs, empolgados com a notícia de que um “investidor institucional norte-americano” estaria financiando a companhia. O GEM, de fato, não colocou um centavo na LAEP. Foi com o dinheiro de Valdemir que o fundo bombou o caixa da empresa, derramando mais ações no mercado e diluindo ainda mais a participação de quem já tinha papéis da LAEP. Os preços dos BDRs, como era de esperar, caíram ainda mais.

O Inquérito Administrativo “13” aberto pela CVM em 2013 chama a operação de “irregular”, “captação de poupança pública travestida de subscrição privada”, utilizando de “artifícios fraudulentos para induzir o mercado ao erro”, fazendo com que “investidores incautos e desinformados” participassem sem saber do aumento de capital. Um “comportamento malicioso”.

O inquérito ainda mostra que o GEM teve, por 10 vezes, fatia maior do que 5% da LAEP, e que deveria, por lei, ter comunicado isso ao mercado — só não o fez porque a informação poderia chamar atenção dos acionistas e mostrar que o fundo não era um investidor com interesses em ser sócio da LAEP, mas um especulador que jorrava novos BDRs na bolsa.

A CVM pediu punição ao GEM e a LAEP, e também a Marcus Alberto Elias, que assinou toda a documentação.

O envolvimento do empresário foi além das assinaturas de autorização: um e-mail enviado à CVM pelo departamento jurídico do banco Santander e obtido por esta reportagem garante que Elias é o representante legal no Brasil de um fundo chamado Brightness Investments LLC, sediado no número 874 da Walker Road, em Delaware, Estados Unidos. O fundo era o único cotista de outra empresa, a Central Veredas Fundo de Investimento em Participações. Foi a Central Veredas que atuou na Bovespa para vender os BDRs que o GEM pegou emprestado da LAEP. No e-mail, o Santander explica que o dinheiro arrecadado pela Central Veredas no mercado não ficou na conta da empresa — foi reinvestido em outra companhia, a Kewalam Empreendimentos e Participações S/A. Fundada meio ano antes da operação do GEM, a Kewalan viu seu capital social explodir do dia para noite, saltando de 1.000 reais para 92,7 milhões com o investimento da Central Veredas. Os sócios da Kewalan, segundo documentos da Junta Comercial de São Paulo, eram Marcelo Duarte e Diego Carrero Mesa. Os dois atuavam como uma espécie de criadores seriais de empresas, e já haviam prestado serviços para LAEP e Marcus Elias antes da operação financeira do GEM.

Marcus Elias se defendeu na CVM. Para ele, a operação foi legal, e a LAEP precisava de dinheiro por conta da crise internacional de 2008. Marcus Elias observou, em sua defesa, que a própria CVM não havia encontrado irregularidades na operação com o GEM diante de uma reclamação de um investidor, em 2011. De fato, à época, a CVM achou a operação normal, tendo dado atenção a ela somente em 2013, quando o dinheiro captado e os papéis já tinham virado história.

Em sua defesa, Marcus Elias apresentou o parecer de quatro professores de direito comercial. O mais fundamentado é o de Eliseu Martins, contabilista do Piauí e membro da diretoria da própria CVM entre outubro de 2008 a dezembro de 2009. Martins declarou que não havia nenhum erro na operação com o GEM, onde reinaria a mais pura legalidade. A CVM não deixou margem para interpretações em sua resposta: “Com todo o devido e mais do que merecido respeito ao professor Eliseu Martins, as suas conclusões são absolutamente imprestáveis”.

Estava escrito

Investir em papéis da LAEP era um negócio arriscado desde o início. No prospecto que norteou os investidores antes da abertura de capital a empresa listava, em 13 páginas, uma série de fatores que poderiam tornar o negócio perigoso, capaz de transformar qualquer real gasto em pó. “Investir nas nossas Ações ou BDRs envolve riscos significativos”, abria o primeiro parágrafo da página 62 do documento, que começa com uma série de alertas sobre a possível incapacidade da empresa de colocar seu plano de recuperação em marcha, citando, inclusive, eventuais mortes de seus executivos. “Nosso sucesso futuro depende, em grande parte, do trabalho e dedicação contínuos de nossa equipe de executivos. A perda de alguns deles pode nos afetar adversamente.”

Em outro trecho, a companhia parece antever a operação Ouro Branco, que detectou substâncias ilegais no leite e afetou a venda dos produtos Parmalat. “Mesmo que nossos próprios produtos não sejam afetados por contaminação, nosso setor poderá sofrer publicidade negativa se os produtos de terceiros forem contaminados, e isso poderia resultar na queda de demanda do consumidor por nossos produtos da categoria afetada.”

A parte que descreve os fatores de risco no prospecto da LAEP dá particular atenção aos BDRs. “Os detentores de BDRs não são e não serão considerados detentores das nossas Ações e não têm o direito de comparecer ou votar nas assembléias gerais de acionistas”, esclarece a página 68. Nos poucos casos em que os compradores dos papéis no Brasil teriam voz, a companhia não garantia que avisaria a tempo os investidores sobre data e horário das reuniões.

Os títulos vendidos pela companhia no Brasil davam direitos extremamente limitados a seus donos. De fato, a empresa seria controlada pela “Ações Classe B”, jamais negociadas em bolsa, e detidas inteiramente pela LAEP —  quase todas por Marcus Elias. Ele controlava a empresa com apenas 11% das ações totais. Para terem poder de voto, os donos dos BDRs deveriam ter quórum de ao menos 30% entre todos os detentores dos papéis, e comparecer no dia e hora marcada para a votação, em Bermudas.

“Eu liguei para um dos diretores da empresa e disse que queria participar de uma reunião. Ele me respondeu, irônico: ‘Você sabe que a empresa fica nas Bermudas, não sabe?’ Eu disse que sabia, e que iria de qualquer modo. Mal termino de falar ele já me replica: ‘Mas você pode ir no dia marcado e nós podemos mudar a data, jogar para 15 dias na frente, conforme permite nosso estatuto’. Ali eu entendi com que eu estava lidando”, me contou um investidor da LAEP que prefere permanecer anônimo. “Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue.”

O controle da empresa estava na mão apenas de seus diretores, e isso poderia confrontar os interesses dos demais acionistas.

O prospecto era ainda mais enfático em outras questões envolvendo as Ações Classe A, chamadas de BDRs no Brasil. “Podemos alterar o Contrato de Depósito e alterar os direitos dos titulares de BDRs de acordo com os termos do referido contrato, sem o consentimento dos titulares de BDR.”

[olho]“Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue”[/olho]

A história da LAEP não seria possível sem a regulamentação que permite que empresas listadas em outros países operem no Brasil através de BDRs. O sistema é comum em outras bolsas do mundo — a Petrobras, por exemplo, opera de modo semelhante nos Estados Unidos — , mas na Bovespa a norma não especificava o que, exatamente, era uma empresa estrangeira. No caso da LAEP, sequer um copo de leite jamais foi envasado fora do Brasil.

Após o escândalo da LAEP, a CVM decidiu mudar a norma dos BDRs: hoje, uma empresa precisa ter ao menos 50% de seus ativos no exterior para negociar recibos de ações no Brasil. Caso contrário, deve negociar papeis comuns e respeitar a Lei das S.A., que oferece proteções legais aos acionistas  –  muitas das quais poderiam ter evitado que a LAEP operasse como operou.

A mudança aconteceu em dezembro de 2009, e não atingiu companhias como a própria LAEP, já estabelecida no sistema de BDRs.

Os controladores poderiam também abandonar o mercado, sem garantia de que os investidores fossem ressarcidos. “Poderemos decidir deixar de ser uma companhia registrada na CVM para a negociação de BDRs e deixar de ser listados na Bovespa. Nesse caso, não podemos assegurar que nós ou nossos acionistas controladores farão uma oferta pública de aquisição de todos os BDRs em circulação em condições que atendam às expectativas dos titulares de BDRs.”

Mais adiante, a LAEP adverte que poderia não cumprir as leis brasileiras. “Somos uma companhia estrangeira, sujeita à legislação estrangeira, e a CVM pode não ter condições de supervisionar as nossas atividades ou fazer valer suas decisões contra nós.”

Na parte final, a LAEP deixa claro que os investidores em BDRs abririam mão de processar os executivos da empresa caso algo desse errado. “Nosso Estatuto Social contém uma previsão de renúncia por parte de nossos acionistas ao direito de promover qualquer ação ou reclamação, individualmente ou em nosso nome, contra quaisquer de nossos administradores. Tal renúncia aplica-se a qualquer ação ou reclamação envolvendo um administrador ou irregularidade por ele praticada no exercício de seus deveres, exceto com relação a qualquer questão que envolva qualquer fraude ou desonestidade por parte do diretor ou conselheiro.”

E, como gran finale, o prospecto previa que diretores, como Marcus Elias, poderiam ser indenizados pela própria LAEP em casos de “omissões ou atos” praticados por eles próprios. Ou seja: diante de uma avaliação incorreta do mercado feita por Marcus Elias que causasse prejuízos a empresa, o próprio Marcus Elias poderia ser indenizado por sua avaliação incorreta.

O prospecto, no entanto, não trazia a informação completa. O Estatuto Social da empresa, aprovado em 14 de agosto de 2007, é mais claro. O documento atesta que, caso qualquer um dos diretores fossem responsabilizados judicialmente por algum ato ou omissão no comando da empresa, a própria LAEP deveria indenizá-los, se necessário, com os bens da empresa. Eles estariam, assim, não só livres de “todas e quaisquer ações, custos, encargos, prejuízos, perdas e danos e despesas que eles, ou qualquer deles, seus herdeiros, testamenteiros ou inventariantes venham ou possam a vir a incorrer”, mas também poderiam pedir dinheiro por isso. “Tudo ilegal. Não tem nem discussão. Essas cláusulas ferem várias leis brasileiras, não estão acima delas. Não valem nada”, analisa Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

O prospecto é um documento que parecia alertar os futuros acionistas que tudo poderia dar errado. E deu.

A mão amiga do BNDES

Em dezembro de 2010, quando a empresa parecia em um beco sem saída, um salvador apareceu no horizonte: o banco público federal BNDES investiu 700 milhões de reais na criação da LBR — Lácteos Brasil, uma fusão de alguns laticínios brasileiros encrencados, entre eles a LAEP. O nome de Marcus Elias não constava entre os 10 conselheiros da companhia. Sem acento, ele perdeu poder, entregou suas fábricas aos novos diretores e foi afastado das decisões.

A nova aposta do banco estatal seria cumprir o plano que o próprio Elias havia proposto para a LAEP: unificar o setor leiteiro e formar uma gigante brasileira capaz de competir no exterior. A dinheirama do BNDES cumpria à risca o discurso político das “campeãs nacionais”, as multinacionais brasileiras bombadas com dinheiro público federal. Jorge Rubez, presidente da LeiteBrasil, associação que representa os produtores de leite, declarou à imprensa na época: “Se for para sanar os problemas, parabéns. Mas, se for para pegar dinheiro do BNDES e falir daqui a pouco, não dá.”

Em 15 de fevereiro de 2013 o juiz da 1ª Vara de Falências aceitou o pedido de Recuperação Judicial da LBR. Era o fim do laticínio do BNDES, e a terceira morte da Parmalat no Brasil.

Em resposta a esta reportagem, o BNDES declarou que fez um estudo de viabilidade que mostrava que investir na LBR seria um bom negócio para o país. O banco declarou que não pode, contudo, divulgar o estudo, alegando sigilo contratual. O BNDES declarou ainda que não sabe qual o valor de mercado da LBR, hoje.

Três dias após o pedido de recuperação judicial da LBR, Marcus Elias tentou fazer uma fusão da LAEP com a companhia Prosperity Overseas, também das Bermudas. Os minoritários temeram que a empresa sumisse com o que restava de ativos e alertaram as autoridades, alegando fraude na operação. Forçada por uma cautelar judicial emitida no Brasil a pedido do Ministério Público Federal de São Paulo e da CVM, a LAEP anunciou desistência da fusão por conta de “incertezas jurídicas”.

Documento emitido em 22 de setembro daquele mesmo ano e obtido por esta reportagem mostra, no entanto, que a Prosperity Overseas se tornou de fato uma das sócias da LAEP —  ao contrário do que a empresa havia declarado — , tendo adquirido mais de 40 milhões de ações Classe A da companhia em 21 de fevereiro daquele ano, se tornando o maior acionista da LAEP. A Prosperity Overseas pertence a outra empresa de nome semelhante, a Prosperity Investments Fund Inc, sediada no Panamá e dissolvida em 3 de dezembro de 2013. Seus diretores são ligados a centenas de outras empresas no país.

Em 23 de setembro daquele mesmo ano, os BDRs da LAEP foram suspensos pela Bovespa. A bolsa tomou essa decisão porque o fundo inglês GLG pediu a liquidação da companhia na Suprema Corte de Bermudas, onde a LAEP se encontra em estado de espera por decisões judiciais no Brasil. Em 19 de agosto de 2014, a LAEP parou de entregar documentos obrigatórios de prestação de contas ao mercado, o que reforçou a suspensão dos BDRs.

Quando abriu seu capital, a LAEP declarou que venderia seus BDRs para “investidores institucionais qualificados”. Logo nos primeiros meses de operação da empresa a maioria desses investidores venderam suas posições, colocando as ações no mercado comum. Cerca de 18 mil investidores minoritários esperam ressarcimento.

Ao longo dos anos, a CVM abriu dezenas de processos contra a companhia, o que não a impediu de atuar no mercado acionário, talvez, por tempo demais até que alguma medida definitiva fosse tomada. Em resposta oficial, a CVM disse que atuou para investigar a LAEP em 2013, mas não respondeu à pergunta que eu fiz: “Dados os diversos sinais de que a LAEP era uma empresa no mínimo problemática, porque a CVM demorou tanto tempo até tomar medidas que afastassem o risco dos acionistas perante os BDRs da LAEP na Bovespa?”.

Em 2010, a LAEP informou ter liquidado dívidas de 48 milhões de reais com credores. A auditoria KPMG vasculhou o livro-caixa da LAEP e diz não ter conseguido confirmar a existência de parte do que chamou de “supostas dívidas”. “Só esse dinheiro poderia nos pagar”, observa Valdemir João de Melo, que investiu 200 mil reais na empresa.

Por conta do parecer da KPMG, a LAEP culpou a auditoria pela queda no preço de suas ações e a processou. E perdeu. Em sua sentença, o juiz Gustavo Coube de Carvalho observou que o processo da LAEP contra a KPMG poderia parecer “estratégia diversionista, buscando desviar ou suspender, ao menos temporariamente, a atenção de acionistas e investidores que tenham sofrido prejuízos com os papeis da empresa”.

Apesar de contestada pela CVM à época, a empresa de Marcus Elias continuou operando, mesmo sob fortes desconfianças.

Em busca de alguma paz

No dia 2 de julho deste ano, a procuradora federal Karen Louise Jeanette Kahn denunciou Marcus Alberto Elias por uma série de crimes. Em sua denúncia, ela chama Marcus Elias de “o grande protagonista de toda a fraude”, mente por trás da “quebra fraudulenta da empresa LAEP, desviando, senão a totalidade, uma relevante parcela dos recursos captados na Bolsa de Valores, em benefício próprio e de familiares”. Para isso, Marcus Elias e os demais diretores da empresa teriam “se utilizado de mais de 100 empresas, para transferência de bens e direitos, supostamente também ao exterior, em clara gestão fraudulenta seguida de lavagem de dinheiro”. Segundo a denúncia, “a LAEP só serviu como veículo indispensável à prática do golpe ao mercado financeiro do Brasil”.

O documento vai além: acusa Marcus Elias — dono de uma “meteórica evolução patrimonial” — de comandar “autêntica formação de bando ou quadrilha”. Para a procuradora, o controlador da LAEP tem, em seu nome ou de familiares, ao menos 150 milhões de reais, incluindo imóveis, um helicóptero e um avião. “A LAEP sempre fez uso de informações falsas e/ou prejudicialmente incompletas, o que permitiu aos controladores e administradores da empresa empreenderem, de forma exitosa, fraudes e golpes contra o sistema financeiro nacional”, completa a denúncia.

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Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress
Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress

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Acolhendo o pedido da procuradora, naquele mesmo mês a Justiça ordenou que Marcus Elias se afastasse do mercado financeiro. Os magistrados também bloquearam seus bens, inclusive a herança a qual Marcus teria direito após a morte do pai, que seria um dos laranjas do empresário, segundo a acusação. Ela poderá ser usada para pagar os investidores prejudicados pela LAEP caso a Justiça assim determine. “Estamos rastreando o dinheiro”, me disse a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn em seu gabinete, ironicamente colado parede a parede com o escritório do advogado Sérgio Bermudes, onde Marcus Elias me recebeu.

A investigação já rastreou mais de 100 empresas de Marcus Elias, ou ligadas a ele, e agora tenta remontar a história. Ao menos um dos bens da LAEP, no entanto, pode ser encontrado sem muito esforço: em um vídeo no Youtube. A fazenda Cruzília, adquirida pela Integralat da empresa RE Partners do Brasil, à época de Marcus Elias, está a venda por 13 milhões de reais, dobro do valor pago pela Integralat. Documentos obtidos por esta reportagem mostram que, em 2010, a Cruzília foi repassada pela Integralat para outra empresa, a Symdogim Empreendimentos e Participações S/A. A Symdogim era comandada por Carlos Enrique Ferraz — que trabalhava para a própria Integralat antes de se aventurar como empreendedor.

O ex-controlador da LAEP se declara inocente de todas as acusações e procura levar sua vida com normalidade. A vida social de Elias não parou nem mesmo nos momentos judiciais mais críticos. Em julho de 2015, na semana em que o MPF oferecia denúncia contra ele, o empresário fez pose ao lado de um ramalhete de flores em um salão iluminado à luz de velas na França — terno bem cortado, mãos unidas em postura quase zen. A manchete do site de celebridades Glamurama dava o tom do momento: ‘Numa boa, Marcus Elias curte show de Caetano e Gil em Paris’.”

Em seu perfil publicado na Folha de S. Paulo, em abril de 2008, o empresário é retratado como dono de uma biblioteca de mais de mil livros. Entre eles, no entanto, conforme a reportagem, “é difícil encontrar um exemplar que trate de negócios”. Elias é mesmo fã de estudos religiosos. “A grande maioria das obras nas suas estantes versa sobre religião oriental e filosofia.”

Nem mesmo a busca pela iluminação consegue trazer paz de espírito a Marcus Elias. Grato ao lama tibetano Gangchen Rimpoche pelos conselhos recebidos, o empresário retribuiu com um presente contestado pelos investidores que se julgam lesados pela LAEP: Elias teria investido mais de 10 milhões de reais na construção de um templo budista em Campos do Jordão, em um terreno de sua propriedade, além de uma sede do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e outro imóvel na mesma cidade para um centro de reiki.

Reportagem da revista IstoÉ de outubro de 2010 retrata o monje Gangchen como “ex-companheiro de cela do líder chinês Deng Xiao Ping, que sucedeu Mao Tsé-tung na China”. Em sua denúncia à Justiça, a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn pediu a prisão preventiva de Marcus Elias, negada pelo juiz. Caso o ex-controlador da LAEP tenha a desfortuna de ser encarcerado, o lama pode ser um ombro experiente a recorrer.

***

Leandro Demori, 34, é jornalista investigativo e editor do Medium Brasil. Issao Nakabachi, 28, é designer e ilustrador do Colletivo.

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Investigação

Parte II: Soda no leite, meio bilhão na Bolsa

Naquele 22 de outubro de 2007 fazia quatro meses que os agentes da Polícia Federal se encontravam com ex-funcionários de duas cooperativas de Minas Gerais, que lhes explicavam como era operada uma fraude no leite. Os informantes haviam indicado o nome de um químico de São Paulo que seria o responsável por criar a fórmula da fortuna: água oxigenada, soda cáustica, ácido cítrico, citrato de sódio, sal e açúcar em proporções ainda desconhecidas que, quando adicionados ao leite, burlavam os controles de qualidade e aumentavam o volume vendido em até 8%. Os depoimentos indicavam que milhares de litros eram fraudados todos os dias e revendidos a fábricas.

A ação que envolveu a prisão de 27 pessoas mobilizou 200 policiais e servidores do Ministério da Agricultura. A fraude ultrapassou as fronteiras de Minas — as cooperativas envolvidas vendiam leite cru para diversas marcas, que depois distribuíam o leite processado em várias regiões do país. Entre elas estava a Parmalat.

Por decisão do governo, todos os lotes deveriam ser recolhidos dos supermercados e incinerados, às custas da empresa. “Só essa operação de recolher e destruir o leite, além de ficar sem vender até que o governo autorizasse, nos deu 300 milhões de reais de prejuízo”, me contou um alto executivo da LAEP que, por razões judiciais, não quer ser identificado.

O escândalo do leite seria prejudicial para qualquer marca, mas caiu como um míssil na Parmalat. A Polícia Federal deflagrou a Operação Ouro Branco uma semana antes de a LAEP abrir seu capital na bolsa. A coleção de boas notícias sobre a reestruturação do laticínio italiano cessou, e a marca foi parar nas páginas policiais.

A notícia derrubou pela metade o preço estipulado pelos papéis.

Em reunião de emergência realizada em 26 de outubro, os sócios decidiram baixar as expectativas e precificar as ações em R$ 7,50. A ideia de captar um bilhão de reais parecia distante frente ao escândalo do leite — contestado pela empresa, que processa a Anvisa alegando que o órgão teria utilizado um teste fora das normas para detectar a presença de aditivos químicos proibidos. O frenético 2007 não poderia, no entanto, passar em branco. Até o final daquele ano, 64 companhias abririam seu capital na bolsa brasileira, um recorde. A LAEP não queria se desgarrar da boiada.

Marcada para o dia 29 de outubro, a abertura de capital só aconteceu no dia 31. As ações que seriam negociadas pela LAEP na Bolsa de Valores de São Paulo tinham uma particularidade: não eram de fato ações. Chamados de Brazilian Depositary Receipts, ou BDRs, os papéis eram recibos das verdadeiras ações da empresa, negociadas, estas sim, na Bolsa de Luxemburgo, a partir daquele mesmo 31 de outubro. Vendendo-se ao mercado como empresa estrangeira, e aceita pela Bovespa como tal, a LAEP tinha o direito de negociar seus BDRs no Brasil. Os papéis vendidos no país tinham aspecto de ações — eram cotados na Bovespa sob o código MILK11 e apareciam para qualquer investidor, profissional ou amador, nos sistemas de compra e venda de ações, misturados a todos os papéis disponíveis no mercado — , mas, na letra fria dos contratos, os BDRs davam menos proteção e direitos a quem os comprasse.

Mesmo em meio ao furacão, a LAEP conseguiu vender seus BDRs na Bovespa. A empresa convenceu o que chamou de “investidores institucionais qualificados”, basicamente fundos de investimentos com apetite para o risco, dispostos a encarar uma companhia em recuperação judicial com a marca arranhada no mercado. A divulgação da abertura de capital deu ênfase a esses “investidores qualificados”. Parecia coisa de gente grande do mercado, fundos experientes que sabiam o que estavam fazendo. Não foram só os especialistas em risco, num total de 49 compradores, no entanto, que apostaram no futuro da LAEP. Ao bater do gongo, às 17 horas daquele mesmo 31 de outubro, a empresa liderada por Marcus Alberto Elias tinha levantado 507 milhões de reais na bolsa — também com dinheiro de 556 pessoas físicas, 7 pessoas jurídicas, 7 clubes de investimento e 44 outros fundos. O total de compradores do mais novo papel da Bovespa, o MILK11, foi de 706. A Parmalat estava de volta à Bolsa. Outra jogada de mestre.

“Nós temos a visão do negócio”

Apesar do revés de expectativas durante a abertura de capital, o meio bilhão amealhado na Bovespa serviria para dar fôlego à companhia. Deduzidas as comissões e despesas pagas durante a abertura de capital, 477,9 milhões de reais entraram no caixa da LAEP. Nas semanas seguintes, Marcus Elias colocaria seu plano de administração à prova.

A principal medida que Elias deveria tomar seria um investimento pesado na Integralat. Na página 76 do Prospecto Definitivo de Oferta Pública, documento que guiou os compradores antes da decisão de compra das ações, a LAEP garantia que investiria “aproximadamente 60% dos recursos captados, ou R$ 286,7 milhões, nas atividades da Integralat”. A Integralat não era um acessório na estratégia da nova Parmalat. Em anúncios ao mercado, seu logotipo aparecia colado ao da empresa italiana, em igual tamanho.

Mais da metade do dinheiro investido na Integralat seria gasto, segundo o Prospecto, com “compra de rebanho, investimentos em equipamentos e tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, melhoria da qualidade genética do rebanho e treinamento e qualificação dos produtores”. A jogada fazia sentido. Mirando os grandes frigoríficos nacionais, Marcus Elias esperava amarrar os produtores de leite em um sistema integrado que os tornasse parte de uma cadeia compacta e azeitada, aumentando a produção e diminuindo custos e problemas. A empresa saberia de antemão de quem estava comprando. Os produtores fariam parte da indústria. A ideia aparece diversas vezes no Prospecto publicado pela LAEP, e era uma das grandes apostas para o futuro da multinacional do leite.

Contrariando o documento assinado de próprio punho, Marcus Elias mudou de ideia. Em vez de seguir os planos que estimularam investidores a comprar os papéis da LAEP, o controlador secou as torneiras da Integralat e saiu pelo Brasil arrematando fábricas. Com o dinheiro, Elias concretizou aquisições iniciadas antes da abertura de capital e fechou novos negócios, comprando estabelecimentos para aumentar o tamanho do laticínio a fórceps. Em poucos meses a Parmalat tinha dobrado sua estrutura — era dona 14 fábricas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia. Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava.

O apetite de Elias preocupou o mercado. Em junho de 2008, o banco UBS Pactual — o mesmo que havia coordenado a abertura do capital da LAEP na Bovespa e que detinha 5,87% das ações da companhia — publicou um relatório arrasador. Discordando da estratégia de Elias, o UBS rebaixou o preço-alvo das ações: de R$ 11,50 para R$ 4. O argumento principal foi justamente o que parecia ser um abandono financeiro da Integralat, coração do projeto de recuperação da nova Parmalat. Como notou o UBS, dos 286,7 milhões de reais captados na Bovespa que deveriam ser investidos na Integralat apenas 80 milhões de reais de fato foram.

[olho]Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava[/olho]

A Comissão de Valores Mobiliários, responsável por supervisionar o mercado acionário, abriu processo interno e pediu explicações à LAEP. A empresa, em sua defesa, garantiu que seu estatuto social e também o Prospecto autorizavam a mudança de planos sem cerimônias. “É possível que eles tenham se dado conta que investir na Integralat era furada. A Parmalat tinha problemas urgentes de caixa, não poderia se dar ao luxo de imobilizar tanto dinheiro em fazendas que demoram para dar resultado”, me disse um analista de mercado que prefere não se identificar. “De todo modo, mostrou logo de cara que o comandante da LAEP não sabia o que estavam fazendo”, completou.

Mesmo nos investimentos abaixo do esperado feitos na Integralat, um dos negócios assinados por Marcus Elias — e que poderia suscitar dúvidas ao mercado — passou em branco aos órgãos de controle à época. Esta reportagem obteve documentação que comprova que em abril de 2008, menos de dois meses antes do relatório do UBS, a LAEP aprovou em assembléia o arrendamento, com opção de compra, de uma propriedade na cidade de Cruzília, em Minas Gerais. A fazenda Cachoeira, avaliada em cerca de 6 milhões de reais, seria efetivamente comprada pela Integralat. O arrendante da Cruzília, com o qual a Integralat negociara, era uma empresa chamada RE Partners do Brasil, de propriedade do próprio Marcus Elias. O controlador da LAEP assinou a compra de sua própria fazenda.

Pressionadas pela série de eventos, as ações da companhia tomaram um tombo arrasador: caíram 20% no dia do anúncio do relatório do UBS, e desceriam até bater 70% de desvalorização em poucas semanas. O papel, que havia sido vendido a R$ 7,50 em seu primeiro dia na bolsa, valia, naquele junho de 2008, menos da metade do valor original.

Em reunião com acionistas no dia 8 de julho, Marcus Elias foi questionado por Rodrigo Glatt, analista da administradora de recursos GTI, que tinha comprado ações da LAEP meses atrás. Rodrigo acompanhava a empresa de perto, esperando que ela recuperasse a marca Parmalat e desse a volta por cima.

“Vocês pensam em mudar alguma coisa considerando a queda que a ação teve nessas últimas três semanas?”, perguntou Glatt.

“Nós não entendemos esse pânico”, replicou Marcus Elias. “Por outro lado, claro, nós estamos prestando atenção em outros detalhes ou fatores psicológicos que podem ajudar a companhia”, emendou, sem mencionar o puxão de orelha do UBS.

Na mesma reunião, Glatt questionou se a estrutura organizacional da LAEP não estaria penalizando os papéis.

“E qual que é a vantagem de ter a holding nas Bermudas se todos os ativos estão no Brasil?”

[olho]“Nós não entendemos esse pânico”[/olho]

Marcus Elias explicou: “A vantagem é que nós podemos controlar a companhia mesmo não tendo 51% dela, certo? A grande vantagem é você poder controlar sem ter o controle matemático das ações.” E complementou, dando pistas de seus planos: “Se esse é um projeto de capital intensivo, talvez a ideia que nós tínhamos em outubro de 2007 é que muito provavelmente nós não ficaríamos em uma só emissão de ações, mas talvez viéssemos a mercado em certas datas para mais emissões. Então a estrutura atual trouxe esse conforto de poder voltar a mercado sem perder o controle, porque nós entendemos que nós temos a visão do negócio, nós temos o diagnóstico, nós somos os empresários, então temos que levar o projeto até o fim, para dele extrair a melhor valorização, o melhor benefício.”

Dois meses após a reunião, Marcus Elias decidiu se desfazer de ativos que ele recém tinha adquirido: a empresa Poços de Caldas e a licença da marca Paulista seriam negociados com um concorrente pelo mesmo valor de compra. Da aquisição dos negócios da Danone até a venda haviam se passado apenas quatro meses. Com o caixa sufocado — castigado também pelos altos custos do leite in natura em 2008 —, a companhia ainda fechou unidades e reduziu turnos. O investimento abaixo do esperado na Integralat gerou um mea culpa da LAEP, que em seu balanço de meio de ano admitiu estar em busca de um sócio para a subsidiária. A salvação da Parmalat parecia cada vez mais apenas um respiro antes do próximo mergulho.

***

Eram cerca de seis horas da manhã do dia 15 de agosto quando Marcus Elias levantou da cama e ligou a TV antes de encarar o dia. O empresário ficou paralisado diante da notícia que corria o mundo como rastilho de pólvora: uma das maiores e mais antigas instituições financeiras do planeta estava falida  —  era o fim do banco americano Lehman Brothers.

A Bovespa, como as demais bolsas do mundo, entrou em queda livre. As ações da LAEP, que já claudicavam, foram jogadas aos centavos. Marcus Elias teria uma reunião emergencial com investidores dois dias depois, na qual pediria desculpas e tentaria acalmar a todos. “Sinto muitíssimo pelos resultados que apresentei. Erramos no timing ao dobrar a companhia de tamanho em um momento totalmente adverso.”

O mercado não cedeu aos lamentos de Elias. Ao final daquela reunião, a Bovespa informou que uma grande administradora de recursos com sede em Delaware, nos Estados Unidos, queimaria todas as ações da LAEP que tinha em carteira, fazendo um leilão na bolsa. A fatia era portentosa: equivalia a 24,36% do total de papéis da companhia. O leilão derrubou ainda mais o valor das ações, que já acumulavam perdas de 80% em meio ano. Outros investidores com grande quantidade de papéis também pularam fora, entregando seus BDRs a preços muito menores do que haviam pago. Com o pânico, os bancos fecharam as portas; o crédito secou.

Sem saída, Marcus Elias olhou novamente para a Bolsa. Em pouco tempo, ele voltaria ao mercado emitindo mais ações em busca de dinheiro. A oferta atrairia milhares de pequenos investidores, que entrariam em um labirinto sem saída.

A casa da moeda 666

Era inverno, mas Otávio Vargas Valentim suava. Com quase 40 anos e sobrepeso aparente, o terno de advogado o castigava sob o sol abrasivo daquele atípico julho de 2012. Otávio carrega nos braços alguns volumes de processos judiciais que acabara de pegar no carro. A dois passos da porta de seu escritório, esbaforido, notou um estranho trajando touca e roupas pretas. O homem parecia um lutador de artes marciais. No mesmo instante ouviu o barulho de um Nextel — o estranho apertou o botão e ouviu uma voz masculina do outro lado confirmando o que parecia o alvo de uma missão: “É ele”.

Atabalhoado com os processos que carregava, o advogado respondeu no instinto quando o homem guardou o celular, caminhou até ele e o cumprimentou com um “bom dia”. Otávio tomou um soco no rosto e se estatelou na calçada. Os processos se espalharam pelo chão. Com os braços livres, ele tentou proteger o rosto enquanto era atingido pelo agressor a chutes. “Fui salvo pelo pessoal do escritório, a galera saiu correndo atrás do cara.”

O estranho entrou em um carro onde um motorista o esperava, e desapareceu.

Otávio Valentim conseguiu identificar seu algoz e dias depois o encontrou em uma delegacia, na qual prestou queixa. “Ele disse que bateu em mim porque eu olhei feio pra ele. Coisa sem sentido.” Para Valentim, a surra teria outro motivo: Marcus Alberto Elias. O controlador da LAEP seria o mandante da agressão.

Foi conversando com um gerente de banco que Otávio Valentim decidiu investir nas ações da LAEP depois da crise de 2008. A empresa estava em um setor relevante, a marca Parmalat tinha força e os papéis estavam demasiadamente desvalorizados, argumentou o gerente. Nas primeiras compras, Otávio fez algum dinheiro rápido. Gostou de operar as ações e decidiu investir pesado. Nos meses seguintes, no entanto, os papéis não paravam de cair, sem qualquer motivo aparente. Tentando recuperar os sucessivos prejuízos, Otávio investiu mais, e mais, e mais — gastou em BDRs da LAEP cerca de meio milhão de reais, triturando suas economias e destruindo seu moral.

As constantes quedas sem sentido no preço dos BDRs entre 2009, 2010 e 2011 levaram Otávio e um grupo de investidores minoritários à sede da empresa. Em 20 de janeiro de 2012, por volta do meio-dia, eles marcharam do quartel-general da companhia, na Vila Olímpia, zona sul da capital paulista, até a Bovespa, no centro da cidade, usando fantasias e máscaras do filme Pânico. No caminho, os investidores passaram pela loja de luxo Daslu, recém-adquirida por uma LAEP em estado financeiro catastrófico. A negociação levantou mais uma pulga atrás da orelha dos minoritários por um comportamento que eles reprovavam: a falta de transparência.

Marcus Elias teria comprado a Daslu, também em recuperação judicial, por 65 milhões de reais. No entanto, o empresário seria um dos credores da butique ─ ele teria emprestado dinheiro à loja por conta de sua amizade pessoal com Eliana Tranchesi, dona da Daslu, que viria a falecer um mês após o protesto dos minoritários. Elias propôs o abatimento de dívidas de 44 milhões de reais que a Daslu teria com duas de suas empresas, e prometeu investir 21 milhões no futuro.

O empresário criou uma Sociedade de Propósito Específico para assumir todas as dívidas da loja, e, como havia feito com a Parmalat, negociou abatimentos: os credores só receberiam 40% do valor devido, em 60 meses. Entre eles estavam muitos fornecedores da loja, que só veriam dinheiro se a nova Daslu desse lucro.

Durante uma assembleia de cinco horas, dois grandes credores defendiam que Elias deveria pagar um valor maior para levar a marca Daslu junto com a loja. A marca não estava no plano de recuperação judicial. Foram voto vencido: o banco HSBC, que tinha dívidas a receber, aprovou o plano inicial apoiado pelo voto de duas outras grandes credoras, a Chiplands e a Retail, ambas empresas ligadas ao próprio Marcus Elias. O empresário apresentou uma proposta e votou a favor de si mesmo. Assim como fizera com a Parmalat, ele assumiu o controle da Daslu em uma tacada perfeita.

[olho]A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações[/olho]

A revolta dos minoritários da Parmalat foi potencializada pelo caso Daslu. Sem informações claras por parte da LAEP, eles acreditavam estar financiando a compra da loja e perdendo participação na companhia por conta da emissão massiva de novos BDRs. A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações. Alegando estar pagando as antigas dívidas da Parmalat, a empresa, em vez de quitar os débitos em dinheiro, emitia BDRs e passava aos credores. O procedimento é considerado legal no Brasil, mas a LAEP bateu um recorde: fez 212 emissões de ações. “Eu nunca vi isso em nenhum mercado de capitais em qualquer país do mundo”, me disse um investidor experiente que preferiu não se identificar. Como era vista pela Bovespa como empresa estrangeira, a LAEP não era obrigada a cumprir a norma brasileira que protege os investidores dono de papéis da companhia: eles têm direito de preferência sobre novas emissões. Precisam ser informados antes que os papéis sejam vendidos no mercado, para saber se querem ou não comprar os novos BDRs — ou se querem pular fora de um negócio que, para sobreviver, está emitindo ações às dezenas.

As constantes emissões derretiam o preço das ações sem que os investidores soubessem, já que a LAEP, além de não dar direito de preferência, não prezava pela transparência. Quanto mais ações a companhia jogava no mercado, menor o valor unitário de cada uma delas. Otávio, que investiu 500 mil reais e era, portanto, dono de uma parte considerável da empresa, viu seu dinheiro evaporar. “Era uma casa da moeda”, disse Gisele Menezes, advogada da Abrimec, Associação Brasileira dos Investidores no Mercado de Capitais, criada por cerca de 80 minoritários que processam Marcus Elias para tentar reaver o dinheiro investido. O total investido pelos associados da Abrimec na Parmalat chega a 40 milhões de reais. “A perda de valor dessas ações não tem a ver com o risco inerente da Bolsa, tem a ver com fraude. A LAEP é uma empresa ilegal.” Gisele defende a tese de que a companhia não é uma empresa estrangeira e que não poderia negociar BDRs e se livrar da lei brasileira que dá mais proteção aos investidores. “Me diz uma fábrica da LAEP fora do Brasil?”, desafia.

Todas as fábricas, funcionários, fornecedores e clientes do laticínio estão, de fato, no Brasil — e toda a sua gestão é tocada em São Paulo. A companhia declarava, no entanto, sua sede legal nas ilhas Bermudas, mais precisamente na Clarendon House, número 2 da Church Street, em Hamilton.

O endereço não é exatamente o dos escritórios da LAEP: nenhum executivo da empresa despacha cotidianamente da principal rua da ilha, onde igrejas, um teatro, bares, o mercado municipal, edifícios do governo, lojas e agências de automóveis se enfileiram em um leve aclive de mão única. O prédio onde a LAEP declara endereço abriga o escritório de advocacia Conyers Dill & Pearman, especializado em auxiliar juridicamente firmas de todo o mundo.

A companhia não envasava leite nas Bermudas. Sua presença no país se limitava a administrar uma caixa postal de número sugestivo: 666.

Corra ou morra

As avalanches de novos papéis obedeciam a critérios sigilosos que a LAEP estabelecia com cada um dos credores, sem comunicar aos acionistas. Em tese, os BDRs dados em troca de dívida poderiam ser mantidos pelos credores, que esperariam, caso desejassem, uma valorização dos papéis conforme a Parmalat se recuperasse. Os credores se tornariam investidores da empresa, e apostariam no futuro dela junto com seus diretores e os demais acionistas.

Não era assim que o plano funcionava, no entanto. O Risca Faca teve acesso a alguns desses contratos. Um deles, entre a LAEP e a empresa Vida Indústria de Laticínios LTDA, de Goiás, assinado em 29 de janeiro de 2010, é ilustrativo. A LAEP reconhece uma dívida com a Vida Laticínios de 2,1 milhões de reais. Para quitar, a LAEP emitiria BDRs no valor da dívida — um programa de conversão de dívida em capital. No entanto, a Vida tinha 15 dias para vender os papéis na Bolsa, sob pena de ver sua dívida quitada sob a cotação dos BDRs no oitavo dia após a assinatura do contrato. Caso o valor dos papéis caísse, a Vida perderia dinheiro. A dívida poderia virar nada.

Sob essas condições, era evidente que a Vida — e outras empresas — não esperariam para ver no que ia dar: assim que colocavam as mãos nas ações, os credores corriam para a Bovespa e despejavam os papéis no mercado. Com excesso de oferta, os BDRs se desvalorizavam.

Dezenas de procedimentos como esse foram feitos ao longo dos anos, jogando milhões de novas ações no mercado, derrubando o preço dos papéis dia após dia, reduzindo a participação e o investimento dos acionistas a pó. Em 2011, ano anterior ao protesto dos minoritários, o preço dos BDRs na Bovespa havia caído mais de 90%.

O contrato com a Vida Laticínios tinha ainda uma cláusula peculiar: caso a empresa captasse na bolsa um valor acima daquele que a Parmalat lhe devia, era obrigada a depositar a diferença na conta da própria LAEP. Além de quitar as dívidas às custas dos investidores — muitos deles compradores empolgados de BDRs por conta de notícias animadoras sobre a Parmalat publicadas na imprensa nas mesmas épocas das novas emissões de ações —, a LAEP ainda fazia caixa com as operações com alto potencial de derrubar o preço de seus próprios papéis no mercado.

A emissão de bilhões de novos papéis serviu também para remunerar diretamente diretores da LAEP para além de seus salários, mesmo em momentos de crise extrema. Documentos mostram que ao menos uma vez a companhia usou do expediente: em 20 de fevereiro de 2009 o Conselho de Administração aprovou a emissão de 400 mil dólares em BDRs para “incentivar o desempenho de determinados executivos da companhia”, sem divulgar seus nomes ou cargos. Os executivos poderiam ficar com os BDRs em carteira, esperando que se valorizássem, também, por conta do próprio trabalho na empresa. Quanto melhor dirigissem a companhia, mais as próprias ações se valorizariam. Em tese, o Plano de Incentivo de Ações deveria dar novo gás aos executivos e melhorar suas performances para o bem da LAEP. Menos de um ano depois de serem bonificados, em 14 de janeiro de 2010, no entanto, nova reunião do Conselho presidido por Marcus Elias autorizou que “determinados empregados” – novamente sem especificar nomes e funções – pudessem vender os BDRs que a companhia havia presenteado.

Pelos cálculos da Abrimec, a LAEP captou, entre sua abertura de capital até a última das 212 emissões de ações, cerca de 2,5 bilhões de reais. “Esse dinheiro sumiu. Cadê? Sumiu. Só o Marcus Elias pode dizer onde esse dinheiro está”, provocou Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

Uma carona para Naomi Campbell

A terça-feira estava particularmente abafa naquele 27 de outubro de 2015 quando o táxi entrou na avenida Berrini até parar no engarrafamento. Desci do carro antes do endereço pretendido e caminhei por meia quadra até entrar no elevador e apertar o andar de uma grande administradora de recursos. A empresa investiu tempo e dinheiro na LAEP em 2008, quando as boas notícias que saiam na imprensa pareciam levar o laticínio de volta aos trilhos. “Temos um perfil de arriscar, mas sabíamos que por ter um mercado enorme e uma boa marca nas mãos a Parmalat tinha condições de voltar com tudo”.

Na mesa estão dois dos sócios da administradora. Em um microcosmo como o do mercado de capitais, onde todo mundo se conhece, é natural que eles prefiram permanecer anônimos. “Tinha toda aquela ideia da LAEP de investir na Integralat, na In Vitro, melhorar a produtividade e integrar o setor. Aquilo parecia um bom plano”, disse um dos sócios, mais falante. O outro pontuou: “Levantamos a ficha do Marcus Elias, por assim dizer, e realmente não tinha nada que mostrasse que ele era um pilantra”.

Antes de cruzar o caminho da LAEP, os dois haviam investido em ações da Perdigão, e acreditavam que o laticínio poderia seguir os passos do frigorífico, consolidando a cadeia e se tornando uma gigante do setor. Em agosto de 2008, com a debandada dos grandes investidores, os sócios resolveram vender seus BDRs e remoer o prejuízo.

A história parecia mais uma das tantas de má gestão empresarial quando, meses depois, um deles viu uma pequena nota no jornal noticiando que a LAEP estava emitindo stock options — a possibilidade de alguns gestores e diretores da empresa de comprar ações a preços menores do que o valor dos papéis no mercado, e revendê-los se desejassem. “Aquilo me subiu o sangue. Na hora eu liguei pra um dos diretores e perguntei, por curiosidade, por que os diretores poderiam comprar ações a 1 centavo de dólar quando a cotação dos papéis na bolsa era muito maior do que aquilo, algo em torno de 70 centavos.” A pergunta ficou sem resposta. “Percebi naquele momento que tudo era um grande golpe. Os caras estavam emitindo ações para si mesmos a 1 centavo de dólar e vendendo no mercado a valores superiores, lucrando em um momento péssimo da companhia”, avaliou um dos sócios.

Não satisfeito — e sabendo da situação crítica da LAEP — ele decidiu ir até o aeroporto de Jundiaí, onde Marcus Elias teria um avião de primeiro nível guardado em algum hangar. “Pensei: se a coisa está tão feia, e ele é comprometido com o futuro da empresa, por que não vende o avião?”. A tática usada pelo sócio da administradora de recursos para descobrir se a aeronave existia foi insólita. “Perguntei para uma moça que trabalhava no aeroporto se ela já tinha visto a Naomi Campbell por lá. Ela me disse que sim, e mostrou onde. Fui ver e lá estava um Citation 10”. A aeronave tinha preço de mercado de 12 milhões de dólares, um respiro e tanto em um caixa vazio como o da LAEP. Marcus Elias chegou a anunciar que venderia o avião, mas sua venda efetiva, se houve, jamais foi divulgada. Em 2013, a justiça bloqueou três aeronaves da empresa, sem declarar marca ou modelo.

A pergunta sobre Naomi Campbell fazia sentido. Marcus Elias era um dos empresários mais colunáveis de São Paulo — costumava desfilar em festas com suas namoradas, em geral, modelos. Uma delas foi a inglesa Naomi Campbell — affair que Elias sempre negou. Em 2008, ao ser questionado pela colunista da Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, sobre o romance, Elias desconversou: “Querida, vamos falar de leite?”.

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Investigação

Parte I: Quem é Marcus Elias?

Marcus Alberto Elias entrou na ampla sala de reuniões como se tivesse acabado de sair de um yacht club: camisa polo e calças azuis, tênis baixo sem meia, boné de cotelê tapando a cabeça calva e óculos de armação leve — tudo de boa marca. Preparo o gravador enquanto ele se acomoda tirando o boné e passando uma das mãos sobre a careca bronzeada. A conversa duraria quase três horas.

Mas ele não está aqui para me dar uma entrevista.

Sentado na cabeceira de uma longa mesa, Elias, 56 anos, é observado por uma foto do papa Francisco, emoldurada sobre o aparador às suas costas. Seu advogado e dono do escritório, Sérgio Bermudes, aparece na imagem, ajoelhado, beijando a mão do santo padre. Na conversa, gravada em um notebook e assistida por dois advogados e uma assessora de Elias, o principal executivo da Latin America Equity Partners, a LAEP, empresa que arrematou a Parmalat brasileira em 2006, se debruçaria para frente e para trás, amaciando ou levantado o tom de voz conforme a narrativa, por vezes ficando a poucos centímetros do meu rosto enquanto seus defensores manuseavam papéis e fuçavam em computadores. Ele me recebeu com a condição de que nenhuma palavra sua poderia ser usada nesta reportagem.

Para o Ministério Público Federal, o homem à minha frente é “o grande protagonista de toda a fraude”, acusado de ser a mente criativa por trás de um minhocário de túneis financeiros por onde teriam escapado 2,5 bilhões de reais, captados de fundos de investimentos e de milhares de pequenos investidores que se consideram vítimas de uma arapuca. Os advogados de Marcus Elias discordam da tese: o controlador da LAEP não só seria inocente, como também vítima de uma armação engendrada por um “fundo abutre” interessado em destruir a empresa e se apropriar de suas fábricas.

Os fatos narrados a seguir foram obtidos a partir de relatos de fontes da cúpula da LAEP, confirmados por documentos privados — e-mails trocados entre advogados, executivos e acionistas minoritários —, além de entrevistas, materiais produzidos pela imprensa, arquivos pessoais e documentos públicos. A maioria das pessoas com que conversei preferiu o anonimato.

***

Marcus Alberto Elias não era um personagem da mídia quando fez seu primeiro milhão. Pouco mais de 15 anos haviam passado desde a promessa que tinha feito a si mesmo após a falência do pai, Mário, um contador que pilotava uma empresa de ônibus em São Paulo na década de 70. Elias jurou que iria ganhar dinheiro para nunca mais caminhar na penúria.

Foi com empregos no mercado financeiro que ele começou a levantar fortuna nos anos posteriores à expulsão do colégio por rebeldia, efeito psicológico da derrocada financeira da família.

Aos 30 anos, o segundo dos cinco filhos de um casal de imigrantes libaneses trocara a inquietação juvenil por uma vida de magnata.

Seu currículo sugeria o estereótipo do homem médio do mercado financeiro: graduado em Economia pela Universidade Mackenzie, Elias se apresentava como um dos fundadores de um grupo que gerenciava 225 milhões de dólares para investimentos na América Latina. A montanha de dinheiro em suas mãos se devia à experiência que o financista teria em cargos de gerência e direção de bancos como Credibanco, Pactual e SRL, com ênfase, como garantia seu currículo oficial, “na condução de reestruturações empresariais”.

Terno e gravata não eram, no entanto, suas roupas prediletas. O traje sport com o qual me recebeu no escritório de seu advogado nas imediações da Av. Paulista, em São Paulo, é seu estilo habitual, complementado costumeiramente por uma japamala, espécie de rosário budista de 108 contas que servem para marcar cada etapa de uma oração. Ao completar o percurso meditativo, reza a lenda, o discípulo alcança um estágio superior de consciência.

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Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress
Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress

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Elias não é adepto das japamalas por moda ou capricho. Em 2006, depois de vagar por religiões de diversos santos em busca de paz de espírito, o empresário conheceu o lama tibetano Gangchen Rimpoche, e não desgrudou mais da divindade: viajou com o líder espiritual por Tibete, Índia e Nepal, ouvindo seus conselhos e iluminações. A partir daquele momento, Marcus Elias passou a consultar o monge — uma reencarnação de um grande médico, segundo o budismo — antes de tomar qualquer decisão importante. “Ele é muito espiritualizado”, garante Fernanda Barbosa, amiga íntima de Elias.

[olho]Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares[/olho]

O empresário fez da religião parte fundamental de sua rotina. Em abril de 2008, um perfil de Elias publicado na Folha de S. Paulo dava ideia da vida que ele levava: meditação por volta das 6 horas da manhã, seguida da prática do tai chi chuan. Depois, atividades físicas corriqueiras: natação – 2.000 metros diários na piscina de casa –, esteira e musculação, acompanhado por seus três personal trainers.

As excentricidades conviviam bem com atividades mais mundanas. Diz a Folha:

“Marcus Elias pode ser visto quase todos os dias nos melhores restaurantes de São Paulo apreciando um dos mais de mil vinhos de sua adega — ele leva suas próprias garrafas — e está sempre vestindo grifes internacionais como Armani, Prada, Gucci e Ermenegildo Zegna. Fora do trabalho, não gosta de falar de negócios.

O som ambiente está sempre ligado em música popular brasileira. às vezes, promove festas em casa para os amigos. No seu aniversário, sempre contrata o MPB 4 para tocar. Entre obras de arte de pintores como Mário Gruber e enormes esculturas que trouxe da Tanzânia, é lá que ele pratica seu lado esotérico.”

O texto retratava um personagem já distante do anonimato comum às pessoas do mercado financeiro. Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares, seu rosto começava a ser exposto em sites de fofocas em meio à elite paulistana, ladeado quase sempre por jovens mulheres do mundo do entretenimento e das passarelas. A porta para a fama se abriu em meados de 2006, quando Elias comprou a operação brasileira da Parmalat, a maior e mais famosa marca de leite do país.

Fincada em dívidas, a Parmalat definhava em um escândalo financeiro bilionário envolvendo a matriz italiana. A operação no Brasil caminhava para o precipício levando junto milhares de credores quando Elias apareceu e arrematou o laticínio apresentando um plano de recuperação agressivo. Suas ideias para reerguer a Parmalat animaram o mercado. Em pouco tempo, a companhia voltaria aos intervalos comerciais mais caros da TV — e frequentaria as manchetes da imprensa nacional com uma série de acontecimentos inimagináveis.

Sentindo-se enganada pelo empresário, uma das fontes ouvidas para esta reportagem aponta Marcus Elias como a versão brasileira de Jordan Belfort, empresário americano autor de uma autobiografia que virou filme. “Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”

O salvador da pátria

A principal anedota que circulou pelos corredores da Procuradoria de Milão sobre a quebra do laticínio italiano Parmalat seria contada pelos investigadores que tomaram a sede da empresa em dezembro de 2003: de paletó, gravata e sapatos lustrosos, os principais executivos da multinacional destruíam a golpes de marreta os teclados e monitores dos computadores da tesouraria, na esperança de eliminar provas.

São milhares as páginas da investigação que contam a história contábil da maior empresa leiteira do mundo para além do anedotário policial.

Com um plano de expansão planetário, no final dos anos 1990, sem o mercado desconfiar, o endividamento da Parmalat ameaçou explodir. Desesperados com a possibilidade de publicar um balanço negativo e sem ter de onde tirar recursos, os diretores partiram para uma saída engenhosa: resolveram fabricar dinheiro.

Diversos italianos compraram ações e títulos da empresa baseados em balancetes falsos emitidos pela companhia, muitos deles grosseiramente fabricados com tesoura, papel, cola e caneta nos salões da sede da empresa em Parma. O laticínio sangrou por dentro sem que ninguém notasse até que, no dia 17 de dezembro de 2003, um banco italiano descobriu que uma conta com 500 milhões de dólares depositados em Nova York – usados como garantia pela Parmalat para emitir novos papéis na Itália – não existia. Foi como apertar o botão do fim do mundo.

Pelos cálculos finais, o buraco nos cofres chegava a 3 bilhões de euros, capital que deveria estar no caixa da Parmalat, mas só existia nos documentos falsificados. Dinheiro inventado.

A catástrofe da Parmalat na Itália estremeceu o Brasil. Mais de 10 mil credores  —  muitos deles pequenos fornecedores de leite  —  esperavam receber 2,5 bilhões de reais da empresa, que começou a claudicar no mercado. Inerte, a fábrica brasileira operava em marcha lenta enquanto esperava nos tribunais de recuperação judicial por um salvador. Era a última instância antes do fim. A recém aprovada Lei de Falências, que pretendia evitar que empresas sumissem deixando dívidas impagáveis, teria na Parmalat do Brasil sua primeira grande cobaia.

Em maio de 2006, a LAEP, sediada nas ilhas Bermudas, se apresentou ao leilão do laticínio italiano como uma empresa de private equity altamente vencedora  —  seu currículo declarado incluía recuperação de companhias de diversos setores, de pescados a aluguel de carros. Era sua especialidade: comprar firmas em dificuldade, dar um rumo aos negócios e encontrar novos compradores quando as coisas endireitassem. Após analisada pela assembleia de credores, a proposta da LAEP venceria os concorrentes. A Parmalat do Brasil seria salva.

No comando do laticínio, Marcus Elias conseguiu um feito inédito: negociou um desconto de 83% com bancos credores, pagando o saldo à vista, em vez do parcelamento em 12 anos negociado antes da LAEP entrar na jogada. A dívida foi quitada quase integralmente com recursos da própria Parmalat, levantados com a venda da Batavo para a Perdigão, e de plantas usadas por uma unidade de tomates e vegetais, alguns centros de distribuição e fábricas de menor porte. Com a fome dos bancos saciada, ainda restavam os fornecedores de matéria-prima, mas Elias teria um plano para eles em um futuro não muito distante.

[olho]“Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”[/olho]

Apesar do volume de dinheiro divulgado nas várias negociações passar da casa do bilhão, na prática a LAEP tirou do próprio bolso 20 milhões de reais para arrematar uma empresa que, mesmo em crise, havia lucrado 25 milhões nos seis primeiros meses daquele ano. Manobra de mestre.

O primeiro ano de Marcus Elias no comando da Parmalat foi, a julgar pelas notícias publicadas na imprensa, de lua de mel. Logo após arrematar o laticínio, Elias deu declarações públicas garantindo que novos investimentos seriam feitos, e que o objetivo da empresa era crescer 60%. A imagem da LAEP no mercado, passada por seus controladores em comunicados e entrevistas, era poderosa: o fundo teria à disposição 300 milhões de dólares, dinheiro que viria de investidores estrangeiros. Em poucos meses, Elias começou a mostrar resultados.

A participação da Parmalat no mercado de leites longa vida, antes na casa dos 6%, saltara para 12,7%, fazendo com que a empresa reassumisse a liderança perdida para a Elegê em meio à crise de confiança. A captação de leite aumentara, o número de clientes subia a cada mês, e o endividamento havia sido rebaixado a níveis mundanos, compatíveis com o tamanho da companhia. O custo de mão de obra caíra drasticamente por causa do enxugamento do número de funcionários a menos da metade em relação aos anos antes da crise. Com as medidas, o lucro da Parmalat reapareceu nos balanços, e a empresa finalmente via uma saída para a insolvência. Seus executivos acreditavam que o valor estimado da controlada LAEP, que até pouco tempo atrás era um atoleiro de dívidas, beirava os 600 milhões de dólares em 2007. Caso encontrasse um comprador, Marcus Elias teria feito o maior negócio de sua vida.

Mas Elias não queria encontrar um comprador. Seu objetivo era duplicar o número de fábricas, que eram sete, e transformar a companhia em uma superpotência do leite. A estratégia previa uma série de aquisições de indústrias menores e investimento pesado em genética animal, para melhorar a produtividade das vacas brasileiras. O grande salto seria dado naquele mesmo ano de 2007. Em vez de gastar os dólares que o fundo LAEP declarava ter em caixa, no entanto, a empresa recorreu ao mercado.

Em 26 de abril de 2007, a Parmalat Brasil emitiu papéis no valor de 180 milhões de reais para, segundo documentos da própria companhia, “capital de giro, realização de investimentos (incluindo a manutenção do parque fabril), pagamento antecipado de credores no âmbito do Plano de Recuperação Judicial e aquisição de maquinário e tecnologia”. O comprador desses debêntures — títulos de dívida que seriam pagos em 36 parcelas, com juros —  foi um fundo de investimentos do grupo Morgan Stanley. Caso não pagasse, a Parmalat cedia ao Morgan Stanley o direito a receber dívidas dos clientes do laticínio, no valor de 270 milhões de reais.

Com dinheiro em caixa, Marcus Elias foi às compras. Dois meses após a emissão dos debêntures, em julho, ele assinou um contrato de arrendamento da Cooperativa de Frutal, em Minas Gerais. O acordo valia por dez anos e incluía os bens utilizados na industrialização e envase de leite, além de imóveis e benfeitorias. Três semanas depois, o executivo assinaria mais dois contratos: compra de 52,3% da In Vitro, sociedade que produzia e comercializava embriões bovinos, e compra da Integralat Agro — 28 mil hectares de propriedade rural localizados na cidade de Bonito de Minas, também em Minas Gerais.

In Vitro e Integralat Agro eram controladas por uma firma fundada pela LAEP no final de junho daquele ano, a Integralat. O objetivo da empresa era investir em tecnologia para melhorar a bacia leiteira no Brasil, inclusive por meio de clones bovinos. À época, a LAEP divulgou que sua controlada Integralat tinha “cerca de 66 mil produtores espalhados pelas principais bacias leiteiras do Brasil”.

O apetite da LAEP gerou números grandiosos em manchetes, comunicados à imprensa e notícias positivas sobre o futuro da empresa. O arrendamento e as aquisições eram parte fundamental da preparação de terreno que Marcus Elias planejava para a segunda fase de sua administração. Ele recorreria novamente ao mercado em busca de dinheiro. Só que desta vez, o caminho seria a bolsa de valores.

Em outubro daquele ano, a LAEP abriria capital e atrairia milhares de investidores. Nada indicava que a chegada da companhia na bolsa seria o começo do fim.