Elas são fofas, amam cultura japonesa, vestem roupa de boneca, capricham na maquiagem, tiram muita foto fazendo “V” com os dedos e dão um show de confiança e auto expressão. As adeptas do universo kawaii são as pessoas mais fofas possíveis. Seja vestida de boneca ou de cosplay de Sailor Moon, todo mundo tem seu destaque na Mimi Party, evento que reuniu os adoradores da cultura kawaii japonesa em São Paulo.
Kawaii significa “fofo” em japonês e virou uma expressão para definir a cultura em torno da adoração da “fofura”. Que o Japão é apaixonado por coisas fofas todo mundo sabe. Essa fixação pela fofura surgiu há muito tempo no país, desde os anos 20, quando a maionese Kewpie, que tem um bebezinho com asas na embalagem, esgotou das prateleiras japonesas. Consequentemente, os amantes da cultura japonesa no Brasil acabaram aderindo ao movimento kawaii através dos animes, mangás e cosplay.
Sob a organização da embaixadora kawaii no Brasil, Akemi Matsuda, a Mimi Party está em sua segunda edição e além de ser um ponto de encontro para lolitas e cosplayers, também é um ambiente para celebrar o amor e a auto expressão. Vestida de rosa da cabeça aos pés, Akemi nos conta que o kawaii é uma cultura cujo objetivo é espalhar a paz pelo mundo. “Ser kawaii é expressar quem você é no interior através das roupas”, disse Medore Ruiz, umas das apaixonadas pelo estilo.
Após comermos uns sanduíches cor-de-rosa e uns sushis em formato de coração, batemos um papo com algumas das meninas mais kawaiis da Mimi Party sobre aceitação e Sailor Moon. E, no melhor estilo Harajuku, tiramos as polaroids mais fofas do evento.
Sei, 37 anos Se monta desde 1998. Seu look é a Sailor Moon com um kimono misturado com lolita.
“Eu comecei sendo cosplay, até que criei confiança suficiente pra me aceitar. Hoje sou Lolita.”
Stephanie de Paula, 20 anos Se veste kawaii há 3 anos.
“Eu me visto assim em eventos e também aos finais de semana. As pessoas ficam olhando, ou vem falar que eu pareço uma boneca e às vezes me tratam mal. Hoje mesmo o motorista do ônibus não abriu a porta pra mim.”
Jeniffer, 17 anos e Thainá, 18 anos
Akemi Matsuda, embaixadora kawaii no Brasil
Tamara, 24 anos Lolita desde 2010.
“Sempre fui apaixonada pela cultura japonesa e sempre amei bonecas. Foi aí que decidi ser Lolita. (…) Eu me visto assim apenas em eventos porque, infelizmente, ainda tem muito preconceito no Brasil, as pessoas olham feio.”
Juliana, 18 anos
“Eu comecei a me vestir assim pra me sentir bonita. Todo mundo quer se sentir como uma princesa, né.”
Miki e Kuma, 20 anos
“Eu amo maquiagem e amo anime. Por que não juntar os dois?” (Miki)
“Eu fui juntando várias referências que eu gostava e montei meu estilo. Esse, por exemplo, é um vestido que uso pra ir a faculdade. Às vezes a gente vai pra Augusta de lente de contato e brilho na cara.” (Kuma)
Zakuro (25 anos) e Haruka (23 anos)
“Me vestir assim é uma libertação. É uma maneira de expressar quem eu sou por dentro através do exterior.” (Zakuro)
Na calçada, no meio de uma pequena multidão, três sósias do Michael Jackson rodopiavam ao som de “Bad”. Dois Michaels adultos de regata branca dominavam a coreografia característica, mas era um terceiro Michael, de cerca de 6 anos, que roubava a cena com movimentos ainda mais enérgicos. A poucos metros da performance, ônibus passavam correndo e pedestres andavam mais devagar que o habitual, olhando atentamente para a telinha brilhante de seus celulares. Anoitecia na Avenida Paulista. “Olha, acabei de pegar um Grimer de CP 240 ali na frente da Renner” — uma voz desconhecida interrompeu o tumulto, se gabando da conquista e ao mesmo tempo alertando a reportagem, que, por sua vez, tinha acabado de capturar um monstro idêntico, só que com mais CP – “combat power”. Pokémon Go chegou ao Brasil.
Quem começou a se familiarizar com o jogo entende a situação do jovem que se empolgou com o tal do Grimer, esse monstrengo imenso, provavelmente feito de chorume e piche. Não custa nada avisar quando um aparece. É que no dia 3 de agosto, quando Pokémon Go finalmente foi lançado aqui, sua produtora, a Niantic, revelou outra novidade incrível: uma enorme infestação de Zubat, o pokémon em forma de morcego. Ele está em todos os lugares, ele está no meio de nós, corações ao alto! Desde então, a rotina dos caçadores consiste em andar pelas ruas com expectativa, reagir à vibração do smartphone e encarar quase chorando o nonagésimo sétimo voo de um Zubat selvagem. E, se não é Zubat, é Pidgey — uma pombinha —, se não é Pidgey, é Weedle — aquela lagarta não tão simpática quanto o Caterpie.
Zubats à parte, Pokémon Go entrega mais ou menos o que a internet tinha encomendado: tira o jogador de casa e o convida para uma gincana imprevisível pelo mapa do mundo real, agora povoado pelos simpáticos monstrinhos de bolso — desde que seu plano de dados colabore. Se a inovação da realidade aumentada já deixa qualquer um meio perdido, a interface com poucas instruções e os recursos inacabados ajudam, mesmo que por acidente, a criar um clima de história em construção, uma mistura de futuro caricato com o passado em que os videogames não vinham com tutorial ou setinha de “vá por aqui”. A sensação é de desbravar um terreno em que tudo pode acontecer, mas talvez você esteja no transporte público e acabe perdendo o PokéStop.
Os PokéStops, aliás, são as estruturas mais importantes no mapa da dimensão paralela. Representados por ícones azuis espalhados pela cidade, oferecem pokébolas, poções e outros acessórios necessários para a jornada. Já os PokéGyms são os ginásios em que treinadores mais experientes enfrentam outros times. O segredo fitness é que não adianta escolher apenas uma dessas áreas. Cada região de uma cidade guarda tipos específicos de pokémons, alguns gerados de acordo com seu terreno. Em São Paulo, dizem que a valiosa Eevee anda pelos arredores de Pinheiros e o clássico Pikachu tem aparecido com mais frequência na Barra Funda. Pokémons de água, como o pato Psyduck, a tartaruguinha Squirtle e o Magikarp — uma carpinha aparentemente inútil que evolui e vira Gyarados, um dos pokémons mais fortes —, se escondem em áreas como as margens do lago do Parque do Ibirapuera.
Piquenique de Pokémon
O famoso parque paulistano foi um dos locais visitados pela reportagem do Risca Faca no primeiro fim de semana de Pokémon Go no Brasil. Na manhã do sábado, o Planetário era uma das áreas mais povoadas: normalmente vazia, a pequena praça de 50 m² em frente ao prédio — inaugurado em 1957, trata-se do primeiro planetário da América Latina, mas ninguém dava uma pokébola para isso — concentrava mais ou menos 300 jogadores. Alguns preferiam ficar sentados em grupo no gramado, como em um pátio de escola, ignorando qualquer proposta de atividade física.
Por algum motivo que só a Niantic sabe, calhou de essa área contar com quatro PokéStops grudados um no outro, o que garante aparições e munição infinitas. Para dar uma dimensão, há municípios inteiros com a mesma oferta: “Lá na cidade da minha família, Santa Isabel, a 50 minutos de São Paulo, quase não tem PokéStops. Tem um numa praça cheia de moradores de rua que agora dividem o espaço com um monte de nerd com celular; tem outro na frente de um lava-rápido e um no topo de um morro altíssimo. O pessoal lá já criou até uma hashtag para pedir mais no Facebook”, conta o consultor em saúde coletiva Augusto Mathias, de 33 anos, que tinha acabado de capturar um Magmar.
O assunto no Planetário do Ibirapuera deixou de ser a Via Láctea, os pulsares ou as constelações: agora, os frequentadores só querem saber “onde diabos está esse Tangela que não apareceu para mim?”. Nesse tipo de ambiente, um monstro mais poderoso costuma ser recebido com gritinhos irracionais como “tem um Jigglypuff aqui!”, “Pinsir! Pinsir”, “Weepinbell!” e por aí vai. Pode parecer um fenômeno meio idiota para quem não conheceu os pokémons do desenho ou do jogo de Game Boy da década de 90, mas as interjeições adolescentes do passado voltaram ao vocabulário de crianças e adultos. E não pega mal.
Já o Parque Trianon, na frente do MASP, agora rima com Parque Pokémon. O restinho de área verde na região da Paulista foi agraciado com seis PokéStops bem próximos uns dos outros. No domingo, quando a Avenida Paulista fica aberta aos pedestres, a maioria dos transeuntes — possivelmente mais que o dobro do usual — se reunia por lá em busca de uma boa safra. Pena que ali, ao contrário do Parque do Ibirapuera, só tinha “Zubat, filho da puta”, nas palavras dos envolvidos. Entre centenas de jogadores que se enervavam com a invasão de morcegos, deu para observar um casal de meia idade protagonizando uma cena “pokémônica”: enquanto ela contava que o Trianon era um dos únicos remanescentes de Mata Atlântica virgem na cidade, ele segurava o celular com uma mão e usava o dedo indicador da outra para tentar arremessar uma pokébola e capturar um… Zubat, claro.
Como sugerem a tela inicial do app e outros avisos, a desatenção pode ser um efeito colateral da novidade. Conversas ficam para depois. Belezas naturais, produtos à venda e caminhões cruzando a avenida são perigosamente ignorados. É nesse cenário que surge a lenda urbana brasileira com direito a trocadilho, o “bulbassalto”. E faz sentido: com tanta gente circulando pelos mesmos pontos azuis e perdendo o medo de andar com o celular nas mãos, já que o jogo precisa estar sempre aberto para computar qualquer coisa, um assaltante em potencial (e talvez jogador de Pokémon Go, como todos nós) ganha várias oportunidades. Mas os treinadores não se preocupam e seguem viagem. Perto da galeria Top Center, uma Clefairy virtual dividia espaço com um Pikachu guitarrista, ou melhor, um artista de rua que usava uma roupinha do personagem para surfar no zeitgeist.
Otaku de boné
“O jogo é medíocre. Como game mesmo, eu daria nota cinco. No modo de realidade aumentada, os pokémons ficam grudados na tela como um adesivo. Os caras da Niantic poderiam ter mais cuidado com esses detalhes. Outra coisa: não duvido que vai ter PokéStops em lugares como Auschwitz, por exemplo. Eles vão ter que resolver esses problemas enquanto o jogo estiver no ar”, diz Gustavo Petró, editor do portal de games IGN Brasil. De fato, exceto pelas telas dos personagens, o design de Pokémon Go não chama a atenção. Desde o momento em que o jogador monta seu avatar, todo mundo usa boné e fica com jeitão de otaku (termo que define os fãs de anime). Uma vez que seu bonequinho avança pelo mapa, a tela do celular mostra uma espécie de “mundo invertido” da série Stranger Things, da Netflix: um lugar idêntico ao mundo real, mas um pouco mais feio.
No canto inferior direito, há um radar que supostamente indica os monstrinhos mais próximos. Há poucos dias, se você resolvesse se guiar por essa bússola desmagnetizada, poderia acabar andando quilômetros e quilômetros atrás “daquele Alakazam” e terminar sua jornada caçando três Spearows e 20 Zubats. No dia 9 de agosto, porém, a primeira atualização lançada no Brasil introduziu o que parece ser o início de um novo sistema, a seção “sightings”. Será que agora vai?
Nos Estados Unidos e na Austrália, meses atrás, esse recurso funcionou de forma mais ou menos eficiente, mas a Niantic resolveu dificultar um pouco a jornada de caça aos pokémons e descalibrou o radar — a ponto de torná-lo um item decorativo — e baniu apps de terceiros que ajudavam na caçada, como o Pokévision, uma tipo de Google Maps que escaneava todos os pokémons próximos. Desde então, o público estrangeiro tem reclamado bastante. Na página oficial do jogo no Facebook, há relatos dramáticos: “Não tenho mais vontade de jogar Pokémon Go. Minha cidade é pequena, e o radar era a única chance de eu pegar um monstro que não fosse um maldito Pidgey”. Tudo indica que os Pidgey são os Zubats dos EUA.
Os brasileiros, no entanto, já aprenderam a jogar no “level hard” e têm se virado bem sem esses mimos. Aqui, é preciso caminhar em áreas com muitos PokéStops perfumados com as tais das “lures”, que atraem os monstrengos, e esperar, com muita paciência, pela aparição de algum pokémon um pouco mais raro, como, por que não, um Grimer de Combat Power 240. E justiça seja feita: quem jogou no Game Boy sabe quão repetitiva pode ser a vida de um mestre pokémon.
Coliseu de monstrinhos
Na Paulista, à noite, a jogatina se intensifica e pequenos grupos se aglomeram nas áreas em que a Niantic escolheu para instalar os ginásios — talvez o elemento mais social do game, que ainda não possibilita outras interações entre os usuários. Enquanto um telão no outro lado da avenida mostrava os Jogos Olímpicos do Rio, um trio de jovens concentrava-se em matar um Exeggcutor do time azul, que guardava o ginásio na frente da loja de eletrônicos FNAC. Um dos jogadores, com jeito de líder, falava para o outro: “Fica na contenção para quando o ginásio cair. Esse Seaking está me dando trabalho”. A princípio pode ser complicado entender a lógica dos ginásios, por isso Vinicius Matos Aguiar, de 26 anos, dá uma pequena aula: “Quando você derruba um ginásio, pode colocar um pokémon seu para guardar lá. Conforme outros jogadores do seu time vão brigando com o seu pokémon e ganhando, seu ginásio ganha prestígio e vai aumentando de level, e aí pode ter mais pokémons para defender. Você perde o domínio do ginásio se alguém de outra equipe vence de todos os pokémons guardiões, entendeu?”.
Vinicius, que aprendeu essas táticas em uma viagem para os Estados Unidos, estava perdendo a batalha: “Achei estranho que os brasileiros já têm pokémons muito fortes em pouco tempo. Tem um pessoal que diz que tá rolando um cheat (trapaça no jogo)”. Sim, alguém deve estar trapaceando, mas também tem outra explicação que se apresentou para nós num encontro fortuito a caminho do Parque do Ibirapuera. Em um dos gramados da rua Abílio Soares, em uma PokéGym pouco concorrida, nossos pokémons foram derrotados — ao lado, a wild Luis Felipe appeared. “Fui eu, sim. Sou do time amarelo”, comemorava discretamente o amigo de 12 anos, talvez por saber que a própria Niantic só recomenda o jogo para maiores de 13.
Embora Luis Felipe seja um forte concorrente com seu Scyther e suas tardes livres, Pokémon Go parece se encaixar muito bem na vida de quem tem de 20 a 35 anos. Primeiro por razões óbvias, como a ausência de pais e o que chamam de maturidade para atravessar as ruas com a mínima segurança e saber quando é hora de parar — ou, pelo contrário, não parar nunca e perder o emprego, solucionando o problema da falta de tempo. Por coincidência, também é essa geração que sabe de cor o nome dos personagens, seus poderes e peculiaridades. Além disso tudo, é difícil pensar em outra faixa etária que possa sucumbir à aquisição de pokébolas e acessórios virtuais com dinheiro real, já que o game não escapa da maldição dos joguinhos de celular: vantagens gratuitas são oferecidas só para seduzir, mas o sistema espera que mais cedo ou mais tarde você compre alguma coisinha.
Ingresso pra diversão
Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de Pokémon Go deve ter sido distribuir PokéStops e PokéGyms no mapa do mundo inteiro. Para piorar a trabalheira, cada um desses checkpoints tem nome, foto e uma pequena descrição. No Brasil, foram encontradas várias paradas batizadas de maneira criativa, como “Mário Maconha” — com uma imagem de um grafite em que o Super Mario está, cof cof, fumando um baseado —, “Sereia Mono-teta”, “Toquei e Saí Correndo” e “Gato Louco por Música” e toda a sorte de PokéStops em lápides de cemitérios.
O cemitério São Paulo, em Pinheiros, é um capítulo à parte. Com nada menos do que 17 PokéStops — cada um devidamente nomeado em homenagem às tumbas, como “Túmulo da Família Issa” —, esse talvez seja o espaço mais relaxante da cidade para uma sessão com os amigos. Na segunda-feira estivemos lá e encontramos um Haunter — pokémon do tipo fantasma — em cima de uma lápide, no que foi a experiência mais mórbida de realidade aumentada misturada com a vida real. Por lá também atraímos, com uma lure aplicada num PokéStop, um casal que estava faltando no trabalho para jogar um pouco. Anda se sentindo sozinho? Jogue uma lure em um PokéStop vazio e sinta-se com um poder de atração digno de um Flautista de Hamelin.
Há uma razão para essa distribuição caótica e imprópria para menores. Pokémon Go é o herdeiro direto do primeiro jogo de realidade aumentada da Niantic, o Ingress, lançado no começo de 2013. Nele, o mundo se divide entre duas equipes, a azul (“Resistance”) e a verde (“Enlightened”), e a missão do herói é capturar portais distribuídos pelo mundo para o seu time. Te lembra alguma coisa? Os portais são os PokéStops, sem tirar nem por. É como se Ingress tivesse sido criado para que os jogadores fizessem o trabalho sujo de distribuir, nomear e fotografar áreas do mundo, tudo para que a Niantic lançasse depois o jogo que realmente importava. “Pokémon Go é muito melhor. O Ingress era bem mais complicado, era preciso entrar em contato com os jogadores de seu time a toda hora e o objetivo não parecia muito claro. Pokémon Go é mais lúdico, dá para jogar mais sozinho e a interface é bem mais convidativa”, diz Bianca Castanho, jornalista que escreveu uma matéria sobre o Ingress e já se rendeu aos monstrinhos de bolso.
Os assinantes daqueles planos de dados mais humildes podem pensar que ficaram de fora da “febre do momento”, mas Pokémon Go é democrático e gasta menos 3G do que aplicativos como o Facebook ou o Instagram. Com mais ou menos 50 MB, dá para caçar pokémons por mais de quatro horas sem se desesperar. A bateria dos celulares, no entanto, não aguenta tanto tempo. Pode observar: os jogadores que ficam perto dos PokéGyms em geral têm o aparelho conectado a um fiozinho na mochila — é a bateria portátil. Agora, até os vendedores ambulantes perceberam o mercado emergente e estão vendendo “baterias com carga completa por R$ 15”. Ou você acha que é fácil conseguir um Dragonite com CP 2000?
O dia ensolarado de inverno vai chegando ao fim e a mochila virtual de Pokémon Go vai ficando cheia. A solução é jogar no lixo as frutas que os pokémons adoram. Caminhadas de dez quilômetros parecem mais acessíveis do que nunca, mas o conteúdo dos ovos, incubados à medida que o jogador anda, quase sempre decepciona — o que inspirou um meme em que os personagens de O Senhor dos Anéis andam bastante e o Frodo olha chocado para o Rattata que nasceu. De vez em quando, os PokéStops desaparecem e o mapa se esvazia, num bug que alguns usuários vinculam a uma operadora de telefonia móvel.
Além de todas as mudanças de comportamento nas calçadas da cidade, os primeiros dias de Pokémon Go no Brasil foram marcados por outras inevitáveis manifestações virtuais. O morceguinho do momento ocupa o posto que foi de Glória Pires no Oscar 2016 e o Pikachu, coitado, virou garoto propaganda de anúncios sensuais. Muita gente garante que a realidade aumentada vai mesmo mudar o mundo e as redes sociais noticiam casos em que o jogo virou aliado contra a obesidade, a depressão e o autismo. Por outro lado, a imagem de um garoto corcunda com um pokémon montado no pescoço se transformou em ícone da alienação crescente a que essas invenções podem nos sujeitar. Seja o começo de uma revolução cultural ou só o meme da semana — ou uma evolução das duas coisas misturadas —, Pokémon Go conseguiu a proeza de trazer verdadeiras interferências de diversão ao caminho diário para o trabalho. Nem que seja para que todas as suas pokébolas acabem desperdiçadas naquele Zubat.
Se tem uma coisa que você precisa saber sobre K-pop, a música pop produzida na Coreia do Sul, é que o fanatismo obcecado dos fãs se expressa em gritos. É início de noite da quinta-feira, 21 de julho, e o Teatro Gazeta, na avenida Paulista, está lotado de adolescentes, sobretudo meninas, segurando um mar de varinhas de neon.
No palco, sucedem-se 17 grupos covers de dança e canto selecionados para o 3º Korean Pop Festival. O prêmio geral é cinco mil reais e o de cada categoria, três mil. Mais importante: os vencedores poderão disputar uma vaga para competir na final mundial na Coreia do Sul.
Cada artista que pisa no palco, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada grupo, “AAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada mensagem dos apresentadores “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, é respondida com uma manifestação ululante das fãs.
No palco tem uma menina que, meu Deus!, o que é isso? É a Pammie interpretando Arirang Alone, da cantora So Hyang, com uma voz tão imponente que se impõe sobre o grito da plateia, atingindo uns agudos lá pra cima na escala. Gente, ela é tudo! Canta em coreano, apesar de não ter completado nem o primeiro módulo do idioma. Ela não é nem cantora profissional, mas auxiliar administrativa em uma empresa que vende doces e salgados. Se não fosse o K-pop, o nome dado ao fenômeno cultural coreano, ela não estaria cantando. E esse prêmio é importante, porque ela ganhou o geral do ano passado, mas não foi pra Coreia, embora merecesse muito! Todos ali sabem quem é Pamella Raihally.
Sabia que o Brasil já teve uma banda que tentou imitar o pop coreano? Era a Champs, que apareceu na Ana Maria Braga (ela chamou de Champers, ai…), ganhou 600 mil likes no Facebook, mas acabou e um integrantes do grupo virou YouTuber e já tem 70 mil seguidores. O Iago, lindo!, virou ex-Champs, seguiu dançando e tem uma banda cover chamada Allyance, que está agora reunida nas coxias de teatro. A apresentação da cantora Mônica Neo, que veio depois da Pammie, está acabando. Eles estão ali há um minuto abraçados e, de repente… o “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA” invade as coxias. O nome da banda está no telão. Todos sabem que é a banda de Iago Aleixo.
O grito, aqui, não é o símbolo do desespero, mas da tomada de assalto da cultura coreana em segmentos dos jovens brasileiros, num fenômeno chamado Hallyu — a nova onda avassaladora que veio da Ásia e abocanhou os jovens da classe C.
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A infiltração do K-pop no Brasil pode estar à margem da sua rede de contatos e até da sua timeline, mas ela é a parte mais expressiva do soft power sul-coreano por aqui. Pelo leste da Ásia, os produtos culturais do país se espalharam com a força de uma política de Estado que deu certo. O termo Hallyu precisou ser criado por jornalistas chineses para explicar a influência cultural do Estado vizinho.
Por falta de acesso aos mercados dominados pelas grandes gravadoras e incapazes de enfrentar a pirataria na China, as empresas coreanas abdicaram do CD e apostaram no que acabou por se tornar a MTV dos anos 2010, o YouTube. Deu certo? Bom, lembra do Psy? A música Gangnam Style, que explodiu em 2012, não passava de uma piada interna, uma ironia a uma cultura musical bem estabelecida — até hoje nenhum vídeo superou sua marca de dois bilhões de visualizações.
Os clipes das bandas mais famosas entre os fãs costumam ter um ar mais romântico, a um só tempo atrativo e infantil, no qual a beleza dos artistas parece ter saído de um anime. Existe um grau de sexualidade latente, mas sublimada nas atitudes dos músicos jovens: sempre educadinhos e fofos; nunca machos alfa pegadores.
Pouco a pouco, via YouTube e bordas da cultura anime, o K-pop começou a fincar raízes bem no momento em que a classe C se expandia no Brasil e procurava novas referências culturais. Mesmo exóticas, elas se acomodaram a valores mais conservadores, evangélicos, acompanhadas por sonhos de luxo e glamour. Alessandra Vinco começou como fã em 2011 e agora pesquisa o tema pela Universidade Federal Fluminense. Para ela, K-pop é um gênero híbrido: se apropria de elementos globais, mas preserva valores confuncionistas, como a preservação da família, o respeito ao próximo e o resguardo da vida sexual.
Uma pesquisa do centro cultural coreano apontou que o número de fãs no Brasil era 220 mil pessoas. A sensação é que o número é bem maior. A maior prova, para além dos diversos sites e festivais que cultivam o nicho, é que o programa do Raul Gil vai estrear um quadro chamado “Quem sabe, dança K-pop” no dia 13 de agosto. “Nesta nova atração”, diz o locutor do vídeo promocional, “atravessamos o planeta para trazer um gênero musical repleto de batidas emocionantes e coreografias absolutamente viciantes”. Grupos cover podem se inscrever no site do SBT. O prêmio será de 10 mil reais.
Já os aspectos demográficos têm dados um pouco melhores. Em 2015, Tiago Canário, um doutorando no departamento de Cultura Visual da Korea University, fez uma pesquisa online na qual 2.764 pessoas responderam a um questionário sobre o cultura corena no Brasil. Dessas, 91,3% se identificaram como mulheres, 8,36% como homens. No total, 95% dos fãs de K-pop tinham entre 10 e 29 anos. Apenas 18 pessoas se identificaram como descendentes de coreanos.
Ricardo Pagliuso Regatieri, um pesquisador brasileiro do departamento de sociologia da Korea University, escreveu em artigo ainda não publicado que os fãs paulistas vêm de regiões periféricas e semiperiféricas da cidade e arredores. Resultados preliminares de outra pesquisa online feita com 635 pessoas mostra que 37% dos fãs têm renda familiar entre R$1.751 e R$3.500 por mês e 26% têm renda familiar mensal de até R$1.750. Ou seja, boa parte se enquadra dentro da nova classe C brasileira.
No artigo, Regatieri oferece uma interpretação do fenômeno: o K-pop se conecta ao processo de mobilidade social, usando a popularidade da internet no país como principal combustível. No processo, os fãs do estilo no país buscam uma ruptura com os modelos culturais de seus pais e avós. A fábrica de sonhos do K-pop, ele escreve, oferece um repertório de modernidade centrado nos prazeres do consumo, da moda e do glamour da vida na cidade.
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Pammie e Iago — a cantora e o youtuber — são parte dos dois mundos. Moradora do limite entre São Paulo e Diadema, ela começou a cantar pequena, nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Logo, o talento foi reconhecido e começou a ser chamada para se apresentar, de graça, em casamentos dos fiéis. Em 2010, no último ano da escola, viu o primeiro clipe de K-pop pela internet — era GARAGARA GO!!, da BIGBANG.
“O K-pop foi natural pra mim. Cheguei a mostrar para algumas amigas, mas elas não ficaram tão fãs como eu. A gente ensaiava numa sala vazia para se apresentar nas festas da escola”, me disse por telefone durante o seu intervalo do almoço na empresa onde trabalha como auxiliar administrativa, no Morumbi.
Pamella, 23, é um tipo de talento natural. Chegou a fazer aulas de canto depois que alguns professores elogiaram sua performance ao interpretar uma música da Rihanna em coreano. Não chegou a concluir o curso, contudo. Eram tempos de IPI reduzido. “Na época, meu pai queria comprar um carro. Como era ele que pagava pra mim, e a escola era muito boa e cara, eu sacrifiquei a minha aula para podermos comprar. Depois, não voltei mais.”
Uma das juradas do 3º K-pop Festival, a cantora lírica Cecília Massa, acha que Pammie tem potencial para ser uma cantora de jazz. “Vejo nela um altíssimo nível vocal, capaz de fazer variações muito rápidas na voz. A primeira vez que a escutei ela me lembrou da Whitney Houston”, me disse numa tarde do final de julho em um café em Santa Cecília.
Para ela, Pamella está escutando um repertório com melodias simples e harmonia básica. “Ela tem um material maravilhoso, mas é uma escolha dela”, disse sem nenhum tom professoral. “Seguir cantando é uma felicidade que ela pode ter e dar ao outros”.
Acontece que Pammie fica num cruzamento em termos de mercado e talento. É boa demais para o que faz sucesso na televisão, mas tem poucas referências de caminhos a seguir e cantoras em quem se inspirar. “Você não consegue viver da música aqui no Brasil”, me disse Pammie. “Já pensei em seguir mas é difícil. Acho que se eu não tivesse conhecido o K-pop, hoje não estaria cantando.” Uma vitória no concurso é o estímulo para fazê-la seguir o que lhe dá mais prazer.
As empresas coreanas conseguiram criar uma tecnologia cultural capaz de criar boys e girls bands em uma sequência quase industrial. Os futuros artistas entram como trainees por volta dos 15 anos e saem capazes de atuar, cantar, dançar etc. Existe o V-pop (Vietnã), o T-pop (Tailândia) e J-pop (Japão). E por pouco não vingou por aqui um B-pop.
Iago Aleixo, hoje com 20 anos, foi uma cobaia da tentativa de reproduzir o modelo no Brasil. Aos 17, foi selecionado por um produtor coreano e passou a morar com mais cinco pessoas no centro de São Paulo. Nascido no Rio, hoje ele mora com a mãe em Osasco.
Nos encontramos no café do Centro Cultural São Paulo, que se tornou o ponto de encontro dos k-poppers, um pouco antes de um ensaio da sua banda, a Allyance, para o festival que ocorreria na semana seguinte. Antes da conversa, ele entrou no bar e saiu com uma garrafa de 600ml de refrigerante. Tentou abri-la; não conseguiu. Deixou-a sobre a mesa e contou sobre sua experiência no processo de se tornar um b-popper em 2013.
[olho]”As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você”[/olho]
“Era um projeto da JS Entertainment, empresa coreana com foco no Brasil. Depois da seleção, tive que deletar as redes sociais e criar novas como se eu fosse uma nova pessoa. Praticamente, nascer de novo. Eu tinha muitos tweets antigos, então, tipo, se a pessoa fosse nos arquivos poderia ver alguma possível besteira que falei quando era pequeno. Daí isso pesaria agora. Eles excluem toda nossa vida passada, só deixam a mostra o que querem.” Tentou abrir novamente a garrafa. Não conseguiu.
“Na Champs, eu era o mais novo, por isso tinha que mostrar uma pureza. Tinha que ser um fofinho, sem barba, meu cabelo tinha que ser liso, jogado à Justin Bieber. Não podia usar óculos, pra visualmente ficar mais bonito, e tinha que ser um corpo definido pra criar mais interesse. Ou seja, tinha que ser um menino perfeito. A empresa cria a ideia do desejo. Eu fiz parte disso, desse meio. Nosso empresário falava ‘vocês têm que fazer a menina desejar vocês para se elas se tornarem fãs. As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você’”. Mais uma tentativa com a garrafa. Nada.
De óculos, com uma barba ruiva de poucos dias, ele fala com empolgação do treinamento. De seus lábios saem palavras que relembram a antiga rotina com um leve sotaque carioca: de segunda a domingo, da manhã à noite, musculação, canto, coreografias, aulas de hip-hop, ballet e jazz. Sábado era dia de treino livre e teatro. Domingo o ensaio era até as 15h, depois vinha a folga. Fora moradia, não recebia nada. “Querendo ou não, ele [o empresáio] tava gastando bastante dinheiro.”
Por fim, gravaram o clipe na Coreia e estrearam no Brasil. Receberam boa cobertura da imprensa, mas a Champs não deu certo naquele momento. Iago acha que foi má administração. Porém, o sistema do K-pop se baseia em baixas margens de lucro. Como a música é distribuída de graça pelo YouTube, o sistema de vídeos do Google fica com a maior parte do dinheiro da publicidade online. Se a base de fãs não dispara, os shows e outros produtos não compensam o investimento.
Quando viu que não daria certo, fez o que boa parte dos jovens deseja hoje em dia: criou um canal no YouTube. Começou com duas mil pessoas e agora tem 70 mil seguidores. Espera acabar o ano com 100 mil. Diz que não está mais vendendo um personagem, mas o Iago real.
“O Iago do Champs era uma pessoa para ser desejável e eu não quero ser desejável. Quero ser admirado. Quero que as pessoas olhem pra mim e falem ‘caraca, olha o que ele tá fazendo com estilo que eu gosto’. Não quero ser o estrelinha, o famosinho. Quero ser uma pessoa que é parada na rua por alguém dizendo que gosta do meu trabalho.” Ele pega a garrafa, crava os dentes molares na tampa verde. Contrai os olhos, gira a garrafinha com as mãos e tssssss. Consegue abri-la. Toma um gole e vai encontrar os colegas para o ensaio da música Fly, da banda GOT7.
Para ele, vencer o festival significa, além do gosto do prazer de se sentir um k-popper e do prêmio para pagar os custos figurino, faz parte de uma estratégia para voltar à Coreia do Sul e ajudar a turbinar seu canal no YouTube.
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Na longa fila que se forma nos arredores do Teatro Gazeta, centenas de adolescentes aguardam para entrar no festival de covers de K-pop. Um dos poucos adultos, o guarda civil Hélio Marques, 52, acompanha as três filhas. “Vim por causa da minha menina, que escuta muito, muito. Ela sabe até o que o menino come”, diz sem brincar.
Antes do show, encontro com Pamella e Iago. Ela, bem maquiada, de vestido longo floreado e Havaianas, está insegura, com um pouco de medo por causa da dificuldade da música. Ele, mais profissional, ainda está sem o figurino. Conta que no último ensaio, dois dias antes, repetiram toda a dança 25 vezes. Eles tiram fotos e voltam para acabar de se arrumar.
O teatro está lotado. Os cerca de 50 competidores ficam no mezanino, à esquerda de quem encara o palco. Dá pra sentir a expectativa e a tensão. Iago, já com o figurino, fica filmando e tirando fotos com os amigos. Há grupo de cinco meninas vestidas com o que parece ser um uniforme das paquitas. Duas delas ensaiam alguns passos juntas. Pamella está sentada com o celular na mão, de cabelo solto. Está ao lado de outra cantora, com a qual troca algumas palavras. Fala com outras pessoas, mas a vida de cantora parece mais solitária.
Não só pela música, mas todos estão agitados, afinal é o principal momento pelo qual esperaram e treinaram. A recompensa é grande. Pelas regras do evento, há duas vagas para disputar a chance de ir pra Coreia. Se, por exemplo, o canto vencer o prêmio principal, a outra vaga é de quem vencer na dança.
Os participantes têm camarins, garrafas de 1,5 litro de água e esfihas do Habibs à vontade.
O primeiro competidor, Davi Nogueira, senta num banquinho e com violão em mãos, apresentada uma música de Roy Kim.
“Boa noite”, diz. A plateia responde: “AAAAAAAAAA!”
Antes de começar a tocar, uma menina atrás de mim grita: “Arrasa, viado!”
Na sequência, várias bandas e competidores tomam o palco. Os momentos mais sexualizados das coreografias são os que arrancam mais gritos. Por vezes, os berros são tão fortes, constantes e esganiçados que se sobrepõem à voz das apresentadoras.
Os artistas se sucedem até que às 20h14 chega a vez de Pammie.
Perto dos demais, ela parece uma cantora de ópera. Das coxias, dá pra ver que ela transpira presença de palco, segura o microfone com uma mão e despeja toda sua potência sonora. É uma apresentação elegante — recebe mais aplausos do que gritos. Ao sair, bebe três copos d’água. As mãos tremem. Não consegue dizer muito além de “tô nervosa”.
Em seguida, há outra apresentação. O grupo de Iago fica na lateral do palco e se prepara para entrar. Todos os membros se abraçam e formam um círculo. Iago fala algumas palavras de motivação. Ficam assim por mais ou menos um minuto. A cantora que está no palco, Mônica Neo, encerra a apresentação. Iago está sem óculos. O círculo se desfaz e eles se dão uns tapinhas de apoio. O nome do grupo aparece no telão e eles entram no palco para atender ao chamado da orquestra de berros. Do backstage, de uma visão lateral, a coreografia parece perfeita. Ao final, os gritos, sempre eles, invadem a coxia. Os integrantes saem em duplas em silêncio. Recebem elogios dos grupos que esperam para se apresentar. Iago põe os óculos.
Longe do palco, depois de um longa escadaria que leva a um espaço atrás no mezanino, um dos dançarinos, Paulo Fraga, chora muito. Toma água tremendo. Iago reúne todos, formam um novo círculo e ele diz: “A galera não parou de gritar! Não importa quem errou. Tô muito orgulhoso desses quatro meses de trabalho”.
Eu volto para a plateia e sento em outro lugar. A menina ao meu lado, de blusa e meia calça preta, saia rosa um palco acima do joelho, usa óculos redondo de acetato. Ela pula na cadeira, chacoalha a varinha de neon, grita com força, descansa e se abana.
O anúncio dos prêmios sai pouco tempo depois da última apresentação. No palco, estão reunidos todos os competidores. Das coxias, o áudio fica abafado, mas descubro que a Pammie é a número um do canto. O Allyance ganha na dança. Venus, um cover de dança de 10 meninas, é o primeiro geral. Iago ganha o dinheiro, mas não terá a chance de competir na Coreia. Todos se abraçam, perdedores e vencedores. Mas quem fica para a foto são só os vencedores.
Mais calma, Pammie diz que o retorno do áudio estava distante e por isso não conseguia saber se tinha ido bem. No olho escuro, negro, quase sem diferença entre íris e pupila, só se vê o brilho do reflexo das luzes. Várias pessoas a parabenizam. Alguém comenta: “Agora tem que deixar as amiguinhas ganharem”. Ela sorri amarelo — é uma menina tímida, não uma artista.
Conversa com Cecília Massa, uma das quatro juradas. Ela está dizendo que a música é muito difícil, mas que existem caminhos profissionais, com mais consciência vocal. Fala de um jeito educado, preocupado.
“Você faz aula?”, pergunta a jurada.
“Não.”
“Você canta música brasileira?”
“Não, mais internacional.”
“Você tem presença, mas tem que ouvir grandes intérpretes internacionais e nacionais.”
“Se não fosse o K-pop, eu não estaria cantando.”
“Mas tem um mercado, sim. Não é o da TV ou que aparece na grande imprensa, mas existe um outro mercado. Na internet, em editais…”
A seguir, encontro com Iago. Está sério, mas age como um profissional. Elogia as concorrentes, fala do esforço do grupo do prêmio, mas sabe que não ganhou o que queria. Assim que para de falar comigo diz a um colega: “Nossa!, que raiva, velho. Vídeo filho da puta!” Ele atribui a derrota ao vídeo enviado na pré-seleção dos competidores.
Os demais integrantes do Allyance reforçam que ficaram felizes pelas concorrentes da Venus, o que parece sincero. Mas há uma melancolia no ar. Iago está com o espírito desinflado, o olho abaixou, o sorriso ficou mais profissional. É uma vitória manca.
Todos saem do mezanino e vão para o saguão do teatro, onde artistas e público se misturam. Dezenas de jovens estão chupando Melona, aquele picolé retangular verde, que é coreano, vendido na Liberdade, e que foi distribuído de graça no final do evento. No saguão, Iago tira fotos com várias fãs sempre da mesma maneira. Sem sorrir, faz um gesto comum entre coreanos — um V lateral com a mão esquerda, a mesma que segura um pacote de salgadinhos.
“Como você ouviu falar do esperanto?”, questiona meu entrevistado, antes que qualquer pergunta sobre o idioma seja feita. Responsável pelo curso Estudo da Língua Internacional Esperanto e sua Cultura na Unicamp, o professor de física José Joaquín Lunazzi continua: “Vim da Argentina e lá, quando se fala [do esperanto] na mídia, se fala com muito respeito. É positivo. Aqui no Brasil, se aparece o tema, é pra falar contra. A língua que não deu certo, língua artificial, coisas assim”.
Criado pelo médico polonês Lázaro Zamenhof em 1887 para ser um segundo idioma para todos, o esperanto é uma língua misteriosa. Quem escolheria aprender um idioma que não é de nenhum país? Quantas oportunidades você teria de usá-lo? Mas ao contrário do que se pensa, o esperanto não é uma língua morta nem inútil. Cerca de 2 milhões de pessoas no mundo falam o idioma, formando uma comunidade tão próxima quanto entusiasmada.
“A maioria das pessoas não sabe o que é o esperanto, ou, se sabe, sabe tudo errado. Ouviu falar que o esperanto é uma língua morta, que o esperanto é a língua que Jesus falava. Um monte de maluquice. Que o esperanto quer acabar com todas as línguas do mundo e que todo o mundo só fale esperanto. Coisas absurdas. É o contrário disso, aliás”, diz, rindo, Emilio Cid, primeiro secretário da Liga Brasileira de Esperanto, que divulga a língua no Brasil.
Zamenhof, o criador, cresceu numa Polônia dominada pela Rússia, onde falava-se diferentes línguas e havia dificuldades de comunicação. Achava que esse problema poderia ser diminuído e as distâncias entre pessoas encurtadas se houvesse um idioma simples que todos pudessem falar. “Aí ele criou uma língua usando elementos comuns das línguas que existem e regularizou as regras. Também procurou sons fáceis de pronunciar, bem definidos”, diz Lunazzi. “O esperanto tem muito do latim, os radicais são bem parecidos. A gramática parece mais com a do chinês — por incrível que pareça é uma gramática muito simples, as palavras são muito derivadas. Quando você conhece um radical, como a palavra amor, transforma isso em 30, 40 palavras. Ele é feito de uma maneira que é fácil pra todo o mundo”, completa Emilio.
Facilidade de aprendizado e neutralidade linguística são dois dos principais argumentos utilizados pelos esperantistas para explicar por que resolveram estudar a língua — escolha que seus conhecidos estranhavam no começo (“não seria mais prático aprender logo o inglês?”). “Aprendi em quatro meses, estudando apenas uma vez por semana. Em comparação, fiquei minha infância inteira aprendendo inglês, com a ajuda da escola e de um cursinho particular, e meu inglês só ficou perfeito mesmo porque fui morar nos Estados Unidos. Isso é normal de acontecer”, conta a escritora Renata Ventura.
“O inglês é uma língua linda, sensacional, mas, como todas as línguas nacionais, possui várias exceções gramaticais, além de diversas complexidades de pronúncia e escrita, de modo que, se você não morar por alguns anos em um país que fale inglês, seu inglês dificilmente será tão bom quanto o de um nativo da língua”, diz. “E isso deixa as relações internacionais muito desiguais. Sempre americanos e ingleses vão ter mais vantagem, por terem aprendido o inglês desde bebês.”
No caso do esperanto, há poucas regras gramaticais e não há exceções. Se a palavra termina em “as”, por exemplo, é um verbo no presente. Se termina em “o”, é substantivo. Em “a”, é adjetivo. E por aí vai. Aprender a pronunciar é simples também, já que cada letra é sempre dita da mesma forma e cada som corresponde a apenas uma letra.
“Desde a primeira aula, o aluno já consegue pronunciar qualquer palavra que lê, e consegue escrever corretamente qualquer palavra que escuta. Os tempos verbais também são aprendidos todos em um dia só: presente, passado, futuro, infinitivo e imperativo. Em cinco minutos se aprende”, diz Renata. Também é uma língua bastante estável, sem termos que existem num país e não no outro. “No inglês todo dia eu encontro uma palavra nova, e nunca vai acabar. No esperanto não tem isso. Se alguém em um canto do mundo cria uma palavra nova, o resto vai reagir. Não pode. Todas as línguas evoluem, se transformam. Mas o esperanto não se transforma, ou se transforma minimamente, porque tem uma comunidade ciente disso, de que é uma língua para todos”, conta Lunazzi.
Saber falar esperanto pode, inclusive, ajudar a aprender outras línguas — algo como a flauta doce no aprendizado de música: uma vez que você sabe tocá-la, passar para outro instrumento é mais simples. “A grande dificuldade de falar inglês, francês, ou mesmo espanhol, é conseguir pensar fora da língua materna. Com o esperanto é muito mais rápido”, diz Cid. “É rápido de conseguir fluência, de conseguir pensar fora do português. Uma vez que você domina essa técnica, consegue adaptar pra outra língua. Se você dominou o inglês facilmente você aprende francês. O problema é que começar com o inglês dá mais trabalho que com o esperanto.”
Segundo Rafael Zerbetto, que trabalha na China no site de notícias em esperanto “El Popola Ĉinio”, no país algumas escolas usam o esperanto como língua para ajudar a aprender o inglês com bons resultados. Na Inglaterra há um projeto parecido, o Springboard to Languages, que ensina esperanto em escolas para que as crianças entendam como a linguagem funciona. “O pedagogo alemão Helmar Frank fez estudos sobre experimentos realizados em dezenas de países com o uso do esperanto como língua propedêutica: estudantes foram separados em dois grupos, um que estudava esperanto e depois outra língua estrangeira e outro que estudava somente a língua estrangeira ao longo de todo esse tempo e percebeu-se, em todos os experimentos, que o grupo que aprendia primeiro o esperanto dominava melhor a outra língua, mesmo tendo-a estudado por menos tempo”, diz Rafael.
LÍNGUA SEM ESTADO
Aprender esperanto não significa deixar de lado outras línguas, como o inglês — o esperanto não foi criado para ser o único idioma do mundo todo, e sim um segundo (ou terceiro, quarto…) que todos soubessem falar. “Pra quem está interessado, tento mostrar como o esperanto pode ser útil em viagens, por exemplo, mas nunca desmereço a importância de aprender inglês também, é claro. Por estar no meio acadêmico, sei que o conhecimento do inglês é essencial, mas o problema é parar o aprendizado de línguas por aí. Aqui no Brasil a gente tem muito pouco conhecimento linguístico sobre a diversidade, e, como linguista, eu valorizo o aprendizado da maior quantidade de línguas possível”, opina Karina Oliveira, mestranda na USP sobre esperanto e pós-graduanda em Interliguística na Universidade Adam Mickiewicz, na Polônia, que dá aulas em esperanto.
“Hoje, aprender inglês é certamente muito importante, especialmente do ponto de vista profissional, e seu aprendizado não deveria ser exatamente desestimulado, pois aprender qualquer língua é extremamente enriquecedor. Por isso mesmo, a atual realidade do inglês não precisa ser vista como uma barreira ou um desestímulo à realidade do esperanto”, concorda Fernando Maia Jr., diretor financeiro da Liga Brasileira de Esperanto, para quem é necessário, porém, que se faça alguns questionamentos. “Evidentemente, há um interesse político e econômico para o domínio da língua inglesa, que foi alavancado por um pequeno número de países interessados nisso, uma vez que há poucas décadas a língua francesa já funcionava como língua franca internacional.”
Para os esperantistas, a língua é também uma forma de dominação e o inglês é uma mercadoria, cuja disseminação favorece os países que o têm como idioma. “É a neutralidade do esperanto a maior qualidade do idioma. É uma língua que não tem dono. O esperanto não é dos norte-americanos, nem dos espanhóis, nem dos franceses, nem dos russos. O esperanto é de quem o aprende. Não dá vantagem a nenhuma cultura sobre as outras, nem coloca as pessoas de uma nação acima das pessoas de outras nações. Nenhuma língua nacional pode ser verdadeiramente internacional, porque sempre vai oferecer vantagens para um lado, favorecer um lado, em detrimento do resto do mundo”, opina Renata.
O domínio do inglês faz, por exemplo, com que exista uma desigualdade entre falantes nativos e não nativos, ou mesmo nativos de fora dos Estados Unidos — segundo Rafael Zerbetto, na China professores de inglês das Filipinas, onde o inglês é uma das línguas oficiais, ganham metade do que um americano. Também faz com que os outros países do mundo estejam mais propensos a receber a cultura anglófona, aumentando seu consumo de filmes, programas de televisão e música em inglês — mais lucro para países em que se fala a língua.
[olho]”Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto?”[/olho]
“Em 2005, a Universidade de Genebra liderou uma pesquisa sobre qual seria o impacto da adoção de uma língua neutra, como o esperanto, na União Europeia. A conclusão é de que a UE poderia economizar cerca de 25 bilhões de euros por ano”, diz Fernando Maia Jr. sobre o “Relatório Grin”, elaborado pelo professor suíço François Grin. Se todos falassem esperanto, por exemplo, não se gastaria nada com tradução. Ainda segundo o estudo, a Inglaterra ganha 17 milhões de euros ao ano com o inglês — graças a pessoas que vão lá estudar, venda de livros e economia nas escolas por não terem que ensinar uma língua estrangeira. “O que poderia explicar o lobby tão forte pela manutenção da língua inglesa como atual língua franca e, de algum modo, um lobby contra a ideia do esperanto”, afirma Fernando.
Para Karina, por outro lado, o esperanto é e não é uma língua completamente justa — já que isso talvez seja impossível. “Ao longo dos últimos anos, estudando um pouco mais sobre ciências sociais, fico me perguntando se, de fato, o esperanto seria neutro… Digo, a língua em si e a ideia como um todo são ótimas, mas se ela conquistasse sucesso, quem controlaria sua evolução? Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto, por exemplo? Em resumo, concordo que o esperanto é uma solução linguística melhor do que o inglês para a comunicação, mas não vejo como poderia haver uma língua internacional sem dominação político-ideológica…”
VOLTA AO MUNDO EM UMA LÍNGUA
Por ser uma comunidade pequena, os esperantistas são bastante próximos — vários entrevistados se conheciam, embora tenham sido localizados por meios diferentes. “É meio inadmissível eu ir pra algum lugar, por exemplo, e não levar o contato de pessoas que falem esperanto lá. Se você vai pra Munique — fui recentemente –, chegando lá você tem uma recepção, um sujeito que mora lá e vai ter satisfação em te encontrar, vai te levar pra passear”, conta Emílio. Existe um site, chamado Pasporta Servo que é como um couchsurfing para esperantistas — se você vai a algum lugar do mundo, consegue encontrar alguém que fale esperanto para sair com você ou mesmo te hospedar. “Isso é extraordinário porque, desse jeito, os esperantistas acabam conhecendo pessoalmente a vida cultural e familiar das pessoas do país que está visitando”, diz Renata. Há inclusive casos em que organizações esperantistas pagam passagens, providenciam itinerários e hospedagens para os visitantes.
Karina, por exemplo, conta que tudo que aconteceu em sua vida nos últimos cinco anos foi por causa do esperanto. “Parece história hollywoodiana, mas eu sou literalmente uma menina do interior que teve a sorte grande de viajar de graça pra outro país. Minha família não tem muito dinheiro, e por mais que eu tenha conseguido passar no vestibular e estudar numa universidade pública, não tinha muitas perspectivas de fazer viagens internacionais”, diz, sobre seu curso na Polônia. “Minhas viagens são todas subsidiadas por doações financeiras de outros falantes de esperanto, e o curso em si (que custa cerca de 800 reais por semestre), é pago por uma instituição dos EUA, chamada Esperantics Studies Foundation.”
Na faculdade de Letras da USP, onde faz o mestrado, Karina diz que o esperanto não é visto com bons olhos. “Eu ouvi muitas vezes, ao longo da graduação, que não valia a pena estudar uma língua planejada — e morta, porque muita gente põe a mão no fogo pra afirmar que ninguém fala esperanto hoje em dia… Tive alguns obstáculos pra conseguir ser levada a sério como pesquisadora”, conta. Hoje, diz que a aceitação é maior que em 2014, quando começou o mestrado, mas que ainda vê olhares descrentes em suas apresentações em congressos na universidade. “Apresentei meu trabalho algumas vezes em outras universidades e a recepção foi boa, o que fez com que eu ficasse com a impressão que na USP os linguistas são mais avessos ao assunto do que em outros lugares, mas não tenho dados suficientes pra afirmar isso com certeza absoluta.”
Embora a língua ainda seja pouco conhecida no Brasil, os esperantistas são otimistas. “Cada vez mais os jovens estão se empolgando com a ideia de mudar o mundo, e o esperanto aparece cada vez mais como uma iniciativa moderna e entusiasmante, que eles querem muito aprender. Eu costumo postar sobre o esperanto uma vez por semestre em meus perfis no Facebook, por exemplo, e sempre que posto, consigo pelo menos 500 e-mails de jovens interessados no curso. Já mandei o curso por e-mail para mais de 4 mil jovens e adultos, em poucos anos”, conta Renata, que usou o esperanto em seu livro “A Arma Escarlate”.
No site Duolingo, que dá cursos de línguas, o esperanto para inglês tem mais de 470 mil adeptos (ainda não há versão para português). Para falantes de línguas latinas, o curso online é realmente bem simples — em alguns dias já se tem boas noções de como o esperanto funciona.
Na opinião de Renata, toda mudança importante leva tempo para ser implementada — as pessoas demoraram anos para começar a colocar cinto de segurança no banco de trás dos carros, ela diz como analogia. “A humanidade é assim. Demora para reconhecer boas ideias, que facilitariam a vida de todos. É normal. Isso atrasa um pouco o avanço da humanidade, mas fazer o quê?”, afirma. “Aqui no Brasil mesmo há um projeto de lei a respeito de incentivar que o esperanto seja ensinado, para quem quiser, nas escolas… Enfim, está mudando. Aos poucos está mudando.”
No banheiro de uma boate em Copacabana, o artista Celso Maciel esfrega o rosto com sabão. Batom, delineador e a cera que usa para encobrir as sobrancelhas por baixo da maquiagem escoam ralo abaixo. Pouco sobra de sua aparência de cinco minutos atrás. O que permanece — e não sai nem com água, nem com a incansável passagem dos anos — são os trejeitos teatrais, a sagacidade e o timing humorístico que fazem de Lorna Washington uma figura marcante na noite carioca desde os anos 1980.
Conversar com Lorna é um show à parte. Mesmo fora do personagem, ou “desmontada” em seu vernáculo, suas frases são proferidas cheias de entonação e, não raro, ela declama afinadamente trechos de músicas ou faz imitações pontuais de amigas célebres, como a cantora Alcione e a atriz Rogéria. Em seu indivíduo, criador e criatura se misturam. “Meu nome é Celso, mas ninguém me chama assim. Todo mundo me conhece como Lorna Washington.”
Sua vida virou narrativa do documentário “Lorna Washington — Sobrevivendo a Supostas Perdas”. A obra dos diretores estreantes Leonardo Menezes e Rian Córdova foi lançada neste mês após quatro anos de pesquisa sobre a carreira do transformista. “Conheci Rian depois de uma apresentação”, ela relembra sobre o amigo, que também é cantor. “Perguntei se alguém queria dizer algo no microfone. Ele subiu e disse estar lá por causa da mãe. Estou pulando gerações, é isso?”
O filme lembra episódios de sua vida, como os shows na boate Papagaio e suas viagens pelo Brasil e Estados Unidos, intercalando-os com depoimentos da colega Isabelita dos Patins, do carnavalesco Milton Cunha e, mais uma vez, da atriz Rogéria. A amizade surgiu nos bastidores do teatro Alaska, na época do espetáculo Rio Gay, dirigido por Jorge Fernando. No começo, eram apenas cumprimentos informais. Quando Lorna perdeu a mãe, Rogéria a chamou em seu camarim. “Sente-se. Soube que você perdeu sua mãe. Essa é uma dor que morro de medo de ter”, imita Lorna com a voz inconfudível da atriz. Viraram amigas. Em sua primeira internação, Rogéria foi visitá-la no hospital. “Ela chegou achando que eu estava nas últimas, me encontrou sentada lendo um livro: ‘Eu achei que ia me deparar com a Dama das Camélias e você está bem!’ O pessoal do hospital ficou doido, queriam tirar fotos. De repente, ela para e diz: ‘A acústica daqui é ótima!’ E foi embora pelo corredor cantando em francês.”
Sentada em uma maca no Hospital Federal de Ipanema enquanto seu pé é examinado pela enfermeira, Lorna relata que a doença que a deixou internada por quatro meses surgiu pela primeira vez há onze anos, quando voltava de uma viagem a Nova York. Um machucado em seu pé direito evoluiu para um edema, piorado pela infecção bacteriana da osteomielite e pela diabetes. Há dois anos, essa junção de fatores quase levou sua perna embora. As quatro cirurgias para recuperá-la fizeram com que ela tivesse de descer do salto. Os curativos precisam ser refeitos todos os dias e, quinzenalmente, ela visita o hospital. Na mais recente visita, a enfermagem lhe entrega gaze e pomadas, que ela guarda em uma sacola junto ao figurino que usará em uma apresentação à noite. Traz sempre em sua bolsa comprimidos de ácido fólico para a pressão, sulfato ferroso para a anemia e faz aplicações diárias de insulina em sua casa nos subúrbios da cidade.
Apesar de morar longe do centro, o título de “face of Rio” muito bem poderia ser seu já não fosse de Narcisa Tamborindeguy. Celso nasceu em Copacabana, um dos cinco filhos de um porteiro. Seu quarto ficava na garagem do edifício, onde “dormia no seco e acordava no molhado” quando a maré subia para além da avenida Atlântica, muitas vezes na companhia de ratazanas. Mas foi naqueles andares que se educou, ora tendo aulas de etiqueta à mesa com uma prima de Santos Dumont, ora frequentando a biblioteca de um intelectual da Academia Brasileira de Letras. “Fazer a pobre coitada não é minha cara. Eu nunca me senti à margem das coisas.”
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Lorna circula pela cidade recontando histórias sobre pontos turísticos, apontando casas de famosos e indicando quais caminhos pegar para fugir do trânsito. Seu condutor é um ex-gogo boy que trabalha como motorista de Uber – talvez por isso encare com naturalidade uma drag queen paramentada em seu banco do passageiro. Ele lhe faz descontos nas viagens e, como sua cliente se locomove apenas com o andador, busca-a em domicílio no bairro do Engenho da Rainha. As janelas de Lorna dão vista para o teleférico que sobe o morro do Alemão. A irmã Neide mora nos fundos, enquanto seu quarto fica estrategicamente posicionado à frente para que consiga tomar seu banho de sol da cama. Nas paredes, retratos de suas performances e estatuetas religiosas espíritas e católicas.
Quase despercebida, no canto da sala de estar, há uma porta ao lado de uma Bíblia aberta e encabeçada por um leque chinês. Este é o “quarto de Lorna”. A salinha abafada de poucos metros quadrados é apinhada de vestidos costurados por amigos estilistas, bijuterias da rua 25 de Março e acessórios de cabeça bordados com paetês a uma condição na qual caminhar é impossível. Para escolher o figurino, Lorna se debruça por sobre a bagunça e alcança os cabides com sua bengala. Foi pelo vestuário que assumiu sua homossexualidade para a família, quando uma sobrinha descobriu seu guarda-roupa com trajes femininos. Da mãe Aurora não ouviu sermão, mas conselho: “Tome cuidado e seja feliz”.
Enquanto ajeita uma peruca castanha no espelho, ela ri sozinha: “Estou parecendo uma viúva indo receber o pecúlio do falecido marido”. Sua personagem está no meio-termo entre uma Elizabeth Taylor e aquela tia desbocada no almoço de família. Um equilíbrio entre a elegância midiática, o escracho e a crueza de figuras femininas reais. Seu nome, por exemplo, tem inspiração em Lorna Luft, filha de Judy Garland, mas também em uma amiga norte-americana com quem nunca mais teve contatos. Em busca de um sobrenome, batizou-se com a cidade natal da amiga estrangeira.
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Seus números seguem a escola do escárnio e o improviso de Dercy Gonçalves — ela também abandonara os saltos graças a um problema de saúde. É comum que, no palco, repita tiradas bem humoradas que tivera em conversas no camarim poucos minutos antes de subir ao tablado. Lorna dubla músicas e monólogos com perfeição e sua voz canta bem em português e inglês, sem tropeçar nas palavras graças à época em que era professora da língua. Seu propósito, no entanto, não é só a diversão: ao mesmo tempo em que solta palavrões para falar de sexo anal e “trucar a neca” (esconder o pênis para que não marque nas roupas), também critica a bancada evangélica e o Veículo Leve sobre Trilhos implementado pela prefeitura de Eduardo Paes para as Olimpíadas.
“Eu imagino quantas pessoas não deixaram de morrer de AIDS nos anos 1980 só por causa das piadas dela”, diz o diretor Leonardo Menezes. O trabalho de Lorna sempre esteve ligado à conscientização sobre a segurança sexual. Por seu ativismo, já ganhou título de benemérita pela Assembleia Legislativa do estado. Atualmente, faz parte do grupo Pela VIDDA —assim com dois dês mesmo, significando “Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids”. A organização é fundada por portadores de HIV e se volta a pessoas que convivem com o vírus. “Muita gente acha que sou soropositivo. Chegam a me dizer: ‘Você é uma guerreira por ter aids e estar trabalhando até hoje’. Eu não desminto.”
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É mais que natural que sua imagem também desempenhe papel importante na luta contra a homofobia e o preconceito contra travestis e transexuais. “São os paradoxos da vida. Tem eventos de senhoras idosas em que elas não passam sem um número de drag. Mas vai ver se elas querem ter um neto viado.” Diversas vezes, Lorna gosta de lembrar que é uma prestadora de serviço tendo de lidar com o público. “Eu trabalho como qualquer outra pessoa. Não sou estrela: estrela está no céu. Depois que você fica presa em um leito de hospital dependendo de gente até para limpar sua bunda, você tem uma outra visão sobre a vida.”
Extravagâncias à parte, Lorna não leva uma vida desregrada. Não bebe e diz ter horror a cigarro. Suporta com incômodo a barulheira das boates quando seus números se estendem madrugada adentro. Afinal de contas, é de uma época onde os shows de drag queens eram as atrações principais da noite. Hoje, nem todos na plateia entendem os comentários bem humorados que faz enquanto interpreta a canção “Cabaret”, eternizada na voz de Liza Minnelli em filme homônimo de 1972. A canção menciona a amizade da protagonista Sally Bowles com uma amiga festeira de nome Elsie. Era ela quem lhe havia ensinado que a solidão é desnecessária enquanto há música para ouvir e diversões lá fora. Em verso, Sally também canta sobre a morte de Elsie: o defunto mais feliz que ela já vira. Afinal, ela havia aproveitado a vida como em um cabaré.
Apesar de sua perna, Lorna não aparenta a mínima debilitação. Não geme, não reclama de dores, não encara sua condição de saúde com caretice. No entanto, a morte é tema frequente de suas conversas pessoais e monólogos performáticos. “Eu sempre digo: me dê flores em vida, porque depois que eu morrer, só quero oração”, ela declama no palco e na vida. “Mas fiquem tranquilos que eu não vou morrer agora.” O que se pode afirmar com certeza é que, quando Lorna for, ela não irá como Celso. Irá como Elsie.
“Malditos filmes! Eles acabam com a gente. Tô falando sério.”
Aos 17 anos de idade, Winona Ryder sublinhou as palavras de Holden Caulfield em uma das duas cópias de “O Apanhador no Campo de Centeio” que carregava consigo. “Holden e eu somos uma espécie de equipe”, disse ela. Desde então, Ryder já se referiu, mais de uma vez, à obra-prima de ansiedade de J.D. Salinger como sua bíblia, e não cansa de repetir que leu o romance cerca de 50 vezes. Quando ela tinha 19 anos, no Natal, seu namorado, Johnny Depp, a presenteou com um cartão assinado por Salinger. Aos 20, ela ainda levava uma cópia do livro aonde quer que fosse. Ela até escreveu uma cartinha para o autor, mas nunca a enviou. “Eu dizia algo como, ah, que o livro significava muito para mim, e agradeci”, ela contou à Premiere. Contudo, ela chegou a enviar, de fato, um recado a ele, em 1994, junto com o cartão de Natal. “Caro Sr. Salinger”, dizia. “Recebi isto de presente pois sou muito sua fã, mas pretendo devolver pois respeito a sua privacidade.” O único deus em que ela acreditava enviou de volta uma notinha de agradecimento. “Foi incrível”, Ryder contou à Esquire. “Digo, se bobear, foi o editor dele que digitou ‘obrigado’ e só pediu para ele assinar, ou algo assim, mas significou muito para mim.”
Aos 27, Ryder ainda se ajoelhava no altar de seu herói colegial. Naquele ano, ela mostrou à revista Vogue um porta-retrato da Tiffany, presente de um amigo. De um lado da moldura, estava uma foto dela em 1990, com 19 anos, vestida de preto, óculos escuros, estatelada em um sofá, mostrando o dedo do meio. Do outro, uma página de “O Apanhador no Campo de Centeio”, na qual Holden lê “Foda-se” no muro da escola de sua irmã de 10 anos de idade (“Acho mesmo que, se um dia eu morrer e me enfiarem num cemitério, com uma lápide e tudo, vai ter a inscrição ‘Holden Caulfield’, mais o ano em que eu nasci e o ano em que morri e, logo abaixo, alguém vai escrever ‘Foda-se’”). Dois adolescentes icônicos, com uma diferença de 40 anos de idade, lado a lado. “Eu estava em Paris, promovendo o filme ‘Minha Mãe é uma Sereia’, morrendo de insônia, enlouquecendo. Foi o pior momento da minha vida”, explicou. “É uma versão minha bem adolescente, mas me identifico tanto…”
Para muitos de nós, no entanto, Winona Ryder é uma memória acolhedora. “As pessoas esperam que atores mirins não só interpretem papéis mirins, como representem com afinco os dramas de sua geração, em sintonia”, diz Timothy Shary, crítico de cinema que já publicou inúmeros livros sobre filmes adolescentes, incluindo os títulos “Generation Multiplex: The Image of Youth in American Cinema Since 1980” e “Teen Films: American Youth on Screen”. “Para as garotas excêntricas da minha geração, Winona Ryder era uma semelhante, um ícone aspiracional”, escreveu Alana Massey no BuzzFeed. Embora costumassem descrever Ryder como ingênua, isso implica uma passividade que Ryder evitou em todos os seus filmes adolescentes — em “Ciranda de Ilusões”, ela bate em uma mulher que tira vantagem de um deficiente mental; em “Os Fantasmas se Divertem”, ela se sacrifica para salvar dois fantasmas; em “Atração Mortal”, encoraja o namorado a se explodir (e então usa o corpo dele para acender um cigarro); em “Edward Mãos de Tesoura”, ela se apaixona por um anti-herói gótico; em “A Volta de Roxy Carmichael”, desdenha do bonitão da cidade; e em “Minha Mãe é uma Sereia”, ela o seduz. Nesses filmes, é como se ela não interpretasse papéis, mas sim atuasse como ela mesma. “Winona é uma atriz que trabalha com seu instinto primitivo, acima de tudo”, disse o diretor de “Alien: A Ressurreição”, Jean-Pierre Jeunet. “Essa maneira instintiva de trabalhar é uma qualidade rara, comum entre crianças.”
A atuação pueril — e sua própria natureza pueril — é bem compreensível, visto que ela reverencia Caulfied, personagem que, por sua vez, reverencia crianças.
Assim como ele, Ryder era uma garota excêntrica, inteligente e ambivalente em busca de um lugar na sociedade contrário a tudo o que está aí. Mesmo com vinte e poucos anos, em “Caindo na Real” e “Garota, Interrompida”, ela atuou mais como uma adolescente tardia do que como adulta de fato. Ryder não conseguia seguir em frente por conta do que seguir em frente significava. Nós também não. Nossa nostalgia até hoje a mantém enclausurada na adolescência, junto ao namorado da época, o Johnny Depp pré-excentricidades. No entanto, apesar das nossas tentativas de ressuscitar o passado — “Os Fantasmas se Divertem 2”, “Atração Mortal: O Musical”, Marc Jacobs —, por mais jovem que Ryder pareça, ela já não é mais aquela garota ingênua dos anos 90. Nesse sentido, ela e Holden formam mesmo um time. “O dilema central [de Caulfield] é que ele quer reter a inocência, o solipsismo e a lucidez de uma criança”, escreveu Harold Bloom, “mas, por conta da biologia, ele precisa seguir em frente, rumo à idade adulta ou à loucura”.
***
A atriz foi batizada em homenagem à Winona, Minnesota — sua cidade natal — que, por sua vez, emprestou o nome de uma lenda do povo Dakota, em que a deusa Winona prefere saltar em um abismo a se casar com um homem que não ama. Os amigos a chamam de Noni, isto é, “no knee” [sem joelhos]. Seu sobrenome é Horowitz (quer dizer, Tomchin na verdade, mas é uma longa história). Ela achava que o nome não soava bem para a carreira, e seu pai escolheu Ryder no lugar (talvez enquanto escutava um disco de Mitch Ryder), depois de considerarem October (seu mês de nascença) e Huxley (um de seus escritores favoritos). Seus pais são intelectuais da contracultura — fundaram a Bilblioteca Fitz Hugh Ludlow, a maior coleção de livros sobre drogas psicoativas do mundo — e a criaram em uma comuna, na Califórnia. Sua infância foi inundada de filmes antigos e livros mais antigos ainda. Com sete anos, ela viu Greer Garson no filme “Na Noite do Passado”. “Queria ser como ela”, Ryder contou à Seventeen. “Não havia nada como o rosto de Garson, as expressões […] Esses filmes antigos mexeram comigo; eu ficava com borboletas no estômago quando assistia. Queria fazer parte deles, mesmo daqueles com fins trágicos.” Mas ela só foi estudar no Teatro do Conservatório Americano (ACT), em São Francisco, quando já tinha 12 anos, depois que um punhado de colegas da escola a viram num terno — ela estava numa fase de filmes de gângster —, chamaram-na de “sapatão” e bateram nela. Ela se matriculou no ACT para conhecer pessoas parecidas com ela, e foi aceita depois de apresentar um monólogo que ela mesma adaptou do livro Franny & Zooey, de J.D. Salinger. “Estou ótima. Nunca, em toda minha vida, me senti tão instável, é fantástico.”
Um ano depois, ela fez um teste para o diretor David Seltzer. Ele estava selecionando atrizes para seu novo filme, “A Inocência do Primeiro Amor”, para o papel de Rina, uma jovem adolescente completamente apaixonada pelo personagem do título (Corey Haim), que por sua vez está completamente apaixonado por uma cheerleader (Kerri Green), que está completamente apaixonada pelo capitão do time de futebol americano (Charlie Sheen). Seltzer elaborou o teste em torno de uma cena em particular, do lado de fora de uma festa da escola, onde Lucas foi rejeitado pela cheerleader. Sentado à beira de um rio, enquanto Lucas contempla uma ninfa de libélula engarrafada, Rina junta-se a ele e observa a feiúra do bicho.
Lucas: Vai virar um belo inseto, Rina.
Rina: Mas isso é possível?
Lucas: Dá para imaginar? Transformar algo feio em algo belo?
Rina: Não, francamente, não dá.
“Li a cena com ela, e ela partiu meu coração, pois parecia falar uma verdade profunda mesmo”, contou Seltzer. “Imaginei que Winona seria relegada ao papel de amiga desajeitada pelo resto de sua carreira.” Ao ver a cena, fica difícil chegar a essa conclusão. Embora tivesse apenas 13 anos, Ryder, com sua quietude, sua entrega serena e a capacidade de encantar em silêncio, era uma ilha de carisma. Talvez tenha sido mérito da direção de Seltzer — “A câmera vai ler os seus pensamentos” —, ou talvez fosse o jeito dela mesmo. De qualquer forma, ela domina as poucas cenas em que aparece, e sua desenvoltura contrabalanceia a juventude agitada de Haim. (Seltzer admite: “não rolou muita química entre os dois, ela parecia tão mais velha que ele”.) No fim dos expedientes de filmagem, os jovens atores discutiam o que haviam aprendido com Seltzer, vangloriavam-se de sua técnica — menos Ryder. “David me ensinou a descascar laranjas de uma só vez”, disse ela, e Seltzer se lembra disso com um sorriso estampado. “Ela estava disposta a jogar o jogo. Isso é Winona pura.”
Seu primeiro papel central foi logo em seu segundo filme. Também foi a primeira de muitas personagens mais novas que sua idade de fato. No drama familiar “Ciranda de Ilusões”, Ryder, com 14 anos, interpreta Gemma, de 13, garota do interior que se apaixonada por um deficiente mental de 21 anos de idade (Rob Lowe) depois de deixar o avô (Jason Robards) para morar na cidade com a mãe (Jane Alexander). Alexander, também coprodutor executivo do filme, conta que o diretor Daniel Petrie avaliou centenas de garotas, “até Winona aparecer”. Ela havia trabalhado em apenas um filme, mas sua presença era retumbante. “Ela tinha uma personalidade forte bem singular — era muito autêntica, observadora, incisiva”, descreve Alexander. “Ela irradiava uma naturalidade, e não só em cena, como fora das telas.” Ryder creditou Alexander por ensiná-la a ter paciência entre tomadas, e Robards, por ensiná-la a ser mais natural. “Se eu não tivesse trabalhado com pessoas como Jane e Jason, provavelmente teria bombado diversos papéis”, disse ela. Ela se referia a Robards e Alexander como seus mentores, embora o segundo negue ter ensinado qualquer coisa a Ryder. “Se tive algum mérito, foi incentivá-la a acatar suas emoções”, conta Alexander. “Ela tirava emoções da manga.”
Tim Burton farejou esse dom logo que a viu em um filme pela primeira vez. E se lembrou dela na hora de selecionar os atores para seu novo projeto, um filme sobre dois fantasmas que assombram uma família e fazem amizade com sua filha, Lydia Deetz, uma espécie de Vandinha. “Perguntei da Winona Ryder porque havia visto ela em ‘A Inocência do Primeiro Amor’, e ela tinha uma presença muito forte”, o diretor explicou no livro “Burton on Burton”. Ela também se parecia com a personagem, fisicamente. “Várias peças de roupa eram minhas mesmo”, Ryder contou à Vogue em 1989. “Minha pele era pálida daquele jeito.” E desde a primeira cena, recostada no sofá, ela emerge como uma Cleópatra anêmica no olho do furacão. “Minha vida é um quarto escuro”, Lydia diz sob um véu negro. E então: “pessoas vivas ignoram tudo que é esquisito e diferente. E eu sou esquisita e diferente.” Ryder sentiu uma afinidade com Burton, que era excêntrico como ela (“estou absolutamente só”, Lydia escreve no diário, em sua primeira narrativa Salingeresca, primeira de muitas). “Tim fala a minha língua, sabe?”, disse ela na época. “Compartilhamos a mesma sensibilidade.”
Aparentemente, o mundo todo compartilhava. “Os Fantasmas se Divertem” estreou no Dia da Mentira, em 1988, e rendeu US$ 32 milhões nas primeiras duas semanas, além de um Oscar por Melhor Maquiagem. Conforme Mark Salisbury escreveu no livro “Burton on Burton”, “ser esquisito era bom, aceitável, um triunfo”. Bem como Winona Ryder.
A esquisitice de Winona Ryder não tinha o mesmo apelo fora das telas. “Ela prestava muita atenção na crueldade das garotas adolescentes”, conta Alexander. “’Atração Mortal’ era uma história real, se pararmos para pensar nas coisas que Noni nos contou sobre sua vida escolar.” Mas esse filme só saiu dois anos depois. O roteirista de primeira viagem Daniel Waters vendeu sua obra de humor negro, repleta de jargões, sobre quatro adolescentes — três Heathers e uma Veronica, grupinho popular do colégio Westerberg —, aos estúdios New World. Com a ajuda de Jason Dean — variação homicida do jovem transviado —, Veronica Sawyer assassina a Heather mais popular do grupo e arma para parecer suicídio, desencadeando uma série de imitadores na escola. Waters escreveu o roteiro inspirado no número crescente de adolescentes que se matavam na América dos anos 80. “O filme veio da canonização do suicídio adolescente, e da adolescência em geral”, disse ele. Segundo o livro de John Ross Bowie, “Heathers”, Waters via Veronica Sawyer como “Travis Bickle revestido de Molly Ringwald”. Ele queria a Jennifer Connelly para o papel. O estúdio queria Justine Bateman. Ninguém queria Winona Ryder.
“Li o roteiro e, pela primeira vez, pensei, ‘preciso desse papel’”, Ryder contou à revista britânica The Face em 1989. “Não era uma questão de querer ou achar que deveria, era que ninguém entenderia aquilo como eu.” O roteirista de “Os Fantasmas se Divertem” deu uma cópia do roteiro a ela, mas seu agente implorou para ela não tentar o papel. Ela não deu ouvidos. A produtora Denise Di Novi se lembra da atriz sentada em seu escritório na New World (com a mãe), dizendo: “eu aceito o papel por um dólar. Faço de tudo, não importa o quanto vou ganhar”. Mas embora Waters considerasse ela uma “grande atriz”, não achava que era “atraente o bastante”. E não era a primeira vez que Ryder, cujos primeiros quatro personagens costumavam ser descritos como “familiares”, ouvia isso.
Então, ela entrou numa loja de departamento, renovou o armário e, segundo Waters, “chegou a ameaçou se matar caso não conseguisse o papel”.
[olho]“Estou procurando alguém no mundo com quem possa me identificar”[/olho]
Ela praticamente era a personagem: Veronica era uma gótica suave, Ryder também. Veronica era menos feminina do que as amigas de cabelo volumoso, Ryder também (ela só não usava um monóculo). E ambas pensavam além da dinâmica das panelinhas, e escreviam sobre isso no diário (“eu queria me aprofundar nessa tradição de diários femininos”, disse Waters). Ryder também tinha uma conexão pessoal com a história: a menina excêntrica, a gótica da escola, passou a ser venerada após o suicídio, pelas mesmas pessoas que a alienaram quando era viva. “A história me pegou de jeito, porque eu ficava enojada com os comportamentos na escola”, disse Ryder. E também tinha uma ligação com J.D. Salinger. No rascunho original do roteiro do filme, Heather Duke escrevia sua nota de despedida em uma cópia de “O Apanhador no Campo de Centeio”. Mas Salinger “titubeou com a ideia”, então trocaram por “Moby Dick”. Holden passou a colorir a história de uma maneira mais sutil e abstrata, através do distanciamento entre Veronica e os pais (e adultos em geral), e da equação adolescência e conflitos: “o que os jovens inflingem uns aos outros no colégio é tão ruim quanto o que os adultos inflingem uns aos outros em guerra”.
No fim das contas, Waters transformou Veronica Sawyer em “o Albert Speer do colégio Westerberg”, isto é, uma nazista arrependida. Ele disse a John Ross Bowie que “suavizou” a personagem por conta da postura “volúvel” de Ryder (palavra que, sem dúvidas, ele aprendeu com a resenha de Pauline Kael na New Yorker: “Winona Ryder tem uma aparência adorável, mas seu papel é volúvel e ‘real’ demais para as atrocidades de mentirinha que acontecem a seu redor”). Ryder e sua personagem eram uma só, e sua atuação transcendeu o mero carisma. Em uma cena em particular, ela gargalha com J.D. no funeral de dois jogadores de futebol americano — Veronica matara ambos a tiros —, até que uma garotinha, provavelmente caçula de um dos falecidos, vira-se para eles com um olhar de reprovação. A maneira como o riso de Ryder se dissolve lentamente, como ela vira o rosto, como um filhotinho de cachorro cheio de amores para dar, arremata a sátira. Ela é o condutor moral da trama. “É como se eu trabalhasse com essas pessoas, e o nosso trabalho fosse ser popular e tal”, Veronica fala para J.D., e nós acreditamos nela. Ela não pretendia matar as Heathers, só queria ser mais madura que elas. Conforme ela mesma diz, “está na hora de crescermos, virarmos adultas e morrermos”.
“Atração Mortal” acatou sua atuação e chafurdou nas bilheterias, recebendo em retorno apenas um terço dos custos de produção. O crítico Timothy Shary observou que o lançamento do filme em 1989, depois de suicídios em série no país, foi como lançar um filme sobre tiroteios em escolas um ano após o episódio de Columbine. Então, surgiu o VHS (e a TV a cabo), e de repente o filme virou um clássico cult. “Acho que ‘Atração Mortal’ mexe com os jovens, faz eles refletirem sobre a hipocrisia”, disse Shary. “Instiga debates sobre as ironias do comportamento colegial e, claro, é um dedo na cara dos círculos sociais e sistema de castas das escolas, formalidades que muitos adolescentes detestam, mas aceitam, de qualquer forma.” Até hoje, Veronica Sawyer é a personagem favorita de Ryder.
Não havia mais outro caminho se não o declínio. No final dos anos 80, Karen Leigh Hopkins escreveu um filme obscuro, mágico e realista sobre iconografia, que ela costuma equiparar a “A Noite Americana”, de François Truffaut. O roteiro original de “A Volta de Roxy Carmichael” não tinha um papel para Winona Ryder, mas Hopkins resolveu criar Dinky Bossetti para ela, uma garota de quinze anos que acredita ser a filha renegada de uma celebridade local desaparecida. Dinky tinge as roupas com carvão, cerca o quarto de arame farpado, escreve poemas ranzinzas e, assim como Ryder, é desprezada pelos colegas da escola, que a usam de alvo. Ela prefere “livros a bonecas, botas a sapatilhas de bailarina”, e proclama “quem é que entende os outros, afinal? Quem quer entender? Já é difícil o bastante entender a si próprio”. Assim Hopkins descreve Ryder: “ela era muito parecida com a personagem. Tão inteligente e diferente e ousada”.
Lançado em outubro de 1990, perto do décimo nono aniversário de Ryder, “Roxy Carmichael” foi vítima de uma direção insossa — salvo o floreio burtonesco — e teve pouco retorno. Mas foi um filme intrigante, sim, a ponto de uma empresa de financiamento sondar Hopkins recentemente sobre uma possível refilmagem. “Acho que precisamos desse filme agora, mais do que precisávamos 20 anos atrás”, disse ela. Hopkins se refere especificamente ao tema intimista do filme, o isolamento. “Para mim, o filme era sobre não se identificar com ninguém”, contou. “Estou procurando alguém no mundo com quem possa me identificar”, Ryder admitiu à Premiere, em 1989. “[Dinky] até que é bem parecida comigo”, embora Hopkins não tivesse se dado conta da semelhança logo de cara. “Acho que ela captou a inteligência de Dinky, e a diferença entre quem era Dinky e o resto do mundo”, disse Hopkins. “Não é que ela queria ser diferente, ela era diferente de fato e merecia o papel.”
O papel seguinte de Ryder foi bem diferente. Em “Edward Mãos de Tesoura”, ela interpreta o tipo de garota que sempre desprezou: a cheerleader loirinha. “Kim era parecida com as garotas que me chamavam de esquisitona e tacavam Cheetos em mim na oitava série”, contou ela. A ideia da sinopse — um homem com tesouras no lugar das mãos aparece em uma comunidade suburbana — surgiu de um desenho antigo de Tim Burton, do alto de sua adolescência. “Na época, imperava a sensação de que a minha imagem e a percepção que os outros tinham de mim divergiam da minha essência”, ele declarou em “Burton on Burton”. O diretor notou que Johnny Depp — ídolo adolescente por dentro, hippie por fora — vivia no mesmo limbo. E embora Ryder não fosse como Kim, ela conseguiu se identificar um pouco com a personagem. “Em termos físicos, meu papel no filme era tudo que eu havia repudiado a vida inteira”, Ryder contou à revista britânica Select em 1991. “Mas ela se apaixonou por Edward porque se sentiu diferente.” A peruca clarinha de Hayley Mills fez os olhos de Ryder — o atributo que todos que a conhecem não param de louvar — se sobressaírem ainda mais, transformando-a em uma obra viva de Margaret Keane. “Ambos os atores têm um quê de cinema mudo, sabe? Ambos dizem muito com os olhos, sem precisar emitir uma palavra”, diz Burton nos comentários do DVD.
Na última vez que Winona Ryder interpretou uma adolescente, ela voltou a ser a boa e velha garota excêntrica. Em “Minha Mãe é uma Sereia”, ela é Charlotte Flax, a filha religiosa de uma mãe solteira e sacrílega. Baseado no romance de Patty Dann, de 1986, é mais um drama nostálgico de formação, passado em 1963. “Sereias sempre me intrigaram, essa coisa de ser meio peixe, meio mulher”, Dann explicou via email. “As mulheres da família Flax parecem sereias — todas elas são meio infantis, meio crescidas.” Ao passo que a mãe usa vestidos de bolinha coladinhos, Charlotte veste uma túnica e um terço, e tenta expurgar, com orações, os pensamentos impuros sobre o zelador do convento local (Michael Schoeffling, famoso por interpretar Jake Ryan, o cara dos sonhos em “Gatinhas e Gatões”, antes de largar Hollywood e seguir carreira como marceneiro). O comportamento dela lembra o velho testamento de Ryder, “O Apanhador no Campo de Centeio”. “A ambivalência, a presença simultânea de sentimentos positivos e negativos em grau equivalente, domina Holden no decorrer do livro”, escreveu Harold Bloom. Era um tema que Ryder ainda revisitaria em “Caindo na Real” e “Garota, Interrompida”, e em “Minha Mãe é uma Sereia”, foi realçado pela narração de Charlotte. “Adoro como ela era completamente inconsistente”, disse Ryder. “Eu sou completamente inconsistente.”
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Winona Ryder apareceu na hora certa. O crítico de cinema Timothy Shary caracteriza o gênero adolescente como “cíclico”. O primeiro filme de Ryder, “A Inocência do Primeiro Amor”, foi lançado no fim da era super-hormonal de “Porky’s” (a AIDS e a gravidez adolescente acabaram com a festa) e cinco anos antes da estreia de “Os Donos da Rua”. No período entre 1986 e 1990, durante sua carreira adolescente, pipocaram cerca de 250 filmes americanos sobre adolescentes, sendo os mais memoráveis aqueles sobre a nostálgica perda da inocência, como “Dirty Dancing” (1987), “Hairspray” (1988) e “A Sociedade dos Poetas Mortos” (1989). Três filmes de Ryder — “A Fera do Rock”, “1969”, “Minha Mãe é uma Sereia” — aderiram à moda. Ela estava na crista da onda: pós-sexomania, pré-moda da violência — a pista de pouso ideal para uma alienígena de olhos grandões.
“Era difícil dizer qual garota era o rosto dos filmes adolescentes no fim dos anos 80”, conta Shary. Os Brats já tinham ficado para trás, bem como John Hughes (seu último filme adolescente, “Alguém Muito Especial”, saiu em 1987), embora ninguém se esqueça deles. “[Hughes] mostrou que era possível fazer filmes adolescentes sensíveis sem nudez e sem apelar para a ânsia sexual adolescente”, acrescenta. Ele acredita que isso foi “um fator favorável para atrizes como Winona Ryder se estabelecerem, atrizes que deram as caras no fim dos anos 80 e foram levadas a sério enquanto adolescentes.” Mas, enquanto a musa de Hughes, Molly Ringwald, corria atrás de caras ricos, Ryder cuidava da própria vida. “Molly Ringwald era uma espécie de queridinha da América”, explica Shary, “e acho que Winona Ryder, por outro lado, dedicava-se a papéis mais cínicos, mais calejados”. E ela não tinha papas na língua. “Esses filmes são tão piegas”, disse Ryder a respeito do cânone de Hughes. “Como os adolescentes deixam colarem esses rótulos em suas costas?!?” “Atração Mortal” foi um contraponto — Waters disse à Entertainment Weekly que “há toda uma ala colegial que ninguém estava explorando” — e Ryder se orgulhava disso. “Tem uma garotada muito esperta por aí, que não quer ser insultada por John Hughes”, disse ela. Não por acaso, provavelmente, em “Edward Mãos de Tesoura”, Tim Burton transformou o xodó de Hughes, Anthony Michael Hall, em um psicopata, ao passo que, em “Minha Mãe é uma Sereia”, Ryder transou com o modelete dos anos 80 Jake Ryan depois de Molly Ringwald ousar apenas beijá-lo.
[olho]“Ela tem o rosto mais perfeito que já vi”[/olho]
Embora a maioria de seus filmes não tenha sido um estouro, Ryder foi agraciada pela crítica, e chegou a receber um prêmio do Independent Spirit por “Atração Mortal” e um Globo de Ouro por “Minha Mãe é uma Sereia”. “Quando chegou aos vinte anos, no início dos anos 90, ela já era influente o bastante para fazer filmes como ‘Drácula’ e ‘A Época da Inocência’ e ser levada a sério”, conta Shary. Mas não é por isso que ela virou um ícone. De acordo com o livro “Gods Like Us”, de Ty Burr, essa também foi a década das revistas para fãs. Entertainment Weekly, Premiere, InStyle, People e Us Weekly “revitalizaram o interesse pelo triângulo mulheres, fama e estilo”, escreveu Burr. “As revistas validavam as personas, criavam narrativas públicas, julgavam os escândalos em nome do povo e dissipavam o mistério em torno dos filmes, substituindo-o por uma ilusão de acessibilidade e conhecimento”. Apesar de admitir que as revistas de fofoca “mantiveram a visibilidade pública [de Winona]”, Shary observa que Ryder recebeu as “melhores críticas de todos os tempos” nos anos 90 (sua primeira indicação ao Oscar aconteceu em 1993, por “A Época da Inocência”, com direito a uma indicação consecutiva no ano seguinte, por “Adoráveis Mulheres”). Mas não é o que costumamos recordar. A maior lembrança da época é a Winona eterna. A “Winona Forever”.
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Eles saíram juntos pela primeira vez dois meses após a estreia de “Atração Mortal”, dia 16 de junho de 1989, no Teatro Ziegfeld, em Nova York. Ela tinha 17 anos, e ele, 26. Era a premiere de “A Fera do Rock”, e Winona chegou em um Cadillac cor-de-rosa, vestindo um Giorgio di Sant’angelo colado cor-de-fantasma. Ela mudou do preto rebelde para o branco rebelde (“apesar de ‘Atração Mortal’ não dar muito dinheiro, as pessoas passaram a acreditar que eu poderia interpretar papéis atraentes por causa do filme”). Com um batom cor-de-framboesa e olhos cor-de-pêssego, ela compôs um look suculento. Johnny Depp, protagonista do seriado “21 Jump Street”, apareceu de jaqueta de camurça marrom, jeans e camisa preta (um ano depois, ele ostentou o exato mesmo look no filme “Cry Baby”, de John Waters), igualmente sedutor. Eles tinham cabelos iguais — curtinho, escuro, bagunçado — e eram bem parecidos em outros aspectos. Depp também era pouco convencional, um discípulo dos beatniks e fã do padrinho de Ryder, Timothy Leary, sem falar em Salinger. A beleza dele era atípica, como a dela. “O tipo Johhny Depp de beleza era quase uma afronta a Tom Cruise”, explica Elaine Lui, do blog Lainey Gossip.
No fim de 1989, eles já estavam noivos, e em dezembro do ano seguinte, Depp fez a famosa tatuagem “Winona Forever”. Ryder não era mais a virgem santinha. “Recebi muitos pedidos de casamento ano passado”, disse ela antes de conhecer Depp. “Sou muito ingênua com essas coisas.” Depp, divorciado já aos 22 anos de idade, a iluminou. “Foi uma mudança drástica de identidade”, descreve Lui. “De garota esquisitinha à garota mais linda do mundo com o namorado mais lindo do mundo, vivendo o amor mais lindo do mundo.” E o casal vivia bradando o amor aos quatro ventos. “Amo essa garota. “Amo muito”, declarou Depp na época. “Acho que amo mais ela do que a mim mesmo.” Ryder era menos emotiva, mas não menos franca. “Quando conheci Johnny, era virgem”, disse. “Ele mudou isso. Ele foi o meu primeiro em tudo. Meu primeiro beijo de verdade. Meu primeiro namorado de verdade. Meu primeiro noivo. O primeiro cara com quem transei. Então, ele estará para sempre em meu coração. Para sempre.” A imprensa nunca se fartava. Os paparazzi os cercavam em aeroportos, os tablóides não paravam de falar deles. Em maio de 1991, passaram a morar juntos, e a imprensa ficava de tocaia na vizinhança. “Nós dois éramos muito jovens e bem abertos quanto aos nossos sentimentos”, Ryder contou ao Daily Beast em outubro do ano passado. “Ainda não tínhamos aprendido a não compartilhar tudo com todo mundo.” Mas ela entendeu rápido. “Quando eu era novinha, era a queridinha da imprensa”, ela contou à Harper’s Bazaar em 1990. “Até que noivei o Johnny. Foi de mau a pior.”
Dá para traçar a evolução dela pela Vogue. Em junho de 1989, pela primeira vez, Ryder apareceu na bíblia da moda usando um terno masculino — caracterizada como “meio Annie Hall, meio Holly Golightly”. Seis meses depois, estampou sua segunda edição com fotos topless na cama. Mais ou menos na mesma época, Ryder leu um artigo “nojento” em outra revista, que a listava entre uma série de atrizes que tinham seios surpreendentemente grandes. “Foi a primeira vez que li um texto assim sobre mim, e pensei, ‘nossa, não me veem mais como uma atriz infantil!’”, contou. “Eu me senti violada.” Ainda assim, Ryder, que já fora considerada feia demais para Hollywood, virou hit das capas de revista de moda. Ela, no entanto, não abraçou o papel. Evitava desfiles de moda, não fazia penteados nem maquiagem para os eventos, vestia (e repetia) modelitos vintage no tapete vermelho, e às vezes até combinava o look com Depp — camisetas largonas, jaquetas de couro, jeans.
Ela tinha o estilo perfeito na hora perfeita. O grunge estava fazendo por onde, e a inconformada Noni, miúda apesar das curvas, caiu como uma luva para a década do heroin chic. Mas, oficialmente, ela só se tornou ícone do estilo em 1993 — quando adotou o cabelo pixie. “O novo corte pixie de Winona Ryder lembra a elegância gamine de Audrey Hepburn”, anunciou a Vogue. Para perpetuar a tendência, a revista ainda publicou um artigo sobre a volta do gamine. “O pessoal da moda ama essas coisas”, disse Lui a respeito da chancela da haute couture. “Mas, sério mesmo, é aquele rosto. Aqueles olhos. Aquele rosto ossudo.” Para dar uma ideia, o finado maquiador Kevyn Aucoin contou à Allure em 2000 que nunca gastou mais que 15 minutos na maquiagem de Ryder. “Eu nunca tinha visto um rosto tão perfeito”, disse ele. “Parecia uma boneca de porcelana.”
[olho]“Há uma obrigação em comercializar algo quando há uma celebridade envolvida”[/olho]
Ela, no entanto, não se sentia linda assim. Aos 17, Ryder começou a ter ataques de ansiedade “terríveis”. Um ano depois, largou as filmagens de “O Poderoso Chefão: Parte III” por conta do furor dos tablóides com a crise aguda de sinusite e bronquite que ela enfrentou no set de “Minha Mãe é uma Sereia”. “Não tirei férias”, ela contou à Vogue. “Quando finalmente tirei, estava muito estressada.” Aos 19, piorou. “Eu agia como se estivesse tudo bem — simplesmente sorria”, disse ela. “Estava sempre sob os holofotes.” Contudo, tinha problemas para dormir de novo (ela sofria com insônia desde criança) e estava bem jururu nas filmagens de “A Casa dos Espíritos”. Ela admitiu que a imprensa “pesou” no relacionamento com Depp, mas não foi o único problema. “Eu vivia uma vida que não me deixava confortável, tentando ser a pessoa que descreviam nas revistas e jornais”, ela contou à Rolling Stone. “Eu era a Winona! Era preciosa! Adorável! Sexy!” Ela descreve o momento como uma crise de identidade. “Quando você passa os principais anos da adolescência sendo observada e criticada por milhões de pessoas que acham que sabem o que é bom ou ruim para você, você perde o senso de identidade”, explicou Ryder. Ela se consultou com uma terapeuta que a diagnosticou com “ansiedade antecipatória” — pavor ao antecipar eventos — e com a bizarra condição denominada “nostalgia antecipatória”. (No New York Times, a psicóloga Constantine Sedikides recentemente descreveu essa “condição” pouco conhecida, que poderia muito bem ser a raison d’être da era atual, dado o ímpeto de “construir memórias para serem nostálgicas”.) A terapeuta prescreveu pílulas para dormir, e ela acabou viciando. Em seguida, ela tentou “bancar a alcoólatra por duas semanas”, mas desencanou depois de dormir com um cigarro aceso. Então, em abril de 1993, dois anos depois de canonizar o romance em um artigo da Vogue, Winona Ryder e Johnny Depp terminaram.
***
A certa altura, Winona Ryder tinha 12 guitarras. “Nunca me senti fisicamente bonita, mas sempre senti que era única, e isso importava mais para mim”, ela contou à Vogue em 2007. “Curtir a música que eu curtia era muito mais uma questão de individualidade do que beleza.” A casa dela era repleta de pôsteres das bandas The Clash, Patti Smith, The Runaways e The Replacements, e em 1990 ela contou à Seventeen que Paul Westerberg, líder da última, era seu maior ídolo, declaração que, aparentemente, determinou seus relacionamentos futuros. Os Replacements são considerados um dos pioneiros do rock alternativo, e o histórico de namorados de Ryder é uma enciclopédia do gênero. Era como se, paradoxalmente, estivesse tentando estabelecer uma individualidade através dos relacionamentos.
Em menos de um mês após terminar com Depp, que originalmente queria ser músico, ela começou a sair com Dave Pirner, da banda de grunge Soul Asylum. Além de Pirner (que aparentemente compôs “Just Like Anyone” para ela), Ryder já foi associada aos seguintes músicos (a lista não segue nenhuma ordem específica): Ryan Adams (ao que parece, “Cry on Demand” é sobre ela), Beck (supostamente, “Lost Cause” é sobre ela), Conor Oberst, Pete Yorn, Blake Sennett, do Rilo Kiley, e Dave Grohl. Ela também inspirou a referência a “O Apanhador no Campo de Centeio” na canção “Rollerskate Skinny”, da banda Old ’97s — Rhett Miller contou à Nerve que compôs a faixa quando Ryder terminou com Matt Damon e se apaixonou por ele, com quem ela vivia falando do ex. “Escrevi a canção para mandar um recado do tipo, ‘sério mesmo que você está reclamando da vida? Pelo amor!’”, disse ele. Também tem a música “Winona”, de Matthew Sweet, título sugerido por um amigo porque Sweet adorava o filme “Atração Mortal”.
Não demorou muito para virar piada. Segundo a Rolling Stone, em um show, Courtney Love brincou que “Kurt a trocaria por Winona”, ao ponto de um repórter da Sassy especular que homens passaram a montar bandas alternativas só para conhecer Ryder. Mas a maior chacota de todas foi “Caindo na Real”. O filme de Ryder, de 1994, glamurizou a moda grunge, as referências literárias e o estilo roqueirinho que ela vivia. Foi uma versão adolescente tardia de seus filmes de formação que a tornaram famosa. Ela interpretou Lelaina Pierce, uma oradora da turma da faculdade que, de repente, se vê como uma “garota indie desempregada”, tenta ganhar a vida com documentários independentes e acaba virando mainstream. “É sobre pessoas tentando encontrar a própria identidade sem modelos e ídolos reais”, Lelaina disse sobre o próprio filme, descrição que também define bem “O Apanhador no Campo de Centeio” e a própria Ryder. Não por acaso, Helen Childress escreveu o roteiro com a atriz em mente. “Não havia ninguém como ela”, disse. E Ryder adorou. “Foi a primeira vez que sorri e gargalhei e me diverti de fato com um roteiro engraçado assim desde ‘Atração Mortal’”, disse ela.
Quem diria que o filme concederia a trilha sonora da geração X? Um pastiche com refrigerante de máquina, cabelos oleosos, roupas vintage, referências da cultura pop e cafés esfumaçados! Ryder contou ao The San Francisco Examiner que “o roteiro de ‘Caindo na Real’ era bem diferente do resultado final do filme. Deu a impressão de que o documentário da minha personagem ditava a narrativa”. Ela assumiu a culpa, e declarou à Life: “há uma obrigação em comercializar algo quando há uma celebridade envolvida”.
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Ryder era uma celebridade relutante, mas estava prestes a se tornar amiga de uma estrela e tanto. No começo, a favorita para o papel de Janeane Garofalo em “Caindo na Real” era Gwyneth Paltrow. Contudo, três anos após o lançamento do filme, a revista People relatou que, à época, Paltrow estava se recuperando da separação com Brad Pitt no apartamento de Ryder, em Manhattan. Teoricamente, Veronica detestava toda e qualquer Heather, mas àquela altura, ela ficou muito amiga de uma — Paltrow era a estrela convencional, loirinha, prestes a ganhar um Oscar por “Shakespeare Apaixonado”. Ryder e Paltrow apareceram de mãos dadas na premiere de “Cidade de Tiras” em 1997 e, apesar de já estar saindo com Ben Affleck meses depois, ela foi flagrada de mãos dadas com Ryder mais uma vez durante a cerimônia do Globo de Ouro, em janeiro. Foi ela que apresentou Ryder ao melhor amigo de Affleck.
Matt Damon e Winona Ryder formavam um par esquisito. Às vésperas da vitória do Oscar por “Gênio Indomável”, Damon não fazia muito o tipo de Ryder. Elaine Lui acredita que essa seja justamente a questão. “Foi o único momento em que ela foi mainstream”, disse. “Matt Damon foi a chance dela se tornar uma Heather… Acho que, para uma garota como Winona, que nunca foi normal, e nunca se viu como normal”, explicou Lui, “seria muito tóxico ser normal”.
O relacionamento dela com Damon durou dois anos, e com Paltrow, menos ainda. Como uma mancha de batom persistente no colarinho de uma camisa branca, correram as más línguas que Paltrow roubara o roteiro de Ryder para “Shakespeare Apaixonado”.
[olho]“Penso nela como uma atriz do cinema mudo”[/olho]
Mas a carreira de Paltrow como guru em estilo de vida inevitavelmente levaria o duo à ruptura. Filha do diretor Bruce Paltrow e da atriz Blythe Danner, Paltrow tinha pedigree de Hollywood, assim como Angelina Jolie, que também levaria um Oscar em breve, depois de atuar com Ryder em “Garota, Interrompida”. Jolie hoje é uma das mulheres mais famosas do mundo, mais do que Paltrow, embora ambas sejam igualmente ativas fora das telas, o que as protege do machismo hollywoodiano à medida que envelhecem. “Elas estavam muito mais preparadas para existir diante da fama, e deram um jeito de prosperar”, descreveu Lui. “Winona nunca conseguiu encontrar seu caminho na fama, acho que ela não tem esse dom… Não adianta atuar e produzir, tem que jogar o jogo. E a diferença entre Winona e Gwyneth ou Winona e Angelina é que ela não sabe jogar. Nunca soube e nunca vai saber.”
Foi assim desde o começo. “Fui a algumas festas em Los Angeles e tentei curtir”, Ryder contou à Premiere em 1989, três anos após seu primeiro filme. “Mas fiquei assustada, enojada. Era puro estrelismo, a galera fazendo de tudo para aparecer. É meio triste.” Ela tinha só 17 anos na época e, aos 18, os sentimentos não mudaram. “Agora que tive minha primeira experiência com os tablóides”, ela contou ao New YorkTimes, “tenho receio de conversar com alguém numa limousine por conta do motorista”. Em geral, ela não falava muito. Interagia o mínimo possível com a imprensa — seu primeiro bate-papo com plateia foi com a Oprah, para promover “Minha Mãe é uma Sereia” —, e durante um bom tempo sua única entrevista depois do horário nobre foi com Charlie Rose. Quando abria a boca para falar, reclamavam que ela divagava. Ela estava familiarizada com o “protocolo”, mas achava tudo muito “tosco”, e resolveu priorizar a vida, e não a carreira. “Um artista de verdade não liga para essas coisas de carreira”, disse ela. “Mas é importante para muitas pessoas que se denominam atores e que na verdade são apenas posers.” Essa distinção era importante, estava na bíblia dela. “Se tem uma coisa que detesto, é o cinema. Nem ouse falar disso comigo”, diz Holden. Ryder estava dividida — ambivalente como sempre — entre amar o cinema e amar Salinger. “Por muito tempo, quase tive vergonha de ser atriz”, contou. “Eu achava que era uma profissão superficial.” Não era uma questão de exibicionismo, mas uma asserção. Depois de uma série de patacoadas (“Colcha de Retalhos”, “Boys”, “Celebridades”) e um hit (“Alien: A Ressurreição”), ela declarou à Vogue em 1999: “sou tão famosa quanto sempre serei. Jamais serei mais famosa do que agora”.
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“Estou com o pressentimento de que você está caminhando para uma queda terrível.” —O Apanhador no Campo de Centeio
Certa manhã, Winona Ryder acordou — ela tinha uns 21 anos na época — e se sentiu “sensível demais para viver no mundo”, então deu entrada em um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana. Ninguém falava com ela (a não ser para medicá-la). Mas, ao menos, ela começou a fazer terapia. E abriu as portas para “Garota, Interrompida”. “Quando atuam como se fossem ‘normais’, fica a questão: qual é a diferença entre essa pessoa e eu? O que leva ainda a outra questão: poderia ser eu no pinéu”, Susanna Kaysen escreveu acerca da própria institucionalização. Esse livro era justamente o que o médico havia receitado (ou deveria ter receitado) para Ryder, que lamentou não saber dele na adolescência. “Percebi que o que aconteceu comigo não era incomum”, ela contou à Vogue. “Foi tipo, ‘Meu Deus, tentei dizer isso a vida inteira e nunca consegui’.”
A adaptação do best-seller, publicado em 1993, demorou seis anos, e Winona interpretou um papel de 18 anos de idade aos 27. Kaysen conversou bastante com o diretor e co-roteirista James Mangold, mas só foi conhecer seu alter ego quando começaram a filmar, em 1998 (30 anos após os eventos descritos no livro). Ela foi até a Pensilvânia assistir a um dia de gravação, e à noite passou duas horas com Ryder, que estava faminta e exausta. A autora achou que o encontro foi muito rápido para despir a estrela da fama. “Não me encontrei com uma pessoa, parecia mais um artefato”, diz Kaysen. “Achei que não passamos tempo o bastante juntas, não consegui abstrair o fato de estar conhecendo alguém que não era exatamente uma pessoa para mim.” Entretanto, ela compreendeu que Ryder não visava “mimetizar” o comportamento de Kaysen, mas atentar para a própria experiência. “Creio que ela fez um excelente trabalho tentando entender como interpretar uma garota confusa e desesperada, e acho que é porque ela havia passado por isso”, disse Kaysen. “Ela não precisou conversar comigo para entender o papel.”
[olho]“Para nós, Winona Ryder é um ícone autêntico”[/olho]
“Garota, Interrompida” costuma ser o último filme associado a Ryder. Também é o último filme em que ela deu vida à persona que a tornou famosa: obscura, inteligente, hermética — persona pela qual foi celebrada na juventude, porém institucionalizada enquanto adulta. Apesar de já ter vivido sua fase de formação há bastante tempo, lá estava ela de novo, nas telas, tentando descobrir onde se encaixava, e compreendendo que, na verdade, encaixava-se em lugar nenhum. Assim como Susanna e Holden, Ryder mais uma vez estava presa em um limbo, algo que Mangold notou no set de filmagens. Ao observar sua inaptidão para tomar decisões, ele a chamou de “ambivalente”, ao que ela respondeu: “sou mesmo, não sou?” Ela sempre estava fora do lugar, tanto em cena quanto fora das telas, mas em 1999, quando o filme foi lançado, todo mundo já tinha seguido em frente. E Mangold sabia disso. “Penso nela como uma atriz do cinema mudo”, disse ele, “e acho que ela é uma raridade, talvez até um anacronismo, no cinema falado de hoje”. No fim das contas, a sociopata de Angelina Jolie eclipsou Ryder e sua fala inicial profética: “alguma vez, você já confundiu um sonho com a vida real e roubou qualquer coisa, mesmo com dinheiro no bolso?”
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Dois anos depois, a resposta foi “sim”. Dia 12 de dezembro de 2001, Ryder foi presa por furto na loja Saks, na Quinta Avenida, em Beverly Hills. Ela havia quebrado ambos os braços dois meses antes e estava sob o efeito de oxicodona. Depois do incidente, ela contou à Vogue que andava “esquisita” e tomava o remédio mesmo sem saber se ainda precisava. “Você já tomou analgésicos?”, perguntou. “É pura confusão.” Ryder achava que as coisas estavam sob controle, visto que muitas pessoas cometiam furtos do tipo e se safavam. Ela chegou a esquecer o cartão de crédito no balcão. “Ela desligou. Foi isso que aconteceu”, disse o pai. “Em vez de barrá-la e simplesmente dizer, ‘olha, você esqueceu de passar o cartão’, quando ela saiu da loja com mais de 5.500 dólares em roupas e acessórios, chamaram a polícia.” Detida no escritório da loja, Ryder concordou em reembolsá-los. Mesmo assim, foi presa. “Eu não disse uma palavra”, contou ela um tempo depois. “Não fiz nenhuma declaração. Não fiz nada. Só queria que aquilo tudo acabasse logo.” Ela buscou refúgio em São Francisco, seu lar, e “conscientemente” optou por largar o trabalho. Um ano depois, em um julgamento coberto pela mídia, ela foi condenada por furto e vandalismo a três anos de liberdade condicional e 480 horas de serviços comunitários. Também foi multada e instruída a fazer terapia.
Mesmo sem “o incidente”, o termo que Ryder se refere ao episódio, Elaine Lui acredita que o declínio da carreira da atriz seria inevitável. E depois do lançamento de “Alien: A Ressurreição”, em 1997, ela mal conseguiu trabalho. “Só me chamavam para interpretar papéis tipo policial novata!” Ryder contou à Vogue. “E eu respondi, ‘Não tenho nada a ver com isso. Não vou fazer papel de polícia!’”
Na época do crime, ela tinha acabado de fazer 30 anos. “Era um momento em que eu estava tentando me entender. Estava tentando entender como levar a vida fora do trabalho e dos relacionamentos”, disse ela. Ninguém deu a mínima. Foi três meses depois do 11 de Setembro, e o mundo só tinha olhos para isso. “Ela encapsulou todos os sentimentos daquele momento”, diz Lui. “Mas é claro que uma celebridade não faz a menor ideia de tudo de bom que tem em mãos e precisa entrar numa loja e levar tudo embora.” Ainda faltavam quatro anos para a TMZ nascer, mas o desenrolar minuto a minuto do julgamento de Ryder foi um estouro na internet.
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Depois do caos, Winona Ryder se reergueu aos poucos, quase que imperceptível (um papel sem graça em “A Herança de Mr. Deeds” aqui, uma ponta não creditada como psicóloga em “Maldito Coração” acolá). Ela recebeu mais atenção por sua primeira grande campanha de moda, em partes porque era uma sátira de sua infração. O designer de moda Marc Jacobs, famoso por fazer mashups de cultura pop em suas peças, estética que domina a internet, curtiu o look do julgamento e optou por ela como um dos rostos da campanha de primavera/verão de 2003. “Convidei a Winona para participar da campanha porque ela estava lindíssima nas fotos recentes”, ele contou à Hello!, “mesmo no tribunal”. Os anúncios retratam uma Ryder histérica, cercada de itens recém-comprados, e um par de tesouras ao lado (uma matéria relatou que ela havia cortado as etiquetas durante o incidente). Ryder figurou mais uma vez na campanha de outono/inverno de Jacobs, em um aparente revival de “Os Fantasmas se Divertem”, com uma franja escorrida e uma saia preta de tartã (o desfile de primavera de 2016 de Wes Gordon também fez alusão ao filme, segundo a Vogue, por meio de uma reprodução “obscura e pantanosa” do estilo de Lydia).
Em dezembro de 2015, Jacobs revelou que a primeira campanha de Ryder no mundo dos cosméticos seria a coleção de primavera de 2016 para a Marc Jacobs Beauty. Ele a anunciou no Instagram, veículo que, nas palavras da New Yorker, destaca a “fotografia como uma arte elegíaca e sombria, uma arte que acelera e falsifica a emoção das fotos antigas ao eliminar o peso da história e aplicar, em dois segundinhos, uma textura de tempo.” É a resposta da internet à nostalgia do presente descrita por Fredric Jameson, em que pautamos as nossas vidas por filtros e molduras para compor uma falsa vida digna de lembrança. Na campanha de Jacobs, os olhos de Ryder foram delineados com uma pincelada monocromática, e ele escreveu: “isto me lembra um dos meus filmes favoritos de todos os tempos: ‘O Ano Passado em Marienbad’. A elegância cool, indefectível, e o glamour atemporal da atriz Delphine Seyrig há tempos são referências para mim”. A homenagem moderna de Alain Resnais à era silenciosa apresenta Seyrig como uma Louise Brooks tardia, uma memória que não passa de um sonho, porque nada está muito claro — nem fato, nem ficção; nem tempo, nem espaço. Tudo isso é tão fluido quanto as imagens que emergem na tela, tão fluido quanto o delineador que contorna os olhos de Ryder. Mas a fluidez de Seyrig não é como a de Ryder. Em 2014, Ryder figurou na campanha de outono/inverno da Rag & Bone, com um cabelinho bagunçado que lembra a época de “Caindo na Real”. “Para nós, Winona Ryder é um ícone autêntico”, disse o designer Marcus Wainwright. “Ela também tem uma beleza atemporal.” E é essa atemporalidade que lhe confere valor — ela é a personificação da nostalgia dos anos 90.
É impossível pensar em Ryder sem pensar na era grunge. Na revista do New York Times, em 2011, Carl Wilson cantou a bola do “ciclo da ressurreição cultural de 20 em 20 anos”, anunciando que finalmente havia chegado à nostalgia da geração X. “Em termos mais suaves, a nostalgia é a cola que reforça os laços da solidariedade e experiência compartilhada”, escreveu. “E é um lembrete de que não nos importamos apenas com a criação de uma ideia ou imagem, mas também com a data — as coisas ganham mais significado quando estão em sintonia e contraponto com outros eventos e conceitos da mesma era.” Conforme Tavi Gevinson contou à Entertainment Weekly em 2014, “o que eu sinto quando vejo as fotos da Winona Ryder adolescente de mãos dadas com Johnny Depp, eles de jaqueta de couro, nossa, não tem nada igual”. A única pessoa que chega perto disso é a Winona Ryder de hoje, porque cravada na Winona Ryder de hoje está a Winona Ryder de outrora. Ela carrega o passado consigo. A atriz adolescente que tentou transformar a própria vida em nostalgia, antes mesmo de chegar ao ápice da carreira e se tornar a mulher que Marc Jacobs hoje enquadra em nostalgia. Ela é uma matrioska de nostalgia. A imagem de Winona Ryder impacta mais do que suas últimas atuações — em “Dez Mandamentos Muito Loucos”, “The Last Word”, “E se o Amor Acontece…” —, e isso apazigua o desejo crônico da nossa cultura por preservar o passado, em vez de aceitar o presente.
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De volta a 1991, quando Ryder sequer havia completado 20 anos, a Rolling Stone a elogiou por selecionar “papéis fortes para mulheres”, coisa que muitas outras atrizes não conseguiam fazer. “Ainda não passei por esse problema, porque ainda não interpretei nenhuma mulher de fato”, ela observou, perspicaz. Além do cânone da angústia adolescente, Ryder enfrentou tantas intempéries quanto todo mundo. Ano passado, um artigo da publicação acadêmica The Journal of Management Inquiry revelou que as celebridades femininas atingem um pico salarial aos 34 anos de idade. Para os homens, é 51. “O semblante vivido dos homens é visado pois transmite maturidade, caráter e sabedoria”, dizia o artigo. “O rosto feminino, em contrapartida, é valorizado pela sua juventude.” Isso explica por que, aos 52 anos, Johnny Depp, antigo par de Winona Ryder, está no leme de uma franquia e ganha US$ 30 milhões por filme, enquanto todos os bens de Winona Ryder, 44, estão estimados em metade disso, e a mídia lhe presenteia com migalhas de elogios por não aparentar a idade que tem. “Ele ainda é um possível candidato a Oscar, aos cinquenta e poucos, e ela provavelmente nunca mais vai concorrer, infelizmente”, diz Shary, lembrando que o papel mais chamativo de Ryder nos últimos anos foi de uma “coroa” em “Cisne Negro”. “É um sintoma da maneira como a indústria trata homens e mulheres.” Há quem culpe “o incidente’, mas seu colega de profissão Robert Downey Jr., nascido em 1969, já foi preso muito mais vezes que ela e hoje é o ator mais bem pago do mundo (ah, e pouco tempo atrás, foi perdoado por uma sentença de posse de drogas, de 1999). As mulheres não podem cometer erros, que dirá as mais velhas.
Não é à toa que J.D. Salinger, celebrado pela descrição realista do inconformismo, quase sempre escrevia sobre “pessoas bem jovens”. Enquanto Johnny Depp lucra com os caprichos de papéis principais mais velhos — “Piratas do Caribe”, “Sweeney Todd”, “Alice no País das Maravilhas” —, Ryder fica para trás. Mulheres não podem errar, não podem ser diferentes, e mulheres mais velhas em geral sequer são toleradas. Cabem às mulheres mais velhas, conforme Ryder já é classificada, os papéis de esposas (“O Homem de Gelo”, “Experimentos”), namoradas (“Homefront”) e mães (“Stranger Things“, nova série do Netflix). Resta a Ryder se conformar com papéis coadjuvantes, fato que nos traz ainda mais saudade de Lydia Deetz, Veronica Sawye e Charlotte Flax. Conforme ela contou à Interview, “você se acostuma com certo rumo das coisas, até que, de repente, cresce”.
Mas nós não nos lembramos dela adulta. “A verdadeira heroína Ryder é uma doce alma bamba, em transição rumo à maturidade”, escreveu Richard Corliss em um artigo de 1994 da revista TIME, sobre a geração vigente de vinte e poucos anos, a “Geração Winona”. E embora ano passado a Vogue tenha proclamado uma Winonascença, a própria atriz reconheceu que era um resgate do passado, que as imagens do Instagram retratavam uma “garota frágil de olhos grandões”. “A nostalgia está agarrada à nossa juventude, ao que curtíamos quando éramos novos, e também às pessoas que viveram essa juventude conosco”, Shary disse. “É preciso ter uma memória real da época para sentir nostalgia. Daqui a uma ou duas gerações, o que os papéis de Winona Ryder do fim dos anos 80 tinham de assertivos e acolhedores se dissipará.” Nossa memória de Winona Ryder é uma jovem silenciosa, um rosto gentil, uma voz remota, uma atuação paciente. Winona Ryder agora é mais mordaz, com um rosto anguloso, voz penetrante e postura mais agressiva. “Assustados” é como Lui descreve os olhos que a tornaram célebre. É como se, por não conseguir mais papéis semelhantes a ela, ela estivesse encenando tudo. Recentemente, Ryder contou ao Daily Beast que, quando foi convocada para a série “Show Me a Hero”, da HBO, o criador David Simon alertou: “melhor não mostrarmos esses olhos de Winona”. Foi o oposto do que sua bíblia pregava: seja honesto, inocente, puro. Em resposta, Ryder — que jamais conseguiu ser falsa — cortou os cílios. É praticamente impossível não compará-la com Sansão, o herói bíblico cuja fonte de poder eram as madeixas. É como disse Holden: “há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz.”
Publicado originalmente em Fevereiro de 2016 na Hazlitt. Republicado com autorização. Tradução por Stephanie Fernandes.
“Ano que vem eu quero estar na praia, vendendo minha arte… das coisas que a natureza dá pra gente.” Foi com essa resposta meio desconexa que uma jovem atriz disfarçada de atrasada do ENEM 2013 ganhou a simpatia dos internautas brasileiros e virou ícone de uma juventude, digamos, pouco ambiciosa. Mesmo desmascarada, a personagem Milena ainda aparece na foto de perfil da página “Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga” — criada pela curitibana Dominique Vargas, que trocou de faculdade sete vezes antes de descobrir que sabia fazer humor no Facebook.
Em 2012, Eric Barone morava em Seattle e tinha acabado de terminar o curso de Ciência da Computação quando se candidatou a algumas vagas de emprego. Ninguém telefonou. Desanimado com as pressões da vida adulta, mas acolhido pela namorada e amigos “boêmios”, resolveu fazer sua própria versão do colar de miçangas do povo de Humanas: um joguinho simples que serviria como exercício de programação e nada mais. O passatempo acabou se transformando em quatro anos de autoexílio de apartamento, busca pelo sentido da vida e, graças a uma rotina de trabalho de até 10 horas diárias, no maravilhoso jogo Stardew Valley. Lançado em fevereiro de 2016, o RPG conquistou uma das comunidades mais empolgadas da história do indie e vendeu mais de 1 milhão de cópias só nos dois primeiros meses.
Embora até o horroroso Farmville já tenha explorado a vida no campo, Stardew Valley é uma criatura bem diferente. Com seu jeito amigável, parece ter encontrado o terreno perfeito no coração de uma geração que conhece bem a insatisfação profissional e as perguntas que levam ao caminho da simplicidade. Seria Stardew o jogo terapêutico feito sob encomenda para o novo milênio? Para entender esse fenômeno, conversamos com seu criador, Eric Barone, com desenvolvedores brasileiros que acompanham a comunidade indie e com jovens que decidiram viver mais perto da natureza sem o auxílio de computadores.
Um lugarzinho chamado nostalgia
O protagonista de Stardew Valley tem um privilégio que o próprio Eric Barone, os atrasados do ENEM e milhões de moradores do Brasil em crise não tiveram: uma resposta fácil. Quem oferece a saída de emergência é o avô, numa carta planejada para um futuro em que o “fardo da vida moderna” se tornaria insuportável. A praga “do bem” se concretiza já na cena seguinte, quando encontramos o neto, agora adulto e deprimido, em um dos cubículos de uma grande empresa chamada Joja Corporation. Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo.
[olho]Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo[/olho]
Na conveniente cartinha, nosso herói ou heroína descobre que herdou uma fazenda na cidade de Pelican Town, na região fictícia que dá nome ao jogo. E o remetente já avisa que essa história não tem nada de original: “A mesma coisa aconteceu comigo muito tempo atrás. Tinha perdido de vista o que mais importa na vida… conexões reais com as pessoas e com a natureza. Então larguei tudo e fui para o lugar a que eu realmente pertencia”. De maneiras que talvez só a psicanálise explique, Eric Barone também parece ter buscado refúgio no universo em que se sentia mais à vontade: o exercício que decidiu fazer naqueles dias de desemprego começou como um clone capenga de um dos jogos de videogame que mais assombraram sua infância, o simulador de fazenda Harvest Moon.
Em uma conversa por e-mail e DMs pelo Twitter, em meio à fama recém-adquirida e à falta de tempo, Eric conta que foi o gameplay “simples, doméstico e pacífico” que o atraiu no primeiro título da franquia, lançado em 1996 para Super Nintendo. “A maioria dos RPGs leva o jogador a uma aventura grandiosa e cheia de perigos. Em comparação, ‘Harvest Moon’ era seguro e reconfortante”, relembra. “E tem a ideia romântica de que a vida no campo é mais real, mais natural. Acho que uma parte de mim também buscava isso.”
É tudo tão familiar que não dá para saber onde as semelhanças entre Stardew Valley e Harvest Moon começam e terminam. A sensação de perder tempo demais com uma atividade ingênua e constrangedora, mas estranhamente prazerosa, é uma delas. Outra está nos ciclos da natureza que regem a plantação de frutas e legumes, a criação de animais e o relacionamento com a comunidade. Cada dia propõe um espaço aberto para que o jogador possa planejar seus objetivos como quiser, apenas aceitando que o fazendeiro, trabalhador que é, dorme cedo e acorda com as galinhas. Cada mês equivale a uma das quatro estações do ano e traz sementes exclusivas, comemorações sazonais e oportunidades imperdíveis de fazer negócio. Por mais idealista que seja, o personagem precisa vender o que produz para sobreviver (ou para ficar rico, mesmo, nada contra).
[olho]Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia[/olho]
Parece natural, também, que as fitas do passado tenham influenciado diretamente a estética da homenagem. Os gráficos de Stardew Valley — que Eric refez várias vezes enquanto suas técnicas evoluíam ao longo do tempo — trazem o que a era 16-bit tinha de mais vistoso. São cores vivas, folhas pequeninas voando com o vento e seres humanos com um rostinho que você não enxerga direito, mas simpatiza bastante. Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia.
Quem acompanhou o trabalho dos desenvolvedores independentes nos últimos anos sabe que o “retrô” não é uma escolha tão incomum: já tinha acontecido em sucessos como FEZ, Braid e Terraria, para citar só alguns. Eric explica que a opção vai além do impacto emocional: “Enquanto a gente envelhece e as novas gerações chegam aos 20 anos, o período que chamamos de ‘retrô’ também vai mudando. Mas tem uma coisa: alguns estilos de arte envelhecem melhor que outros. Gráficos em pixel art 2D, por exemplo, ainda têm uma cara ótima para os jovens de hoje, mas os gráficos 3D da era do Playstation 1 ficaram horríveis”.
Thais Weiller, pesquisadora e game designer que fez parte da equipe dos jogos nacionais Oniken e Odallus, ambos com gráficos 8-bit, vê a tendência também como um caminho necessário para que equipes indie sobrevivam. “Um jogo em pixel art, apesar de ser muito trabalhoso, pode ser feito por uma ou poucas pessoas, como o próprio Stardew Valley. Um jogo 3D ou com pintura digital já envolve mais horas de trabalho e diferentes habilidades, o que torna tudo mais difícil para uma equipe pequena.”
As coisas que a natureza dá
Em Pelican Town, o primeiro contato com a plantação tende a ser modesto e até desastroso: o jogador mais descuidado corre o risco de demorar para entender algumas das mecânicas, já que não há nada parecido com um tutorial. Conversar com os moradores da vizinhança pela primeira vez não é lá grande coisa, embora o personagem possa, se cultivar uma paixão com muito esforço, casar e ter filhos. Pescar também não relaxa ninguém — o minigame difícil rendeu muita reclamação. Nas minas, o herói, munido de espadinha e picareta, pode tanto encontrar tesouros e riquezas quanto sucumbir ao ataque de insetos e morcegos. Muitas dessas experiências meio truncadas, meio vida real, só começam a fazer sentido com a prática e mostram a inteligência do design do jogo.
Chamar o protagonista de Stardew Valley de “fazendeiro”, na verdade, não faz jus a seus talentos. Com os ingredientes que se multiplicam já nas primeiras estações, nasce um artesão. Não basta plantar, regar (à exaustão) e colher. Uva e morango vão para os potes de geleia, rabanete e berinjela fazem ótimos picles, leite fresco se transforma em queijo, ovos em maionese — itens que o menu chama de “Artisan Goods”. Peixes, vegetais, farinha e açúcar também se misturam em receitas na cozinha da casa — só não vale carne: Eric é vegetariano e disse não se sentir à vontade com o abate dos animaizinhos. Com recursos como madeira, pedra e fibra, é possível fazer anéis, espantalhos e objetos de decoração. Encontrando diferentes minerais, o personagem se torna um colecionador excêntrico e colaborador frequente do museu da cidade.
A variedade impressionante de flores, frutos e surpresas que Eric Barone criou, sozinho em casa, faz com que ele também ganhe ares de colecionador ou artesão. “Dá pra ver o quanto cada coisinha foi feita com carinho”, diz Thiago “Beto” Alves, game designer da produtora Black River Studios.
Há objetivos maiores que organizam o inventário e guiam as conquistas. Um deles é a reconstrução do Community Center, um espaço comunitário que promete trazer uma vida melhor à pequena população. Mas nem o amor ao próximo é obrigatório: no começo da história, o jogador mais incoerente tem opção de entregar o casarão abandonado à mesma Joja Corporation que o fazia infeliz. Já os festivais e comemorações, inspirados em datas como Natal e Dia das Bruxas, se espalham pelo calendário e levam a comunidade às ruas, às vezes para fazer nada em conjunto, como na apática “Flower Dance”. Na “Stardew Valley Fair”, feira em que produtores locais expõem sua produção, dá vontade sincera de mostrar o melhor da fazendinha aos visitantes.
[olho]Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem[/olho]
Como acontece em aventuras pouco lineares, que deixam o destino à sua escolha e costumam durar mais, Stardew Valley tem muita chance de inaugurar um período de isolamento, o famoso “adeus, vida social!”. Na versão atual, a narrativa principal chega ao fim no começo do terceiro ano de tempo do jogo, mas há registros de jogadores que investiram mais de 400 horas de vida real. Beto conta, rindo, que completou 66 horas em dez dias. Na última vez que chequei, eu estava com 55 horas de jogo.
Entre gamers um pouco compulsivos, parece haver um acordo silencioso: o exagero está permitido quando, no fundo, se entregar a uma jornada como a de Stardew Valley também é um jeito de realizar o sonho de “largar tudo e ir morar no mato” sem sair do conforto da cidade. Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem: “Como jogador, gosto muito de jogos imersivos que me tirem da rotina. Não é que eu esteja tentando evitar minhas responsabilidades, mas gosto de tirar uma folga da consciência normal”.
Menos sarcasmo, mais carinho
Stardew Valley tem a seu favor o charme do passado e as armadilhas do vício, mas esses não são os únicos motivos por trás de seu sucesso instantâneo. Na opinião do game designer Beto Alves, a proximidade entre criador e público é uma das vantagens da cena independente. Pela internet — que ironicamente não existe em Pelican Town, um lugarejo movido a papel de carta e TV de tubo —, Eric Barone conseguiu se manter muito próximo dos futuros fãs. Na fase de desenvolvimento, recheou o blog oficial com novidades redigidas sem cerimônia e seu perfil no Reddit com anedotas e respostas amistosas às perguntas de anônimos. Como se não bastasse, Eric tem usado o Twitter para divulgar novidades, fazer enquetes sobre novos conteúdos e até ajudar jogadores com bugs ou arquivos danificados.
Toda essa generosidade despertou uma reação igualmente generosa na comunidade virtual. Também no Reddit, fãs chegaram a enviar cópias originais para usuários com menos recursos financeiros ou uma versão falsificada no HD, numa corrente de ódio à pirataria e amor ao desenvolvedor. Em poucos meses, a página no Steam — que também vende a ótima trilha sonora, feita adivinha por quem? — registrou mais de 18 mil resenhas positivas, enquanto os votos negativos não passam de 400.
Voltando à ficção, alguns dos personagens de Pelican Town falam de forma tão gentil, tão direta, tão despida do humor irônico da internet que parecem um pouco anestesiados, meio fora do ar. Seria herança da Nintendo ou apenas um jeito econômico de escrever? “Foi uma escolha consciente. Acho que meu jeito acabou aparecendo”, diz Eric. E aproveita para alfinetar: “Na vida real, não sou muito fã de sarcasmo e piadas internas. Acho que geralmente são uma forma de diminuir os outros”.
Essa abordagem tão pessoal ainda é rara mesmo na cena indie, opina Beto. “Hoje há uma receptividade maior para esse tipo de jogo. Vejo isso pelo impacto que ‘Firewatch’, ‘Her Story’, ‘Life is Strange’, por exemplo, tiveram. Na minha opinião todos eles atingem, cada um à sua maneira particular, questões sensíveis aos jogadores e, por isso, geram um engajamento muito grande.”
Há estereótipos, como o adolescente atlético, o médico hipocondríaco e a mãe preocupada, que aparecem em Stardew Valley para tentar driblar as expectativas do jogador, revelando aos poucos uma personalidade mais rica. Imperfeitos, Pam e Linus mostram elementos sombrios que ajudam a equilibrar o clima alegre da cidade. Ela, que mora num trailer e trabalha como motorista de ônibus, é uma mulher de meia-idade com problemas com o alcoolismo. Ele, que vive em uma barraca de acampamento — único ambiente privado da cidade em que o protagonista consegue entrar a qualquer momento — e às vezes vasculha o lixo dos vizinhos, um dia revela o inesperado: “O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”.
[olho]“O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”[/olho]
Ao contrário do que os mais humanitários pensariam, Eric Barone apoia as decisões de Linus: “Ele está feliz de verdade com a vida que tem. É um lembrete para que a gente não tire conclusões sobre as pessoas antes de tentar entender de onde vieram”. Diante desse conflito, o desafio do jogador é não se sentir cúmplice do inimigo, a própria Joja Corp: se o protagonista tem tanta terra, por que não divide um pouco com o novo amigo que passa frio em sua tenda no inverno rigoroso — vestindo apenas um traje amarelo de homem das cavernas sem calças por baixo?
Viver de amor e geleia caseira
Até o começo de 2016, Eric Barone era um desenvolvedor com um currículo vazio que não se imaginava vivendo o dia a dia de um escritório ou trabalhando em equipe — comportamentos que, para muitos, ainda estão ligados a uma carreira sólida. Em seu perfil no Reddit, ele conta que o momento “fundo do poço” veio mais ou menos um ano antes do lançamento de Stardew: em uma reunião de família, sua avó comentou que não acreditava mais que o neto um dia terminaria aquele tal joguinho de videogame.
Hoje, Eric e sua produtora de um homem só, a ConcernedApe, têm propostas de trabalho e projetos para o futuro. “Encontrei meu ‘emprego dos sonhos’, com certeza. Sei que sou muito privilegiado por estar nessa posição e que isso é impossível para muita gente. A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”, pondera.
[olho]”A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”[/olho]
Eric conta que a narrativa de Stardew Valley, além da óbvia inspiração em “Harvest Moon”, surgiu quando notou em si mesmo e nos amigos uma dificuldade de lidar com o “vazio da vida moderna”. Ele não costuma enumerar os elementos que compõem esse vazio, talvez intuindo que o público já o conheça bem. “Acho que é uma história com que muitas pessoas podem se identificar”, diz. Thiago “Beto” Alves concorda que essa é uma das qualidades do jogo: “É um momento bem apropriado, em que muitas pessoas estão buscando a fuga da rotina caótica. Eu mesmo já pensei em largar tudo e viver no mato, mas ainda tenho coisas que gostaria de fazer. Ainda não é o momento (risos)”.
A ideia de um estilo de vida mais consciente ou menos sujeito ao vazio a que Eric se refere parece guiar muitos dos jovens nascidos entre 1970 e 1990. O emprego estável, tão importante para outras gerações, não tem mais o mesmo apelo. No lugar do fast food, do fast fashion e do carro do ano, ressurgem a bicicleta, o consumo sustentável e um jeito mais cuidadoso de tratar a comida. Escolhas a que alguns atribuem o termo “hipster” são, para outros, experiências de pertencimento e cidadania.
No Brasil, se a crise aumentou o desemprego, também pode ter encorajado o espírito empreendedor de quem tem condições mínimas para abrir o próprio negócio. Com o maior interesse na alimentação saudável, o setor dos orgânicos vem crescendo há alguns anos. Nesse cenário, o fascínio por ideias “menos urbanas” parece ganhar espaço.
Caio Tavares queria encontrar uma vida “mais conectada à natureza” quando saiu de São Paulo, onde trabalhava com planejamento em agências de publicidade, para morar na Chapada Diamantina. “Durante um período de descontentamento com minhas escolhas profissionais, esbarrei em uma coisa chamada permacultura. Isso mudou minha forma de olhar e pensar o mundo”, explica. Hoje, numa espécie de Stardew Valley realista, Caio se dedica ao cultivo de alimentos, mas diz buscar um meio-termo para seguir a transição do urbano para o rural.
Em sintonia acidental com Eric Barone, Caio — que desativou seu perfil no Facebook há poucos dias — se refere ao cotidiano nas grandes cidades e sua “lógica do capital” como “a máquina de amassar gente”. Para ele, a vontade de fugir da máquina não aumentou, as ferramentas é que evoluíram. “O que vejo, sim, é uma busca por alternativas, mesmo que nos ambientes urbanos. Composteiras e minhocários de apartamento, por exemplo, têm gerado discussões nos papos de bar.” E completa: “O êxodo urbano é a onda”.
Para quem não pode viver integralmente esse novo fugere urbem, uma das alternativas é levar um pouco da ideia de natureza para casa — seja em forma de samambaia, compota, bordado ou roupa produzida de forma artesanal. Em São Paulo, a Jardim Secreto Fair reúne pequenos produtores e suas criações em “jardins escondidos” por vários bairros. Em três anos e 12 edições, os 15 expositores do começo se multiplicaram: hoje são 120. No início circulavam pelo evento 300 pessoas, na última edição foram 5 mil.
Criadoras do projeto, as amigas Claudia Kievel e Gladys Tchoport veem um “lance de consciência coletiva” na busca que une expositores — que têm de 18 a 50 anos — e visitantes — de 25 a 40. E uma mudança de comportamento na crise: “As pessoas estão não só dando mais valor a quem faz com cuidado, mas também estão percebendo que produzir suas próprias coisas faz muito mais sentido. Comprar do pequeno produtor funciona melhor”, conta Claudia.
Como acontece na “Stardew Valley Fair” da ficção, a insatisfação com os empregos tradicionais motivou muitos dos artesãos que participam da feira paulistana. “A maioria dos expositores tinha trabalhos tradicionais e resolveu mudar. Alguns ainda têm e levam os dois caminhos juntos. Quem tem medo de abandonar a vida segura em um emprego acaba levando como hobby”, explica Gladys.
‘Achievements’ da realidade
Enquanto o trabalho de escritório e o sucesso profissional ficam cada vez mais impopulares, o buzz em torno de Stardew Valley mostra que ainda há espaço para jogos de videogame que convidam o jogador a, vejam vocês, trabalhar por horas a fio. Nas últimas décadas, quem aprecia o gênero talvez já tenha acumulado experiência na administração de cidades, zoológicos, hospitais, prisões e restaurantes. Mas será possível que o ser humano possa gostar mais de trabalhar de mentira do que quando há dinheiro real envolvido? O que fizemos com nossas vidas?
A pesquisadora Thais Weiller tem uma explicação: “O ‘trabalho’ do jogo é uma experiência que foi feita para ser prazerosa. Tem duração certa, com intervalos para feedbacks e bonificações. Se toda atividade laboral tivesse um pouco mais desse cuidado, com certeza o trabalho ‘real’ poderia ser bem mais divertido”. Eric Barone concorda, observando que as pessoas gostam de trabalhar quando há “propósito real” naquilo que fazem, não quando se sentem presas a funções “chatas e repetitivas”.
Em busca de propósito e prazer, uns voltam para o campo, outros para o campo pixelado do videogame da infância — e o que poderia ser “egotrip” improdutiva ganha mais sentido quando alcança o outro. Quem se dedica a Stardew Valley na solidão no computador compartilha o espírito do tempo, as boas intenções e a má postura com Eric Barone. Em resposta a uma pergunta meio cínica sobre seus sentimentos naqueles quatro anos em que aperfeiçoava o jogo, ele resume seu objetivo ao mesmo tempo humildão e ambicioso: “Trazer mais alegria para o mundo”.
A poucos dias da votação parlamentar do processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, o Movimento Brasil Livre (MBL) anunciou que levaria o trenzinho Carreta Furacão para uma manifestação neste domingo, 17 de abril, na avenida Paulista, em São Paulo. Em uma só cartada a organização pretende mobilizar mais apoiadores para sua causa sem deixar escapar o bom humor inerente aos jovens dançarinos com fantasias mal-ajambradas. Quem prefere o Capitão América rebolando aos discursos do grupo político teve, então, de se indagar: seguir em frente ou olhar para o lado?
Proprietária da Dominium, a empresa por trás do mais famoso dos trenzinhos, Fabiana Cardoni se limitou a dizer que o Carreta Furacão estará na avenida Paulista nesse domingo. “Já fechamos contrato”, disse ela, após cinco tentativas de contato. Ela não deu mais informações sobre o caso ao ser questionada a respeito dos contratantes para essa ocasião ou quanto a presença do Fofão — a participação de um dos personagens mais queridos dos trenzinhos teria sido vetada pelo seu criador.
Uma espécie de casamento entre fenômeno da internet e um estridente grupo político parece bizarro à primeira vista, mas isso é uma impressão superficial. O MBL é uma das organizações mais articuladas em prol do impeachment da presidente Dilma Roussef, realizando manifestações em todo o Brasil há pelo menos um ano. E os trenzinhos, como mostramos aqui no Risca Faca, compõem um fenômeno cultural do interior do Brasil de características e nuances próprias — especialmente em Ribeirão Preto. O mundo da política e o mundo dos trenzinhos estão mais próximos do que podemos imaginar.
[olho]”A gente faz muita festa universitária, comitiva. Impeachment da Dilma a gente também faz muito”[/olho]
“A gente já fez muito protesto, a gente sempre procura ajudar”, diz Danilo Gabriel. Ele e o irmão Daniel Cirilo são donos da Trenzinho dos Gêmeos, apenas uma dentre cerca de vinte empresas que fazem girar o mercado de diversão de Ribeirão Preto. Assim como a concorrência, os irmãos trabalham segundo a demanda. Fazem festas de aniversário, comitivas de rodeio, festas universitárias e, por que não, eventos políticos. “A gente trabalha muito com vereador”, diz ele. “Em época de eleição o pessoal pega bastante. Tem muita doação pra bairros carentes.”
Proprietário dos trenzinhos Sensação e Barulhão, Adriano Mancilha tem trabalhado mais devido aos recentes acontecimentos políticos. “A gente faz qualquer tipo de evento”, diz ele. “A gente faz muita festa universitária, comitiva. Impeachment da Dilma a gente também faz muito.” Por três ocasiões o show de cores e luzes dos seus trenzinhos deu lugar a faixas com dizeres contrários ao governo federal ou placas de grupos de oposição como o “Vem Pra Rua”. Os dançarinos compareceram em toda e qualquer ocasião. “Eles estão em todas, mas nas políticas eles vão sem se vestir”, afirma Adriano.
[olho]”Os dançarinos estão em todas, mas nas políticas eles vão sem se vestir”[/olho]
Assim como seus concorrentes gêmeos, ele não especifica os contratantes dos eventos políticos. Quando questionado, mastiga algumas palavras. “Partido, promotor, tem muita gente envolvida”, afirma ele. Advogados e empresários também entram nessa lista, mas os contratos são firmados por terceiros na véspera das manifestações. Por isso Adriano ainda tem esperança de que vá trabalhar durante o final de semana que marcará mais um episódio da história recente. “O pessoal contrata em cima da hora”, diz ele. “Se for ter [algum evento] a gente vai ficar sabendo entre hoje e amanhã.”
O poder público é uma saída viável para contratar trenzinhos, especialmente para a população carente. “Como não tem dinheiro, eles vão na câmara municipal e pedem ajuda para os vereadores”. Também não é raro que prefeituras contratem as equipes para animar eventos públicos. O Carreta Furacão, por exemplo, participa de eventos em outras cidades com certa frequência. Wellington Cardoni me contou, no ano passado, que certa vez o grupo se apresentou em Betim, Minas Gerais, a mais de 500 quilômetros de Ribeirão Preto. “A gente faz eventos bacanas com prefeituras, com estrutura.”
Naquele ano, a Associação dos Trenzinhos de Ribeirão Preto mostrava que política não é um assunto estranho dentro desse mercado. O grupo liderou os debates para uma lei para a categoria que regesse, entre outros itens, a circulação mediante cadastro oficial e a música dos veículos. Líder do poder público na discussão, a vereadora do Gláucia Berenice (PSDB) lembra que houve até uma carreata de trenzinhos até a sede legislativa da cidade.
[olho]”A internet mais ajudou que prejudicou: com ela veio o auge”[/olho]
A essa época o grupo já dava sinal de fraqueza devido a disputas internas. Sem saber dessa situação nem tampouco da sua oposição, a internet continuou seu serviço de manter a cultura circulando enquanto meme. O site da Associação não está mais no ar, mas não faltam vídeos e imagens de garotos fantasiados correndo pelo YouTube, Facebook e Whatsapp. “Com isso começou a ter mais trenzinhos em Ribeirão Preto e as músicas evoluíram também, porque antes era música de criança, mas agora tem que ter funk”, diz Danilo, do Trenzinho dos Gêmeos. “A internet mais ajudou que prejudicou: com ela veio o auge.”
Enquanto a popularidade não cai como o Popeye trombando em um ciclista, os trenzinhos aproveitam. Danilo quer aumentar a frota com pelo menos mais duas carretas para esse ano. Dono dos trenzinhos Sensação e Barulhão, Adriano Mancilha afirma que o sucesso na internet não trouxe mudança na sua rotina de trabalho. “A molecada comenta mais agora, né”, diz ele. O Carreta Furacão ainda está tateando a segunda onda de sucesso seis anos depois da primeira explosão na internet. Procurada diversas vezes, Fabiana Cardoni conversou com o Risca Faca delegando a maior parte das perguntas à assessoria de imprensa.
“Hallellujah!”, cem pessoas respondem com mais força.
“Praise the Lord!”, comanda Fabian Nwezay, mais intenso, em um terceiro pedido que quase estoura as quatro caixas de som do salão.
“Hallellujah!”, dizem todos os presentes, alto, forte e com fé, na manhã de um domingo qualquer de verão – no centro de São Paulo.
São 10h43. A missa é em inglês. Os fiéis são quase todos imigrantes africanos, na maioria nigerianos. Várias cadeiras estão vazias na primeira parte da cerimônia da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianases, ao lado da Praça Princesa Isabel. Há cerca de 50 pessoas em pé dançando no salão.
Todos vêm bem-vestidos, muitos com o que os antigos chamariam de roupa de domingo. Alguns poucos vestem aquelas batas e túnicas bem coloridas, que poderíamos chamar de roupa-de-africano-do-centro.
Uma música alegre, solar e ritmada embala a todos. É um hino de louvor a Deus, cheio de aleluias e Jesus Christs, comandado por um casal de vocalistas, bateria, duas percussões, teclado e baixo. A música sempre foi usada para estabelecer alguma conexão com o divino, mas aqui parece que o ritmo é tão importante quanto a fé. Poderia ser uma festa étnica não fossem termos religiosos presentes na música.
A pessoa que parece ter menos coordenação é o pastor Jair Santos, o único brasileiro visível até o momento. Está no palco à esquerda do púlpito e em seguida vai dar início à cerimônia. É branco para os padrões brasileiros, mas talvez um barbeiro racista no sul dos Estados Unidos se recusaria a fazer sua barba.
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As bandeiras da Nigéria, de Israel e do Brasil decoram o fundo do palco. O pastor Fabian, de terno e gravata, também dança, embora de modo mais contido. Elegante, veste um terno cinza chumbo, camisa verde e branca com listras verticais. A gravata alterna verde escuro e preto em listras grossas inclinadas em diagonal. No pulso, um relógio grande prata, algo comum em muitos outros pulsos masculinos do salão.
A música dirige a todos, o ritmo cresce, as pessoas dançam ao ritmo da percussão. O som, forte, sai um pouco distorcido pelas caixas de som. O espírito é de alegria, uma maneira de existir religiosamente bem menos sóbria dos que os cultos aos quais os brasileiros estão acostumados. Depois de quase cinquenta minutos de música, o pastor, já no palco, posiciona-se em frente ao púlpito. Começa a missa bilíngue.
O pastor pede que todos se sentem mais a frente. Já são setenta homens – só cinco mulheres. Na busca do El Dorado brasileiro, são os homens que partem primeiro do continente africano.
Todos sentam.
Já são 11h20. Após poucas palavras de Fabian, quem abre a cerimônia é Jair. Do púlpito, fala em português, que em seguida é traduzido para o inglês. Ele conclama os presentes a darem seu testemunho. Cinco pessoas chegam à fila para dar o depoimento. Não sobem ao palco, ficam na mesma altura dos presentes.
Uma delas, ao microfone, diz em primeiro lugar aleluia. Veste calça branca, cinto vermelho, camisa preta estampada com bolinhas brancas e cavalos de corrida, além de um relógio grande no pulso. Óculos de aros grossos, cabelos bem curtos com uma forte entrada na testa, embora não aparente ter mais de 30 anos. Como quase todos tem a barba feita e um pequeno cavanhaque. Um ar de cantor pop.
O pastor Jair fala da própria saúde brevemente. Sobre como está saudável, dá os créditos de seu bem estar a Deus – a cura pela fé é um elemento constante nos cultos pentecostais. O poder de Deus é um conforto ao fiel e ao imigrante africano.
Uma criança – das duas presentes – pede para cantar uma canção. É uma menina cheia de trancinhas, de uns cinco anos. Todos se levantam e batem palmas para acompanhá-la.
Próximo do meio-dia o pastor nigeriano retorna ao púlpito. Agradece aos testemunhos e começa a entoar uma canção em um dialeto de algumas regiões da Nigéria chamado Edo. Diz algo como “Babaiê, casherebere…”. Todos cantam em pé.
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Na rua, o termômetro no meu celular marca 23 graus, mas no escritório do pastor Fabian Chukwubuikem Nwezay, 45 anos, em uma sala anexa ao templo, a sensação de calor é bem maior. Sentado numa dessas cadeiras típicas de escritório, Fabian estuda para o sermão do grupo de estudos bíblicos das quartas-feiras com cinco bíblias – duas nas mãos, três dispostas sobre um móvel branco do escritório. Há um computador na sua frente, desligado.
Um ar-condicionado portátil desbotado pela idade não dá conta de refrigerar o local. Do chão, um ventilador aponta na direção do pastor sem que a força do jato de ar mova as páginas leves das bíblias.
As paredes, o teto e a luz são brancos. Às costas de Fabian, ao lado de uma foto antiga da igreja, um mapa mostra a divisão da zona leste profunda de São Paulo. Aparecem bairros como Guaianases, Lajeado e Cidade Tiradentes. É um desses mapas comuns, cheios de quadradinhos de propagandas de pequenos comércios, mas há um sentido estratégico se pensarmos que a sala é também o QG central da expansão da igreja. Já existe um templo em Osasco, um no bairro Cidade Tiradentes e outro será inaugurado em Guaianases, com pregação em francês, para atender a comunidade haitiana. Um quarto local está sendo planejado – na Nigéria. É o resultado de 18 anos como pregador e de uma trajetória irregular na qual nem Deus nem o Brasil estavam em primeiro plano.
“Meus pais eram católicos e eu era apenas uma pessoa que frequentava a igreja. Eu não ia a procura de Deus, ia a procura de status”, diz.
Nascido em Nkerefi, no Estado de Enugu, no sul do país da costa Oeste da África, o pastor conta que, embora seus pais fossem ricos, teve uma infância e adolescência difíceis. “Apanhei. Meus pais me batiam muito. Eu era teimoso demais.”
Como seu pai era uma espécie de líder local, sua pretensão inicial era ser advogado e depois se tornar um político. Mas a vida mundana cheia de bebida, cigarro, pequenos roubos, mentiras e “fornicação” o desviavam de qualquer caminho que fosse. Sua vida religiosa se resumia a ir à igreja para mostrar roupas novas às mulheres.
Como é comum na biografia de muitas pessoas que tiveram experiências religiosas transformadoras, o auge da queda é o que precipita o momento do Grande Encontro com Deus. Foi o caso de Fabian, então com 24 anos, no dia 14 de abril de 1994.
“Eu entrei em uma igreja onde tinham umas 30 pessoas. O sermão do pastor era sobre o que pode impedir você de ir para o céu. ‘O quê, o quê?, eu me perguntava’. Saí de lá e algo havia mudado. Naquela noite, sozinho, pedi a Deus para que entrasse e mudasse a minha vida. Não queria mais viver daquela maneira. Daquele dia em diante, minha vida nunca foi a mesma.”
Ato contínuo, Deus se tornou uma obsessão para Fabian. “Evangelize, me disse Deus no segundo dia.” Suas ambições morreram e a paixão pelo Senhor só crescia. Pouco tempo depois, partiu para estudar em uma escola bíblica na cidade de Benin, mais para o Oeste, sob os auspícios do Arcebispo Benson Idahosa. “Eu amo Deus, não o dinheiro. Se você me disser, ‘aqui pastor, tome as Casas Bahia para você’. Vou responder que não quero. Eu estou feliz com o que faço aqui.”
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A experiência de renascimento, de aceitação de Jesus na vida, faz parte do padrão do religioso pentecostal. “O batismo com o Espírito Santo é um revestimento de poder. A conversão seria o momento do novo nascimento”, diz Clayton Guerreiro, pesquisador de religiões pentecostais do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Quando o pentecostalismo chegou ao Brasil, em 1910 e 1911 (os estudiosos, como sempre, divergem na data), tinha como marca a glossolalia, que é a capacidade de falar línguas desconhecidas durante o transe religioso. A partir dos anos 1950, o pentecostalismo começa a ter como foco a cura divina e os milagres, o que tornou o movimento mais competitivo na disputa por fiéis. Deus é Amor, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, entre outras, são exemplos de igrejas do período.
Há mais uma importante mudança que precisa ser mencionada. Nos anos 1980, um novo movimento religioso assentado no tripé cura, prosperidade e exorcismo ganhou força. É o neopentecostalismo, ou terceira onda pentecostal, cujo expoente é a Igreja Universal do Reino de Deus e que guarda pouca semelhança com o movimento dos anos 50. Exceto pelo foco na cura.
“Eu ia morrer, mas fui curado pela igreja”, me diz Iyke Chukwu, que também está na sala conversando com o pastor. Há cinco anos no Brasil, ele frequenta a igreja há quatro. Mora no bairro São Mateus, na zona leste. “Fiz muitas operações no estômago na Nigéria, fui a vários hospitais, mas nada adiantou.” Ele levanta as duas camisetas que veste – uma cinza mais larga por fora das calças e uma branca e justa por dentro – e mostra uma cicatriz em “S”, de quase dois palmos, que serpenteia sua barriga. “Eu amo essa igreja”, diz.
A vinda de Fabian ao Brasil foi errática. “Eu estava servindo uma igreja na Nigéria de um pastor que morava nos Estados Unidos. Preguei lá por dois anos, mas quando ele voltou só achava defeitos no nosso trabalho, embora a comunidade tivesse crescido.”
Fabian conta que partiu para trabalhar em uma igreja que tinha 10 membros. Depois de oito meses, o número de fiéis foi para quase 70 pessoas. O novo templo era filial de uma igreja fundada por um missionário nigeriano no centro de São Paulo em 2001, a Comunidade Cristã Internacional. Daí para o convite de pregar no Brasil foi rápido.
[olho]”Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”[/olho]
No país, trabalhou por um ano na igreja na Avenida Rio Branco, a primeira do gênero na cidade. Em seguida, foi servir um novo ministério na rua dos Timbiras, também no centro. “Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”, lembra Fabian. Sem poder voltar para a Nigéria, em junho de 2011 ele decidiu fundar o próprio ministério.
O pastor mexe no celular Motorola e ao mesmo tempo conversa com Iyke, segura duas bíblias no colo e faz anotações sobre o sermão com uma caneta azul em umas folhas brancas de rascunho. O som das mensagens chegando é constante.
Dentro da sala, há oito sacos de arroz de cinco quilos e dois refrigerantes da marca Tubaína, que serão usados no almoço coletivo de domingo que sempre ocorre depois da missa.
Há uma porta dentro da sala com dois avisos escritos em papéis brancos separados no terço superior. Um, escrito com canetinha hidrocor azul, manda “Manter a porta fechada”; o outro, em preto impressora, avisa em caixa alta “BANHEIRO QUEBRADO”. Ambos na mesma porta marrom sem maçaneta.
Antes de começar o sermão, o pastor abre a porta, acende uma luz azul neon, fecha a porta, faz xixi. Puxa a descarga e sai para falar com os 16 fiéis presentes no grupo de estudos bíblicos. O sermão da noite será sobre Lúcifer e o pecado do orgulho.
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“PRAY, PRAY, PRAY”, pede o pastor na missa de domingo.
“Ora, ora, ora”, tenta acompanhar a tradutora, uma mulher muito bem vestida vinda de Camarões.
Fabian conclama todos a encontrar pares e rezar junto. Ecoa pela sala uma espécie de murmúrio geral na qual só possível identificar por vezes uma palavra: Jesus Christ.
Não sou ignorado. Dou as mãos a alguém que ficou sem par e me convida a rezar. Isso acontece três vezes.
“Pray, pray, pray, pray”, repete o pasto com rapidez e intensidade.
Todos rezam, movimentam-se, como se expressassem fisicamente a palavra divina. Há duas brasileiras no templo. Mais contidas, elas pouco se movem. Rezam paradas, quietas.
A capacidade das cordas vocais do pastor parece um milagre. Do púlpito, ele fala com força e intensidade constante. Gesticula, sobe e desce do palco, altera o andamento do sermão, brinca, faz piadas e pede para os fiéis recitarem versículos da Bíblia.
Em um momento de humor, ele abençoa a tradutora que tem um português muito fraco e grande dificuldade em acompanhá-lo.
Dois homens cuidam das duas portas da igreja que dão para os dois corredores paralelos desenhados pelas disposição das cadeiras em três fileiras. Eles ficam nas portas, mas circulam pelo ambiente com uma manta azul celeste no pescoço onde se lê “International Assembly”.
Um deles, alto e gordo, tem uma cicatriz de uns bons dez centímetros na parte direita do rosto. Começa no centro da bochecha e corre pela lateral até o encontro do pescoço com o queixo. Ele circula conferindo se alguém está no celular, mas também leva água a quem pede. É sério, mas de modo algum ameaçador. Conversei com ele uns dias mais tarde, mas não quis me dizer seu nome. Está há dois anos no Brasil, agora sem emprego. Deixou a família na Nigéria e se pudesse voltaria o quanto antes. Tem saudades de casa.
O tema do sermão é a maldição da pobreza. Em parte, o sucesso das igrejas pentecostais ocorreu por oferecer aos fiéis respostas mais diretas aos dilemas imediatos do cotidiano. A salvação e a prosperidade podem e devem ser durante a vida terrena, que pode ser operada pela entrega total a Deus. As questões do espírito depois da morte nem são mencionadas.
“Se você é um jogador, você não pode ser bem sucedido, você não pode prosperar”, diz o sermão.
Fabian passa os olhos em um papel no púlpito ao lado da Bíblia, que o auxilia na condução do sermão. O jogo de apostas é condenado por ser a mentalidade de um homem pobre.
Ele cita a Bíblia. Provérbios capítulo 23, versículo 21: “Porque o beberrão e o comilão acabarão na pobreza; e a sonolência os faz vestir-se de trapos”.
Assim, entre citações e pregações, ele vai construindo sua mensagem sobre os riscos da queda que, em outro contexto, poderia ser uma conversa sem base religiosa. Drogas, bebida, ressentimento com quem possui mais e arrogância de quem tem mais são temas, enfim, que habitam o universo de todos, mas são mais sensíveis a uma população de imigrantes que chega ao Brasil sem estrutura e constrói seus laços a partir da igreja.
O que ele faz é reforçar os valores que ajudam no desenvolvimento de uma pequena comunidade. Em um certo sentido, a função da igreja é ministrar doses de um controle social interno.
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“Um abismo chama o outro”, me diz a pastora da igreja da Cidade Tiradentes, Monica Almeida, depois de uma missa celebrada por ela na igreja da rua Guaianases, no centro. Ela acha que a população da favela sofre preconceito pelo local onde vive e que o imigrante sofre em dobro.
Monica, 33, conheceu o pastor Fabian cinco anos atrás no Monte da Luz, uma espécie de ponto de devoção de evangélicos em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Desde então, abandou a igreja Deus é Amor, onde seus pais são pastores, para se dedicar ao projeto do pástor – ela usa a mesma pronúncia dos imigrantes. Foi sua assistente pessoal para resolver os vários trâmites burocráticos de abrir uma igreja e há um ano comanda as missas na Cidade Tiradentes.
[olho]”Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos”[/olho]
Ela não se incomoda que algumas pessoas vão aos domingos apenas para comer ou que nem sequer professem a fé cristã – na Nigéria metade da população é cristã, a outra é muçulmana. “Meu papel nessa história é pregar a palavra de Deus, que é forte e é universal. Quando eu estou pregando sinto que está todo mundo ali como um ser humano, sem cor, religião ou raça.”
Não que não existam problemas. Para a pastora, a tradição dos imigrantes é bastante machista. “Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos.”
Ela diz que nunca teve problemas em relação a sua autoridade e que acha que muitos dos fiéis a enxergam como uma figura masculina por ser uma autoridade espiritual. “Quando eles viajam e voltam, muitos me trazem um presente. O engraçado é que eles me trazem sempre um perfume masculino.”
Uma das raras brasileiras presentes, a cabeleireira de 40 anos Fabíola Roos acha que os homens nigerianos são “um pouco estúpidos”. Ela sabe. Conheceu o ex-marido em outra igreja africana – existem sete no centro –, mas agora está separada. O marido voltou para a Nigéria, onde tinha outra família. Fabíola cuida da filha de dois anos que teve com ele e de outra menina de 10 que o pai deixou com ela quando saiu do Brasil.
A relação entre homens nigerianos e mulheres brasileiras é delicada. A tese do pastor Fabian é que na Nigéria a cultura é de que homem seja o chefe da casa, enquanto no Brasil ocorre o contrário. Quando decidiu casar, ele disse a uma irmã que queria uma esposa nigeriana. Em uma espécie de Tinder do compromisso definitivo, ele e a futura esposa, Jeniffer, se conheceram por fotos. Gostaram do que viram e deu match – por arranjo das famílias, casaram-se. Em dezembro de 2011, Jeniffer desembarcou no Brasil para conhecer o marido.
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O volume é muito alto. São quatro caixas de som preenchendo o templo com decibéis religiosos. O salão está praticamente cheio, todos os ventiladores estão desligados, mas os quatro splits dão conta do recado. Os homens de lenço azul distribuem aos presentes envelopes para a doação. Fabian reforça a importância da doação repetidas vezes. A justificativa: precisam de recursos para a nova igreja em Guaianases.
Ao mesmo tempo, o sermão passa a falar mais sobre a prosperidade. Pulam frases como “aquele que não gosta de trabalhar vai enfrentar a pobreza” ou “se você bebe, é preguiçoso ou descuidado, você não vai prosperar” e ainda “outra maneira de ser pobre é estar desesperado para ser rico”. O tempo da tradução fica sempre em descompasso com a fala do pastor.
Recebo um envelope e recuso os demais. Coloco R$ 20 dentro. Todos colocam o dinheiro com discrição. É totalmente anônimo.
A oração acaba por volta das 14h. Começa a música e o momento da entrega das doações. As pessoas vão saindo dos lugares até formar uma fila em um corredor no qual na ponta está o pastor. A música segue e as pessoas vão dançando até ele para depositar os envelopes em uma caixa de plástico e receber a benção individualmente.
Fabian coloca as mãos na cabeça dos fiéis e diz algumas palavras. Em seguida, molha uma das mãos em alguma substância líquida, aparentemente água com mel, e passa sobre a testa de cada um. Ao mesmo tempo, a música embala o salão. Todos cantam e dançam.
A esposa do pastor e mais uma mulher comandam a cantoria. Dançam juntas. Depois da benção do dízimo, o pastor dança também. Ergue os braços para cima e leva-os para esquerda e para direita, fazendo uma paradinha de um tempo em cada lado. Os demais o copiam, como naquele hit do padre Marcelo do final dos anos 90 que dizia “erguei as mãos e dai glória a Deus”.
Por detrás do púlpito, o pastor Fabian Nwezay puxa seis hallelujahs fortes. Todos respondem. E assim acaba a missa africana.
O relógio na parede do luxuoso hotel Plaza São Rafael tinha acabado de marcar 21h30 naquela sexta-feira de julho, quando um estrondo surpreendeu hóspedes e funcionários. Um táxi vermelho havia colidido com a porta da frente do estabelecimento, cobrindo o tapete xadrez com cacos de vidro. O veículo avançou lobby a dentro e só parou quando alcançou o balcão do hall de entrada. Após alguns segundos, um homem quebrou uma janela lateral do táxi e começou a atirar com uma arma de fogo em direção à entrada do hotel. Policiais que seguiam o carro de perto atiraram de volta. No meio do fogo cruzado, pessoas que estavam no lobby entraram em pânico. Os seus gritos abafaram o jazz suave que saía dos alto-falantes.
Para entender como um hotel luxuoso virou alvo de bandidos, voltemos ao dia anterior, 7 de julho de 1994. Por volta das 15h30, o presidiário Vladimir Santana da Silva, de 28 anos, caminhava por um dos corredores úmidos do Presídio Central, ou “Casarão”, como os presos chamam o complexo prisional localizado em Porto Alegre, um dos maiores do Brasil. Sarará da Vó, como era conhecido, havia se submetido a uma sessão de fisioterapia para o seu cotovelo, na ala do Hospital Penitenciário. No caminho de volta para a sua cela, cruzou com uma freira amiga dos presos e implorou para que ela marcasse uma reunião entre ele e o diretor do hospital, Claudinei dos Santos. “Tenho um assunto urgente para tratar com ele”, disse. A religiosa acatou o pedido. E assim que Sarará da Vó entrou no escritório do diretor, sacou uma arma de fabricação artesanal de dentro da tipoia que cobria o seu braço e pressionou-a contra o peito de Santos.
“O padrinho tá rendido! Ta rendido!”, disse.
Em seguida, outro preso adentrou o escritório, arrastando um guarda penitenciário sob a mira de uma arma. Era Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, que com apenas 22 anos cumpria pena por roubo, tráfico de drogas e estelionato. Portador de HIV, Fernandinho já era conhecido dos médicos e enfermeiros do Hospital Penitenciário. Mas, naquele dia, surpreendeu a todos ao roubar a arma de um guarda distraído e fazê-lo de refém. A dupla não tinha tempo a perder. Deixaram o diretor e o guarda penitenciário de lado e começaram a retirar as almofadas do sofá do escritório, até encontrarem duas armas de fogo e várias munições socadas na lateral do móvel. O diretor não conseguia acreditar na cena que se desenrolava na frente dos seus olhos. Como que os presos sabiam sobre o seu esconderijo?
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Ao mesmo tempo, na sala de triagem do Hospital Penitenciário, Pedro Ronaldo Inácio, o Bugigão, recebia atendimento médico por ter vomitado sangue dentro de sua cela. Aos 33 anos, o detento estava preso por lesão corporal, estupro e assalto a banco. Mostrando uma vitalidade repentina, o doente levantou e sacou um trabuco da roupa, ameaçando os profissionais de saúde e assumindo o controle da sala. Outros presos aproveitaram a confusão para roubar as pistolas dos agentes penitenciários que guardavam o local. E, sob o comando do Bugigão, forçaram os mesmos guardas a abrirem os seus armários pessoais, de onde tiraram ainda mais armas e munições. (Mais tarde, Bugigão confessou ter fingido o mal-estar ao encher as bochechas com sangue extraído dos próprios braços.)
Ao todo, Sarará da Vó, Fernandinho, Bugigão e outros presos fizeram 27 funcionários reféns naquele dia. As vítimas foram levadas para o segundo andar do Hospital Penitenciário. O local não foi escolhido à toa. Naquele pavimento, um longo corredor ligava o Hospital Penitenciário à saída do complexo prisional. Não demorou muito para que a notícia sobre o motim se espalhasse. O promotor André Luiz Villarinho, diretor do Departamento de Estabelecimentos Penais do Rio Grande do Sul, foi o primeiro a chegar no local para avaliar a situação. Ao abordar os amotinados, ouviu deles a sua primeira exigência: queriam que dois presos de outra ala do complexo prisional fossem trazidos para o bando de amotinados. Um deles era o assaltante Carlos Jefferson Souza Santos, o Bicudo, de 23 anos. Ele havia sido escolhido porque sabia lidar com reféns. Certa vez foi surpreendido por policiais enquanto roubava uma videolocadora e ficou várias horas negociando a liberação de vítimas com policiais.
Villarinho, que sem querer se viu na posição de negociador, aceitou o pedido dos amotinados. Em troca, os bandidos libertaram o primeiro refém – uma secretária do Hospital Penitenciário, que tinha passado mal devido ao nervosismo. Entre os rebelados, Bicudo logo assumiu o comando das negociações e fez uma segunda exigência, desta vez mais audaciosa. Os criminosos queriam que dois detentos de outra cadeia fossem transferidos para o Casarão. Os escolhidos estavam cumprindo pena na PASC, uma prisão de segurança máxima localizada em Charqueadas, município a 58 km de Porto Alegre. Um deles era Dilonei Melara, um dos criminosos mais perigosos da região. Alto, magro e com cabelo grisalho, aos 36 anos era considerado um grande líder pelos criminosos do Rio Grande do Sul, por ter fundado a primeira facção criminosa gaúcha, a Falange. Melara estava cumprindo 65 anos de prisão por assaltos a bancos e havia tentado escapar de presídios em diversas ocasiões. O outro presidiário era Celestino Linn, 37 anos, amigo e parceiro de crime do Melara que cumpria uma pena de 30 anos por assalto à mão armada e lesões corporais. Juntos, os dois já tinham aprontado bastante. Em 1983, libertaram um condenado enquanto ele estava sendo transferido entre prisões dentro de um ônibus. Durante a operação cinematográfica, mataram dois policiais.
Villarinho se deu conta que a negociação estava ficando complicada e resolveu consultar a cúpula do governo estadual. O governador da época, Alceu Collares, retornou às pressas de uma reunião em Brasília e criou uma força-tarefa para administrar o motim. À noite, o grupo se reuniu no Presídio Central com autoridade para tomar decisões. Marcos Rolim, deputado estadual na época e um dos membros da força-tarefa, ofereceu-se para intermediar o diálogo com os presidiários. Aos 34 anos, ele já tinha uma trajetória como militante dos direitos humanos e estava acostumado a conversar com encarcerados. Mas, por volta das 2h da manhã, até mesmo Rolim se surpreendeu quando os amotinados articularam a sua terceira e última exigência: queriam que três carros fossem disponibilizados em frente ao presídio para que pudessem fugir assim que os colegas chegassem da PASC.
A força tarefa passou o dia seguinte considerando as opções. Eles podiam ordenar que policiais de elite invadissem o local e dominassem os insurgentes à força. “Mas nós descartamos essa alternativa”, Rolim me disse recentemente. Hoje o ex-deputado é doutor em Sociologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especialista em jovens violentos. A ação teria causado dezenas de mortes, acredita. Não apenas dos amotinados, mas também dos reféns e dos presos que estavam lá apenas recebendo tratamento médico. “A nossa única opção era aceitar as condições da negociação.”
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No fim da tarde, Rolim se deslocou para Charqueadas com a missão de buscar Melara e Linn. Melara estava animado. Ele tinha passado dois meses orquestrando o motim no Presídio Central e agora tudo corria de acordo com o planejado. Finalmente ele realizava um sonho antigo: sair da prisão de segurança máxima sem algemas e pela porta da frente. Com a chegada da noite, o então deputado escoltou a dupla de criminosos para dentro do Casarão, e por ter cumprido com a segunda exigência dos detentos, conseguiu negociar a liberdade de sete mulheres reféns. Mais tarde, confessou que estava com medo de que os presos as estuprassem como forma de pressionar as autoridades – ou até mesmo por tédio. Afinal, eles estavam amotinados há mais de 24 horas.
A libertação das reféns deu ânimo para a força-tarefa, mas ainda havia a terceira e última exigência: será que deveriam providenciar carros de fuga para os criminosos? Impacientes, os presidiários pressionaram colocando álcool em colchões e ameaçando atear fogo nos reféns. Após muitas horas de intensa discussão, a comissão decidiu que sim, iriam ajudá-los a sair do Presídio Central, mas com um porém: secretamente iriam sabotar os automóveis. O plano era mexer com a mecânica dos carros para que os fugitivos não conseguissem chegar muito longe. A polícia ainda colocaria GPS nos veículos para seguir o grupo de helicóptero. Assim que libertassem os reféns, os policiais iriam se aproximar e prendê-los.
[olho]Melara finalmente realizava um sonho antigo: sair da prisão de segurança máxima sem algemas e pela porta da frente[/olho]
Às 21h05, a preparação para a saída dos amotinados estava completa. Três Gols na cor verde metálico foram estacionados na frente do Casarão. Sem pressa, os fugitivos desceram o longo corredor do Hospital Penitenciário até a saída, levando junto os seus reféns. Repórteres noticiavam cada passo ao vivo no rádio. Os presos forçaram os reféns a segurar cobertores sobre as cabeças de todos, para que atiradores de elite não conseguissem distinguir quem eram os criminosos. Dez reféns entraram nos três Gols sabotados. Os outros formaram um cordão humano em volta dos carros, para que a polícia não conseguisse atirar contra grupo enquanto saíam.
Os carros arrancaram cantando pneu. Mas, em vez de seguir o plano que havia sido elaborado pela força-tarefa, policiais começaram a atirar nos carros e perseguí-los quase imediatamente. “Um delegado com sede de vingança deu uma ordem para que os policiais já saíssem atirando atrás dos veículos”, relembra Rolim. “Mas foi uma péssima ideia. Ele colocou em risco a segurança dos reféns e de todos os cidadãos de Porto Alegre.”
Os fugitivos saíram em direções opostas, com a polícia logo atrás. A fuga em alta velocidade foi relatada em tempo real pelas redes de rádio e televisão. Famílias trancaram as portas, motoristas tiraram os carros das ruas, e comerciantes baixaram as grades. Todos ligados no AM.
Um dos carros foi para a zona leste, mas não chegou muito longe. Com um pneu furado, foi perdendo velocidade até parar no meio de uma rua de chão batido. Ao invés de se entregar, os fugitivos responderam com fogo. A policia revidou. No meio do tiroteio, o refém Edilei Souza dos Santos (filho do diretor Claudinei dos Santos) foi atingido por 11 balas. Ele sobreviveu, embora tenha ficado com graves sequelas. Outros dois reféns conseguiram escapar ilesos, e os três criminosos dentro do veículo foram mortos com um total de 21 tiros.
O segundo carro seguiu para a zona norte. Após alguns quilômetros, o fugitivo que estava no volante, Luiz Paulo Schardozin Pereira, 29 anos, bateu o carro em um poste de luz. Depois do acidente, Chardozinho, como era conhecido, correu na direção do Shopping Iguatemi. Um segurança particular do estabelecimento notou o seu comportamento estranho e ordenou que se deitasse no chão e se entregasse (depois dessa história ele virou um herói no trabalho). Outros dois insurgentes fugiram na direção de um matagal das redondezas e só foram capturados pela polícia semanas depois.
O terceiro e último carro parou de funcionar não muito longe do Presídio Central graças à sabotagem da polícia. O motorista era Bicudo, que entrou em pânico e saiu correndo, conquistando a tão sonhada liberdade. Mas sua felicidade durou pouco tempo. Dez dias depois ele foi baleado e morto pela polícia ao tentar roubar um banco. Os outros três integrantes do carro, Melara, Linn e Fernandinho, ainda resistiram, trocando tiros com a polícia. O diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei dos Santos, que estava dentro do Gol, foi atingido com uma bala nas costas e foi empurrado para fora do veículo. O tiro lhe deixou paraplégico. Outra bala atingiu um policial que se aproximava do automóvel, que morreu na hora. Desesperados, os três foragidos pegaram um carro da imprensa, que acompanhava a situação de perto. Eles continuaram a fugir pela cidade com três reféns – duas mulheres e um homem. Mas, devido a problemas mecânicos, ainda trocaram de carro duas vezes até entrar em um táxi vermelho. Sem saber para onde ir, Melara apontou a arma para a cabeça do taxista e mandou ele acelerar até o hotel mais chique da cidade, o Plaza São Rafael. Ao chegar em frente ao estabelecimento disse: “Tu vai te dar mal, cara, se não derrubares essa merda de porta”.
Após a batida, o motorista do táxi abriu a porta do carro e correu em direção a polícia, que vinha logo atrás. Com as mãos no ar, ele implorou aos policiais que não atirassem. A balas zuniam de lado a lado pelo saguão revestido de granito. Os três fugitivos se encaminharam para o fundo do lobby, mantendo seus reféns como escudo. Naquela noite, o Plaza São Rafael sediava uma conferência sobre depressão, com a presença dos psiquiatras mais respeitados do Brasil. Após um dia de palestras, os médicos estavam jantando na sala de conferências quando foram surpreendidos pelo trio que chegava de arma em punho. Eles interromperam as garfadas e se esconderam embaixo das mesas.
Melara e Fernandinho pouco notaram os psiquiatras e subiram as escadas para o bar do mezanino, arrastando com eles duas reféns. Linn se encostou numa das paredes da sala de conferências e improvisou uma barricada com as mesas. Como ele já havia perdido o seu refém, agarrou alguns médicos que estavam ao redor. Os policiais entraram no saguão se arrastando e chegaram bem perto da barricada de Linn. Assim que teve uma oportunidade, um PM atirou no rosto do fugitivo. A bala passou de raspão, mas foi o suficiente para desnorteá-lo. Capturado, Linn foi escoltado para fora do hotel por policiais orgulhosos, como se exibissem uma presa rara. Dois dias depois, ele foi encontrado morto na sua cama de hospital com quatro tiros.
Melara e Fernandinho permaneceram no mezanino por mais 13 horas e fizeram mais uma refém, uma secretária do hotel. Mas, com o passar do tempo, sem água, comida e munição, ficaram exaustos. A dupla de criminosos finalmente se entregou quando o desembargador Décio Antônio Érpen, que estava no comando das negociações, disse que a seleção brasileira estava prestes a entrar em campo contra a Holanda pelas quartas de finais da Copa do Mundo dos Estados Unidos. E ele não queria perder esse jogo. Melara e Linn concordaram em sair do hotel com duas condições: eles queriam sair com coletes à prova de bala e pediram para retornar à PASC – a prisão de segurança máxima, onde achavam que estariam seguros de retaliações. Eles temiam que os agentes penitenciários do Casarão os executassem por terem causado tamanho distúrbio. A precaução deu certo. Melara viveu até 2005, quando foi assassinado, ao que tudo indica, por um criminoso rival. E Fernandinho morreu devido a uma doença desconhecida em 2008.
As 48 horas de caos deixaram um grande trauma em Porto Alegre. Durante várias semanas, o acontecimento estampou as páginas dos jornais e serviu como tema de discussões políticas. Algumas pessoas criticaram os membros da força tarefa por terem concordado com as exigências dos fugitivos. Outros avaliaram que era a melhor opção. “Concordando ou não, a população ficou apavorada com o fato que os criminosos mais perigosos da região conseguiram planejar e executar essa fuga de dentro da prisão”, lembra Rolim. Melara se tornou uma figura pop, citado até em música de bandas de rock.
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Sete meses depois, era carnaval. Mal sabiam os foliões que, enquanto dançavam uma marchinha, um grupo de presidiários do Casarão cavava pacientemente um buraco na parede da terceira galeria do pavilhão D, usando apenas ferramentas artesanais. Assim que o túnel ficou largo o bastante, em 27 de fevereiro de 1995, segunda-feira de Carnaval, 45 presos saíram para o lado de fora do prédio e escalaram até o telhado. O grupo, liderado pelo presidiário de 24 anos Paulo Vicente Lauffer da Silva, o Porquinho, estava preparado para a fuga. Levaram consigo jiboias – cordas trançadas a partir de roupas e lençóis – para descer o muro externo do presídio. “Parecia um monte de homens-aranhas”, disse uma testemunha, na época, ao jornal Zero Hora. Pelo menos um dos fugitivos não conseguiu se segurar da corda e caiu da altura de 8 metros direto na calçada, quebrando as duas pernas. Os outros presos abandonaram o companheiro e fugiram na direção do Morro da Polícia, que fica atrás do presídio.
Duzentos policiais foram deslocados para caçar os foragidos a pé, enquanto um helicóptero e um pequeno avião patrulhavam a área. Era fácil de identificar os presos – as suas roupas estavam sujas e rasgadas. A polícia tinha a ordem de capturá-los a qualquer preço, então já passaram a atirar nas suas pernas para que não conseguissem correr. Alguns dos fugitivos portavam armas e atiraram de volta, mas, no fim do dia, 23 condenados foram trazidos de volta para o presídio, e muitos outros foram capturados nas semanas seguintes.
O Presídio Central nunca havia sido considerado uma instituição de ponta – muito pelo contrário. Desde a sua construção, em 1959, a instituição nunca funcionou de acordo com o plano original. A prisão deveria ter uma infraestrutura sofisticada, mas o governo gaúcho só teve dinheiro para construir metade dos prédios previstos na planta. O presídio foi inaugurado mesmo assim em 1962, com cinco pavilhões de três andares cada, com a capacidade de abrigar 660 presos. Com o passar dos anos, as celas ficaram superlotadas, chegando ao ponto de superar em quatro vezes a sua capacidade. Como consequência, os presidiários foram ficando cada vez mais inquietos. E, a partir dos anos 1980, encontraram um jeito de se organizar para expressar a sua frustração através de uma série de motins e tentativas de fuga. O Presídio Central virou uma panela de pressão. “Quando os presos não aguentavam mais as condições do presídio, eles explodiam. Isso fazia com que o governo tomasse medidas para melhorar a situação, e a pressão baixava. Mas aos poucos ia subindo novamente”, conta Rolim.
[olho]O Presídio Central virou uma panela de pressão[/olho]
Em 1995, depois que presos organizados conseguiram escapar duas vezes do Presídio Central em 7 meses, o sentimento geral era que o Estado tinha perdido o controle sobre o presídio. Em uma carta ao jornal Zero Hora, publicada em março daquele ano, uma leitora chamada Silvana exigiu respostas das autoridades. “É possível que uma prisão com mais de mil presos tenha um só guarda externo? Como os apenados tinham armas? Como conseguiram chegar ao muro sem serem vistos?” escreveu. Para piorar, Porquinho, presidiário que liderou a fuga do Carnaval, deu uma entrevista aos repórteres locais quando foi capturado dizendo que “foi muito fácil escapar do Presídio Central”. A população ficou enfurecida.
Antônio Britto sentiu a pressão. O político filiado ao PMDB havia tomado posse recentemente como governador gaúcho e se sentiu obrigado a lidar com o problema já no segundo mês de trabalho. Britto chamou a imprensa e fez um anúncio: ele iria tomar medidas dramáticas para acabar, de uma vez por todas, com os problemas do presídio de Porto Alegre. O plano era desativar o Casarão. Mas antes, iria construir 10 novas prisões de tamanho médio em cidades próximas, para onde seriam transferidos os condenados. E, enquanto as novas prisões não saíam do papel, ao longo de seis meses, o Presídio Central passaria a ser coordenado pela Brigada Militar (a polícia militar do Rio Grande do Sul). Esses policiais, ou “brigadianos” na linguagem regional, tinham fama de bem treinados, destemidos e de respeitar a hierarquia, o que poderia ajudar a colocar ordem no Casarão até então controlado por agentes penitenciários. Inicialmente, o plano deu certo. Os novos guardas conseguiram controlar os presidiários. A cidade se sentiu mais segura, e as críticas ao governo estadual diminuíram. Mas vários anos se passaram, e as novas prisões nunca saíram do papel. A Polícia Militar continuou no comando do Presídio Central por tempo indeterminado, e outros problemas começavam a aparecer.
O presídio estava completando 30 anos de vida, e os sinais da idade já apareciam nas paredes. Rachaduras, vazamentos e problemas elétricos precisavam de conserto. Mas, como havia a promessa de que a cadeia seria demolida em breve, o governo preferia não fazer os investimentos para recuperar o Central. Enquanto isso, os presidiários passaram a reclamar dos problemas de infraestrutura (como um chuveiro quebrado, por exemplo), batendo nas paredes das celas até os pavilhões tremerem como se um terremoto tivesse atingido Porto Alegre. Durante os protestos, a Brigada Militar temia não apenas que a estrutura desabasse de vez, mas que os presidiários conseguissem forçar as grades e escapassem. Não havia guardas suficientes para conter uma multidão enfurecida. Os policiais militares chegaram à conclusão que o único jeito de manter a ordem no Central (enquanto esperavam pela demolição do presídio) era negociar uma trégua com os presos.
[olho]Para a Brigada Militar, fazer uma parceria com os presidiários era uma jogada arriscada, mas necessária[/olho]
Foi assim que em 1997, Valmir Pires, um preso que sempre foi muito amigável com os policiais, foi chamado para uma reunião com um comandante da Brigada Militar do alto escalão. Ele cumpria pena de 12 anos por roubo de carros e assalto à mão armada. Sem saber do que se tratava, o preso encontrou o comandante em um andar vazio do pavilhão C, onde recebeu uma proposta. Pires poderia se mudar para o pavilhão com um grupo de presos de sua confiança. A polícia não entraria no andar sem a sua permissão e não monitoraria as suas atividades lá dentro. Ele receberia, inclusive, as chaves das celas daquele andar. Em troca, teria de prometer que os presidiários sob o seu comando não tentariam escapar da prisão e nem realizariam motins. Além disso, teriam de manter a área limpa, organizada e realizar consertos. Afinal de contas, se iriam assumir o comando também precisavam assumir algumas responsabilidades.
Para a Brigada Militar, fazer uma parceria com os presidiários era uma jogada arriscada, mas necessária. O acordo poderia ajudar a acalmar os ânimos dentro da instituição, já que criaria uma facção nova, amiga dos policiais. A ideia era diminuir o poder dos Manos, grupo liderado por ninguém menos do que Dilonei Melara, que ganhou ainda mais prestígio entre os criminosos depois da fuga de 1994. O acordo também ajudaria a manter os policiais no comando do Presídio Central. A essa altura, os PMs não queriam abrir mão do poder e dos adicionais de salário que vinham com a atuação dentro do presídio. Pires aceitou os termos da negociação. E resolveu chamar a sua facção de Os Brasas. Logo depois, outra facção nasceu de forma espontânea: os Abertos. Agora havia três grupos criminosos dentro do Presídio Central.
[olho]O Casarão virou um grande QG do crime organizado[/olho]
Como o plano do governador Antônio Britto de demolir o Central nunca avançou, a questão ficou para o seu sucessor, Olívio Dutra, que assumiu o poder em 1999. Dutra escolheu fazer algumas reformas mais do que necessárias na infraestrutura do presídio. Para começar, fechou o Hospital Penitenciário, palco da fuga de 1994. A seção foi transformada em um novo conjunto de pavilhões, o que, por um tempo, resolveu o problema de superlotação da instituição. Mas, como a população carcerária brasileira aumenta em uma velocidade impressionante, o problema voltou.
Em 2003, um novo governador, Germano Rigotto, sentiu que não tinha outra opção a não ser voltar ao plano original, de aumentar o número de vagas em outros presídios e acabar com o Central. “Elaboramos projetos para a criação de 8.914 novas vagas nos presídios estaduais, com investimentos de R$ 170 milhões”, ele disse em entrevista ao jornal Zero Hora em julho de 2006. “A meta inicial é disponibilizar 2,6 mil novas acomodações até o final deste ano”, prometeu. Mas o prazo não foi alcançado, e o problema foi deixado para a próxima governadora, Yeda Crusius. Em 2008 ela foi bem clara sobre as suas intenções: “A decisão de implosão do Presídio Central está tomada”. Mas ela também não cumpriu a promessa e, em vez disso, construiu mais quatro pavilhões na cadeia, aumentando o número de vagas. Era uma solução muito mais barata, mas temporária.
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De certa forma, o acordo com os presidiários deu certo. Desde 1998, nunca mais houve uma tentativa de fuga no Casarão. Mas o surgimento de facções rivais trouxe outro conjunto de problemas para o governo estadual. Na virada do século, aproximadamente 30 presidiários apareciam mortos de forma violenta a cada ano dentro da instituição. Eram assassinados a tiros, com facadas, apedrejados ou de tanto apanhar. “Havia uma guerra entre os grupos rivais”, afirma Renato Dorneles, repórter que cobriu os assassinatos para o jornal Zero Hora. “Eles brigavam pelo poder e pelo domínio das galerias.”
Em 2005, com a morte de Melara, líder dos Manos, o número de assassinatos dentro do Casarão caiu dramaticamente para apenas dois por ano. A paz repentina não foi uma coincidência. Sem o velho líder, uma nova geração de presidiários se deu conta de que era melhor parar com as rixas e focar nas vantagem do poder que a Polícia Militar tinha concedido anos antes. Seguindo o exemplo de facções criminosas que atuavam em presídios do Rio de Janeiro e São Paulo, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), os criminosos resolveram usar a máquina do Presídio Central para manter operações criminosas do lado de fora do xadrez. “Eles se deram conta que permanecer em estado de guerra atrapalhava os negócios. Por isso se tornaram mais organizados e começaram a respeitar o espaço um do outro dentro da prisão”, afirma Dorneles. O Casarão virou um grande QG do crime organizado.
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Roberto Silva, 32 anos, olhou atentamente para o presidiário com cara de mal encarado que lhe dava as boas vindas à cela 39F. Em uma mão, ele carregava um conjunto de chaves. Na cintura, tinha um facão pendurado. O homem explicou como as coisas funcionavam dentro do Presídio Central: a Brigada Militar vigiava os muros do presídio. Mas, do lado de dentro, quem ditava as regras eram os presos. Pela primeira vez, Silva criou coragem e olhou ao seu redor, para a sua nova casa. Era um longo corredor que tinha dezenas de celas, todas abertas. Cerca de 300 presos circulavam livremente dentro e fora delas. O seu cubículo tinha oito camas de cimento para 20 condenados. Muitos tinham que dormir de valete (um para cada lado) ou em colchões no chão. O banheiro era um buraco no chão escondido atrás de duas pequenas divisórias.
“Nada te prepara para o que você vê quando entra naquele lugar”, ele me disse.
Roberto Silva nunca havia sido preso antes de 13 de outubro de 2014. Na verdade, esse não é o seu nome verdadeiro. Quando eu o entrevistei na sua casa na grande Porto Alegre, ele me pediu para usar um nome falso porque ainda espera julgamento e teme que uma entrevista possa prejudicar a sua imagem perante um juiz. “Não era essa a vida que eu queria para mim”, justificou sentado no sofá ao lado da mulher. Silva foi criado pelos avós em uma casa de classe média baixa em Bagé, no extremo sul do Brasil. Ele se formou no ensino médio, fez um curso profissionalizante de informática e serviu ao Exército. Aos 19 anos, mudou-se para Porto Alegre procurando melhores oportunidades de trabalho. Após viver de bicos, foi contratado com carteira assinada como operador de empilhadeira em uma fábrica da General Motors.
O que desviou a sua vida, acredita, foi o azar. Silva fumava até quatro baseados por dia desde que tinha 14 anos de idade. E embora a prática seja ilegal, nunca teve problema de comprar a erva para o uso pessoal. “Até que um dia fui comprar um pouco mais para um amigo e, quando eu fui dar para ele a sua parte, um carro da polícia se aproximou”, conta. Ele foi preso em flagrante, já que carregava consigo sete trouxinhas de maconha, no valor de R$ 300. E quando foi posto em frente a um juiz, foi considerado traficante de drogas. Mesmo sem antecedentes criminais, foi enviado para a prisão preventiva enquanto aguardava pelo julgamento, o que poderia demorar até um ano. “Eu só pensei: acabou a minha vida”, lembra.
Quando chegou ao Casarão, policiais avisaram que ele poderia escolher qual galeria gostaria de morar. Existem 24 galerias no presídio, sendo que cada uma é comandada por um grupo ou facção. Desde os anos 1990, o número de facções aumentou consideravelmente. Os Manos e os Abertos continuam fortes. Os Brasas adotaram um novo nome: Unidos pela Paz. E novas facções foram criadas com base em afiliações por bairros da cidade. As galerias restantes abrigam presidiários que precisam estar separados por questões de segurança: travestis, homossexuais, agressores de mulheres, pedófilos, estupradores, evangélicos, réus primários e aqueles presos que trabalham para os policiais militares. Presos com curso superior completo (apenas 15 homens em 2015) também ocupam uma ala distinta.
[olho]Cada galeria é administrada por uma “prefeitura” composta por um líder, chamado “plantão”, e seus 30 secretários[/olho]
Ao mesmo tempo, a superlotação piorou. Hoje, aproximadamente 4.266 presidiários ocupam um espaço destinado a 2.069 presos. Ou seja, o presídio funciona com mais do que o dobro da sua capacidade. E não existem indícios de que o problema irá diminuir: na média, 59 presos entram o Presídio Central todos os dias, enquanto que apenas 54 deixam o local. De acordo com estatísticas de dezembro de 2015 divulgadas pela Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários), a maioria dos novos presos tem entre 18 e 24 anos, não completou o ensino fundamental, identifica-se como branco, e, assim como Silva, foi enviada para a prisão como medida preventiva para esperar um julgamento por tráfico de drogas. Para tentar segurar a superpopulação, ao longo de 2015 por diversas vezes a Justiça gaúcha mandou interditar a entrada de novos presos no Central, especificamente aqueles que já cumprem ou cumpriram penas. Mas a medida nunca durou muito tempo por gerar outros problemas, já que os presos acabavam lotando as celas improvisadas das delegacias da capital.
Silva ficou chocado ao observar o poder que os presidiários conquistaram dentro da prisão. Cada galeria é administrada por uma “prefeitura”, de acordo com a linguagem do Central, composta por um líder, chamado “plantão”, e seus 30 secretários. Munidos de facões na cintura, o grupo controla todos os aspectos da vida carcerária. Definem, por exemplo, quando as luzes ficam acesas, se as celas ficam abertas ou fechadas (alguns pavilhões estão caindo aos pedaços e não têm grades nas celas), quem tem direito de dormir nas camas, e até mesmo como resolver conflitos entre os presos. Os plantões também assumiram o papel de porta-voz entre os presidiários e a administração do Casarão: fazem pedidos de transferências, solicitam assistência jurídica e médica e advogam para que certos bens entrem nas galerias – como televisores, fogões a gás e ventiladores. “Eles são extremamente organizados”, afirma.
As prefeituras também mantêm uma ligação estreita com facções criminosas do lado de fora do presídio. “Os dois lados estão em contato constante através de celulares, ou através de visitas e agentes penitenciários que levam e trazem informações e mercadorias”, explica Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e especialista em segurança pública. “Já não há mais uma distinção tão grande entre os membros que estão dentro e fora. Funciona como uma rede”, afirma. Para as facções, manter tentáculos dentro do Presídio Central é extremamente benéfico e serve, inclusive, como forma de angariar novos membros. Uma tática infalível é bancar os gastos dos presos dentro da prisão – desde comida até colchão. A conta pode chegar a R$ 300 por mês, e a maioria dos presidiários não tem dinheiro para pagar. Só que existe uma cláusula contratual importante que vem com esse empréstimo: quando os presos ganham a liberdade, precisam pagar essa dívida, seja em dinheiro ou praticando crimes para a facção. Caso contrário, são mortos.
Fluxo a céu aberto
Enquanto eu esperava para entrevistar Sidinei Brzuska sobre essa liberdade conquistada pelos presos, aproximadamente 10 presidiários líderes de galerias estavam reunidos na sua sala localizada no Presídio Central. Brzuska, juiz da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, admite que faz reuniões frequentes com esses “plantões”, com o objetivo de manter uma relação pacífica entre Polícia Militar e os presidiários. Mas, nesse dia, os criminosos também tinham uma reclamação para fazer: eles não estavam felizes com o tratamento que novos guardas estavam dando para os presos. “Os guardas estavam sendo um tanto truculentos. E isso é inaceitável para eles”, ele me disse quando começamos a entrevista. Em seguida, o juiz confirmou que iria pedir para que os guardas “pegassem mais leve”. O seu trabalho, admitiu, era manter os presos felizes para a panela de pressão não estourar. Ele não gosta de fazer esse papel, mas acredita que é o único jeito de manter a ordem no Casarão. “Existe um equilíbrio frágil aqui dentro, que precisa ser mantido para garantir a segurança de todos”, justifica.
O equilíbrio é uma saia justa para o Estado. Os presos vivem de forma pacífica e não realizam fugas ou rebeliões. Mas, através do poder de ameaça, conseguiram adquirir tanto poder dentro da prisão que chegam a desenvolver as mesmas atividades criminosas que praticavam antes de serem presos. Entre elas, está a venda e o uso de drogas. “Eu costumava comprar maconha toda a hora”, Silva revelou. “Eles vendiam cocaína, maconha e crack de bandeja, inclusive nos dias de visita, e frequentemente os guardas observavam a transação sem interferir.” A atividade se tornou pública com a divulgação de um vídeo em dezembro de 2014 que mostrava dezenas de presos fazendo fila para cheirar cocaína dentro de uma das galerias. O vídeo, que virou notícia nacional, foi enviado por uma fonte de dentro da prisão para o repórter Renato Dorneles, que hoje trabalha para o jornal Diário Gaúcho.
Maconha, crack e cocaína, assim como armas e celulares, são supridas pelos membros das facções que estão do lado de fora do Central. Para eles, o Presídio Central virou um grande mercado a ser abastecido, e os lucros das vendas são divididos entre os membros que estão do lado de dentro e fora do muro. De acordo com Brzuska, os itens entram no Casarão com a ajuda de familiares. Afinal de contas, uma média de 230 mil pessoas visitam os presos a cada ano – na maioria esposas, mães e irmãs. E, apesar de passarem por escâneres de seguranças vestindo apenas a roupa de baixo, mulheres são frequentemente flagradas trazendo pequenos pacotes de drogas ou telefones celulares dentro de pedaços de pão, tênis, ou brinquedos de crianças – para citar alguns dos meios mais comuns.
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“Eu vi mulheres tirarem as calças, se abaixarem e inserirem drogas em suas vaginas enquanto esperavam para passar no escâner”, explica a esposa de Silva, que costumava visitar ele duas vezes por semana. Essa é apenas uma das lembranças amargas que guarda dos dias de visitação. Ela tinha que entrar na fila por volta das 3h da manhã do lado de fora do presídio para garantir que conseguiria entrar na cadeia para ver o marido até o meio da manhã. Lá dentro, passava o dia circulando na galeria onde Silva morava e o pátio adjacente, entre ratos, lixo e esgoto. Para matar a saudade do marido, se submetia a visitas conjugais controladas de perto pelos plantões. Com lençóis pendurados no teto, uma cela era transformada em dois quartos de motel onde os casais tinham 15 minutos para transar – e nem um minuto a mais, a não ser que pagassem por isso.
Em dezembro de 2014, o juiz Brzuska e a Brigada Militar fizeram uma tentativa de reconquistar um pouco de controle sobre o contrabando no presídio, introduzindo um escâner de corpo de alta tecnologia, no qual os visitantes não precisavam nem tirar a roupa. Desde que o sistema foi implantado, uma grande quantidade de drogas foi apreendida na porta de entrada do presídio. Mas os itens ilegais não deixaram de circular entre os presos. “Familiares e membros do crime organizado agora jogam pacotes de drogas por cima dos muros”, explica Brzuska. Além disso, é comum ver ratos correndo pela instituição vestindo colares feitos de pedras de crack, e camundongos com pacotes de cocaína costurados na barriga.
Ao mesmo tempo, suspeita-se que guardas tenham os seus próprios acordos com os presos. Em 2013, um policial militar do Casarão foi preso com vários celulares, meio quilo de maconha e muitas pedras de crack no seu armário. “Os criminosos sempre encontram um jeito, não desistem nunca”, lamenta Brzuska. E, depois que os itens ilegais entram para dentro do presídio, não é fácil detectá-los. A Brigada Militar realiza buscas uma vez por semana nas galerias. Mas os presos têm tantos recursos que chegam a usar cimento para esconder os produtos nas paredes. E como as paredes são sujas e manchadas, é difícil perceber emplastros de cimento fresco. Em algumas galerias, os presos usam outro artifício: penduram lençóis coloridos nas celas, como se fossem papel de parede.
Além do lucro proveniente do mercado negro, as facções criminosas também ganham dinheiro mantendo um mercado legal dentro do Presídio Central. Eles administram cantinas dentro das galerias, onde os presos compram todos os tipos de produtos, desde sabão para roupas até bolachas. Os presos precisam desse serviço, já que o governo não oferece produtos de limpeza ou higiene e apenas o essencial de comida: arroz, feijão, pão e ovo. Comida que, segundo Silva, não é suficiente para todos e “tem um gosto horrível”. Só que os chefes das facções criminosas definiram que só os plantões podem comprar itens para serem revendidos nas cantinas. E eles devem revender os produtos com um acréscimo de 400% no preço. Parte do lucro fica com a cúpula das facções e parte com os plantões, o que faz do cargo uma opção de carreira um tanto invejada lá dentro. “A verdade é que, para os presidiários que coordenam as galerias, é um bom negócio estar preso”, afirma o repórter Dorneles. “Eles ganham mais dinheiro lá dentro do que ganhariam do lado de fora. E ainda tem direito a vários benefícios, como as suas próprias camas, TV de plasma, freezer e drogas à vontade.”
[olho]”Em buracos de 1 metro por 1,5 metro, dormindo em camas de cimento, os presos convivem em sujeira, mofo e mau cheiro insuportável”[/olho]
Outra forma que as organizações lucram com o Presídio Central é incentivando os presos a continuar trabalhando. Os chefões do crime ganham uma porcentagem sobre qualquer atividade econômica desenvolvida nas galerias. Fernando Marques, 36 anos, que estava cumprindo pena de 104 anos por assalto a mão armada, era um desses “trabalhadores”. Sem nunca deixar os corredores do pavilhão D, ganhava pelo menos R$ 5 mil por mês no ano de 2014 aplicando o “golpe do aluguel”. Ele usava um telefone celular para colocar dois anúncios nos jornais locais. Um anunciava uma vaga para uma secretária; o outro, um apartamento para alugar. Pelo telefone, a secretária era contratada e instruída a ir numa imobiliária pegar a chave de um apartamento específico que estava para alugar. A seguir, era orientada a mostrar o imóvel aos interessados.
Assim que alguma vítima decidisse alugar o apartamento, a secretária recolhia um valor equivalente a um mês de aluguel e repassava o dinheiro para uma comparsa do preso que estava em liberdade. Só mais tarde, quando já estava planejamento a mudança, a vítima se dava conta que o apartamento na verdade não pertencia ao homem com quem tinha negociado pelo telefone. “Ele enganou muita gente até ser preso”, afirma a delegada Carmem Regio, de trás da sua mesa de trabalho na 17ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre. “E a gente só descobriu que ele estava dentro do Presídio Central porque realizamos escutas telefônicas, e percebemos que ele estava sempre no mesmo lugar – bem onde fica o presídio”, afirmou. Assim que o crime foi descoberto, um juiz emitiu um mandado de prisão para Marques – um episódio especialmente esquizofrênico do sistema carcerário brasileiro considerando que o suspeito já estava dentro da cadeia. O criminoso acabou sendo transferido para a prisão de segurança máxima de Charqueadas, onde a Justiça tinha a esperança de que ele não teria mais condições de praticar o golpe. Os seus advogados têm tentado, desde então, a sua transferência de volta para o Presídio Central.
Para Renato Dorneles, esse é um exemplo clássico que explica como o Presídio Central virou uma prisão de mentirinha. “Não existe isolamento porque os presos continuam em contato com o mundo exterior através dos celulares. Não existe prevenção do crime porque eles continuam a vender drogas e cometer crimes do lado de dentro. E não existe reabilitação porque na verdade eles saem muito piores do que entraram”, resume. A solução, segundo ele, seria investir mais na instituição, tanto na infraestrutura quanto no número de policiais (hoje são 3 guardas para cada mil presos, sendo que a recomendação do Conselho Penitenciário Estadual é de 1 para cada 5). Mas o jornalista sabe que a proposta esbarra na opinião de muitos brasileiros que acreditam que o governo não deve gastar dinheiro com criminosos. “O que a população não entende”, explica, “é que ao não investir no Presídio Central, o governo está ajudando a incentivar o crime organizado e as atividades criminais”.
Diante da mesma suspeita, em 2009, a Câmara dos Deputados conduziu uma CPI sobre o sistema carcerário. Após oito meses de investigação, quando os deputados visitaram a maioria das prisões no país, a comissão concluiu que o Brasil tinha 422 mil presos, número que excedia a capacidade dos presídios em 34% (hoje excede em 38%). Os parlamentares ainda advertiram que o Presídio Central era a pior cadeia do Brasil, uma verdadeira masmorra do século 21. “Em buracos de 1 metro por 1,5 metro, dormindo em camas de cimento, os presos convivem em sujeira, mofo e mau cheiro insuportável. Paredes quebradas e celas sem portas, privadas imundas (a água só é liberada uma vez por dia), sacos e roupas pendurados por todo lado… uma visão dantesca, grotesca, surreal, absurda e desumana. Um descaso!”, está escrito no relatório final. Os membros recomendaram que sete pessoas ligadas ao Presídio Central fossem responsabilizadas criminalmente, entre eles Éden Moraes, então diretor da instituição. No fim, a recomendação não foi acatada, mas a repercussão na mídia nacional foi grande.
Outra denúncia contra o Presídio Central se tornou pública em 2012, quando uma inspeção realizada dentro da instituição revelou que a infraestrutura estava consideravelmente danificada. A inspeção foi realizada pela Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul (OAB-RS) e pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS), preocupados com o estado dos prédios do complexo prisional. O relatório final apontou corrosão e rachaduras nas paredes, fiação elétrica exposta, falta de esgoto encanado e a proliferação de diversos insetos e roedores. O presídio estava em estado crítico, concluíram, e não havia manutenção que pudesse salvar as construções.
Em janeiro de 2013, a questão chegou ao conhecimento internacional. A OAB-RS uniu forças com outras entidades locais, como a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris-RS), e fez uma denúncia formal para a comissão de direitos humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O objetivo era que a organização internacional pressionasse o governo brasileiro a tomar alguma atitude com relação ao Central. Em 2014, a OAB-RS fez outra reclamação, desta vez para o conselho de direitos humanos da ONU (incluindo também o presídio Pedrinhas, do Maranhão). “Como pode o Brasil pleitear um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU quando não consegue seguir as recomendações de direitos humanos desta mesma entidade?”, questionou o presidente da OAB-RS, Ricardo Breier, durante uma entrevista no prédio da entidade em Porto Alegre. As reclamações tiveram alguma repercussão. Em março de 2013, a OEA enviou uma carta ao governo brasileiro pedindo que medidas urgentes fossem tomadas para resolver a situação. A presidente Dilma Rousseff, por meio da sua equipe, respondeu dizendo que o governo federal estava “realizando melhorias”. Mas pouco mudou até agora.
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Airton Michels, que é não é particularmente uma pessoa atlética, balançou uma marreta como se fosse um pêndulo com a sua mão direita até bater na parede de tijolos e fazer um estrago considerável. A plateia aplaudiu a cena. “Não é mais possível conviver com uma casa assim”, anunciou, naquela terça-feira, 14 de outubro de 2014. Michels, então secretário Estadual de Segurança, tinha reunido a imprensa no Presídio Central para começar, finalmente, a demolição do velho Casarão. O governador gaúcho de então, Tarso Genro, estava no final do mandato e integrava a linhagem de líderes que haviam prometido destruir o presídio. O objetivo era destruir o pavilhão C (que estava em pior estado) em apenas 30 dias. Logo depois, o pavilhão D seria demolido. O custo estimado para a operação era de R$ 1,1 milhão. Apenas ficariam de pé pavilhões mais novos.
Tendo cumprido a sua missão oficial, Michels entregou a marreta para a equipe de demolição e se aproximou dos repórteres para dar entrevistas. Ele explicou que, em até três meses, restariam apenas 500 detentos no local. “Vamos esvaziar o Presídio Central, mandando presos para outras prisões que estão sendo construídas nesse momento em outras cidades. Tanto que já retiramos 900 presos para começar”, anunciou.
O plano era que a maior parte dos presidiários fossem transferidos para um complexo prisional moderno que seria construído em Canoas com lugar para 2.415 condenados. A construção da instituição, no entanto, encontrou uma série de problemas: o processo de licitação foi lento e conturbado, a rede elétrica da estrutura nunca funcionou e faltou dinheiro para construir a estrada de acesso para o complexo. Outras três prisões que também serviriam para desafogar o Central tiveram problemas semelhantes envolvendo burocracia, falta de recursos e incompetência administrativa. Até hoje, nenhuma das prisões foi inaugurada. Como resultado, os presidiários que haviam sido transferidos do Presídio Central até a marretada de Michels tiveram que voltar para o presídio meses depois. O problema é que, agora, o Casarão tinha um pavilhão a menos, e a cadeia chegou a um recorde de superlotação.
Diante do cenário caótico, a administração do Central e os governos estadual e federal passaram a jogar a culpa um no outro. O juiz Brzuska culpou o governo estadual por precipitar a demolição do pavilhão C. “Foi uma jogada política. Estava terminando o mandato do governador Tarso Genro, e ele queria mostrar que ia cumprir com essa promessa de governo”, ele me disse dentro do seu escritorio. O governo federal também culpou o Estado, dizendo que a instância falhou ao não conseguir construir presídios já aprovados e financiados. “Em 2012, nós fomos forçados a cancelar o financiamento para novos presídios porque o governo estadual não mostrou qualquer iniciativa para construí-los”, afirmou Renato Campos de Vitto, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em uma reunião que ocorreu no dia 13 de maio de 2015, em Porto Alegre. Enquanto isso, o governo estadual se defendeu na imprensa, dizendo que não teve culpa dos imprevistos. Para Eugênio Couto Terra, presidente da Ajuris-RS, tanto o governo federal quanto o estadual têm culpa nessa história. “O governo federal nem sempre tem o dinheiro que diz ter. Ao mesmo tempo, o Estado é muito lento para encaminhar os recursos que vêm do governo federal, principalmente porque a cada quatro anos muda o governador, e portanto também mudam as prioridades.”
Escola do crime
Aos poucos, Roberto Silva, o homem que foi preso carregando sete trouxinhas de maconha, foi se adaptando ao sistema do Presídio Central e se tornou bem visto entre os presos da sua galeria. No início, Silva foi elogiado porque sabia cozinhar arroz, feijão e frango, habilidades importantes dentro de uma instituição onde a comida fornecida pelo Estado tem um gosto horroroso. Em seguida, foi apontado como um dos secretários do plantão, com a responsabilidade de coordenar a sua cela e os 20 poucos presos que moravam no cubículo. Após alguns meses, Silva passou a usar um facão na cintura e dar as boas-vindas para novos presos, explicando como as coisas funcionavam dentro do xadrez. Como parte desta promoção, ganhou alguns benefícios: podia dormir sozinho em uma cama e conseguiu comprar um telefone celular que usava para ligar para a mãe e a esposa várias vezes ao dia.
Enquanto isso, a esposa de Silva, uma professora de escola pública, ficou cada vez mais preocupada com o marido. “Eu não queria mais pisar naquele lugar. Eu não queria mais olhar para a cara das pessoas que estavam lá. Não queria mais passar pelo que a gente estava passando. Eu não queria mais estar tão sem dinheiro — por causa do custo de vida dentro do presídio. Eu nunca chorei tanto na minha vida”, ela me disse. A sua única esperança era contratar Vladimir Amorim, um advogado que, de acordo com os boatos que corriam nos corredores do Casarão, fazia milagres ao conseguir a liberdade para condenados na mesma situação que Silva. E, melhor ainda, deixava os clientes pagarem pelo seu serviço em prestações.
Amorim era benquisto pelos presos porque ele havia sido um deles. O advogado veio de uma família de classe média baixa e, aos 25 anos, acabou no Presídio Central após atirar em um conhecido. “Todo mundo andava armado naquela época e, no meio de uma discussão, eu acabei atirando no cara. Mas ele sobreviveu, graças a Deus”, ele me disse quando nos encontramos em uma cafeteria. Enquanto estava preso, dividindo o chão da galeria com outros presos para dormir, ele teve uma revelação. “Os presidiários são seres humanos, muitos querem ter uma vida melhor mas não tiveram oportunidade. E porque são tão pobres não conseguem ter acesso a advogados que realmente os ajudam.” Quando foi solto em liberdade condicional, ele fez uma promessa para si mesmo: iria voltar um dia para o Presídio Central como advogado, para ajudar aqueles homens. Aos 28 anos, completou um supletivo de Ensino Médio e passou no vestibular de direito da Ulbra, uma faculdade privada situada em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Demorou oito anos para conseguir pagar todas as cadeiras da faculdade e finalmente se formar.
Desde que começou a trabalhar como advogado, seu foco tem sido ajudar presos como Roberto Silva, pessoas simples que estão no Presídio Central cumprindo pena por tráfico, ou seja, 76% da população da instituição. “Em geral, estavam carregando uma quantidade pequena de drogas para uso pessoal e ainda assim foram considerados traficantes”, afirma. De acordo com Amorim, os juízes estão acostumados a tomar essas decisões com base na cor e classe social dos acusados. “Tu pode carregar uma certa quantidade de maconha se for rico e tiver estudado. Eles vão te considerar consumidor, e a pena é mínima. Mas se tu tiver a mesma quantidade de maconha e for pobre, preto e morar na favela, eles vão te enquadrar como traficante. E tu vai preso.” Essa tendência ficou pior com a nova legislação de drogas do Brasil, que deixou menos clara as definições para consumidor e traficante, dando aos juízes mais poder de decisão com relação às sentenças. Os números são impressionantes: desde 2005, quando a nova legislação entrou em vigor, a população carcerária do Brasil aumentou 66%, de acordo com números divulgados pelo governo federal.
Quando Amorim assumiu o caso de Silva, outros advogados já tinham tentado pedir a sua liberdade condicional, sem sucesso. Amorim resolveu levar o caso até a máxima instancia possível, o Supremo Tribunal Federal (STF). E, para a surpresa de todos, o juiz Luis Roberto Barroso não apenas decidiu a favor da sua liberdade, como usou o seu caso para exemplificar um problema ainda maior do sistema carcerário brasileiro. Ele escreveu cinco páginas justificando porque que alguém como Silva não deveria estar vivendo no Central. Em um dos parágrafos, relata:
No atual sistema prisional brasileiro, enviar jovens, geralmente primários, para o cárcere, em razão do tráfico de quantidades não significativas de maconha, não traz benefícios à ordem pública. Pelo contrário, a degradação a que os detentos são submetidos na grande maioria dos estabelecimentos e a ausência de separação dos internos entre primários e reincidentes e entre provisórios e condenados, transformam os presídios em verdadeiras “escolas do crime”. Presos que cometeram ou são acusados de ter cometido crimes de menor potencial lesivo passam a ter conexões com outros criminosos mais perigosos, são arregimentados por facções e frequentemente voltam a delinquir após saírem das prisões.
No dia 8 de maio de 2015, o STF ordenou que Silva fosse solto imediatamente. A decisão foi um prelúdio do que viria a seguir. Vendo casos como o de Roberto Silva com frequência, em agosto de 2015 os juízes do STF começaram uma votação sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Até agora, três ministros já defenderam que o consumo próprio de maconha não deveria ser crime. Mas a votação foi interrompida quando o ministro Teori Zavascki pediu vista ao processo.
Dentro do Presídio Central, Silva foi surpreendido pela boa notícia. “Eu fiquei tão feliz que comecei a gritar dentro da galeria que eu estava indo embora e que nunca mais iria voltar”, lembra. Silva saiu pela porta da frente e abraçou a mulher. Agora, relendo a decisão do STF na minha frente, ele se emociona. “O juiz estava certo. Se eu tivesse ficado no presídio um pouco mais, eu não sei no que teria me tornado. Provavelmente eu sairia um dia com sede de vingança e iria atrás do cara que pediu para eu comprar drogas para ele naquele dia. E daí, não teria mais volta”, disse. Silva agora aguarda o seu julgamento em liberdade. Desde que saiu, conseguiu um emprego em uma lanchonete com um amigo, e depois de alguns meses voltou a trabalhar como operador de empilhadeira para uma grande empresa. Mas ele vive com o peso de saber que talvez ainda tenha de voltar para a prisão. E o Presídio Central talvez ainda esteja de pé, pronto para recebê-lo de braços abertos.
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Esta reportagem foi produzida originalmente pelo Bang e editada pela Agência Fronteira em parceria com o Risca Faca.
A primeira coisa que Iure Gomes fez ao abrir as portas do Pinball Clube de São Paulo, no bairro do Cambuci, foi dar as boas-vindas e, antes que eu formulasse qualquer pergunta, disparou escada acima. Fazendo um gesto de “vem comigo”, bradou: “É aqui que acontece a mágica”, e novamente desembestou a andar entre as fileiras de máquinas de pinball alinhadas pelo espaço. A cada dois ou três metros, sempre falante, ele parava, ligava uma ou outra máquina, fazia demonstrações e até removia o tampão de vidro para revelar detalhes de cada peça. Em poucos minutos percorremos todo o imóvel enquanto Gomes se empenhava na meta de transmitir o máximo de informações possível a respeito daquela cultura. Aos 44 anos, o diretor comercial de uma empresa de TI é um dos sócios fundadores do clube, inaugurado em 2003. Atualmente, a agremiação conta com 25 sócios e 120 máquinas.
“O clube é fechado para os sócios”, explica. “Nós nos encontramos todas as terças, quintas e sábados, e isso aqui é como se fosse a nossa confraria. O nosso refúgio.” O acesso restrito ilustra o fato de que a prática do pinball, no passado hábito corriqueiro dos bairros populares, com seus fliperamas disputados por office boys e estudantes a matarem aula, nos últimos anos virou uma espécie de hobby de luxo. A maioria dos sócios do Pinball Clube de São Paulo, na faixa dos 40 anos, é um pessoal tão empolgado quanto Iure. Colecionadores de notável poder aquisitivo, já que essas máquinas, bem como sua manutenção, demandam um belo investimento. Para se ter ideia, uma máquina nova custa em torno de R$ 35 mil, e pode chegar até mais de R$ 50 mil, dependendo do modelo. Já uma máquina restaurada, antiga, custa em torno de R$ 22 mil. Cada integrante do clube tem, no mínimo, uma dezena delas.
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Quando chega alguém novo querendo ser sócio, espera-se que o aspirante coloque pelo menos duas máquinas lá dentro. Fora isso, todos devem colaborar com os gastos de manutenção do lugar, do aluguel ao IPTU. O uso dos equipamentos é compartilhado livremente entre eles. Gomes, por exemplo, disponibiliza nove máquinas no clube. Segundo ele, a obrigação de cada membro é manter as suas funcionando e em bom estado, “para não virar depósito”. “Não existe intenção de ganhar dinheiro com o clube. Não queremos que o lugar fique lotado, e sim reunir um grupo de pessoas com um interesse em comum para bater papo. No final das contas, vira uma família”, observa o nosso cicerone. E complementa: “O perfil do pessoal é bem heterogêneo. Aqui você vai encontrar piloto de avião, assessor de imprensa, advogado, executivo, empreendedor, engenheiro. Todos unidos por essa paixão em comum que é o pinball.”
O modelo do Pinball Clube de São Paulo é replicado em outras cidades. Atualmente, funcionam outras duas células no estado do Rio de Janeiro – uma na capital e outra em Petrópolis – e mais duas no estado de São Paulo, em Boituva e no ABC paulista. Gomes revela que há iniciativas de expandir para Belo Horizonte, Porto Alegre e Caruaru, e explica: “Quando falamos em filial, não significa que o sócio tem a chave de acesso aos outros clubes, mas existe uma política muito legal de boa vizinhança. Só se paga para entrar quando temos as etapas do Campeonato Brasileiro, que passa por Petrópolis, ABC e São Paulo, onde rola a final. Ou, duas vezes por ano, sem data certa, quando abrimos para o público”. Os eventos open house aos quais ele se refere são anunciados nas redes sociais.
São recorrentes entre os membros do clube as declarações de que a nostalgia funciona como o maior atrativo da retomada do pinball. O próprio Iure Gomes teve contato com o pinball aos quatro anos de idade e nunca mais parou. “Meus pais me colocavam numa cadeirinha, eu botava o queixo naquela barra de metal do vidro da máquina, estendia os braços, e jogava completamente esticado. Eu também pirava naqueles pequenos arcades: Space Invaders, Asteróide, Bazuca, e por aí afora. Tem foto minha, bem pequeno, jogando”, relembra. O advogado Cid Rudis, de 41 anos, foi tragado por este universo aos sete anos. “Eu sou carioca. Morava em Copacabana e lá tinha um fliperama. Eu me lembro até hoje da primeira máquina que chegou com voz. Quando eles tiraram da caixa e ela emitiu o som de fala, foi um negócio inacreditável”, conta. Isso foi em 1981.
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Rudis é da geração das máquinas Taito, que dominaram o mercado nacional entre 1972-85 com franquias como Cavaleiro Negro, Fire Action e Oba Oba. “A Oba Oba eu jogava com meu pai, ele era amigo do [Osvaldo] Sargentelli, dono da casa de shows Oba Oba, no Rio. Meu pai já morreu. Me lembro até hoje do dia que reencontrei uma Oba Oba depois de 30 anos. Chorei. Veio aquele mar de recordações”, comenta sem conseguir esconder a emoção. “Foi quando senti que precisava trazer o pinball de volta para a minha vida.” Treze das máquinas mantidas no clube paulistano são dele. Fora isso, Rudis é dono de mais cinco arcades (máquinas multijogos) e outras duas máquinas de pinball, que estão em sua casa.
Das 220 máquinas que ocupam os dois andares do clube carioca, 70 pertencem ao seu fundador, o gerente de TI Mário Sérgio da Rocha, 40 anos. “Tudo no pinball me fascina”, discorre ele sobre os maiores atrativos da prática. “Mas a nostalgia tem um peso maior. Faz eu me recordar da época de infância e adolescência, quando as preocupações da minha vida eram ganhar uma bola extra ou um novo crédito com aquela fichinha comprada com o dinheiro suado. As economias do lanche da escola ou do ônibus.” Ele também chama a atenção para a jogabilidade física das máquinas. “A bola nunca traça o mesmo caminho. Por isso, cada partida é uma partida. Duas máquinas iguais, lado a lado, vão te oferecer um jogo totalmente diferente. Isso tem a ver com a elevação do playfield, o estado das borrachas, entre outros fatores.” Na ativa desde 2003, o clube do Rio hoje conta com 20 sócios.
A história de Ricardo Kobe é menos emoção e mais fissura. Aos 52 anos, ele é dono de uma loja voltada ao público geek. Como todo nerd, Kobe curte colecionar uma variedade de artigos que remetem à cultura pop. E o pinball, para ele, é parte desse barato. Hoje, ele é dono de onze máquinas, mas conta que já chegou a ter 56 – vendeu para investir na abertura da loja. A primeira aquisição foi em 1989, uma Fire Action da Taito. “O que eu mais gosto no pinball são os temas das máquinas. Tipo a Tommy, do The Who. Essa máquina é fantástica”, comenta. “Às vezes você acha algo muito raro e sabe que, se não fizer a doideira de comprar, vai perder a oportunidade.” Uma dessas “doideiras” ele cometeu na feirinha da 13 de maio. “A certo ponto da caminhada olhei para o lado e vi uma máquina de 1957. Sem minha mulher perceber, dei meu cartão para o cara e falei: ‘Amigo, essa máquina é minha. Cubra ela e me ligue amanhã. Só não levo para casa agora porque minha mulher não pode saber’.” Por muitos anos, a mulher de Kobe achou que ele possuía apenas três máquinas, enquanto ele já tinha investido em mais de trinta.
O analista de sistemas Marcelo Pereira Batista, 48 anos, é o fundador do clube de Petrópolis (Imperial Pinball Clube) e acaba de faturar o título de Campeão Brasileiro de Pinball. Em abril, ele vai para os Estados Unidos disputar o mundial. Segundo MPBola, como é chamado no âmbito do pinball competitivo, “existe uma cena mundial forte no mundo atualmente, porém restrita a colecionadores, já que não temos mais fliperamas por aí como nos anos 80”. Inaugurado em 2013, o clube de Petrópolis já conta com 40 máquinas, em sua maioria adquiridas em sites de compra na internet. “Algumas nós tivemos que mandar restaurar. Outras, ainda estão em seu estado original, mas em perfeitas condições de uso”, informa. Diferente do clube de Petrópolis, a coleção de máquinas que deu vida às unidades do Rio e de São Paulo guarda um aventureiro histórico de caça ao tesouro.
Muitos exemplares raros funcionando em perfeito estado, como a Ace High, criação da Gottlieb de 1957, as eletromecânicas Drakor, lançadas pela Taito em 79, a clássica máquina Tommy, inspirada na ópera rock do The Who, lançada pela Data East em 90, correram o risco de virar entulho. “Na hora de se desfazer delas, a única opção que o cara tinha era desmontar ou destruir. Então a gente começou a fazer um resgate”, explica MPBola. Nesse sentido, o conceito que deu vida aos clubes pode ser entendido como o de um museu, mesmo não se tratando de uma organização formal. “É a gente que salva as máquinas”, frisa Iure Gomes. “Pegamos aquelas que estão para ser destruídas e conseguimos recuperá-las. Tem muita história de resgate de máquina que estava para ser queimada. Em alguns casos, vimos lugares onde as máquinas já estavam queimadas, restando apenas os metais”, lamenta.
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O Brasil já teve diversos fabricantes de pinball. Um dos últimos fabricantes foi a Taito, a marca mais bem-sucedida e dona de uma produção gigantesca no período de atuação. As atividades da empresa se encerraram no azul, sem dívidas. Ela simplesmente saiu do país e não recolheu o ativo. Então, quem tinha um fliperama com máquinas da Taito, passou a ser dono. E foi isso que tornou as coisas interessantes para os colecionadores. As máquinas permaneciam nesses lugares, mas os técnicos que geralmente faziam as visitas de manutenção, deixaram de ir. “Os caras começaram a dar um jeito de consertá-las diretamente com os técnicos que foram dispensados. Mas depois de um tempo, pararam também, porque deixou de ser interessante”, detalha Gomes. “Sumiram as peças de reposição, coisas do tipo. O interessante disso tudo é exatamente a possibilidade que foi aberta no mercado de uma hora para a outra. Alguns profissionais que existem hoje são oriundos justamente desse buraco que se abriu no mercado. Há casos antigos de máquinas que nos foram doadas. O cara falava: ‘Tira esse negócio daqui, porque isso é um trambolho que está tomando meu espaço’. Era pura verdade. No fim das contas, aquilo num bar ocupa o espaço de duas mesas”, reflete.
Na missão de resgatar máquinas antigas da destruição ou do ostracismo, os integrantes do clube do Rio conseguiram recuperar todas as máquinas um dia pertencentes a um antigo e gigantesco fliperama em Nova Friburgo. Mário Sérgio não mede esforços. Ele teve a ousadia de alugar um caminhão e passar em todos os depósitos recolhendo máquinas. Dessa vez, retornou com cerca de 20 exemplares e isso virou história na cidade. Mas ele tem uma extensa lista de outras histórias para contar: “Já desci máquina usando cordas, roldadas e a força de um caminhão, do segundo andar de um depósito que não tinha escadas. Já passei um carnaval em Búzios acompanhando o leilão de um exemplar raro pela internet, sem ir à praia. Quando ainda era solteiro e morava com minha mãe e avó, povoei a sala de estar com cinco máquinas. E já fiquei um dia inteiro sem comer para poder receber um lote de raridades”.
Em outra ocasião, eles subiram os morros das favelas correndo atrás de máquinas. Assim, conseguiram salvar duas e toparam com os destroços de mais três ou quatro. “O sujeito disse que ateou fogo porque não aguentava mais. Vimos somente os metais retorcidos e alguns vidros. O caixote de madeira e o playfield tinham virado estatística”, conta Gomes. “Uma das máquinas foi encontrada pelo pessoal do Rio num sítio do interior, no meio de um galinheiro, sendo usada como poleiro. Uma Shock, que hoje é raríssima”, comenta Cid Rudis. E prossegue: “Aqui, em São Paulo, já rolou de fazer comboio pelo interior, correndo atrás dos sítios e chácaras. E aí você encontrava máquina até na chuva. Infelizmente a maioria dos exemplares dos anos 80 veio nesse estado”.
A mania do pinball no mundo teve duas fases de ouro. A primeira foi no final da Segunda Guerra, entre 1945-55, quando dispararam as vendas e o número de fabricantes. A segunda, foi entre os anos 1980-90. Atualmente, até encontra-se gente que atua na restauração de equipamentos de ambos os períodos no Brasil, como a JSW, mas fabricante mesmo, não. Nessa nova fase em que o pinball virou culto, a fabricante norte-americana Stern dominou o mercado. Apostando na temática classic rock, a marca tem investido em máquinas licenciadas por bandas como AC/DC, Kiss, Rolling Stones e Metallica, além de séries, como The Walking Dead, Game of Thrones, Star Trek, e filmes, tipo Indiana Jones e Thron. Recentemente, eles fizeram uma edição comemorativa aos 50 anos do carro Mustang.
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A concorrente direta da Stern é a Jersey Jack Pinball, que lançou as máquinas do Mágico de Oz e de O Hobbit. “Eles deram uma sacudida no mercado”, comemora Iure Gomes. “A Stern estava com uma qualidade muito baixa nos produtos, e isso fez com que ela arrumasse mais investidores para melhorar as máquinas. Aumentou muito a qualidade, para bater de frente com a Jack Jersey. E isso foi, sinceramente, maravilhoso para o pinball no mundo. Abriu portas para outros fabricantes, muito pequenos, que estão buscando investimento para tentar entrar no mercado”, avalia.
O fetiche dos sócios do clube, no entanto, continua sendo pelas máquinas vintage. Por isso, vários colecionadores acabam aprendendo os macetes de manutenção e restauração. “Basicamente a manutenção das máquinas é simples”, explica o engenheiro eletrônico e sócio do clube de São Paulo, Nikolaos Mbakirtzis, 50 anos. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no local, ele não jogou nem ficou de bobeira papeando, bebendo ou comendo churrasco, como os seus colegas da “confraria”. Naquela noite, zanzava de um ambiente anexo à garagem até o piso superior, onde ficam as máquinas. Ia e voltava repetindo o trajeto com ferramentas e peças na mão. Fez isso diversas vezes.
De perto, foi possível notar que, naquele ambiente, o clube acolhe uma impressionante oficina de restauração improvisada. “Em vários momentos você tem que trocar peças. Todas as máquinas têm conserto”, diz Nikolaos, empenhado em fazer funcionar uma delas. “Você tem que botar peças novas. É como se fosse um carro: quebrou uma peça, tem que trocar. Não adianta você tentar ficar só consertando.” Observando de esguelha, Gomes continua animado. Conversa com todos ao mesmo tempo e ainda joga. Ele não se contém. Interrompe a fala do colega e crava, no bom humor: “Tirando os exageros é tudo verdade! Temos aqui pessoas que pegam uma máquina caindo aos pedaços e a deixam zero bala. Tipo os Mestres da Restauração”. Já é tarde da noite, a maioria dos presentes começa a se despedir. Semana que vem tem mais.
Quinze anos depois de entrar pela última vez em uma loja de card games, me vejo novamente rumo a um desses oásis perdidos de jogos analógicos, ainda tão escondidos do grande público. A mochila nas costas, dessa vez, não abriga uma imensa pasta cheia de cards e decks, mas a mente já se encontra tentando emular os mesmos sentimentos daquela época. Magic: The Gathering esteve na minha vida entre 1995 e 2000 – joguei, colecionei, troquei cards, participei de torneios e até mesmo tive alguns cards roubados. Tanto tempo depois o jogo continua firme e forte, mas algo mudou.
Magic: The Gathering é um Trading Card Game (TCG), ou jogo de cartas colecionáveis, no qual cada jogador tem um baralho de cartas, chamado “deck”, que ele próprio constrói a partir de uma coleção imensa de cartas já lançadas. As cartas fazem o papel de mágicas de diversos tipos (criaturas, encantamentos, feitiços), que juntas em um deck formam uma estratégia, com o objetivo de reduzir os pontos de vida do adversário a zero. Pelo menos era assim há quinze anos, e provável que regras assim, tão essenciais, não tenham mudado tanto. Mas os cabelos…
É essa a missão que me fez ir até a Bazar de Bagdá, loja de card games na Zona Norte de São Paulo. A intenção era a de acompanhar um torneio chamado PPTQ – Preliminary Pro Tour Qualifier, que qualifica jogadores (ou “duelistas”, bem mais legal) para os Pro Tour Qualifiers, que por sua vez dão vaga para os Pro Tour, torneios profissionais de nível mundial, que acontecem quatro vezes ao ano. Claro que tudo isso me foi explicado bem depois – tudo o que eu conhecia de torneios até então era o sistema suíço, “fantasmas” (quando o número de jogadores é ímpar alguém sempre tem a sorte de ficar de bobeira em uma rodada).
Assim que abri a porta da loja, revivi uma cena bastante comum na minha adolescência: jovens com pastas, mochilas nas costas, todos escorados no balcão da loja, esperando o início do torneio, conversando e trocando cards – pelo menos essa última eu imaginei que estivessem fazendo, o que se provou errado logo depois. “Vai jogar o torneio?”, alguém sacou na minha direção, como um Raio (um mana vermelho, três de dano em qualquer alvo). “Não, vou só acompanhar”, respondi já sem nenhuma atenção voltada para mim, como se esperassem pela resposta.
Um novo mundo de Magic
Posso dizer com segurança que, na época em que joguei, não havia um décimo da quantidade e variedade de produtos ligados a Magic que vi naquela loja. Lembro-me bem de pastas decoradas e deck shields, “plastiquinhos” individuais para proteger os cards, itens que não eram fáceis de serem adquiridos com o dinheiro do lanche da escola convertido em nerdices. O que eu vi na Bazar foi uma miríade de pastas, cases, protetores, dados marcadores de pontos de vida, “playmats” (um “tapetinho” que se usa para cobrir um dos lados da mesa onde se joga), e várias outras coisas coloridas que chamam muita atenção.
E não foi só no vasto universo dos acessórios que Magic se transformou num mundo estranho e terra de novas maravilhas. A gama de produtos oficiais aumentou muito de quinze anos para cá, e pobre de nós que comprávamos apenas “boosters” e “decks”. O duelista hoje tem acesso a baralhos pré-montados (bons e ruins, segundo relatos), caixas promocionais com brindes, edições especiais, de colecionadores, além de cards avulsos vendidos pelas lojas, chamados de “singles”.
Magic: The Gathering foi lançado em 1993 pela Wizards of the Coast, então uma empresa de garagem com poucos jogos no portfólio. Uma simples e rápida pesquisa mostra que hoje a WotC tem hoje em suas prateleiras os dois maiores bastiões quando se fala em jogos analógicos: Dungeons & Dragons, o mais famoso e jogado dos RPGs (Role-Playing Games), e Magic – além de ser uma subsidiária da gigante dos brinquedos Hasbro. “Bala na agulha” é a palavra que eu buscava e que representa bem o momento da empresa, que nos últimos anos investiu pesado em marketing e desenvolvimento de novos produtos e estratégias para os jogos.
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“Atenção, duelistas do segundo PPTQ da Bazar de Bagdá! A lista de jogos da primeira rodada já está disponível! Tomem seus lugares e aguardem o sinal dos juízes para dar início ao duelo!” – soou nos auto-falantes da loja Leonardo “Estranho” Martins, o juiz principal de um time de três árbitros responsáveis pelo torneio, todos eles vestidos a rigor – sapato, calça social e uma camisa com o bordado oficial, indicando que eram, afinal, juízes oficiais. Isso eu realmente nunca tinha visto: um nível de profissionalismo, excelência e seriedade que não era comum naquele Magic que eu jogava entre amigos, “na zoeira”. Nítida também era a questão da idade dos duelistas – todos certamente na fase dos “vinte e poucos”, a maioria nos “vinte e muitos”. Com vinte, ninguém mais da minha antiga turma ainda tinha um card sequer.
Informação é a chave
O que melhor explica as mudanças em muitos (quase todos, aliás) setores da sociedade é a universalização da o acesso à informação. Claro que o Magic se beneficiou disso e abraçou a causa. “A disseminação da informação foi o que mais mudou no Magic de quinze ou vinte anos para cá, e com a internet, o jogo e suas estratégias foram se difundindo muito mais”, explica Estranho. Faz sentido: sem a internet, pouca ou nenhuma informação chegava até nós, sempre por meio de informativos ou revistas que cobriam eventos e torneios internacionais, com meses de atraso. “Hoje, dá para acompanhar torneios de alta competitividade e em nível mundial, como o Pro Tour, em tempo real, via streaming”, comenta.
Eduardo Beraldo, o “Dudão”, um dos sócios da Bazar de Bagdá, lembra um período no qual a internet engatinhava e, para o Magic, as revistas eram o principal baluarte de dados para trocas. “No começo, nossa referência para cartas e informações de forma geral era a Duelist, revista que só conseguíamos em bancas de importados”, conta. A grande referência para trocas e eventuais vendas de cards veio depois: a InQuest, com quase metade das páginas dedicadas a imensas listas de preços de referências de cards. “Ninguém vendia ou trocava cards de uma coleção nova sem antes conferir seus valores na InQuest.”
A informação de qualidade estratégica também foi um dos grandes diferenciais que a disseminação digital trouxe ao jogo, melhorando a experiência dos duelistas. “Foi na época da InQuest que começaram a sair os artigos sobre arquétipos (tipos de estratégias de deck e de jogo), e ao mesmo tempo torneios internacionais como os Pro Tour, Mundial e Latino-Americanos começaram a ter grande importância”, revela Dudão. A internet, ainda segundo o lojista e jogador (Dudão venceu o PPTQ mencionado acima), fomentou essa busca dos jogadores por informações a respeito de arquétipos e estratégias. “Dias atrás tivemos um torneio aqui na loja e, ao mesmo tempo, passava no telão o streaming do primeiro torneio oficial da nova coleção, “Battle for Zendikar”. Todo mundo colado na tela, vendo as novas cartas, novas estratégias e os novos decks que ela trouxe”, completa.
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Embora o Magic seja um jogo de alta complexidade (a comparação com o xadrez é recorrente no meio), ele hoje se mostra simples e de fácil acesso para o iniciante, diminuindo o fator de intimidação que a complexidade traz e, por consequência, afasta o jogador novato. Para completar, Magic já virou jogo para computador, tablet e celular, indo além das mesas e angariando mais e mais jogadores – que, pelas versões de software e aplicativos, têm mais facilidade em entender as regras. “Hoje, é fácil entrar no Magic, mas dominá-lo é outra história”, emenda Estranho.
A profissionalização
Torneios oficiais, mundiais, estabelecimento de estratégias e um mercado (oficial e paralelo) sólido são elementos cruciais para a germinação de um ambiente profissional e de duelistas profissionais. E foi o que aconteceu. Magic: The Gathering completou 20 anos em 2013 contando com uma massa fiel de duelistas “federados” de todos os níveis, uma ampla rede de lojas onde se realiza torneios oficiais e não-oficiais, e torneios de nível mundial nos quais se paga (muito) bem. O último Pro Tour, que aconteceu em Milwaukee, EUA, premiou seus vencedores com a soma de 250 mil dólares. Dá para viver.
Um dos melhores representantes brasileiros da atualidade nesse mundo é Willy Edel, carioca eleito para a turma de 2015 do Hall of Fame do Magic, segundo brasileiro a conquistar o feito (o primeiro foi Paulo Vitor Damo da Rosa, em 2012). Willy foi campeão do Pro Tour de Toronto, em 2012, e campeão brasileiro no ano seguinte, tendo ainda se classificado “Top-8” em diversos outros Pro Tour e Grand Prix. Toda essa trajetória fez com que Willy fosse indicado e conquistasse o cobiçado anel do Hall of Fame – sim, é como no Super Bowl.
Para Willy, o Magic está bem diferente hoje em comparação com os primeiros anos, e acabou se tornando referência para muitos outros jogos que foram surgindo ao longo do tempo. “Mudou completamente. Antigamente, 99% do público era casual, havia pouquíssimas lojas, poucos torneios, basicamente nada que favorecia a vertente competitiva. Hoje há vários incentivos, e para muitos o Magic virou profissão”, explica.
Se o jogo se profissionalizou, podemos comprovar também que os ambientes seguiram o mesmo caminho? Em toda a minha trajetória no Magic, tive como “base de atuação” uma locadora de games que vendia decks e boosters como alternativa para os jogos eletrônicos – e lá jogávamos de maneira bem casual, trocávamos cartas e muito raramente comprávamos um do outro. Isso também mudou? Para Willy, sim. “A troca de cartas ainda existe, mas é bastante rara nas lojas, e não sem motivo: por que limitar seus ‘parceiros de troca’ se hoje todas as lojas têm um estoque bastante amplo de cards avulsos para vender? A vida hoje é mais simples e fácil”, esclarece.
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Apesar do contexto profissional no qual o jogo se encontra hoje, trilhar o caminho “sério” não é nada fácil. Praticamente todos os torneios grandes são fora do Brasil, e a rotina de treinos, viagens e hospedagem pode ser assustadora para a maioria dos duelistas que iniciam nessa vida. Para ajudar esses duelistas profissionais de primeira viagem, Willy presta auxílio com relação a todos os fatores envolvidos nessas jornadas rumo aos grandes torneios. “Quando sou procurado, ensino os primeiros passos, desde marcar a passagem a reservar hotel. Se a pessoa está disposta a treinar sério para o evento, eu tento incluí-la no meu grupo de treinos. É muito difícil entrar no circuito profissional, então esta pode ser a única oportunidade desta pessoa, por isso tento ajudar no que posso e mostrar que tem que ser algo levado a sério”, revela Willy, conhecido no meio por essa atitude como “Godfather” do Magic.
Magic é um jogo de muitas possibilidades, inclusive de carreira. Leo “Estranho” Martins é um árbitro de nível 2, credenciado e graduado pela própria Wizards of the Coast. Se ele “apita” por hobby? “Somente em 2015, já viajei quase dez vezes para o exterior para ser juiz em grandes eventos”, conta. Estranho abandonou a graduação em Filosofia na Unifesp e um cargo público na Secretaria Estadual da Educação para se dedicar apenas ao ofício de árbitro de Magic.
O papel das lojas
Desde seu início, a cultura do Magic esteve ligada de forma íntima às lojas que comercializam os cards e outros produtos relacionados. A loja está para o Magic assim como o campinho de bairro está para o futebol, nas devidas proporções. E se nos primeiros anos esses ambientes eram simples pontos de encontro e espaço para duelos (além da venda de produtos), hoje as lojas de Magic são verdadeiras “células” que agregam jogadores em um ambiente profissionalizado.
É nas lojas que o jogador conhece pessoas e tem contato físico, real e presencial com cartas, decks e o principal: joga Magic com diferentes pessoas. Willy emenda: “Em lojas o jogador faz amigos, joga torneios, compra suas cartas e tem chance de começar ali uma carreira profissional”.
Em uma busca no site LigaMagic, um agregador de torneios e lojas, encontrei mais de 50 lojas na cidade de São Paulo e um total de 230 estabelecimentos no estado. No site é possível também fazer busca por torneios a serem realizados – localizei 49 torneios durante todo o mês de novembro de 2015, só na cidade de São Paulo. No próprio site da Wizards of the Coast o duelista pode usar o localizador de lojas e torneios, que também retorna dezenas de resultados para a cidade de São Paulo. Ou seja: opções não faltam para o duelista iniciante, intermediário e experiente. “O jogo se chama Magic: The Gathering, e para mim o “Gathering” (“reunião”) é a grande razão do seu sucesso”, completa Willy.
Fora do circuito
Apesar da força e relativa importância da rede de lojas e da comunidade de jogo que as envolve, alguns duelistas de longa data preferem se manter à parte de todo o esquema. É o caso do também carioca radicado em São Paulo Rodrigo Esper – seu ambiente de jogo, na verdade, é a sala do apartamento que divide com amigos também duelistas na região central de São Paulo.
A experiência de Esper com o jogo – começou nos primórdios, com a jurássica Quarta Edição, que saiu no Brasil em 1995 – sem dúvida o credenciaria para estar entre alguns dos mais proeminentes duelistas da comunidade. Mas, por opção, se manteve em círculos restritos de jogo, bem no estilo “entre amigos”. “Comecei como todo mundo, na lojinha de bairro que era meio locadora, meio loja de coisas nerds, mas logo me mantive em grupinhos mais restritos, sem me envolver muito em comunidades”, conta. Esper considera que o clima de intensa disputa que permeia o ambiente do Magic de forma geral tem conotação negativa. “Não queria competir, só jogar entre amigos mesmo. Todo mundo se conhecia e sabia das cartas e dos decks de cada um”, revela.
Entendi bem o que ele quis dizer, e compartilho de certas aflições que vivi quando adolescente em ambientes assim. Há uma certa insegurança em se lidar com alguns tipos de nerds, em epecial os mais “hardcore”. “Tem um tipo de nerd que é bem difícil de se lidar, são arrogantes, chatos, não compartilham conhecimento, te desprezam. Isso faz perder totalmente o prazer na coisa”, confessa.
Esper chegou a parar de jogar em determinado momento, quando viveu uma experiência traumática: “Roubaram meu deck, o principal deck. Desanimei”. Um bom deck de Magic, com 60 cartas, diversas raras, pode ser vendido de forma avulsa por boas centenas de reais (dependendo do deck, pode chegar na casa dos quatro dígitos). Ao mesmo tempo, segundo ele, muitos dos seus amigos duelistas também paravam de jogar e vendiam as cartas. Fiz a mesma coisa em 2000, quando parei e vendi minhas cartas (e recuperei quase tudo que investi), acompanhando a tendência de todos os outros da turma. Estávamos crescendo, indo para a faculdade e “virando adultos”.
Claro, adultos não jogam Magic – ou pelo menos não gostam muito de admitir isso. Jogam futebol, sinuca e tomam cerveja, mas não jogam Magic. Como bem postulou Esper, “jogar magic não é maneiro”. Eu mesmo, na época em que jogava, mantinha minhas atividades em segredo dos amigos de escola, que preferiam andar na rua e jogar futebol. Duelos, trocas e papos de Magic só com quem também jogava e via aquilo como uma coisa legal demais, mas entendia que a maioria das pessoas não absorvia facilmente.
O hiato de Esper com o Magic durou bons anos, pontuados por uma ou outra aquisição esporádica. “Não contava para ninguém, não era uma coisa bem vista, estava velho.” Estamos velhos. A vida, também conhecida como “convenções sociais absurdas”, travestida de consciência/responsabilidade, nos cobra se aparecermos em casa com um deck turbinado para torneio, ou com aquele combo imbatível que inventamos. Não há espaço e não é maneiro. Mas a verdade é que o mundo mudou nas duas últimas décadas: o que era tido como estranho, nerd e esquisito virou cultura popular — a tal cultura pop — e jogar esse tipo de jogo, e também jogos de tabuleiro, se transformou em uma forma de entender que podemos gostar daquilo que nos agrada sem preocupações. E isso, por consequência, transformou o ato de gostar de Magic em algo cool.
A história do Esper ajuda a comprovar isso. Fotógrafo profissional e sócio de uma agência, Esper cobria eventos, festas e shows no Rio. “Foi quando descobri uma galera que jogava escondido. Cara de banda, advogado – e a gente ficava de cara, porque aquele cara era muito maneiro para jogar Magic!”. Que “a vida” me perdoe, mas se um cara de banda joga Magic e tudo bem, não sei o que eu estou fazendo da minha vida. Jogar Pokémon, quem sabe? Já joguei e foi maneiraço.
Jogo Magic e sou maneiro, sim
A imersão no mundo do Magic a que me submeti nas últimas semanas foi altamente revigorante, mesmo descobrindo o quanto o jogo mudou desde que o abandonei – principalmente porque as mudanças parecem mesmo ter sido feitas de forma consciente, planejada e visando a oferecer ao duelista diferentes formas de abordagem e de encarar o jogo como um todo.
Em 2015, Magic The Gathering completa 22 anos de existência, gozando de boa popularidade (a quantidade de lojas e torneios disponíveis não deixa mentir), mas ainda permanece oculto de boa parte do público, sendo para a maioria das pessoas que o conhece uma vaga lembrança da adolescência – ou apenas “aquele joguinho de cartas estranho que fulano brincava na escola”. Essa lembrança distante ajuda a manter o jogo no “submundo” e em níveis de popularidade bem inferiores aos que o videogame, por exemplo, alcançou nos últimos anos.
Por outro lado, Magic parece estar em um patamar bem consolidado, com sinais claros de que não vai definhar e cair no limbo dos jogos ultra alternativos – pelo menos não em um futuro próximo. Bora, então, montar um deck e jogar uns torneios?