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As mil frutas de Helton

Repousando sobre a relva fofa na sombra do que parece ser uma mangueira apinhada de enormes pêras verdes, Helton Josué Teodoro Muniz toma um punhado de folhas secas na mão como se estivesse erguendo uma batuta. “A natureza funciona como uma orquestra”, ele diz. “Tudo deve ter seu tempo para que o equilíbrio seja alcançado. Se todos os instrumentos tocarem juntos sem harmonia, vira uma zorra.”

Da mesma forma, cada árvore em sua fazenda espera preguiçosamente por sua época de frutar. A variedade é palavra de ordem. Helton caminha por seu pomar como quem dubla Alceu Valença em uma estrofe de “Morena Tropicana”. Sapoti, juá, jaboticaba… Mais de 1.200 espécies de frutíferas convivem pacificamente pelos três hectares. O número deve aumentar com mais 150 variedades que ele planeja semear. Sentado em seu trono forrado de grama-amendoim, ele é o maior frutólogo do Brasil.

As estradas de terra que levam ao Sítio Frutas Raras, em Campina do Monte Alegre, são de um tom ocre-avermelhado. Os pneus voltam de viagem tingidos de uma cor quase de urucum. Se as árvores de Helton são frondosas e fecundas, é muito por causa deste chão chamado latossolo, com traços de areia e argila. A combinação é altamente fértil, e foi uma das responsáveis pela bonança dos barões do café do oeste paulista no século 19. A vegetação que recobre as terras de Helton, dando-lhes um aspecto almofadado, também é grande responsável pelo vigor das mudas livres de agrotóxicos e adubos químicos. A grama-amendoim fixa o nitrogênio no solo, colaborando para a nutrição das raízes, e retém umidade sob suas minúsculas folhas. Na época da roça, a cada três ou quatro meses, pode chegar a 40 centímetros, formando um espesso carpete esverdeado que se estende pela propriedade.

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Helton exibindo uma cabaça. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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Helton não nasceu ali – é de Piracicaba. Quando veio ao mundo, o oxigênio demorou a chegar em seu cérebro e lhe causou uma disfunção neuromotora. O que os médicos chamam de hipóxia neonatal só lhe permitiu andar ao cinco anos, com a ajuda da fisioterapia. Em sua vida adulta, o quadro compromete alguns movimentos minuciosos e lhe confere certa dislalia, dificuldade em articular sílabas, mas não causa outros impedimentos, não é degenerativo e não afeta seu tempo de vida. Junto à natureza, ele encontrou um estilo de vida que não o limita. “Até quem não tem problema de saúde se sente melhor perto da natureza. Ela é a maior expressão do amor de Deus. Se você trata uma planta com amor, ela vai te retribuir. Da mesma maneira, se você a trata com desleixo, ela vai murchar.”

Helton tem 36 anos. Após viver 14 anos na vizinha Angatuba, mudou-se para o sítio dos avós em 1995, onde permaneceu. Na cidade às margens do rio Paranapanema, os pescadores se embromavam nos cipós que pendiam sobre a correnteza para colher perinhas-do-mato. Era o saputá, como Helton viria a descobrir em sua adolescência, exasperado com o novo mundo de sabores que se descortinava a sua frente. “Como é possível existir tanta fruta e eu só comer laranja e banana?”, ele se inquietava enquanto folheava dicionários em busca de novos nomes ou conversava com senhores sabidos sobre a flora local.

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Algumas das frutas de inverno do sítio. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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A primeira semente que plantou veio do saputá. E vingou de primeira? “Claro!”, ele replica em tom de obviedade, com o olhar sereno de quem nunca esqueceu de aguar um vasinho de suculentas. O Viveiro Saputá, erguido ao lado de sua casa, foi batizado a partir daquela que lhe deu o gosto pela fruta. As mudas crescem sob o olhar atento de Helton e de sua esposa Emilene Muniz, que o conheceu em um congresso de Testemunhas de Jeová. A equipe conta ainda com dois funcionários. Os pais são vizinhos de poucos metros. Os habitantes mais recentes são Billy, Polly e Nina, cachorros que recebem os visitantes distribuindo lambidas em troca de cócegas na barriga.

Há alguns meses, Helton não agenda mais os tours de três horas que oferecia a R$ 20, normalmente terminando com degustações das frutas da temporada. O sítio se mantém agora através da venda de mudas, que custam em média R$ 25, e de seus dois livros, “Frutas do Mato” e “Colecionando Frutas”, onde dá instruções de plantio e cataloga suas espécies. Uma terceira publicação está sendo escrita em sua biblioteca, que fica anexa à cozinha da casa, onde uma estante de metal guarda diversos potes transparentes cheios de grãos.

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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“Você coloca dinheiro em banco para render. Da mesma forma, meu banco de sementes tem a finalidade de produzir mais plantas.” Para ele, sementes são mais valiosas que tesouros – afinal, cem gramas de ouro não conseguem gerar mais metal precioso. “Isso faz com que eu tenha filhos, netos e bisnetos aqui no pomar. Essas grandes empresas que armazenam sementes têm de pensar também na reprodução. Mas talvez seu interesse não seja guardar, mas ter o monopólio de uma espécie.”

Seus embriões vegetais chegam por correio de colaboradores que possui pelo Brasil afora. A maioria das plantas são nativas do Brasil. Só da região, são 250 espécies. As estrangeiras contam 300, fazendo com que, no pomar, cactos frutíferos encontrados na caatinga brasileira fiquem a poucos passos de um pé de santol, fruta nativa da Malásia. A oferta fácil de sementes, polpas e bagaços atrai quatis, tatus, cotias, capivaras e 120 espécies de aves — Helton afirma que, quando começou o cultivo há dezoito anos, não somavam nem 40.

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Helton e a simpática Nina na calmaria do sítio. Foto: Luísa Dörr/Risca Faca

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O agricultor também aproveita até o caroço o banquete do qual é dono. Como nem toda fruta é boa para comer do pé, algumas são destinadas a chás, geleias, sucos e doces. Sua preferida é o guaimbé, de origem mexicana, cujo gosto ele jura lembrar uma mistura de banana e abacaxi. Helton reivindica para si a criação do doce de azeitona, que, note, não é doce de oliva. “Qual o fruto da oliveira?” Ao se deparar com uma resposta tímida, ele dispara. “É a oliva! Azeitona não é oliva, é o fruto do azeitoneiro!”, diz ele quase irritado, emendando à constatação uma aula sobre as diferenças entre leguminosas, frutas e grãos.

Sua vontade de tornar conhecidas as mais de 4 mil espécies de frutos comestíveis do Brasil lhe atribui um tom ativista. Junto à estação ecológica de Angatuba, ele agora procura patrocinadores para um projeto de cadastramento e instrução de família agricultoras. A intenção é ensinar o cultivo e venda de produtos de origem vegetal, semeando o conhecimento adquirido em uma vida de pesquisa, prática e observação. O título de botânico, para Helton, é mais honorário que acadêmico. “Eu não tenho diploma. Diploma é gostar do que se faz, é se dedicar”, conclui. “Quando alguma pesquisa minha dá resultados, as pessoas me pedem para citar fontes. A fonte é o que eu observei da natureza. A fonte sou eu!”

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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Em busca de Amarildo

O que mais impressionou Adriana foi o olhar fixo do advogado em seus olhos durante toda a conversa. Sentada na sala de sua casa, ela contava a história de seu filho Carlos Eduardo da Silva Souza, de 16 anos — um dos cinco jovens fuzilados até a morte dentro de um carro por policiais militares, em Costa Barros, bairro pobre do subúrbio carioca, em novembro do ano passado. Ele lhe disse que estava disposto a representá-la gratuitamente. “Acreditei mesmo foi no olhar. Vi que o olho dele encheu d’água”, recorda-se.

Advogado de responsabilidade civil há quase 30 anos, João Tancredo foi escolhido representante de Adriana Pires da Silva, uma atendente de lanchonete de 36 anos, naquele mesmo dia. Nos últimos anos, Tancredo se tornou uma das primeiras pessoas para quem ativistas de direitos humanos telefonam quando uma tragédia como a que abateu o filho de Adriana choca o Rio de Janeiro e o país. Foi para ele que a Comissão de Direitos Humanos da Alerj ligou quando o estudante João Pedro Cruz Alves, de 23 anos, foi morto por tiros de fuzil por não parar em uma blitz. Também foi ele o advogado chamado pela ONG Rio de Paz quando a família do auxiliar de pedreiro Amarildo de Souza começou a se manifestar pelas ruas da favela da Rocinha exigindo saber sobre seu paradeiro.

O currículo de Tancredo se confunde com uma espécie de retrospectiva macabra das duas últimas décadas. Começando pelo naufrágio do Bateau Mouche, no réveillon de Copacabana, em 1989; passando pelo assassinato do conferente Mário Josino em uma blitz pelo policial Rambo, em São Paulo, em 1997; as chacinas de Vigário Geral, em 1993, da Via Show, em 2003, e da Baixada, em 2006; o acidente Gol-Legacy, em 2006, e da Air France, em 2009; o assassinato do menino João Hélio, em 2007, e muitos outros.

Em 2008, foi laureado pela Medalha Pedro Ernesto, a mais alta distinção oferecida pela Câmara dos Vereadores carioca, por sua luta no campo de direitos humanos. Luzia, irmã gêmea de Tancredo, se lembra bem do orgulho que sentiu do “Joãozinho” neste dia. “A pessoa não é aquilo que plantou para ser”, disse.

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João Tancredo em seu escritório. Crédito: Francisco Costa

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Um de dez irmãos, João Batista Tancredo foi registrado aos 9 anos de idade, pouco antes de entrar em um trem que o levaria de Palma, em Minas Gerais, onde nasceu, ao Rio de Janeiro. Para viajar, era preciso apresentar uma certidão de nascimento, e Tancredo, assim como quatro outros irmãos, não haviam sido registrados até então. Dois dos irmãos mais velhos já aguardavam a família no bairro de Santa Lucia, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde foram morar todos. Era 1966.

Passaram dois anos ali, em uma casa sem água, sem esgoto, à beira de uma rua de terra. Até então, Tancredo e boa parte dos irmãos nunca havia ido à escola. Ele passava os dias na rua ou ajudando um dos irmãos, que trabalhava como mecânico. “Eu ralava pra cacete”, conta, rindo. De Duque de Caxias, deram um “upgrade”, como descreve, para Vigário Geral, onde passou a maior parte da juventude. Lá, já com 11 anos, começou a estudar, segundo se recorda, na escola municipal Eneyda Rabello de Andrade. Um de seus irmãos mais velhos, Fernando, já estudava. Como não tinha caderno para começar as aulas, pegou o do irmão para aproveitar as páginas que faltavam. “Eu cheguei na escola e a professora falou ‘ah, você não pode ficar nessa série, sua letra é muito boa’”, conta Tancredo, imitando uma voz fina. Ele aceitou o elogio: “Eu não falei porra nenhuma”.

Tancredo me conta a história de sua infância, afundado em sua cadeira, no escritório. A narração é salpicada de piadas e gargalhadas, mas também de trechos em que o advogado abaixa o volume e o tom de sua voz, às vezes recorrendo a alguns segundos de silêncio. É como se falasse de um tempo alegre e trágico ao mesmo tempo. De fala onomatopeica, Tancredo gesticula amplamente. Abre os braços, apoia o queixo, cobre os olhos parcialmente, entrelaça os dedos das mãos e rói as unhas.

Sua infância e adolescência são memórias embaçadas. “É uma defesa natural, que você pegue o passado e desmonte porque você precisa se proteger. Entendo isso bem”, reflete. Lembra-se de ficar muito tempo na rua, e até mesmo, com uns 12 anos, de cheirar solvente com os meninos do bairro. Também se recorda que trabalhava muito, primeiro ajudando os irmãos, depois, com carteira assinada. O primeiro registro no documento veio de uma borracharia onde era hábito dos funcionários consertar um pneu e rasgar o outro para conseguir um serviço extra.

Tancredo não dá muitos detalhes, mas também se lembra das vezes em que, ao voltar para casa à noite, foi agredido por policiais, que lhe jogavam no chão e pisavam na sua cabeça. Adolescente, não era raro escolher os caminhos mais longos para chegar a sua casa e, assim, evitar ver cadáveres ainda quentes serem velados por suas famílias no meio da rua. “O rabecão costuma demorar uns dois dias para chegar lá”, conta.

Aos 13 anos, Tancredo conseguiu chegar à quarta série. Mas, naquele ano, foi expulso da escola. “Eu estava fazendo uma prova. Tinha uma troca de bilhete, coisa de moleque. E a professora tomou minha prova”, diz e silencia. “Parece que , naquele momento, eu senti que ela tinha destruído o passado. O que consegui avançar, eu tomei uma recuada. Eu me lembro, assim, da reação: explosiva.” Tancredo deu um soco na professora.

***

O passado pontilhado de lembranças difíceis certamente impulsionou Tancredo a trilhar seu caminho. Sua irmã Luzia diz que, dos amigos de Vigário Geral, muitos já morreram, “uns de tiro, outros de doença”. Pessoas próximas ao advogado se recordam de ocasiões em que ele, longe das tribunas do fórum, interferiu em conflitos entre a polícia e cidadãos.

Um deles ocorreu em uma sexta-feira, no fim da década de 1990. Tancredo voltava do Centro para seu apartamento, no Flamengo, sozinho no carro. Acabara de tomar uns chopes com seu sócio, Leonardo Amarante. Eram quase duas horas da manhã. Passava por uma avenida escura quando quase bateu na traseira de um ônibus, que parara no ponto. Tancredo olhou para o outro lado da rua e viu um rapaz ser revistado de forma agressiva por dois policiais. Um deles o segurava em uma gravata. Tancredo saiu do carro e se meteu na briga. No meio da madrugada, o telefone de Amarante toca. “Alô, aqui é o Rangel”. O hoje desembargador Paulo Rangel era promotor na época, e apenas um conhecido do advogado. “O que houve?”, perguntou Amarante, intrigado com a ligação. “Estou aqui na delegacia com o João.”

Rangel encontrara Tancredo por acaso no meio da briga e tentara resgatá-lo. O advogado não queria ir simplesmente embora, e sim prestar queixa contra os policiais. Mas, para isso, precisava da ajuda do rapaz que fora agredido. “Eu perguntei para ele ‘o senhor se sentiu ofendido?’, e ele falou ‘não’. Eu pensei ‘filha da puta’”, conta Tancredo, rindo, ao se recordar do episódio. Foi, junto com Rangel, para a delegacia da praça Mauá mesmo assim fazer o registro. De lá, saíram para tomar um chope.

No seu escritório, ele se recorda do escritório, e diz ter quatro processos penais de resistência policial contra ele. “Eram todos reações a essas revistas. Dava uma boa folha penal. Muito orgulho dessa folha penal!”, conta, gargalhando.

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Crédito: Francisco Costa

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Michelle Lacerda é sobrinha de Amarildo, e foi uma das pessoas mais ativas nas manifestações da família contra o desaparecimento do pedreiro, em 2013. A mãe de Michelle, Maria Eunice, criou Amarildo desde os 8 anos de idade, quando a mãe dos dois faleceu.

Michelle conheceu Tancredo na segunda passeata feita na Rocinha para exigir respostas sobre o caso. Naquela sexta-feira, o grupo fechou a Autoestrada Lagoa-Barra, exigindo uma reunião com o secretário de Segurança. Em meio às centenas de manifestantes, Antônio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, apresentou Tancredo a Michelle. Marcaram de fazer uma reunião na casa da família no fim de semana para que o advogado fosse apresentado à esposa, Elizabeth Gomes da Silva, e aos filhos de Amarildo. A esta altura, todos estavam morando na casa de Maria Eunice, por se sentirem ameaçados na casa da família.

[olho] “Era uma prática comum, isso [a tortura]. Só que o Amarildo era epilético – sem tratamento, claro – e não resistiu”[/olho]

A escolha de Tancredo como advogado da família foi feita naquele mesmo dia. Segundo Michelle, cerca de 15 advogados já haviam batido à sua porta desde a primeira reportagem sobre o caso ser publicada. Um deles, quando ouviu de Michelle quem ela havia escolhido, lhe disse que Tancredo não tinha boa índole e não lutava pelo direito de seus clientes.

A família tinha certeza de que Amarildo tinha sido morto por policiais desde o primeiro momento. A tortura de jovens pela polícia, segundo moradores, era comum. Tancredo conta ter levantado junto a Carlos Eduardo Barbosa, líder comunitário na favela, outros vinte casos. “Era uma prática comum, isso [a tortura]. Só que o Amarildo era epilético – sem tratamento, claro – e não resistiu”, conta Tancredo.

É comum encontrar Tancredo nas fotos das diversas passeatas organizadas pela família para cobrar respostas do governo. Em algumas aparece no fundo, com o olhar preocupado. Michelle conta que, durante a última manifestação feita na Rocinha, vários policiais cercaram Elizabeth, filmando seu rosto de perto. “E aí, o João Tancredo se enfiou, entrou no meio dos policiais e falou ‘estou aqui, sou o advogado dela. Quer cercar, me cerca, então’. E eu achei aquilo corajoso, no mínimo, né? Tudo bem, ele é nosso advogado, mas eu não me meteria na frente de um policial por um cliente meu, não, gente. Desculpa”, diz, rindo.

Tancredo costuma ter uma relação próxima com seus clientes. Adriana, mãe do jovem morto em Costa Barros, troca mensagens com o advogado com frequência. Entre o fim e o início do ano, o advogado passou dias preocupado com o estado depressivo de Adriana. No início de fevereiro uma advogada do escritório a levou para uma consulta com o psiquiatra e pagou uma conta de mais de 300 reais em remédios.

***

Os casos defendidos por Tancredo não são apenas responsabilidade de seu escritório, especializado em responsabilidade civil. Também são atendidos via Instituto de Defensores de Direitos Humanos, o DDH, uma ONG criada por Tancredo em 2007.

De início, o objetivo do DDH era cuidar apenas de casos emblemáticos, para dar visibilidade a eles. A ideia foi desbancada depois dos protestos de 2013. Seus advogados atenderam centenas de manifestantes e defenderam cerca de 40 deles nos tribunais. Hoje, a instituição também quer influenciar políticas públicas, e tem projetos contra a banalização da prisão provisória, assistência jurídica a movimentos sociais e outros. Outro objetivo para este ano é que a instituição se torne independente da imagem de João Tancredo, por vontade também do próprio. Presidente da instituição até o momento, ele será substituído pela professora Roberta Pedrinha, especialista em Direito Criminal em março.

Os trabalhos do DDH são pro bono, sem nenhum custo para o cliente – algo oferecido apenas pela Defensoria Pública estadual ou grupos de advogados que também oferecem defesa gratuita, mas em menor escala. Os honorários de sucumbência, como se chama o pagamento ao advogado determinado pelo juiz ao réu, portanto inevitável mesmo em um contrato filantrópico, são destinados ao financiamento da ONG – assim como o aluguel de uma sala de Tancredo na rua do Ouvidor. Diretor-executivo da instituição, o advogado Thiago Melo conta que a questão dos honorários ainda está na teoria, já que o DDH tem apenas nove anos de existência e não houve nenhum ganho de causa ainda. Também são parceiras organizações de renome, como a Open Society Foundations e o Fundo Brasil de Direitos Humanos, que financiam projetos específicos, como o que oferece assistência jurídica gratuita a presos provisórios.

Mas mesmo o DDH já foi motivo de polêmicas. Durante 2014, Tancredo e o instituto se juntaram a artistas em uma campanha intitulada “Somos Todos Amarildo”, cuja intenção era arrecadar recursos para comprar uma casa para a família do auxiliar de pedreiro e financiar uma pesquisa sobre pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro. A campanha foi um sucesso e arrecadou R$ 310 mil. Em março de 2014, uma reportagem da revista “Veja” intitulada “Cadê o (dinheiro) do Amarildo?” dizia que o DDH havia retido 80% do valor arrecadado na campanha, enquanto a família de Amarildo esperava ficar com metade do dinheiro. O montante destinado ao DDH teria como destino um “projeto ainda indefinido”, reclamara a revista. “O cheiro de oportunismo é fortíssimo”, concluiu a reportagem.

Quase dois anos depois, o DDH veio a público dizer que o projeto não conseguira sair do papel por falta de colaboração do governo do Estado com dados sobre os desaparecidos, apesar de repetidos esforços dos pesquisadores envolvidos. Os R$ 250 mil arrecadados à época foram, então, destinados em parte à família de Amarildo, mas também a entidades sem fins lucrativos, como o Grupo Tortura Nunca Mais.

A criação do DDH veio depois de o advogado ter sido exonerado da Comissão de Direitos Humanos da OAB após um embate com o então presidente da entidade, o deputado federal Wadih Damous. Tancredo defendia na imprensa que a morte de 19 pessoas no Complexo do Alemão em uma operação policial antes do início dos Jogos Panamericanos fora uma chacina deliberada. À época, a saída de Tancredo foi creditada à pressão exercida sobre a OAB pelo governo do Estado, então comandado pelo peemedebista Sérgio Cabral. Já Damouh deu entrevista à época sugerindo que Tancredo era irresponsável, e que aquilo tudo não passava de uma tentativa de “antecipar a sucessão eleitoral na Ordem”.

Hoje os dois não são brigados. Mas o advogado não é unanimidade na comunidade forense. Na boca miúda, advogados o acusam de procurar a mídia exageradamente, e de buscar clientes em evidência justamente para se promover – mesmo quando não cobra pelos serviços, como quando os casos são encaminhados via DDH. Por representar clientes cujas histórias trágicas estão em evidência, seu nome aparece com frequência nos jornais – assim como informações sobre seus casos, regularmente publicadas em colunas de notas como a do jornalista Ancelmo Góis, do jornal O Globo.

Adriana, mãe do adolescente assassinado em Costa Barros, já estava sendo atendida pela Defensoria Pública, quando a ONG Rio de Paz ofereceu a ela os serviços de Tancredo, sem ônus algum. O advogado quer seguir seu processo até o fim e conseguir um bom resultado para Adriana, o que pode levar anos – ela diz que o importante é ter justiça, e que o dinheiro pode ficar para a filha. Já a Defensoria espera fechar um acordo para o restante das quatro famílias já em março.

Tancredo critica a defensoria por fechar maus acordos – “ (a defensoria) informa que conseguirá um acordo de R$ 100 mil para a família. Absurdo.” A fala, já repetida para outros órgãos de imprensa, incomodou o defensor Daniel Lozoya, integrante do Núcleo de Direitos Humanos, responsável pelos casos de Costa Barros. Lozoya diz que os termos do acordo são sigilosos, mas que não aceitaria um mau negócio. Diz também que alguns advogados às vezes atacam a defensoria “para se promover”.

Thiago Melo, do DDH, ironiza a teoria de que a motivação de Tancredo é a autopromoção. “Quem dera todo mundo quisesse se promover desta maneira”, diz. E completa: “Qualquer advogado poderia estender a mão, mas infelizmente há poucos que se dispõem a isso”.

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Crédito: Francisco Costa

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João Tancredo é um homem não muito alto, nos seus 59 anos, com entradas no cabelo grisalho. Assim como os advogados mais tradicionais da cidade, usa camisas sociais com suas iniciais bordadas no peito e abotoaduras. Magro, vai de bicicleta de seu apartamento, em Ipanema, para o trabalho quase todos os dias – são mais de 10 quilômetros pedalando. Perguntei-lhe se ele se considera vaidoso. Ele disse que não. Sente-se necessário, útil.

Segundo ele, mais de 90% de seus clientes são pobres o bastante para pedir gratuidade de justiça. “Com o cliente pobre, você consegue exercer uma atividade de cidadania muito interessante”, refletiu. “Você consegue realizar com ele alguns dos seus ideais. Você consegue punir o causador de um dano grave; uma empresa que não deu o equipamento de segurança, absurdamente. Você acaba realizando. Pode ser egoísmo isso. Talvez, não sei. Mas você acaba realizando as coisas que você queria fazer na vida”, disse, segurando as duas mãos com as palmas abertas para cima.

Com o passar dos anos e a ascensão profissional, é comum que advogados parem de ir ao tribunal com tanta frequência. Mas Tancredo gosta de ir ao fórum. Vai quase todos os dias e não deixa de cumprimentar as dezenas de pessoas, conhecidas ou não, que lhe chamam pelos corredores. Da recepcionista ao desembargador. Fala alto, dá poderosos tapas nas costas, abraça, beija e conta a mesma piada várias vezes para pessoas diferentes.

Seu carisma lhe permite conquistar pessoas improváveis, como o desembargador Bernardo Garcez, ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio. Tancredo o defendeu em uma ação de danos morais impetrada por outro desembargador, Gabriel de Oliveira Zéfiro. Garcez agrediu o colega, com quem tinha desavenças anteriores, com uma cabeçada dentro de uma agência bancária.

Tancredo acredita que seu jeito entrão e boa gente contribuiu para o sucesso de sua carreira. Há magistrados que são seus clientes; funcionários do fórum gostam de seu jeito de quem “veio de baixo”. Mas a festa que seu escritório costumava bancar anualmente para os funcionários dos tribunais estaduais do Rio é alvo de fofocas. A festa começou a ser realizada em 1994, com cerca de 300 convidados. Em 2014, eram 1.300. A ideia sempre foi convidar apenas os funcionários das varas, para se contrapor a grandes escritórios da cidade, que costumam convidar juízes e desembargadores a suas festas.

Ao custo de cerca de 150 mil reais, a confraternização de fim de ano, regada a caipirinhas de melancia com manjericão e outras iguarias, contava com DJs e mimos, como cabines de fotografia. Tancredo costumava subir ao palco para fazer sorteio de prêmios, como tablets. Naturalmente, não há servidor nas varas que não o conheça. E, em um tribunal com uma taxa de congestionamento de 88% e quase 10 milhões de processos pendentes, isso conta.

A edição de 2015, no entanto, foi cancelada por causa da crise financeira (muitas empresas processadas pelo escritório não estavam pagando o que deviam), e também pelo entendimento de Tancredo de que algumas pessoas estavam interpretando mal o motivo da do evento. Era uma confraternização, não uma forma maliciosa de conquistar os funcionários, diz. Ele ainda não decidiu se o evento voltará a ser realizado.

***

Tancredo matriculou-se no curso de Direito na Universidade Cândido Mendes, em Ipanema, em 1982, aos 25 anos. Lá havia o turno da noite, o que lhe dava a opção de trabalhar durante o dia. Em certa altura, fazia três estágios ao mesmo tempo para conseguir pagar as contas. Formou-se aos 30 anos – o primeiro a ter curso superior em sua família.

Tancredo trabalhava como advogado do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), quando o então amigo de faculdade Leonardo Amarante convidou-o para começar um escritório. Também recém-formado, ele acabara de passar no concurso para procurador do Estado e fora lotado em Nova Friburgo. O salário inicialmente era uma fortuna para um homem sozinho, mas a inflação deu conta de destruí-lo a passos largos. Havia a possibilidade de advogar, e ele estagiara em um escritório especializado em responsabilidade civil. Decidiu chamar Tancredo para, juntos, começarem a empreitada. Os dois alugaram uma salinha do tamanho de um quarto pequeno na cidade, e começaram a trabalhar. Foi Tancredo quem fez a mesa do escritório, de um pedaço de madeira encontrado na casa de um amigo.

[olho]“Durante muito tempo eu pensava: ‘Isso é correto, procurar o cliente?’. Você pensa assim, né, se isso é é-ti-co”[/olho]

No início, os clientes vinham de forma controversa. Tancredo conta que lia os jornais e fazia pesquisas nos arquivos de processos criminais da região para encontrar vítimas que ainda não houvessem entrado com pedido de indenização. “Passei muito fim de semana visitando cliente”, conta. “A maioria não tinha noção de que tinha direito. Sequer tinha noção”. A chamada “captação de clientela” é considerada uma infração disciplinar pela OAB – apesar de não ser rara e de sua regularização estar sendo debatida pela ordem. Advogados concorrentes o criticam por captar clientes, algo que ele diz não fazer há mais de vinte anos.

“Durante muito tempo eu pensava: ‘Isso é correto, procurar o cliente?’. Você pensa assim, né, se isso é é-ti-co”, diz, separando as sílabas. E, com a voz séria, continua: “Sob a visão da advocacia burguesa, não. Você tem que estar sentado no seu gabinete esperando os seus clientes. Empresário e tal vem. E a massa de miseráveis, seus processos vão para a prescrição… Vai tudo embora. Funciona mais ou menos assim. Pode ser que eu esteja criando uma forma distorcida para falar que o que eu estou fazendo é certo. Isso é uma coisa que sempre me perseguiu”.

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Tancredo no fórum. Crédito: Francisco Costa

Faltavam minutos para o início do ano de 1989, quando o Bateau Mouche IV afundou na Bahia de Guanabara, a caminho de Copacabana. Das 142 pessoas a bordo, 55 morreram. Uma delas, a atriz Yara Amaral, de 52 anos, ainda no auge de sua carreira recheada de grandes peças de teatro e novelas da Rede Globo. Yara deixava os dois filhos, Bernardo e João Mário, ainda adolescentes, aos cuidados do ex-marido, Luis Fernando Goulart. O Bateau Mouche foi o primeiro caso de grande repercussão a cair nas mãos de Tancredo.

Bernardo é hoje um homem em seus quarenta anos, baixo e magro, de cabelos quase grisalhos. Ele me disse se lembrar bem do processo de escolha do advogado que cuidaria do caso de sua mãe. Havia, obviamente, dezenas batendo à porta de sua família. A ideia para decidir sobre o método de escolha partiu de um amigo de seu pai, o advogado Cyro Kurtz. “O Cyro matou a charada. Ele disse: ‘esse é um caso que vai se arrastar pela Justiça. E esses grandes figurões vão querer aproveitar esse início de mídia. A mídia só vai cobrir no início. Depois, desaparece. E assim vão desaparecer os advogados. Então, o melhor é o quê? Pegar advogados novos. Competentes, mas novos. E esse vai ser o caso da vida deles’”.

Cyro recomendou que Luis procurasse os advogados que trabalhavam junto com seu filho, Fábio Kurtz: Leonardo Amarante e Tancredo, ambos já especializados em responsabilidade civil. Os dois tornaram-se, então, advogados da família de Yara e de 22 outros que o procuraram posteriormente. Bernardo se lembra de visitar o advogado em um escritório minúsculo, cuja aparência sugeria uma mistura de firma de contabilidade com repartição pública – em nada semelhante ao atual e bem aparelhado escritório da Avenida Rio Branco. Com seu nome estampado em inúmeras reportagens, Tancredo começou a ganhar notoriedade – e mais clientes começaram a procurá-lo. A Justiça deu conta de realizar a profecia de Cyro, e algumas partes do caso não foram resolvidas até hoje. Mas Tancredo e Amarante ainda são advogados das famílias – não todas, já que algumas já receberam indenização.

[olho]Tancredo está acostumado a incluir músicas, charges e até ditados chineses em suas peças[/olho]

No início, Tancredo e Amarante se complementavam. Tancredo conhecia todo mundo no fórum e sabia se relacionar com as pessoas, e Amarante ficava mais no escritório, redigindo petições. Com os anos, Tancredo aperfeiçoou sua escrita, e hoje tem orgulho de suas peças, que às vezes parecem colagens artísticas – ou “petições panfletárias”, como dizem seus adversários nos tribunais. Gosta de ilustrar os processos com fotos chocantes, inclusive na capa – como a foto de uma mulher com seu filho bebê dentro de um caixão – para descontentamento de alguns juízes.

A imprensa adorou a ironia de quando Tancredo usou a letra de Chico Buarque em uma ação indenizatória em nome do próprio contra dois de seus detratores – o jornalista João Pedrosa, que fez comentários grosseiros em uma foto da filha do compositor no Instagram, e o empresário Guilherme Junqueira Motta, que o xingou nas ruas do Leblon e no Facebook. O advogado abriu cada uma das ações assim: “Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei o seu gênio ruim/Você nada está me devendo/Por isso, meu bem, não entendo/ Porque anda agora falando de mim”.

Tancredo está acostumado a incluir músicas, charges e até ditados chineses em suas peças. É sua estratégia para chamar seus casos à atenção de juízes assoberbados com uma média de 3.500 ações novas por ano. Sua inserção preferida é um trecho da música “Pedaço de mim”, também de Chico: “A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. No julgamento do caso da queda do voo Air France, em 2011, Tancredo recitou os versos durante uma explanação, levando a desembargadora Marilene Melo Alves às lágrimas. “Ela tinha perdido uma filha”, explica o advogado.

Para Amarante, o estilo de Tancredo lembra o do advogado americano Melvin Belli, famoso por defender Jack Ruby, o homem que matou Lee Harvey Oswald pelo assassinato do presidente John Kennedy, em 1964. Belli era conhecido por sua eloquência e sustentações performáticas, com recursos criativos, como levar a perna mecânica que sua cliente seria obrigada a usar e dá-la para os membros do júri segurarem. Por mais que tenha despertado inúmeras críticas da comunidade forense americana, em que não desfrutava de muito prestígio, muitos consideram que Belli ajudou a criar importante jurisprudência em casos de defesa do direito do consumidor nos Estados Unidos.

Amarante e Tancredo se separaram em 2003. Dessa forma, Tancredo pôde mergulhar fundo nos casos de violência policial, algo que não podia fazer enquanto associado a um procurador do Estado. Além dos perigos óbvios relacionados a esse tipo de defesa, existe ainda um agravante. É muito comum o advogado ganhar a causa, mas não levar o dinheiro. No início de 2014, autorizado pela Alerj a usar uma parcela dos recursos dos depósitos judiciais, o Tribunal de Justiça do Rio pagou R$ 3,4 bilhões em precatórios judiciais que haviam se arrastado por 15 anos, em favor de cerca de 12 mil pessoas físicas e jurídicas.

Amarante acha que o amigo se expõe muito em sua atuação em causas ligadas aos direitos humanos. A família também tem suas reservas. Luzia conta que toda vez que vai visitar clientes em favelas, a sobrinha Neya, que também é assistente no escritório, pede para a família rezar. Não à toa, Tancredo já foi vítima de dois atentados, além de já ter recebido algumas ameaças de morte. Em 2008, um motociclista deu quatro tiros contra seu carro. Os vidros blindados salvaram sua vida. Ele voltava de uma reunião na favela Furquim Mendes, em Jardim América, onde conversara com familiares de rapazes assassinados pela polícia.

Depois disso, andou acompanhado de seguranças por um tempo, diminuiu suas visitas a clientes em áreas de riscos – mas não parou. “Eu digo que a visibilidade é que dá a garantia.”

***

No dia 17 de fevereiro, Tancredo entrou na 7ª Câmara Cível para defender o direito à indenização dos familiares do jovem Magno Ferreira da Silva, morto a tiros por policiais, em 2007, aos 15 anos, enquanto entrava no barbeiro para cortar o cabelo. Seria difícil contar o número de casos similares defendidos por Tancredo. Mas Magno morrera a cerca de três quilômetros de distância da escola municipal Eneyda Rabello de Andrade, em Vigário Geral.

“Quando eu tinha 15 anos, eu estava lá ralando à beça”, diz Tancredo, lembrando de sua adolescência na mesma comunidade.

O advogado recorria da sentença de uma juíza que havia fixado um valor de R$ 200 mil para cada um dos pais de Magno, a título de indenização. Queria um valor maior. O relator do caso, desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade – seu cliente em uma ação contra o Bradesco – começou falando que não concordava com o recurso de Tancredo. O advogado argumentou, disse que Magno fora morto pelas mãos de quem deveria lhe proteger. No final, três desembargadores concordaram com sua tese, e dobraram o valor da indenização.

Tancredo saiu com um sorriso satisfeito da sala da câmara. Perguntei-lhe se o caso tinha algum valor especial. Ele concordou. “Dá uma sensação de que eu consegui fazer o bem.”

Tancredo espera desfecho semelhante para o caso de Adriana. Pediu à Justiça que o Estado arque com despesas médicas, pensão por morte e danos morais no valor de R$ 1,7 milhão para ela e a filha de 6 anos.

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O crítico

Um painel ocupa a parede mais ampla da sala da casa de Rubens Ewald Filho, quase 71 anos, o crítico de cinema mais conhecido do país, rosto do Oscar na TV brasileira por mais de três décadas. A imagem na parede mostra um set de filmagem, a atriz principal à frente, imponente. Mas não é nenhuma diva de Hollywood. O nome dela é Vanja Orico (1931-2015) e a cena é de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, vencedor do festival de Cannes de 1953, o maior expoente dos filmes de cangaço, gênero conhecido como o faroeste brasileiro. “Vanja era uma pessoa completamente doida”, diverte-se Rubens. Rubricas como essa se repetem na longa conversa com o crítico em sua casa, numa tarde de sábado chuvosa e abafada em dezembro passado.

Na noite anterior, Rubens havia perdido a amiga Nydia Licia, atriz e diretora teatral falecida aos 89 anos, a quem considerava uma espécie de “madrinha” no mundo artístico. “É, tenho um velório para ir hoje.” Ele mal havia se recuperado do choque pela morte de Marília Pêra, ocorrida exatamente uma semana antes. Rubens considerava a atriz mais que uma amiga, uma “cúmplice”. “Ela era uma estrela, uma figura única, cantava, dirigia. Marília foi um mito do teatro brasileiro, a gente nunca achava que Marília fosse morrer. Ela ia estar com 90 anos representando, dirigindo”, diz. Na opinião dele, Pêra foi uma artista até maior que Fernanda Montenegro. “Fernanda é uma senhora atriz, mas nunca dirigiu, não cantava, era outro lance”.

Rubens conta que se aproximou de Marília Pêra quando escreveu um roteiro baseado em um livro de Mario Prata e a convidou para o papel principal. Por algum motivo, os direitos do filme foram parar nas mãos de outro produtor, e a produção acabou nunca saindo. “Marília achou que eu havia dado para outra pessoa, imagina! Mas isso nos uniu”, conta. Ele lembrou a história no Festival de Gramado de 2015, ocasião em que a atriz foi premiada. Marília já estava doente, mas não falou sobre isso para ninguém. “Foi a despedida dela. Ela estava linda”.

Rubens mora sozinho em uma casa confortável, algo rústica, em um condomínio fechado em Cotia, a cerca de 30 quilômetros do Centro de São Paulo. De lá ele só costuma sair para ir ao cinema. Filmes nacionais de grande apelo, como as comédias da Globo Filmes, ele prefere ver junto com o público nas salas de cinema dos shoppings mais próximos (Raposo e Granja Vianna). Ele tenta ir ao máximo possível de cabines (sessões fechadas para a imprensa), que costumam acontecer pela manhã em cinemas mais centrais em São Paulo, mas o trânsito da rodovia Raposo Tavares, ligação entre Cotia e a Capital, está cada vez pior. Quando consegue chegar, aproveita para emendar dois ou três filmes na sequência, geralmente no shopping Frei Caneca.

Além da grande imagem de “O Cangaceiro”, inúmeros quadros de filmes ocupam as paredes da casa, inclusive as do banheiro – em um deles há um pôster com dedicatória do ator John Forsythe. Pilhas de DVDs e revistas se concentram numa espécie de mezanino que faz as vezes de pequeno escritório e sala de projeção (ele vê os filmes em uma TV comum de tela plana, diante de um sofá bastante próximo ao aparelho). Ultimamente tem visto muitos filmes enviados pelas distribuidoras em plataformas digitais. “Adoro Vimeo. Esse filme filipino de quatro horas e quinze eu vi no Vimeo”, diz, em referência a “Norte, O Fim da História”, de Lav Diaz.

Rubens prefere ficar em casa – “eu e meus filminhos”. A ele não interessa aparecer em colunas sociais ou virar nome de prato no restaurante Paris 6. “Você não me vê em boate, em estreia de filme… eu só saio de casa pra ir ao cinema ou ao teatro. Não vou a coquetel, não vou a nada. Não é minha proposta sair na Caras, não tenho o menor problema com eles, me tratam muito bem, mas esse tipo de coisa eu fujo como o diabo da cruz, eu vou cada vez menos”, diz. Na casa, comprada na época em que foi executivo da HBO, Rubens recebe a visita da empregada três vezes por semana (frequência que ele pretende diminuir por conta da crise econômica, que já lhe tirou alguns trabalhos) e eventualmente de um jardineiro. A piscina não parece ter sido utilizada nos últimos meses. Um vendaval havia derrubado duas árvores do terreno recentemente. Pergunto das visitas, que são poucas.

“Mas você tem bastante amigos”, digo.

“Estão morrendo. Um por semana.”

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

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O cinema é a única janela para as memórias da infância de Rubens, nascido e criado em Santos. Ele costuma dizer que nunca jogou bola na rua e nunca teve amigos quando era criança. A diversão eram as sessões de cinema e as horas e horas recortando os anúncios dos filmes no jornal e montando sua própria programação de cinema. “Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que eu vi. É uma infância bloqueada, é como seu eu tivesse nascido com nove anos. Eu só tinha os filmes para me segurar, e eu começo a anotar num caderninho, de nove para dez anos. É por isso que eu tenho todos os filmes que vi”, recorda-se.

No final de 2015, essa conta chegava a mais de 35.300 filmes assistidos, uma média que nem vale a pena tentar estabelecer, de tão fora da realidade de uma pessoa comum. Rezava a lenda que Rubens assistia a dois ou mais filmes ao mesmo tempo – o que ele confirma. “O segredo é simples: se você está vendo um filme em português e outro com legenda, é fácil seguir. O jovem hoje faz cinco coisas ao mesmo tempo e isso é absolutamente normal para eles. Eu só estava diante do meu tempo, nada mais”, brinca. Hoje, sem precisar editar guias de filmes, ele parou com esse hábito.

[olho]”Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que vi”[/olho]

Além dos caderninhos, quando criança Rubens fazia um livreto só com filmes do Oscar, outro só com diretores. Como em um romance em que as premissas da trama são lançadas no primeiro capítulo para serem retomadas ao longo da história, décadas depois Rubens lançou um dos mais importantes livros de consulta sobre cinema no Brasil, o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977. “Na verdade tudo já tinha a semente”, observa.

Duas revistas foram fundamentais em sua formação: a “Filmelândia”, adaptação da americana “Screen Stories”, que trazia roteiros de filmes adaptados como uma pequena novela; e a “Cinelândia”, versão brasileira de “Modern Screen”. Ambas eram editadas no Brasil pela Globo, e os editores locais recheavam esta última com informações sobre a vida dos diretores e incluíam filmes de outros países, como França e Argentina. “O que importava não era se o artista ia se separar ou não. Tinha isso, mas tinha também Hitchcock, John Ford, Cecil B. DeMille… quer dizer, ainda garoto eu consegui pegar esses diretores graças a isso. Você tinha uma informação de cinema que te permitia ser autodidata, que foi o que aconteceu, eu fui atrás de livros. Aprendia línguas muito fácil: francês, italiano, inglês. Isso tudo foi o alimento para eu querer correr atrás, porque era impossível sonhar em fazer cinema. Não existia, né? A chanchada terminou e aí veio um nada e só depois o Cinema Novo, que vem com perseguição de governo e tudo mais”, conta.

Rubens não faz questão de esconder como a relação com a família – “extremamente repressiva” – era difícil. Quando criança, os pais o levavam ao cinema – ele lembra que iam todos juntos, mas o hábito de recortar e colar jornais e revistas era motivo de luta constante com a mãe. Ela achava tudo aquilo “uma porcaria”. “Era aquela família, que era muito comum na época, que quem mandava era a avó, sabe? A avó era uma bruxa. Quando eu escrevi a novela ‘Drácula’, eu pus a Cleide Yaconnis fazendo a minha avó. Quando eu fiz ‘Éramos Seis’ também tinha uma avó que era… eu tentei pôr pra fora diversos fantasmas”, diz.

Rubens diz que não tem mais família. Cortou relações com o irmão, a quem acusa de ter se aproveitado financeiramente dele. Consequentemente, não fala mais com os sobrinhos. Cuidou dos pais na velhice e levou a mãe, Elza, para viajar. A infância em Santos foi abastada, a família era dona de fazendas de banana no litoral. O pai, que gostava muito de praticar esportes, foi presidente do tradicional Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 60 anos, porém, Rubens pai quebrou. “Ele era um homem acostumado a mandar, acostumado a ter tudo, também acostumado a trair a minha mãe com vedetes do teatro de revista – não tô julgando nada, se ele era feliz assim não tenho nada com isso… enfim, ele era um conquistador. Mas quando perde tudo ele se senta numa cadeira e nunca faz mais nada. Passa vinte anos assim até morrer com 80”, lembra.

Muitas vezes, Rubens narra suas recordações usando verbos no presente, como se alguns fragmentos do passado voltassem a acontecer no momento em que sua fala é projetada. Uma pergunta objetiva pode dar margem a uma longa digressão em cima de uma lembrança periférica; mesmo em seus e-mails ele emenda uma frase na outra obedecendo somente ao fluxo de seu pensamento. Ele é mais alto e mais corpulento do que aparenta na televisão – muito de sua saúde se deve, segundo ele, à natação que praticava na juventude. Voltou a fazer exercícios regulares nos últimos 15 anos e procura levar uma vida saudável. Parece estranho dizer isso, mas a indefectível barba lhe dá uma aparência de menino.

“Como é curiosa a trajetória de vida”, ele diz. Para um pouco, suspira e retoma o fôlego. “Eu não planejei ficar sozinho, mas fiquei. As pessoas nem sabem porque eu nunca conto isso, mas eu fui casado… e ela faleceu de erro médico. Quer dizer, mais uma coisa desagradável da vida, uma coisa que te marca… aí você não quer nada mais.” Ao final da entrevista, retomo o assunto do casamento, mas Rubens fica muito desconfortável. “É uma coisa triste, não vejo porque falar. Dá raiva, dá tudo, desperta as emoções que você por tanto tempo controlou.” Eu não peço mais detalhes.

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens em Hollywood. Crédito: Rafael Roncato

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No domingo, dia 28, quando entrar no ar direto de Los Angeles pelo canal pago TNT para apresentar e comentar a entrega do Oscar, Rubens Ewald Filho terá participado das transmissões de 33 edições do prêmio pela TV brasileira. Embora as sementes estivessem lá na infância nos caderninhos, ele também não planejou ser o “crítico do Oscar”. “Pois é! Por que não me chamam para apresentar o prêmio Davi de Donatello?”, brinca. Depois volta a falar sério: “É o ônus que eu tenho que carregar”, admite. No passado, Rubens não gostava quando ficava sabendo de colegas de crítica e jornalismo que o consideravam “vendido” a Hollywood. “Mas todos eles voltaram atrás. A melhor maneira de conviver com isso é estar com a cabeça sossegada. Nesses dois últimos anos, se você for ver o que eu tenho falado mal do cinema americano, é muito forte. Nunca deixavam antes. Hoje eu critico abertamente… não que eles se incomodem com isso.” E solta uma gargalhada.

O crítico de cinema Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, foi contemporâneo de Rubens no início de ambos no Jornal da Tarde. Para ele, a associação da imagem do colega, hoje amigo, ao Oscar é muito justa e quase obrigatória, por todo o trabalho que ele fez nessas últimas décadas. “Para mim, uma transmissão do Oscar, que é coisa muito chata, diga-se de passagem, ficaria insuportável sem o Rubens”, diz. E conclui: “Tínhamos maneiras bem diferentes de ver o cinema, mas acho que o tempo apagou essa distância. Distância que era muito boa”.

Rubens começou sua carreira de jornalista escrevendo para o jornal A Tribuna de Santos. Cursou a graduação em jornalismo ao mesmo tempo em que fazia faculdade de direito pela manhã – “tenho carteira e tudo” – e história e geografia à tarde. No final dos anos 1960 chegou a São Paulo para trabalhar no Jornal da Tarde. Era copidesque no caderno de Variedades, mas também produzia reportagens e críticas. Foi contemporâneo do crítico e diretor Rubem Biáfora – um de seus grandes inspiradores. Nessa época, começou a conhecer as pessoas que orbitavam a produção de cinema e teatro no Brasil. Uma dessas pessoas foi o diretor Walter Hugo Khoury, que o levou para a frente da tela.

“Eu estava no Jornal da Tarde e passa o Walter Hugo Khoury, olha pra mim e diz: ‘você tem a cara muito boa’. No dia seguinte eu estava filmando”, diz. Rubens chegou a participar de “Amor, Estranho Amor”, o clássico maldito de Khoury em que a jovem Xuxa Meneghel contracena lascivamente com um menino de 12 anos. A experiência de ser requisitado por sua aparência física abriu uma nova perspectiva para Rubens. “Eu era meio gordinho e toda aquela repressão familiar, a avó, não tinham me dado autoestima nenhuma. Eu me achava um horror. Minha autoestima até hoje não é muito alta. Eu não conseguia me gostar”, conta.

Para ajudar a resolver essas questões, até tentou a psicanálise nos primeiros anos em São Paulo – passou por dois analistas, mas a experiência não foi adiante. “A análise me ajudou a raciocinar, a pensar. Isso eu peguei meio rápido, foi útil, mas eu não consigo ficar muito preso. Tem um momento em que o analista passa a te irritar. Eu podia entrar mudo e sair calado e acabou”, lembra. E dá uma banana: “Aham, meu rico dinheirinho!”

Para um jovem no Brasil da década de 1970, o cinema representava uma abertura e trazia algo de resistência ao momento político da ditadura militar. O fato de dominar outras línguas o ajudou muito a entrar a fundo nos filmes da Nouvelle Vague, da Comédia Italiana, na obra de Federico Fellini, até hoje seu diretor preferido, e nos novos cinemas de diversos países. Era um período de efervescência, para usar sua expressão. Inclusive no Brasil. “Para uma pessoa jovem, não há como não gostar do Cinema Novo”, diz.

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Rubens, à direita, ao lado de Rubem Biáfora, nos anos 70. Crédito: Arquivo pessoal

“Rubens tem fome de cinema”, diz o professor Máximo Barro, da faculdade de cinema da FAAP. “Aceitando ou não o que ele estava escrevendo no jornal, a gente pelo menos sabia que ele tinha visto o filme.” Na época, não era raro aparecer nos jornais críticas baseadas em publicações estrangeiras ou “de ouvir falar”. Rubens chegou a ser professor de cinema na FAAP na época da criação do curso, mas ficou por pouco tempo. Anos depois, voltaram a trabalhar juntos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que Rubens coordenou. “Ele é uma pessoa que leva muito a sério aquilo a que ele se dedica”, afirma Máximo.

A chegada à Globo, no início dos anos 1980, catapultou a imagem de Rubens como crítico de cinema. Na interpretação dele, a TV o queria para “falar as verdades” nos anos de abertura política. “Eles me usavam – num bom sentido, e eu concordei com isso – em falar coisas que a única pessoa que falava em televisão era eu. Criticar alguém, por exemplo”, diz.

[olho]”Estavam querendo proibir um filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’”[/olho]

Um dos alvos da crítica foi o diretor Neville D’Almeida, diretor de “Os Sete Gatinhos”, adaptação da obra de Nelson Rodrigues. “Fiz uma crítica no Jornal da Globo. Estavam querendo proibir o filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’. Você sabe que tempos depois eu fiquei sabendo que o Nelson Rodrigues estava assistindo ao jornal, passou mal e quase morreu vendo o meu comentário?”, lembra. Segundo Rubens, Neville ficou com ódio dele por muitos anos até que o diretor reconheceu que o filme era ruim mesmo e não fazia sentido ficar brigado.

A transição dos comentários sobre cinema na Globo para a cobertura do Oscar veio com um episódio curioso. Quando a atriz Ingrid Bergman morreu, em 1982, Rubens foi chamado às pressas para fazer uma passagem ao vivo, algo que ele não estava acostumado. Tudo armado, a transmissão começa. “A Leda Nagle fala ‘o cinema perdeu blá blá… Rubens, o que você acha?’ aí eu começo a falar e a câmera tinha se afastado, eu não usava óculos na época e não enxergava nada, então eu fiz assim [olha para baixo em silêncio, lê um papel] e retomei. Na saída estava o chefe do jornalismo dizendo o seguinte: ‘Puxa vida, até que enfim você se emocionou com alguma coisa. Você gostava muito dela, né’. Eu falei: ‘Muito, muito’. Mal sabia o pânico, que eu tinha pensado ‘me fodi’, vou errar aqui. E eles encararam como emoção, olha que bonito! Como as pessoas se enganam!”, ri.

Das transmissões do Oscar, a fase preferida de Rubens é com Marilia Gabriela no SBT, onde fez a cobertura por oito anos. Atualmente, na TNT, ele gosta da parceria com a âncora Domingas Person e com o fato de não precisar nem traduzir nem fazer nenhuma passagem. “Ir a festival é outra coisa que me encheu o saco. Para Cannes eu fui 23 anos seguidos, e para mim era a coisa mais importante que tinha. Para conseguir ir pela primeira vez, eu fui sorteado pela Air France, ganhei a passagem, o resto o jornal pagou com toda dificuldade.” Lá ele entrevistou “quase todo mundo”: Godard, Truffaut, Kurosawa.

Hoje, no entanto, já não sabe mais que caminho Cannes quer seguir. “O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga.” O último vencedor do festival francês, “Dheepan”, ele considera “um filmeco”. Para ele, a entrada das celebridades nos festivais, que ocupam as atenções da imprensa e das redes sociais, tornou-se até mais importante do que os filmes exibidos. “Imagina fazer aqueles tapetes vermelhos, que só falam idiotice. O que eu mais odiaria na vida seria fazer tapete vermelho. Eu sempre me recusei a fazer. Não quero, é uma fria, um horror”, diz.

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Parte do acervo de DVDs e Blu-rays na casa de Rubens. Crédito: Rafael Roncato

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Duas impressões são mais evidentes quando Rubens fala de Hollywood. A primeira é que nada mais – o cinema, as premiações – tem muita importância, tudo está meio diluído. A outra é que o jeito de fazer cinema é muito diferente. “Existia uma Hollywood de estúdios, que acaba na década de 1960, que eu ainda consegui ver quando era criança e, por causa das revistas, acompanhar. Que é um outro mundo, não tem nada mais a ver com Hollywood atual ou com a maneira de fazer cinema hoje. Com o digital, as pessoas estão reaprendendo cinema, e eu também estou reaprendendo a lidar”, diz. Ele chega a dizer que em alguns momentos se sente uma espécie de Indiana Jones que vai atrás de um mundo perdido. “São outros valores, outra estética, outra civilização. Não que seja melhor ou pior, mas é outra coisa.”

[olho]“O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga”[/olho]

O cinema digital, diz Rubens, trouxe outros cacoetes. Um deles é o “pseudo” plano-sequência. Sem precisar trocar o rolo de filme a cada intervalo de tempo, o diretor hoje pode criar cenas longas aparentemente sem cortes e “ir na nuca” dos personagens. “Quantos filmes você vê hoje que acompanham a pessoa andando, ou entrando em casa ou saindo de casa? Antes, em Hollywood, a pessoa estava em casa e a situação estava resolvida”, compara.

Naquela semana, Rubens havia assistido à versão mais recente de “Macbeth”, com o ator Michael Fassbender. “Macbeth é filmado com digital. Você não vê porrrra nenhuma, porque não tem iluminação, tem velas! Você vê sombras na cara deles. Como você quer que tenha interpretação – de Shakespeare! – sem a cara da pessoa? É uma escuridão, é o Macbeth das trevas… ou seja, estamos vivendo um momento de mudança e de ajuste. As pessoas acham lindo a escuridão. É insuportável! Kubrick em Barry Lyndon usava velas, mas você conseguia ver a luminosidade, e não as trevas”, observa.

Muito por conta da cobertura do Globo de Ouro, ele se obriga a ver “todas” as séries de TV e do Netflix, plataforma da qual ele gosta muito. “Eu adorei ter acesso hoje a um filme que eles colocaram ontem. A crítica do Hollywood Reporter está no ar hoje e eu já vi o filme”, diz. Das séries, sua preferida é Fargo. “É uma obra-prima, tem humor negro e fiel ao filme dos irmãos Coen. A violência muito bem resolvida, atores ótimos. A minha paixão agora é o Fargo, eu fico esperando os capítulos”, conta.

Falar das séries do Netflix leva o assunto a “Narcos” e a Wagner Moura, a quem considera um amigo. Ele se exalta ao falar das críticas ao sotaque do ator brasileiro na série, em que interpreta o colombiano Pablo Escobar. “Brasileiro não gosta de brasileiro, tem raiva, tem inveja, tem ciúme. Acha que entende de tudo. Ninguém pode fazer sucesso no Brasil que as pessoas querem destruir”. Para ele, Moura é o grande ator brasileiro hoje, alguém que nem precisa ser dirigido porque já “vem pronto”. Ele só acha uma “ideia de jerico” o projeto de Moura dirigir o filme sobre a vida de Marighella no cinema. “O que o Marighella fez? É uma tragédia.”

Além de Wagner Moura, Rubens enxerga um momento único para os atores masculinos no Brasil. “Lázaro Ramos, Caio Blat, Daniel de Oliveira, Mateus Nachtergaele, que é maravilhoso. Temos uns sete ou oito atores (de alto nível), nós nunca tivemos isso. A gente sempre teve mulheres”, diz. Entre as atrizes atuais, ele cita Deborah Secco – “muito interessante, até como pessoa” – e Glória Pires – “uma estrela”. “Se há uma coisa que eu tenho prazer é que os atores gostam de mim. Primeiro que eu os trato com muito respeito – se é muito ruim (a atuação) eu dou um conselho produtivo, eu evito detonar ator. Porque eu sei que no cinema brasileiro a culpa não é do ator. Os diretores não sabem dirigir ator, têm medo de falar com eles”, comenta.

Mesmo com as críticas, ele vê uma safra interessante de novos diretores brasileiros surgindo nos festivais, gente produzindo filmes bons, mas que não conseguem chegar ao público. “Esse filme ‘Ausência’, que ganhou Gramado, é muuuito bom. Agora, você, leigo, iria ao cinema ver um filme chamado ‘Ausência’? Não é verdade? Gente, as pessoas não têm noção, não sabem vender nada. Tem cada título brasileiro que dá terror”.

O cinema brasileiro é um terreno delicado para Rubens. Tanto que ele costuma dizer que seu filme preferido é “Limite”, do Mario Peixoto, filme experimental dos anos 1930 pouco conhecido fora dos círculos cinéfilos. “Eu acho um filme excepcional, e também é uma forma de não brigar com ninguém.” Sua abordagem em relação a filmes brasileiros que ele considera muito ruins também mudou: hoje ele simplesmente não faz mais a crítica. “Eu ligo para a assessoria e falo: ‘Olha, querida, obrigado, mas eu já tenho inimigo o suficiente…’”, explica.

Rubens não se considera um crítico maldoso ou que tem prazer em destruir um filme – o que poderia ser um bom atalho para ganhar audiência nos dias atuais, caso ele se interessasse pelo que rola no Facebook, por exemplo. De fato, a crítica dele não costuma ter esse tom. O problema, segundo o próprio, é ele ser sincero demais. “Por que cazzo eu tenho que falar a verdade? Ninguém fala a verdade nesse país!”

Se a experiência em frente às câmeras foi breve, se resumindo à meia dúzia de pequenas aparições, a carreira de Rubens como roteirista é considerável. Em parceria com o diretor Silvio de Abreu, que conheceu em meados da década de 1970, escreveu pornochanchadas como “A Árvore dos Sexos” e “Elas São do Baralho”, esta última considerada um dos grandes expoentes do gênero. Mas o seu trabalho clássico é a novela “Éramos Seis”, que teve duas versões: a primeira na TV Tupi, em 1977, e a segunda em 1994, no SBT, até hoje lembrada como uma das melhores produções de dramaturgia da TV brasileira.

Coube a Rubens vender para Silvio Santos o projeto da novela no SBT. “Eu, do jeito tímido que eu era, vender para o Silvio, o maior vendedor! E ele comprou e pagou bem pela novela, deu todas as condições para trabalhar. O Silvio (de Abreu) não podia trabalhar porque estava na Globo. Eu pus o elenco que eu queria, acompanhei a novela o tempo inteiro”, conta. Não só pôs o elenco como aproveitou para exorcizar algumas questões. “Eu tinha colocado minha avó, uma série de coisas que eu queria falar para o meu pai, coisas que eu queria falar para a minha mãe. Um diretor geralmente começa com um filme autobiográfico. Então ‘Éramos Seis’ é meu filme autobiográfico”, diz.

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

Mesmo em ritmo mais lento, Rubens ainda tem muito o que fazer. Ele está preparando uma nova versão do “Dicionário de Cineastas”. “Era um absurdo não ter um livro sobre cineastas no Brasil, então durante dois anos eu fui nos arquivos do Estado de S.Paulo, eu trabalhava lá, mexendo, sozinho”, recorda-se. À época, o “Dicionário” era uma obra revolucionária e trazia, dentro de um oceano de informações, o título dos filmes originais em português – algo que o iMDB, a maior base de dados de cinema da internet, só foi fazer recentemente. A ideia agora é que o livro também tenha uma extensão online. Rubens também está preparando uma nova versão de “O Cinema vai à mesa” livro que mistura filmes e culinária.

O interesse em voltar a ser roteirista é quase nenhum, e não parece haver arrependimentos em não ter seguido uma carreira diferente – como ator, talvez. “Eu nunca quis ser ator, minha timidez é muito grande. E as propostas também não eram nenhuma maravilha”, diz. “Eu construí um personagem, que é esse aqui, com essa barbicha, com essa cara aqui, que é muito forte. E é marcado por 40 anos de carreira. Porra, eu não posso fazer outra coisa”.

No ambiente das redes sociais, pautado pelas opiniões definitivas, Rubens Ewald Filho tem pouco a falar. Sua página no Facebook – alimentada por um amigo – reproduz as críticas que ele posta em um blog escondido, e chega a uma audiência mínima. Ele não joga esse jogo, essa não é a praia dele. Mesmo assim, diz que se relaciona bem com as novas gerações que encontra nas cabines de imprensa. “As pessoas têm um pouco de medo de mim. Mas eu vejo toda essa geração nova nas cabines. Respeito a opinião deles, acho interessante. Essa turma de quadrinhos, que gosta de livros ‘young adults’, eu procuro ouvi-los falar”, conta.

A tentação de se sentir um “pastor de almas” em relação às novas gerações pode até ser grande, mas não parece ser o que lhe move. O que o anima é perceber que despertou o interesse sobre cinema em alguém. “Minha maior alegria é ir num festival e o cara que ganhou o prêmio depois chegar para mim e falar: ‘Olha, queria te agradecer, foi você que me fez gostar de cinema, vendo a Globo em tal ano’. Eu penso que não foi tudo em vão”, diz. A impressão é que, enquanto for possível, Rubens Ewald Filho continuará fazendo o papel de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido do país. “Katherine Hepburn dizia: se você sobreviver, você vira um monumento da história. E eu acabei virando um pouquinho isso. Eu não posso me elogiar, mas virei o crítico do Oscar, que tá até hoje aí trabalhando… Enfim…”

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Um fotógrafo contra as remoções

Em uma quarta-feira de novembro, o fotógrafo Maurício Hora recebia, no amplo salão do Zona Imaginária, uma cooperativa de artes visuais criada por ele na Zona Portuária do Rio de Janeiro, a artista alemã transgênera Tobi Möring, adepta de instalações com materiais descartados. Tobi — ou Miss Tobi, como é conhecida — voltava de um ferro velho da redondeza, os braços repletos de resíduos. Ela foi depositando a matéria prima no chão da sala, ao lado de três esboços de esculturas feitas em papelão, que dias depois seriam revestidas de metal e instaladas ali perto, no alto do Morro da Providência, para festejar o aniversário da mais importante favela da região. Explicitamente contestadoras, as formas desenhavam, com traços quase infantis, um político engravatado falando no microfone, um policial com um fuzil, e um trator – símbolo máximo das remoções que ameaçam a favela.

Em um espanhol um tanto enferrujado, Tobi me explicou que usa os espaços públicos para fazer perguntas pertinentes. No caso da Providência, as esculturas indagavam: para quem são as Olimpíadas do Rio de Janeiro? Quais são as consequências para as pessoas que moram na favela? Quem se beneficia com os Jogos?

Era uma tarde quente. Colocando-se em frente a um velho ventilador de metal, cujas hélices enferrujadas giravam ruidosamente, Maurício observou por um instante a obra de sua colega estrangeira. Depois, balançou a cabeça de leve e soltou uma risadinha. Sua expressão era muito mais de ironia resignada do que de reprovação.

“Acho que isso não vai durar muito lá em cima, não…”, lamentou. “É uma crítica às Olimpíadas. Ele quer fazer um pódio com esses três elementos [o trator, o político e o policial], cada um em uma marcha.”

Perguntei por que a instalação não iria durar. Ele respondeu com naturalidade. “Ah, porque é uma crítica… A prefeitura certamente vai criar um argumento: ‘Isso não pode estar aqui, está atrapalhando um lugar público’.”

Maurício Hora. Crédito: Divulgação
Maurício Hora. Crédito: Divulgação

Maurício sabe do que está falando. Nascido e criado na favela da Providência, onde ainda reside, o fotógrafo sempre negociou seu trabalho com os agentes dominantes do morro: o tráfico, a polícia e o poder público, todos muito sensíveis a qualquer tipo de crítica. Homem baixo, de cabelo preto encaracolado e olhos estreitos, escondidos atrás de óculos de aros enormes, Maurício é descendente de escravos, filho do primeiro chefe de boca de fumo do Rio. Fotógrafo autodidata, foi pioneiro ao retratar o cotidiano cordial e pouco conhecido da favela, longe do clichê da violência: crianças brincando, famílias em seus momentos domésticos, pessoas tentando viver normalmente em meio à pobreza e à vulnerabilidade.

Ao colocar as ruas e as casas da Providência em primeiro plano, suas fotos chamaram a atenção das universidades de arquitetura em todo mundo. Artistas e fotógrafos de outros países passaram a visitar Maurício com regularidade. Em 2005, ele ajudou a criar o projeto Favelité, que colocou o cenário da favela no metrô parisiense. Em 2009, o artista multimídia francês JR, que havia descoberto suas fotos em Paris, viajou ao Rio para conhecê-lo e lhe propôs a parceria em um projeto internacional de intervenção em áreas de conflito. O resultado foi exposto no Centro Cultural da Casa França Brasil no ano seguinte.

[olho]Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro[/olho]

Aos 47 anos, Maurício é hoje um verdadeiro embaixador da Providência, com raízes fincadas em sua comunidade e uma abertura invejável fora dela. Mas a permanência em um lugar tão problemático tem seu preço. Conhecido por seu trabalho com longa exposição, que captura cenas noturnas de uma favela etérea e fantasmagórica, Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro. Há lugares onde ele simplesmente não pode puxar a câmera — e inúmeras fotos já foram perdidas pela falta de liberdade.

“Através da fotografia, consegui identificar o território: andei por tudo, fotografei o morro todo, conheço muito bem as pessoas”, diz. “Isso me deu uma noção e uma capacidade de discutir o território. Agora, me frustra porque, no fim, vale o que o tráfico determina. Por causa do descaso das administrações, é ele que tem força. O tráfico consegue transformar e fazer ações, às vezes sem pensar, e a comunidade aceita, e até gosta. E eu, que estou ali, não consigo fazer nada. Já aprendi que não posso brigar contra isso.”

O tráfico, contudo, não é o único a impor obstáculos. Apesar de discordar dos novos planos da prefeitura para a favela, Maurício precisa maneirar suas críticas e contar com a boa vontade dos órgãos públicos em patrocinar alguns de seus projetos. Seja no Estado paralelo ou no oficial, a diplomacia é uma questão de sobrevivência.

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Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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O momento é especialmente delicado para Maurício e os residentes da Providência, que, dentro do plano de revitalização da Zona Portuária da cidade, vive um intenso processo de gentrificação. Em junho de 2012, uma quantidade impressionante de obras foi iniciada. Em função do Projeto Porto Maravilha e da megatransformação da região, moradias foram deslocadas e os alugueis inflacionaram, afetando a permanência de alguns dos moradores mais antigos.

Segundo dados da própria prefeitura, até este ano mais de 80 mil pessoas foram tiradas de suas casas em todo o Rio de Janeiro. A urgência das obras das Olimpíadas de 2016 impulsionaram a especulação imobiliária na Zona Portuária, apontam os pesquisadores Lena Azevedo e Lucas Faulhaber, que publicaram este ano o livro “SMH 2016: Remoções no Rio e Janeiro Olímpico” (Mórula Editorial). Não foi diferente com a Providência, que inicialmente previa o reassentamento de 760 famílias. Em 2012, cinquenta e cinco delas já haviam sido deslocadas para empreendimentos em áreas próximas à favela. Segundo os moradores, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) comunicava as desapropriações através de pichações nas paredes das casas.

Originalmente conhecida como Morro da Favela – o nome deu origem ao termo mundialmente difundido – a Providência é o primeiro assentamento urbano informal da cidade. Situado entre os bairros do Santo Cristo e da Gamboa, foi ocupado em 1897 por soldados veteranos da Guerra de Canudos, que regressaram ao Rio para receber casas prometidas pelo governo. Como a promessa não foi cumprida, instalaram-se em construções provisórias no local. Machado de Assis nasceu em um imóvel ao pé do morro, que ainda abriga uma escadaria do século 19 e um capela construída em 1905.

[olho]”A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores”[/olho]

Mesmo sem o apelo das favelas do Vidigal ou do Chapéu Mangueira, a Providência interessa por seu valor histórico e cultural, somado à espetacular vista para o porto e para o Centro. Muitos moradores se dizem descontentes com os rumos das obras, que estariam mais focadas no futuro potencial comercial e turístico do morro do que com o bem estar dos que vivem lá. Um símbolo do novo projeto é o teleférico inaugurado em julho do ano passado, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa. Além da pouca utilidade para os moradores – a maioria dos seus usuários, explica Maurício, são pessoas de outros lugares que o utilizam para evitar a travessia a pé do túnel da Central – sua construção eliminou uma quadra de esportes, até então o único espaço recreativo da favela.

“As remoções são cruéis porque não estão sendo pensadas pelos moradores, e sim pelo poder público, que não tem nada a ver com aquilo ali, que não participa, não sabe o que é um tiroteio, não sabe o que é a ação da polícia dentro do morro. É injusto”, desabafa. “A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores.”

A questão, porém, é complexa. As melhorias da prefeitura foram aprovadas por muitos moradores. Quem tem título de propriedade, por exemplo, anseia em vender sua casa recém-valorizada e se mudar do morro.

“Acho que tudo é uma grande armadilha”, argumenta Maurício. “As pessoas vivem numa ideia de ascensão de vida, de melhorar, de sair de lá. Mas por que não transformar aquilo em um lugar melhor para as pessoas que já estão lá? Se já é uma expectativa da cidade de que isso vire um lugar melhor, por que não transformar para essas pessoas, que seguraram essa onda até agora? É digno que elas permaneçam de uma forma melhor, não que sejam removidas.”

Os artistas locais e visitantes que desejam denunciar essa realidade se apoiam em Maurício. Com seu bom trânsito e conhecimento do local, seu nome sempre pipoca quando pessoas de fora trocam ideias sobre a Providência. Foi assim com Tobi — que ouviu pela primeira vez sobre o fotógrafo ao conversar com uma amiga sobre seu projeto — e com Cecília Cipriano, autora de uma crítica contundente sobre as remoções na favela. Em seu projeto “O corte”, a artista fez uma intervenção em uma das casas marcadas para demolição pela SMH — da construção original, restam hoje apenas as ruínas, mas as fotos da iniciativa estiveram em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Coube a Maurício fazer a ponte entre Cecília e os moradores.

“Maurício é um líder de grande atuação na luta de melhorias de vida da comunidade do Morro da Providência”, disse-me dias depois Cecília, em entrevista por e-mail. “Participou ativamente na tentativa de criar uma política alternativa de moradia e faz parte da terceira geração de moradores na comunidade, o que o faculta a contribuir intensamente na preservação da memória da toda a Região Portuária. Recebe cordialmente inúmeros visitantes, geralmente críticos do projeto urbanístico da Região Portuária, inclusive eu.”

Os dois conversaram pela primeira vez em 2012. Com a ajuda de Maurício, Cecília foi conhecendo os moradores das casas marcadas pela SMH para a construção de uma suposta “moto-via”, que ligaria a Vila Portuária à praça do teleférico, e também os moradores do topo do morro, no Cruzeiro, onde está localizado o oratório construído em 1902 e tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal.

“Nesse local, apesar das marcações das casas, e da demolição de uma delas, o objetivo da desocupação não ficou claro para os moradores e nada foi construído”, diz Cecília. “Alguns moradores acreditavam, inclusive, que seria construído um grande hotel do empresário Eike Batista.”

Localizado em um imóvel de 400 metros quadrados da Rua Pedro Ernesto, no coração do bairro da Gamboa, a própria Zona Imaginária – o espaço criado por Maurício para que artistas urbanos e visuais desenvolvessem seus trabalhos – tem sofrido com os ataques do Rio Olímpico. Com as obras a todo vapor, demolindo e martelando ao longo do dia, a rua mais parece uma zona de guerra ou um cenário de filme apocalíptico. É como se a região sofresse uma autópsia: asfalto aberto como veias e esgoto correndo como sangue. O barulho de obras é constante.

“E olha que agora está bem melhor”, disse Maurício. “Você tinha que ver antes…”

A poeira das obras invadia o salão do imóvel, que Maurício transformou em ateliê. Pelo vidros quebrados das janelas, de frente para a Pedro Ernesto, vê-se a favela da Providência erguer-se desordenadamente por trás dos prédios e uma pequena ponta do Museu José Bonifácio, que sempre expõe obras do fotógrafo. No ateliê improvisado espalham-se sofás e poltronas e uma mesa de trabalho. Encostada em uma das paredes, um amontoado de portas soltas formam uma obra do português Alexandre Farto, o Vhils, que recentemente cravou retratos de moradores nas ruínas das casas demolidas da Providência. Na parede do outro lado, telas da carioca Vanessa Rosa, que transformou fotos de Maurício em pintura.

Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres
Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres

Vanessa chegou no espaço logo depois de Tobi. É uma jovem de cabelo preto ondulado e pele branca. Protegia-se do sol da tarde com um largo chapéu. Sua figura contrastava com a de Tobi, germânica esguia e desengonçada, de cabelo loiro longo amarrado em um rabo de cavalo. Tobi vestia uma bermuda masculina estilo tenista. Ao encontrar qualquer pessoa, soltava instintivamente uma risada amistosa e desarmada. Vanessa, que já morou e expôs em Berlim, foi apresentada a Tobi e trocou algumas palavras com ela em alemão.

Maurício interrompeu a conversa em tom de brincadeira. “Quantas línguas você fala, Vanessa?” Ao descobrir que ela também se virava em francês, inglês e espanhol, ele se voltou para mim: “Aí é outra coisa. Classe média…”

Vanessa escolheu recriar fotos bastante representativas do universo de Maurício. Pendurada em cima da entrada do estúdio, aos fundos do espaço, uma tela mostrava duas crianças negras – uma menina de vestido e um menino de bico na boca e mão dentro da bermuda – posando em frente a um barraco. Um vira lata passa faceiro na rua ao lado deles, como se quisesse voluntariamente ser registrado na cena.

Dias antes, Vanessa levara o quadro debaixo do braço até a Providência para mostrá-lo aos moradores. Os pedestres a olharam com curiosidade ao longo do trajeto entre o Zona Imaginária e a favela, e alguns até a pararam para perguntar sobre a obra. Daí veio a ideia de um futuro projeto: trazer as telas para a Providência e fotografá-las nos espaços que elas retratam, evidenciando a passagem do tempo e possibilitando um novo enquadramento.

“Toda minha relação com a Providência é através do Maurício”, contou-me Vanessa. “Como alguém que vem de fora, acho difícil se inteirar completamente com a região, interpretar todos os seus códigos. É um pouco como se eu passasse a entender a região pelos olhos do Maurício. Não fosse assim, a gente [os artistas de fora] fica muito invasivo.”

Ela vê Maurício como um grande articulador, que não apenas consegue se comunicar com grupos diferentes, como também sabe “valorizar a estética além do entendimento social”.

[olho]”Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”[/olho]

“Acho difícil para alguém de fora ter uma compreensão das dificuldades que esta região passou nesses anos todos”, continua Vanessa. “O Maurício tem um olhar particular da política interna, de saber o posicionamento de pessoas ligadas ao tráfico, pessoas que conviveram com ele desde pequeno, ou de ter que negociar com a associação de moradores, com o policial, com a prefeitura… Mas ele também tem uma visão do externo, do mundo da fotografia, do contexto artístico, tendo contato com artistas de fora da Providência e com eventos de movimentos sociais do mundo todo.”

Nascida em uma família de editores, Vanessa está ajudando Maurício na preparação editorial de seu mais novo livro, “Morro da Favela à Providência de Canudos”, um ensaio fotográfico que mostra as relações entre Canudos e a Providência. Com patrocínio master da Fundação Ford, Maurício viajou ao Nordeste Baiano e fotografou as ruínas da antiga Canudos, que apareceram após a seca.

“Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”, observou Maurício, sem esconder seu orgulho. “Você imagina que os primeiros ocupantes da Providência foram soldados de Canudos. Os caras passaram os maiores massacres. Degolar pessoas era uma prática comum. Foram essas pessoas que vieram para cá… É algo interessante quando se pensa a origem da violência na favela.”

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Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora
Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora

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Na Providência, Maurício foi testemunha privilegiada de uma história de extremos: viu de perto a gênese do tráfico nos anos 60 e teve um papel ativo, a partir dos anos 90, na formação de uma cena cultural e artística no morro. A atípica trajetória pessoal fascinou o desenhista André Diniz, que publicou uma biografia em quadrinhos do fotógrafo. Lançada em 2011, a graphic novel “Morro da favela” (Barba Negra) é uma espécie de romance de formação de um morador da favela. Através das memórias de Maurício, retrata as dificuldades de se viver no morro, desde a falta de recursos aos abusos da polícia e à proximidade com os grupos criminosos. Mas também tenta, assim como as fotos de Maurício, divulgar uma outra favela: a dos afetos familiares, da solidariedade e da joie de vivre.

A obra responde a uma pergunta que o biografado já está cansado de ouvir: por que não ir embora da favela e de seus perigos? Porque ele não vê nada de diferente lá embaixo, porque ele é e sempre será um fotógrafo favelado, e porque nem todo favelado é “bagunceiro e ladrão”, responde Maurício logo na abertura do livro. Embora essa visão generosa seja apenas uma entre as milhões possíveis de cada morador, Diniz acredita que ela ajuda a desmistificar as certezas criadas a partir das manchetes de jornais – o retrato monocromático que a população do “asfalto” já se habituou a ver na mídia.

“Ao longo de alguns meses, encontrei com Maurício diversas vezes no alto da Providência”, contou-me Diniz, alguns dias antes, por email. “Sou carioca e morei no Rio até os meus 28 anos e, no entanto, foi minha primeira vez em uma favela. Entrei lá a primeira vez zerando qualquer expectativa ou ideia pré-concebida, dentro do que me era possível. Eu queria que o livro fosse de fato a visão de Maurício e só dele. Ao longo dos meses e das visitas, claro, fui formando também a minha visão, que de fato me fez crescer muito e a entender que falarmos “o favelado” é tão impreciso como falarmos “o europeu”. Não há “o favelado”, há o Maurício, há o Antonio, há a Maria, há a Daniele. Cada um é um, cada pessoa é diferente, tem a sua própria história.”

[olho]”Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele.”[/olho]

Publicado na França e em Portugal, o livro também joga luz sobre a evolução do tráfico na cidade. Na década de 60, o pai de Maurício, Seu Luizinho, inaugurou, segundo o fotógrafo, a primeira boca de fumo do Rio. Era ainda o tempo romântico do tráfico: pouca fiscalização da polícia e bandidos malandros.

“O tráfico mais antigo é o da Providência”, afirmou Maurício. “Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele. O que também acontecia muito era o freguês ser preso e contar onde comprou. Então, quando o meu pai sai da prisão, ele decide vender na rua. Fixaram um ponto para vender. Mas marginal na época não era o tráfico, era o jogo de ronda. Polícia subia o morro por causa do jogo.”

Aos poucos, o cenário começou a mudar. Seu Luizinho foi preso pela segunda vez e, ao sair da prisão nove meses depois, decidiu abandonar o crime. Dedicou-se à pacata vida de estivador, enquanto o tráfico tomava outros caminhos, com a adoção da artilharia pesada e a formação do crime organizado. Um rumo que Luizinho lamentou até a sua morte, em 2014, de câncer.

“Na segunda vez que o meu pai foi preso ia ser uma pena pesada”, lembrou ele. “Mas como os policiais roubaram o que ele tinha, o promotor acreditou na história dele e, na acusação, incriminou os policiais também. Dos quinze policiais, só cinco apareceram no tribunal e meu pai foi absolvido por falta de provas. Eu tinha dez anos e aquilo me fez entender como funcionava um tribunal. Antes do julgamento o promotor foi lá, cumprimentou meu pai, desejou boa sorte… Durante o julgamento, não parou de malhar ele.”
Maurício nunca se meteu com tráfico. Herói de infância, seu irmão, Jorge, começou praticando crimes leves e logo entrou no pesado negócio do assalto a bancos. Aos 27 anos, desapareceu. A família descobriu que ele havia sido preso em Botafogo, mas não o encontrou por lá. Tempos depois, uma ossada com 19 corpos foi descoberta em Sumaré. Maurício acredita que um deles era o do irmão, mas nunca conseguiu comprovar.

Formado em um ambiente em que traficantes não raro ajudam a comunidade e em que os policiais muitas vezes roubam e forjam flagrantes, Maurício aprendeu desde cedo que a noção de “bandido” podia ter muitas nuances. Ele, porém, nunca se meteu com crime. Na adolescência, arranjou um emprego como ourives. Na oficina com 21 funcionários, ele era o único que não usava drogas. Um dia, ao visitar um cliente, bateu o olho em uma câmera Pentax. Comprou a máquina com o dinheiro das joias e nunca mais parou de fotografar.

“Meu pai tinha uma vida muito tranquila na adolescência, era um cara que estudou legal. Mas [a Providência] era um lugar muito marginal. Imagina se você tiver que morar hoje na Central do Brasil. Cara, você vai se marginalizar. Talvez você não mude o seu caráter, mas você vai ter que ser malandro.”

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Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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Ao mesmo tempo em que ajuda artistas de fora a se localizar e se familiarizar com a comunidade, Maurício também ajuda os jovens moradores a entrar em contato com o mundo cultural fora dela. Mistura de antropólogo, historiador e assistente social, ele ministra oficinas e coordena uma cooperativa de fotógrafos, que usa o estúdio montado nos fundos do imóvel do Zona Imaginária. Composta principalmente de aspirantes da periferia que não conseguem evoluir na carreira por falta de dinheiro, a organização permite o compartilhamento de equipamentos caros. Além do Zona Imaginária, Maurício também toca a Casa Amarela, um espaço cultural e de aprendizado situado no alto da Providência.

Todas as ações estão ligadas ao Instituto Favelarte, criado em 2010 por Maurício e por seu sócio Renato Barbosa para fomentar uma política de progresso nas comunidades carentes e superar a exclusão social. Na graphic novel de André Diniz, uma cena chama atenção: é quando um garoto problemático, que tinha muita vergonha de sua casa humilde, se emociona ao vê-la fotografada por Maurício. A transformação pela arte foi tão forte, que a sua vergonha sumiu instantaneamente.

Maurício me levou até a Casa Amarela, uma construção de dois andares em frente à praça em que Tobi iria instalar suas esculturas. Com todas as portas e janelas fechadas, ela parecia estar abandonada. Na verdade, o espaço vinha sendo pouco utilizado desde que o Zona Imaginário passou a monopolizar as energias do Favelarte. Atrás do portão da entrada, resíduos jogados em uma caixa exalavam um cheiro forte. Havia lixo espalhado por todo pátio. Lá dentro, algumas das peças estavam sem luz. Maurício foi me mostrando o espaço de leitura, no segundo andar. Os livros estavam jogados pelos cantos, como se alguém tivesse feito uma varredura.

De fato, a polícia invadiu o local recentemente. Em uma de suas batidas na favela, arrombou portas e foi embora sem deixar aviso. Durante três dias, a casa ficou abandonada, toda aberta. A garotada do morro aproveitou para invadir. Comeram os biscoitos da provisão, roubaram lápis e caneta e bagunçaram o espaço.

“Nesse tempo em que a casa ficou aberta, ninguém tocou em nenhum objeto de valor” ressaltou Maurício. “Eu tinha máquina fotográfica, tinha equipamentos caros, e eles deixaram tudo lá, direitinho.”

Ex-aluno da Casa Amarela, Diego de Deus da Conceição, conheceu Maurício aos 15 anos. Hoje com 27 anos, ele trabalha como office boy no Museu de Arte do Rio – um dos mais ambiciosos investimentos culturais na Zona Portuária. Durante uma folga em seu trabalho no museu, ele me encontrou na esquina da rua Sacadura Cabral com a Pedra do Sal, núcleo simbólico da antiga Pequena África do Rio. Diego foi iniciado por Maurício na fotografia, ganhou prêmios com um trabalho sobre as Unidades Pacificadoras, e agora está tentando trabalhar com vídeo. Seu projeto é fazer um documentário centrado na figura do morador Eron César dos Santos, que vive há mais de 40 anos na Providência.

Responsável pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, no alto do morro, Eron reúne contos e lendas sobre a favela, estudando, através do pouco conhecido folclore local, outras visões da história dela.

“Você ouve muitos coletivos artísticos baseados na favela dizendo muita coisa, mas fazendo pouco”, lamentou Diego. “Tem muito mais para ser trabalhado e muito mais gente a ser atingida. No próprio morro onde fico, no ponto mais alto, ali no Largo do Cruzeiro e na Praça Américo Brum, tem uma quantidade significativa de crianças que não estão fazendo nada. Maurício mudou muito meu olhar sobre a comunidade, e agora quero mudar o olhar dessas crianças. Quero trazê-las para os nossos projetos, mas nem todo mundo tem a mesma curiosidade, o mesmo olhar. Acho que falta uma maior união. Vejo muita gente trabalhando fechada em si próprio, levando o nome da Providência para fora, mas nunca para dentro.”

Crédito: Maurício Hora
Crédito: Maurício Hora

Menos de uma semana depois, com o pódio de Miss Tobi já instalado na Providência e imune — até o momento — a qualquer restrição da prefeitura (“Acho que o pessoal não entendeu”, brincou Maurício), descubro que o Zona Imaginária foi assaltado. No dia em que as esculturas foram inauguradas, ladrões entraram no espaço, roubaram equipamentos e o dinheiro do patrocínio do livro sobre Canudos. “Levaram muita coisa, mas tudo bem”, me disse Maurício por telefone, em uma voz conformada.

Dias antes, Maurício havia me confidenciado: “Sempre briguei pela favela, porque acho que tenho uma divida com a comunidade. Eu tenho uma divida por conta do meu pai. A coisa do tráfico é tão importante na favela… Não que eu seja importante aqui dentro, não é nada disso. E talvez nem seja tanto uma questão de culpa, talvez seja de pertencimento. Aquilo ali, o morro, também é meu. Eu me sinto tão parte daquilo que tenho uma pretensão, talvez idiota, de achar que eu possa ajudar. Tento unir os jovens, fazer eles entenderem o território, deslocá-los por diferentes partes da comunidade… Acho que isso é importante para eles.”

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Xênia França é uma força da natureza

“Você não percebeu, mas naquela mesa as pessoas me olharam de um jeito quando a gente chegou”, me diz Xênia França numa padaria bacana na Vila Madalena, em São Paulo. Na verdade eu tinha reparado que as pessoas olharam. Só não sabia se eles estavam olhando por ela ser bonita, por causa de suas roupas estilosas, de seu lindo cabelo volumoso, ou por ela ser negra.

Xênia é a única mulher da banda Aláfia. Ela divide com Eduardo Brechó e Jairo Pereira os vocais da banda de 11 integrantes que combina diferentes gêneros da música negra com letras sobre negritude de uma forma tão bonita que é fácil dizer que Corpura, lançado em setembro, é um dos melhores discos nacionais do ano. E quando se fala de Xênia, não é possível dizer apenas que é uma cantora. É preciso dizer que ela é negra. É preciso dizer que ela é linda. Porque, em 2015, isso ainda importa.

“A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”, me diz. O Aláfia é daquelas bandas que não estão no underground, mas também não pertencem ao mainstream. Mesmo assim, Xênia é uma grande referência, especialmente para mulheres negras, o que a deixa desesperada – “porque eu sou uma pessoa”, e não uma fada como algumas crianças acreditam que ela é.

“Diva”, “linda” e “musa” são palavras que se ouve da plateia quando o Aláfia se apresenta. Mas, quando estava na escola, Xênia não era considerada bonita. Não era da turminha das garotas populares, e não era a mais desejada pelos meninos. Era uma das poucas alunas negras de um colégio particular em Camaçari, na Bahia, e nem sempre participava dos passeios e viagens escolares porque a mãe era muito preocupada. Quando falamos sobre a importância da beleza, ela resgata uma “lembrança triste” da infância. Ela tinha nove ou dez anos, era junho e as crianças se preparavam para o São João. Sua mãe havia comprado um vestido lindo, xadrez e rodado, e ela estava na expectativa de dançar quadrilha, mas não foi escolhida.

“Quando as pessoas falam que eu sou linda e maravilhosa eu aceito, porque eu realmente acho que eu sou linda e maravilhosa. Eu não nego isso, não tenho vergonha disso, porque é importante pra mim, pelas coisas que já passei na infância, e por saber que hoje em dia eu tenho uma responsabilidade”, desabafa. “A beleza pra mim não é uma coisa efêmera, é uma ferramenta de trabalho. Como eu trabalho praticamente com militância, a gente precisa pegar tudo que for positivo e transformar em propaganda pra nós.”

[olho]”A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”[/olho]

Quando Xênia conheceu Eduardo Brechó, em 2011, apresentada por um amigo em comum, a ideia era que ele a ajudasse a montar seu disco solo. Ela frequentava a casa dele (“tem muito vinil, ele é pesquisador musical, conheci ele como DJ”), que também era visitada por outras pessoas como Jairo Pereira. Um dia o gaitista Lucas Cirillo chegou e eles ficaram tocando Michael Jackson. As pessoas foram chegando, os encontros viraram semanais, e três meses depois o Aláfia fazia seu primeiro show. “Quando fomos ensaiar com o Fi, que era baterista, chegou o [baixista] Gabiru e falou ‘como assim? Ele é meu primo’. Foi tudo muito sincrônico.”

Foi no dia 11 de junho de 2011, no Bar B, em São Paulo, que o Aláfia fez seu primeiro show. Xênia passou na casa de um amigo para se arrumar e chegou em cima da hora do show. “Quando entrei o bar estava lotado e 80% das pessoas que estavam lá eram negras, achei aquilo foda. Era muita gente preta no lugar, e eu nunca tinha visto aquilo em São Paulo. Eu vinha de outra realidade, trabalhava com moda. Nessas festas de moda não tem negro, era eu e mais um, e os outros negros que estão lá são os cozinheiros, os faxineiros.”

Falar de negritude e de racismo sempre foi a intenção da banda, mas Xênia diz que isso tomou uma proporção maior quando eles perceberam que as pessoas iam aos shows para ouvir o que eles tinham para falar. “A gente não tá falando pra eles, a gente tá se comunicando. Essas pessoas também têm um monte de coisa pra dizer.” O Aláfia é uma banda interracial. “Tem preto e tem branco. As pessoas brancas entraram pra tocar, só que a nossa vivência é muito séria e muito forte. Quem não pensava sobre isso acabou entrando [na militância]. Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade.”

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A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação
A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação

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Me encontrei com Xênia França pela primeira vez num restaurante nordestino simplão na Santa Cecília. Acompanhada de cinco belas amigas, o que fazia com que a mesa em que estavam sentadas se destacasse, ela estava levemente bêbada após tomar uma caipirinha. Por sugestão dela, pedi uma também. Estava nervosa e tinha calculado quais perguntas fazer naquela ocasião e em qual ordem, com medo de ser invasiva demais, e esperando que ela pudesse ganhar confiança em mim pra se abrir. A pergunta “qual seu signo?” estava no fim da lista, mas foi a primeira coisa que ela falou, assim que me sentei. “Sou Peixes com ascendente em Leão e Lua em Virgem. Por isso que sou chata”, brincou. Ela disse que era por isso que, apesar de ser essa pessoa expansiva e “pró-ativa na amizade” quando encontra as pessoas, precisa de um tempo sozinha, só pra ela.

Culpa ou não dos astros, Xênia tem realmente essa dualidade. Ela fala bastante, chora de rir, imita Marília Gabriela, se mostra bem à vontade e usa muitas gírias do universo gay na hora de conversar sobre coisas corriqueiras. Mas também fala baixo, é introspectiva, articulada, e sobretudo inteligente. Xênia pensa muito sobre a sociedade e o mundo em sua volta, mas também se dedica bastante ao auto-conhecimento.

[olho]”Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade”[/olho]

Não tem religião, mas sempre foi ligada com o “invisível”. “Sempre tive muita curiosidade mas também muito medo, porque a religião põe medo nas pessoas.” Na infância, foi batizada na Igreja Católica e fez primeira comunhão, mas na adolescência já não se identificava mais com o catolicismo. Ela vem de um estado onde o candomblé é forte, mas foi se aproximar e pesquisar mais sobre o assunto com o Aláfia. “Tem muitas pessoas no Aláfia que são filhas de santo mesmo, e por causa da pesquisa musical, que passa por esse lugar.” Ela é filha de Xangô e Iemanjá, e procura saber a influência dos orixás em sua vida. Frequenta o Terreiro do Bogum quando vai a Salvador. “Faz parte de um lance de identidade, ancestralidade, mas não tenho a cabeça feita e acho que nunca vou ter.”

A cantora frequenta o Templo Sukyo Mahikari Dai Dojo, onde recebe “umas energias pelas mãos” e consegue estabelecer uma conexão com o invisível. Tudo faz parte de sua busca para se achar e “ser uma pessoa mais confortável dentro de mim”. “Todo mundo que me conhece me acha super engraçada. Sou uma pessoa muito expansiva, tô sempre falando. Falando da minha vida, das minhas coisas, e mesmo assim o que é importante mesmo, o que me choca, o que me magoa, eu não falo.” Foi na terapia de florais que ela encontrou a possibilidade de se abrir e falar sobre o que ficava guardado.

Tudo isso ajudou para que ela saiba lidar “relativamente bem com a minha vida”, mas não impede que ela tenha crises, como todos nós. “Eu me sinto tão realizada cantando, sei que é isso que eu deveria estar fazendo, mas tem horas que bate um negócio assim, que acho que deve ser do meu signo, meu ascendente, da mistura que é meu mapa [astral], um número de frustrações.”

Xênia não fez aula quando começou a trabalhar com música; hoje em dia, faz aula de canto e fonoaudiologia. “Quando escutava qualquer coisa [que gravei] eu ficava triste, porque achava que não tava bom. Não gostava da minha voz.” No Aláfia, ela cumpre a função que lhe é dada – “estou ali mais como instrumento do que como cantora, é como se eu fosse uma guitarrista” –, imprimindo um registro de voz de black music que gosta, mas que não encerra suas ambições estéticas. “Não consigo me expressar tanto como se eu fosse uma cantora solo, colocar pra fora quem eu sou de verdade.”

Fora do Aláfia, ela faz participações em shows de amigos e vem apresentando um espetáculo em homenagem ao Gonzaguinha. “É muito diferente poder cantar canção, poder ser mais sereno. E cantar sozinho é muito diferente, você mostra um outro lado artisticamente.” A ideia do álbum solo, que surgiu em 2011, só está tomando forma agora. Na época ela tinha medo de gravar, e não se sentia preparada. “Não tinha nada em mente, só queria cantar”, lembra. Após dois anos pensando no disco, ela começa a se dedicar mais à escolha do repertório e a linguagem que quer passar.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 10-10-2015, 19h: Retrato da cantora Xênia França. (Foto: Lucas Lima/riscafaca).
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

Quando Xênia era adolescente, queria ser jornalista, inspirada pela Glória Maria, repórter da Rede Globo. “Não pensava muito na coisa da negritude nessa época, mas já sentia uma diferença ali, que só existia uma mulher preta ali na televisão que a gente assistia.” Mas seu professor de português, que já havia sido jornalista, recomendou um texto sobre a falta de liberdade de expressão causada pelas famílias que controlam as grandes mídias, e ela desanimou. Fez Comunicação Social, mas com a especialização em Publicidade. “Na escola eu não suportava estudar, mas quando entrei na faculdade achava o máximo estudar e ler coisas que estavam diretamente ligadas à minha personalidade”, recorda. Mesmo assim, viu que a profissão não era pra ela.

Aos 17 anos, Xênia se inscreveu num concurso da revista Raça Brasil. Não ganhou, mas ficou entre as dez primeiras e foi para São Paulo em 2004 trabalhar como modelo em uma agência especializada em negros. A primeira pessoa que conheceu na capital paulista foi Samira Carvalho, a garota que estava na capa da revista Raça quando ela se inscreveu no concurso. “Ela tava sentadinha no chão, fazendo tricô”, conta Xênia. Samira é top model e agora vende suas belíssimas criações em tricô e crochê na marca que criou, a Sambento. Ela também é uma espécie de consultora de estilo de Xênia, emprestando roupas e ajudando no styling. Foi Samira quem fez o vestido sob medida usado por Xênia no show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera. “Assim que a Xênia chegou rolou uma conexão boa entre a gente”, conta Samira.

A vida de modelo não foi fácil. Eram poucas as ofertas para as negras, e o que ela mais fazia era, ironicamente, trabalhos para publicidade. Grande parte do sustento vinha da mãe, e ela diversas vezes fazia as malas, preparada para voltar à Bahia, até que alguma coisa a fazia ficar. “Cheguei aqui [em São Paulo] querendo ser a Gisele Bündchen e tomei um baque.” Mas ela fez amigos, entre eles os integrantes da banda de rock Sorriso Vertical, que costumava tocar no Sarajevo, casa noturna da rua Augusta que ela frequentava.

Em 2007 ela mudou da região da Augusta para o Itaim Bibi, e os amigos do Sorriso Vertical sempre apareciam para encontros na casa dela. Eles se juntavam para cozinhar, assistir filmes, e principalmente tocar violão na cozinha, quando ela cantava despretensiosamente. O guitarrista da banda, Caio Echem, elogiava sua voz, mas ela não dava muita bola. Porém, na metade daquele ano, Caio a convidou para montar uma banda de samba rock (“nessa época estava no auge”), e ela aceitou. Uma semana depois, ela faria sua primeira apresentação como cantora no aniversário de uma amiga do baterista.

Ela ainda trabalhava como modelo, mas momentos importantes foram acontecendo — rápido e aos poucos — em sua carreira musical. Em 2008, ela foi assistir ao VMB e reencontrou Fred Ouro Preto, também do Sorriso Vertical, que concorria pela direção do clipe “Triunfo”, do Emicida. Fred apresentou os dois, passou o telefone da Xênia para o Emicida, e um belo dia, enquanto ela estava em um casting, o rapper ligou perguntando se ela podia aparecer no estúdio, porque ele precisava de uma voz feminina. Ela saiu da prova de roupa, foi encontrá-lo e gravou pela primeira vez em um estúdio.

A vida de modelo/cantora foi sendo levada, com anos de apresentações na noite paulistana na bagagem. Mas só tocar na noite não a satisfazia mais, e ela começou a montar o Aláfia, onde realizaria seus desejos artísticas no momento. E ser modelo também já não era legal. “Sentia que estava insistindo numa coisa que não era pra mim”, diz. A transição de modelo para cantora foi bem difícil, o dinheiro faltava, e ela passou dez meses trabalhando em uma loja na Oscar Freire, para se sustentar enquanto o Aláfia preparava o primeiro disco. “Mas cada vez que eu tava num estúdio, me sentia muito satisfeita. Muito diferente de quando eu era modelo e tava num trabalho já pensando em quando seria o próximo.” Ser cantora não estava nos planos quando Xênia saiu de Camaçari, na Bahia (ela foi criada lá, mas nasceu em Candeias), mas a música foi um canal para ela encontrar o melhor de si.

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Xênia no show de lançamento do disco "Corpura", do Aláfia. Crédito: Divulgação
Xênia no show de lançamento do disco “Corpura”, do Aláfia. Crédito: Divulgação

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“Ela é uma deusa e vai ganhar o mundo”, me disse a cantora Tássia Reis quando perguntei se ela poderia falar sobre a Xênia. Tássia gravou com o Aláfia, participa dos shows, e acabou “fazendo uma ocupação na casa dela” por alguns meses, quando chegaram a compor juntas. “Ela me chamou pra uma música. Escrevi uma parte, acompanhei de ver ela compondo na sala, ficou incrível. Ainda não gravamos”. A Xênia tinha me dito que “quebra a cabeça para aprender a tocar violão”, e fico surpresa em saber que ela já está compondo com o instrumento. “Ela é muito talentosa e sagaz”, explica Tássia.

A Xênia tem essa aura que encanta, atrai a atenção pra ela. Coisa de deusa mesmo. E ainda essa facilidade de se conectar com as pessoas instantaneamente. “Tenho a imagem daquele dia que, quando olhei pra cara dela e começamos a conversar, foi um tal de dar risada geral. E guardo essa sensação — parece até reencontro, manja?”, recorda Pipo Pegoraro, músico solo e companheiro de Aláfia, sobre o dia em que conheceu a cantora.

Vê-la falar com propriedade sobre política, racismo, ou mesmo os quasares reforça essa impressão de que ela é uma mulher perfeita (e ainda assim acessível). E por mais que Xênia gaste muito tempo falando sobre ter evoluído em sua relação com o mundo e consigo mesma, ela às vezes gosta de lembrar da sua humanidade. “Tenho meus traumas, mas tento resolvê-los, não fico sofrendo. Às vezes fico, porque eu sou uma pessoa.” Se livrar do drama que acompanha todo pisciano é um exercício diário. Ela explica que, no dia anterior, foi dormir às 3h da manhã, em crise, achando que tinha se “comportado de maneira errada com uma pessoa”. Quando acordou, leu um livro (“O Poder do Agora” é sua Bíblia), foi ao templo, e fugiu do limbo do sofrimento. “Pra poder eu ser isso aqui, tenho que me esforçar muito, porque não sou tão calma.”

Xênia tem esse jeito particular de resolver seus conflitos. Seu pai morreu jovem, “acho que com 51 anos”, e chegou a acompanhá-la em um desfile, mas nunca a viu cantar. “Minha mãe é um pouco mais fria com esse lance de música, e acho que meu pai ia pirar. Fico pensando que ele podia ver, e agora não dá mais tempo.” Naquela semana, ela teve um sonho com seu pai. Estava conversando com um amigo – que no momento ela ainda não sabia, mas também era órfão de pai – sobre o assunto, e comentou: “Tanta coisa que a gente tinha pra resolver, né? Como faz pra resolver isso com eles? Acho que só em sonho”.

O pai dela se sentava ao piano e fazia uma música. Ela ouvia com clareza a letra e a melodia. “Acordei arrasada e mandei [uma mensagem de] áudio para o meu amigo na mesma hora. Aí eu cantei a melodia pra ele. Não lembro a letra, mas ele falou que a gente vai fazer essa música.”

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Crédito: Lucas Lima/Risca Faca
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

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Nas duas vezes que nos encontramos, Xênia falou que, se ela estava ali conversando comigo, era por causa de sua mãe. Mais especificamente, por causa de uma professora que se encantou com a dona Dalva Estrela, achou que ela tinha potencial e a levou pra Salvador para estudar. Dalva acabou de se formar em sua segunda faculdade, e pretende cursar a terceira. “O vislumbre que a professora [que ela considera vó postiça] deu à minha mãe, minha mãe passou para mim. Nenhuma outra pessoa na minha família teve o deslumbre de viver de arte, só eu.” Xênia menciona o tempo todo a admiração que tem pela mãe, e como ela é um exemplo de superação.

“Tenho muitas lembranças dela pequenina, nossos passeios no Club da Fábrica onde o pai trabalhava, as peraltices dela, subindo nas árvores, e eu correndo atrás dela para não se machucar. Estava sempre tentando protegê-la”, conta Dalva. Xênia é filha única de mãe solteira, e as duas criaram um laço forte, tornando o impacto da mudança da cantora para São Paulo ainda maior, e bastante sofrido para Dalva.

Os pais de Xênia se conheceram numa festa, “tipo uma quermesse”. Ele era técnico de som, mas tocava violão e cantava. “Era alucinado pelo Emílio Santigao, que é uma das minhas influências musicais por causa dele”, confessa a cantora. O casal se separou, e Xênia cresceu sem muita proximidade do pai, o que tornou a morte ainda mais difícil para ela. E ele pode nunca ter visto a filha cantar, mas com certeza influenciou a veia artística dela. Seus brinquedos de infância eram todos instrumentos, de tecladinho a harpa.

***

Ser uma cantora negra, mesmo de boca fechada, já é ser a própria militância. Xênia faz essa observação antes de me dizer que acha importante se posicionar, para poder quebrar os esterótipos. “Nem posso dizer que sou uma militante; sou uma figura que contribui para que essa falta de representatividade seja menor.” E ela faz isso não só por meio de sua arte, mas também pelo jeito como vive, se dando o prazer e o “direito” de frequentar onde quiser, de andar na rua balançando um leque em um dia de calor. “Não me vejo como uma pessoa negra, eu me vejo como uma pessoa.”

Ela acredita que, em 2015, começamos a ter um vislumbre de democracia racial. Mas ainda há um racismo institucionalizado que impede que as pessoas negras se desenvolvam no Brasil, mantendo os negros em subempregos. Além, é claro, do racismo mais óbvio, na forma de agressões. “Não sei se é porque eu imprimo uma consciência muito forte de quem eu sou, esse racismo não me atinge”, diz, explicando que sabe muito bem o que dizer caso alguém tenha o “equívoco de me agredir com essa pobreza de espírito”, mas que isso nem a ocorre. “Mas não posso achar que porque minha vida é boa que a vida de todo mundo tá legal.”

Alguns dias depois da entrevista, Xênia me envia um texto sobre a solidão da mulher negra, para que eu entendesse melhor do que ela estava falando quando disse que “a mulher negra não namora, ela está sempre ficando”. Vem sendo abordado recentemente por ativistas a preterição da mulher negra nos relacionamentos afetivos heterossexuais, tanto por homens brancos quanto por homens negros. É um reflexo do estereótipo da negra como mulher “quente”, que é objeto de fantasias sexuais mas não “serve” para um relacionamento sério.

Xênia tem 27 anos, e teve seu primeiro namorado aos 24. Antes disso, ela só ficava. “Na hora do ‘vamo ver’ os caras não queriam namorar. Ficava pensando ‘será que sou chata, que sou feia, será que é por que eu sou negra?’ Hoje em dia não penso mais nada disso, mas nessa época tinha esses conflitos.” Ela conheceu Lucas Cirillo, gaitista do Aláfia, quando a banda estava se formando, no começo de 2011. Eles se tornaram grandes amigos, mas só foram ficar em outubro – ele já estava encantado por ela, mas Xênia não dava muita bola. “Ficava eu bobão, aí eu desencanei de correr atrás dela, aí inverteu a história. Foi ela que enquadrou”, resume Cirillo. Xênia foi quem pediu o gaitista em namoro, e em março eles completam quatro anos juntos.

“A gente tenta limitar a hora que vai falar de banda e a hora que vai falar de namoro”, explica Cirillo. A parceria, é claro, se estende na música, e um ajuda o outro na hora de avaliar as composições ou opinar no trabalho. “Quando ele me mostrou ‘Cala’, na cozinha de casa, eu falei ‘essa música é a cara do Aláfia’, porque existe um tipo de composição que é para o Aláfia”, tinha me contado Xênia quando falávamos de Corpura.

Os dois demonstram imensa admiração pelo outro. “A gente conversa sobre tudo, traição, ciúme, eu ser preta, ele ser branco”, diz Xênia. Ela elogia bastante o fato de Cirillo não ter ciúme, ainda mais por ela ser uma pessoa expansiva – dessas que beija, abraça e é atenciosa com todo mundo. “Fui eu que escolhi ele. E foi uma ótima escolha.”

Depois de resolver tantos conflitos internos, a vida afetiva de Xênia é uma aspecto que ela “não tem do que reclamar”. E o sentimento parece mútuo: “É claro ver como ela é encantadora onde ela chega, não só pela beleza mas pelo espírito alegre e contagiante. Ela tem um ímpeto, uma garra, um espírito guerreiro que é muito bonito de ver”, elogia Cirillo.

No show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera, Xênia era inevitavelmente o centro das atenções, com seu vestido longo com fendas nas pernas e brincos enormes. Mas em dado momento, quando Brechó e Jairo cuidavam dos vocais, ela foi para o canto, como se ninguém tivesse olhando, e conversou por alguns momentos com o gaitista. O brilho que ela tinha nos olhos era algo que não dá pra fingir.

***

Xênia Eric Estrela França ganhou esse nome inspirado na jornalista Xênia Bier. “Achava ela incrível e muitíssimo inteligente. Acho que acertei, pois também acho minha filha incrível e inteligentíssima”, ri Dalva, mãe da cantora. Xênia é um nome de origem grega que significa estrangeira, hospitaleira. “Não sei se o significado é tão impactante quanto o nome, porque acho meu nome muito forte. E acho que sou Xênia mesmo. Não teria outro nome. Acho que é assim que me sinto no mundo também, meio estrangeira. Me sinto muito de passagem aqui. Vim aqui pra aprender, muitas vezes fico bastante chocada. Não consigo entender direito o porquê das coisas, das injustiças.”

Ela me diz que gosta de dar conselhos. Já tinha reparado: suas respostas, sempre longas e elaboradas, costumam terminar com algum tipo de conselho (“acho que todo mundo tem que fazer terapia”). Mas Xênia também gosta de aprender, de receitas saudáveis a como tomar vinho até ao cosmos, o assunto que ela mais se dedica. Música ela só ouve em casa se tiver fazendo alguma pesquisa.

A padaria chiquezinha da Vila Madalena fecha, e Xênia senta comigo num parklet. Cai uma chuva fina. Ela fala sobre suas grandes amigas, Indira e Samira, que são como irmãs; sobre a magnitude do planeta; sobre energia. “Esses dias o seu Mateus Aleluia descobriu que tem uma pantera na África que chama ‘tchênia’. Ele ficava no palco falando ‘tchênia’, e eu achava o máximo, ficava me sentindo”, lembra, rindo. Suas roupas coloridas ficam ainda mais estilosas em seu corpo de 1,73m de altura. Seu cabelo volumoso continua impecável. Xênia olha no seu olho, pega no seu braço, por poucas vezes parece calcular as palavras, e quase sempre fala com uma espontaneidade de quem é segura de si. Xênia domina o ambiente. Como uma pantera.

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As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

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HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”