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O rap é compromisso
em ‘The Get Down’

Lançados todos de uma só vez, os episódios de séries do Netflix costumam ser perfeitos para serem vistos em uma ou duas sentadas. Não é o caso com “The Get Down”, que estreia na próxima sexta, dia 12. Talvez por isso sua primeira temporada tenha seis episódios lançados agora e mais seis a serem lançados no início do ano que vem: a produção de Baz Luhrmann é melhor consumida em pequenas doses. Como “Mad Men”, por exemplo, cujos capítulos tinham descrições excitantes como “Don conhece uma mulher, Peggy trabalha demais, Pete pega o trem”, “The Get Down” é uma série em que pouca coisa acontece de fato. O que importa é ver como elas acontecem.

Ambientada no fim dos anos 1970 no Bronx, no norte de Nova York, a série gira em torno de Ezekiel (Justice Smith), um adolescente com grande habilidade para as palavras e poucas perspectivas para o futuro. Sabemos de cara, porém, que ele ultrapassará as dificuldades e se tornará um rapper famoso, já que sua história começa a ser contada dos anos 1990, quando ele se lembra do passado nas músicas que canta em um grande show. Com uma hora e meia de duração — praticamente um filme — o primeiro episódio narra o início dessa guinada, quando Ezekiel conhece o grafiteiro e aspirante a DJ Shaolin Fantastic. É ele quem apresenta Ezekiel, até então fã de música disco, às festas nas quais o rap nasceu, com DJs fazendo a batida para os MCs colocarem as letras.

Poeta, Ezekiel logo encontra ali o seu lugar e começa a frequentar o incipiente circuito do hip-hop com os amigos — um deles interpretado por Jaden Smith. Além da música, Ezekiel se dedica à sua outra paixão, a amiga Mylene (Herizen Guardiola). Ela também quer ser cantora, mas de música disco, e sofre com a proibição do pai, pastor na igreja em que ela canta. Mylene é responsável pela maior parte dos momentos musicais da série, embalando a história de Ezekiel com a sua voz. A trilha sonora, como dá para imaginar pela sinopse, é excelente e os protagonistas são talentosos — um dos melhores momentos dos três primeiros episódios que assistimos é quando Ezekiel recita pela primeira vez um poema sobre sua vida, com a cadência de um rapper, para uma professora na escola. Nesse um minuto em que ele conta sua história em verso você sente que quer acompanhá-lo até o fim.

Histórias sobre a música nos anos 1970 não são raridades — só neste ano Martin Scorsese lançou sua “Vinyl”, sobre o rock. Mas “The Get Down” tem uma vantagem sobre a já cancelada série da HBO: histórias de rock — e sobre homens brancos e suas ideias super revolucionárias — há muitas. Sobre o rap (e a música disco, em menor grau), não. O australiano Luhrmann, tanto pela origem quanto pelo estilo, parece uma escolha estranha para retratar a origem do hip-hop e a realidade do Bronx em 1977, e, é divertido imaginar o que sairia numa série dessas nas mãos de Spike Lee. O retrato de Luhrmann é mais ensolarado e fantasioso do que realista — há drogas, gangues e violência, mas tudo contado de uma forma razoavelmente leve e bem pop. Embora seja menos excessivo e estilizado — menos “Luhrmann” — que “Romeu + Julieta” ou “O Grande Gatsby”, “The Get Down” é claramente uma produção do diretor, com momentos de cantoria estilo “Glee”, grandes números de dança, alguns personagens mais para o lado da caricatura e um pé no surrealismo. Para Luhrmann, o rap é compromisso, mas também pode ser um pouco viagem.

Colocar a forma à frente do conteúdo às vezes faz com que seja fácil se distrair no meio de uma cena e torna ir ao banheiro no meio do episódio uma decisão relativamente simples. Às vezes a história não sai muito do lugar, às vezes ela quer estar em muitos lugares ao mesmo tempo — além de Ezekiel, Shaolin e Mylene, os protagonistas, há o núcleo da tia de Ezekiel, sua professora que o incentiva, uma gângster poderosa e seu filho dono de boate, o DJ que ensina Shaolin, os amigos de Ezekiel, as amigas de Mylene, os pais de garota, seu tio, que é um político influente. Nenhum desses personagens ganha espaço suficiente para que a gente se interesse por eles — de memória, é difícil citar o nome de mais de dois coadjuvantes.

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“The Get Down” é a série mais cara já produzida pelo Netflix (foram US$ 120 milhões nessa primeira temporada). Isso ajuda a explicar como ela é ambiciosa e quer ser muita coisa: parte comédia romântica, parte drama, parte série de ação, parte musical e inclui até algumas cenas documentais aqui e ali, sem muita conexão com o resto. Pode não ser a série mais empolgante, que te faz querer ver um episódio atrás do outro, mas “The Get Down” é cheia de bons momentos, principalmente quando fica mais focada e se volta para Ezekiel e Mylene. Ele é um personagem pelo qual você tem prazer em torcer, tão talentoso quanto vulnerável — a performance de Justice Smith é excelente e, ainda que ele apareça pouco na fase adulta, ajuda o fato de ser interpretado por Daveed Diggs, vencedor de um prêmio Tony neste ano por “Hamilton”. Já Mylene poderia ser a mocinha sofredora clássica que tem os sonhos destruídos pelo pai autoritário, mas é muito mais complexa que isso.

É, também, uma série bem bonita de se ver. Luhrmann pode não ser especialista em hip-hop (apesar de contar com a consultoria de Nas e Grandmaster Flash, duas lendas do rap, ambos produtores da série), mas é o diretor de “Moulin Rouge”: ou seja, sequências de canto e dança são parte de suas especialidades. Com poucos episódios vistos, a sensação que “The Get Down” deixa é de que não há urgência para terminar a série, não há grandes mistérios que vão te atormentar ou deixar a internet em polvorosa (tal qual “Stranger Things”, último grande lançamento do Netflix) — embora o ritmo melhore gradativamente. Segundo classificação do próprio Netflix, há séries para devorar e para degustar, e é bom que haja oferta dos dois tipos. “The Get Down” se encaixa, com certeza, na segunda categoria e, apesar de ter um começo um pouco confuso, tem qualidades o suficiente para valer uma tentativa.

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As referências nostálgicas de ‘Stranger Things’

Matt e Ross Duffer, criadores da série “Stranger Things”, que estreou na sexta no Netflix, contaram em entrevista ao site AV Club que, na hora de vender seu projeto ao serviço, mostraram um vídeo com imagens de 26 filmes, numa espécie de trailer para mostrar o que eles tinham em mente. Tinha ali trechos de clássicos do terror, como “Poltergeist” e “Halloween”, de filmes de ficção mais recentes, como “Looper”, e até da homenagem de J.J. Abrams aos filmes de sua infância, “Super 8”. É uma síntese do que é a série, uma colagem de referências — às vezes sutis, às vezes explícitas –, reconfortante para quem cresceu vendo filmes nos anos 1980 e 1990.

Afinal, não dá pra ser mais nostálgico dos anos 90 do que escolher Winona Ryder, o ícone da década, como protagonista.

Na série do Netflix, o garotinho Will Byers desaparece misteriosamente após passar o dia jogando com seus amigos em uma pacata cidadezinha em Indiana, nos Estados Unidos. Ao longo de oito episódios, vemos como sua família e seus amigos lidam com seu sumiço enquanto acontecimentos misteriosos vão se multiplicando. “Stranger Things” não é só uma série ambientada nos anos 80, e sim uma homenagem declarada à década. Poderia ter sido uma cópia mal feita, uma imitação barata, mas os irmãos Duffer conseguiram apelar para a nostalgia na medida certa, misturando todo tipo de influências, filtrando-as e “trazendo sua sensibilidade”, em suas próprias palavras. E se você já assistiu aos 8 episódios, separamos algumas das referências cinematográficas, musicais e estéticas da série.

Referências do cinema

Logo no primeiro capítulo fica evidente um parentesco entre “Stranger Things” e “E.T.”, de Steven Spielberg. Como em “E.T.”, a série começa com um grupo de pré-adolescentes jogando RPG; um dos protagonistas é criado só pela mãe, as crianças andam pela cidadezinha em que vivem e pela floresta em suas bicicletas; elas encontram uma criatura misteriosa, que praticamente não fala e deve ser escondida dos adultos que querem capturá-la. Em “Stranger Things” não é um alien fofo, e sim uma garotinha que cresceu num laboratório, onde foi vítima de vários experimentos científicos. Mas como o extraterrestre, a menina Eleven é fã de doces e é disfarçada com um vestido e uma peruca loira e comprida para poder circular sem chamar a atenção. Com Eleven, Mike (o líder do grupo de crianças) também descobre o amor depois de uma fase “garotas? Eca” — um pouco de “Anos Incríveis” e “Meu Primeiro Amor”, talvez?

E.T. e Eleven depois do make-over
E.T. e Eleven depois do make-over

Tem também um quê de “Goonies”, filme produzido por Spielberg sobre um grupo de garotos carismáticos que embarcam numa aventura bem Sessão da Tarde. São filmes que não poderiam ser feitos hoje, em tempos em que crianças pouco brincam na rua e são praticamente todas munidas de celulares. Nesses filmes dos anos 80, a que as crianças dos anos 90 cresceram assistindo, as crianças tinham muito menos supervisão e, com isso, mais liberdade e mais facilidade de se encontrarem em situações perigosas. Para faltar na escola, bastava usar o velho truque de colocar um termômetro no abajur e prometer à mãe que passaria o dia em casa debaixo das cobertas. Depois, era só sair para passear no bosque com os amigos — e ninguém saberia seu paradeiro.

Aos temas clássicos dos filmes infantis os irmãos Duffer acrescentaram um toque de John Hughes, o rei da Sessão da Tarde (breve currículo: “Esqueceram de Mim”, “Curtindo a Vida Adoidado”, “Beethoven”). Mais precisamente de seus filmes sobre a adolescência, como “Clube dos Cinco” e “A Garota de Rosa-Shocking”. É a trama menos interessante de “Stranger Things”, pelo menos no início, mas tinha que estar presente numa homenagem aos anos 80: o triângulo amoroso entre a garota certinha, o popular meio bad boy que se redime ao se apaixonar, e o quietão zoado pela turma popular. De “As Patricinhas de Beverly Hills” a “Clube dos Cinco” a “Atração Mortal” a “Ela É Demais”, os anos 80 e 90 foram cheios de filmes de “high school” — aqueles ambientados nos corredores das escolas americanas. Nancy, Jonathan e Steve cumprem aqui esse papel.

Cher, de "As Patricinhas de Beverly Hills" e Nancy, de "Stranger Things" nos corredores da escola
Cher, de “As Patricinhas de Beverly Hills” e Nancy, de “Stranger Things” nos corredores da escola

Mas “Stranger Things” não é uma série solar, como boa parte dessas produções. É também uma série de terror. Há um pouco de “A Hora do Pesadelo”, por exemplo: quando imersa na água, Eleven consegue acessar outra dimensão, uma espécie de mundo dos sonhos. Mas como em “A Hora do Pesadelo”, o que acontece nesse mundo pode sim ter consequências no plano real. Não é porque Freddy Krueger aparece em pesadelos que ele não seja perigoso, algo como o monstro de “Stranger Things”, coisa que Eleven sabe muito bem. Nancy, aliás, é o nome da mocinha de “Stranger Things” e de “A Hora do Pesadelo” — e as duas se propõem a entrar no mundo dos sonhos para enfrentar o vilão. Como em “Poltergeist”, há uma cena de criança atraída por uma luz perigosa. A cena em que o policial Hopper digita um relatório afirmando que Will sumiu é praticamente idêntica a uma de “Tubarão”, numa homenagem explícita dos criadores. Dá pra passar o dia todo pescando pequenas referências (no Reddit, há uma discussão só sobre isso).

Garotinhas atraídas por luz misteriosa em "Poltergeist" e "Stranger Things"
Garotinhas atraídas por luz misteriosa em “Poltergeist” e “Stranger Things”

Referências na trilha sonora

As músicas que acompanham a série ajudam um bocado a dar o peso nostálgico dos anos 80:

The Clash, New Order, Dolly Parton e Toto tocando seu grande hit do sintetizador, “Africa”. E, falando em sintetizadores, a música de abertura da série, composta pela dupla S U R V I V E, é uma mistura de referências oitentistas, seguindo o padrão do revival musical da década, que agora não é mais vista como a década maldita da música (esse movimento em forma de homenagem ficou mais claro com as trilhas sonoras de filmes como “Drive” e “A Corrente do Mal” e de jogos como Hotline Miami). Assim, a música de apoio de filmes de terror, como “Chamas da Vingança“, filme baseado em um livro de Stephen King, ou de praticamente todos os filmes de John Carpenter, foram grandes influências em “Stranger Things” e colaboram para criar o clima tenso e nostálgico ao mesmo tempo.

A fonte (e o pôster, claro)

Se há detalhes sutis que fazem a diferença na série, a fonte escolhida para o letreiro que acompanha os capítulos também é simbólica. A ITC Benguiat foi criada em 1977, tem grande influência de Art Nouveau e aparece em alguns momentos importantes da cultura dos anos 80 e 90: ela foi a escolha para a capa de diversos livros de Stephen King, aparece na arte de “Strangeways Here We Come”, dos Smiths, e também fez parte de uma das mudanças de fonte da série “Star Trek”, já nos anos 90.

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Na primeira cena de “Stranger Things”, a fonte nostálgica.

E, se nada disso te convenceu, este pôster pode resolver a questão. Não é preciso falar uma só palavra sobre ele, apenas sentir:

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‘Stranger Things’: Sessão da Tarde com Além da Imaginação

O Netflix divulgou recentemente dados de uma pesquisa sobre os hábitos de consumo de seriados e dividiu os programas em dois tipos: as séries para devorar — aquelas que as pessoas veem rápido, gastando mais de duas horas por sessão à frente da TV — e as séries para saborear — as que o público assiste com calma. Segundo esse estudo, os três gêneros mais favoráveis a maratonas televisivas são, respectivamente, suspense, terror e ficção científica. “Stranger Things”, série que estreia no Netflix na próxima sexta, dia 15, foi feita sob medida para ser consumida rapidamente: é uma mistura desses três gêneros com um tiquinho de aventura.

Nos primeiros minutos da série um garoto chamado Will chega em sua casa vazia tarde da noite e vê um vulto. Tenta ligar para alguém para pedir ajuda, mas o telefone não funciona. Ele corre desesperado enquanto o cachorro late, a porta abre sozinha e uma figura que não vemos — e, assim, é mais ameaçadora — o alcança. São cinco minutos saídos diretamente de um filme de terror. A primeira temporada da série gira em torno desse desaparecimento e das formas encontradas por cada um de lidar com isso — seus amigos, sua mãe, o irmão, o pai distante, os colegas de escola.

É um drama familiar com uma boa dose de sobrenatural, digna de um “Arquivo X”. Enquanto a mãe (Winona Ryder), desesperada, espera que Will volte, coisas estranhas começam a acontecer na casa — luzes que piscam, telefonemas misteriosos, descargas elétricas, figuras sem rosto que dão as caras. Assim como ela, não sabemos o que aconteceu com Will, só que não é nada bom — e a série é habilidosa ao manter essa tensão no ar. Há alguns outros núcleos na história, com conexões que a princípio não entendemos muito bem: os amigos do garoto encontram no meio do mato uma menina traumatizada e misteriosa, que tem pistas a respeito do paradeiro de Will; o policial que investiga o sumiço a fundo; a irmã mais velha de um dos amigos de Will que começa a andar com a galera popular da escola; os funcionários de um departamento do governo americano. Na primeira metade da temporada, de oito episódios, há tanto mistério que chega a ser difícil dar algum spoiler — eu mesma não sei direito o que está acontecendo.

 

https://www.youtube.com/watch?v=LgFOjRR9uac

Nesse sentido, “Stranger Things” não poderia ter encontrado casa melhor que o Netflix, com seu modelo de soltar todos os episódios de uma vez só. Ao fim de um capítulo — cada um tem em torno de 50 minutos — você se vê com tantas dúvidas que é natural optar por ver o próximo, para ver se as coisas ficam mais claras. Mas, pelo menos no início, não é isso que acontece e você entra e sai do episódio com as mesmas questões. O fato de que o capítulo seguinte está a um clique de distância faz com que a série fique mais preguiçosa ao avançar a história e tudo fique bastante lento — você não precisa de um grande acontecimento para garantir que o público continue assistindo, diferente de uma série que libera novos episódios semanalmente.

Ter tempo para construir os capítulos da forma que quiser, sem ter que respeitar os horários da grade de televisão e os intervalos comerciais, é uma vantagem de produzir séries para serviços de vídeo on demand. Mas não é porque você pode fazer um episódio longo que seja necessário fazê-lo — séries como “Love” e “Flaked”, do Netflix, parecem sofrer do mesmo mal, com histórias que avançam lentamente demais. “Stranger Things” vai agradar quem gosta de séries como “Orphan Black” e “Wayward Pines”, mas seria melhor se tivesse um pouco mais de ritmo e se revelasse um pouco mais a cada episódio. Às vezes é um pouco frustrante passar praticamente uma hora à frente da TV para perceber que você praticamente não saiu do lugar.

Na metade da temporada as pontas soltas são tantas que é difícil cravar se a série é boa ou ruim — se as soluções forem complicadas demais corre o risco de ficar inacessível como “Orphan Black” e se forem simples demais pode virar uma decepção anticlimática. Mas o começo é promissor, com destaque para as boas atuações do numeroso elenco infantil, cuja dinâmica remete um pouco a um filme da “Sessão da Tarde”, como “E.T.” — das bicicletas que guiam pela cidadezinha, passando pelos segredos escondidos dos adultos e pelo companheirismo na hora de colocar a amizade à frente de tudo. Com um pouco de paciência, “Stranger Things” é um bom programa para o fim de semana, para quando o tempo e a disposição em ficar deitado no sofá são grandes e a pressa em chegar direto ao ponto é pequena. É, no fim das contas, uma série perfeita para o Netflix — para o bem e para o mal.

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O tabuleiro de ‘Game of Thrones’

George R.R. Martin não é bom com prazos e provavelmente não esperava que a série “Game of Thrones” fosse, em alguns anos, superar sua saga literária “As Crônicas de Gelo e Fogo” (“Como raios você escreve tantos livros tão rápido?”, perguntou ele recentemente a Stephen King — com uma palavra menos educada que “raios”). Os showrunners da série da HBO, David Benioff e D.B. Weiss, conversaram com Martin e sabem o ponto final da história, mas os caminhos tomados para chegar até lá são diferentes, para o bem e para o mal.

(Este post contém spoilers, teorias e especulações sobre “Game of Thrones”. Leia por sua conta em risco.)

A quinta temporada, a primeira mais fora do roteiro dos livros, foi um mau sinal. Foi o ano em que Jaime Lannister partiu numa jornada para Dorne para buscar sua filha, Myrcella, que só rendeu cenas de batalhas toscas, reviravoltas sem pé nem cabeça, diálogos terríveis, personagens rasos (nomeie as três filhas de Oberyn se puder) e um final anticlimático. Foi o ano em que Daenerys continuou sem sair do lugar e enfrentou uma rebelião enfadonha e o ano que Arya gastou afastada de todos os outros personagens vendendo ostras na rua. Foi arrastado, com poucas surpresas (ninguém acreditou que Jon Snow fosse ficar morto pra sempre). Desanimador.

Por outro lado, a temporada seguinte, que terminou no último domingo, deu uma boa guinada na história. Apesar de alguns episódios um pouco parados ali pro meio, a história avançou — às vezes até um pouco rápido demais, todo o mundo viaja tão rápido que parece que Westeros tem uma frota de aviões — e todos os personagens estão posicionados para a reta final, já que há boatos fortes de que a série só terá mais duas temporadas com sete episódios. Arya saiu do exílio, como Daenerys (aleluia!), Bran está a caminho de casa, dois Stark se encontraram, a origem de Jon Snow foi revelada (ou confirmada para pessoas que leem teorias na internet), Ramsay Bolton morreu, Theon Greyjoy deu a volta por cima, Lyanna Mormont se revelou a personagem de que nós precisávamos (e merecemos), os White Walkers estão a caminho e o inverno finalmente chegou. Até a história de Dorne ganhou um propósito.

A imagem que o público irá guardar de “Game of Thrones” até o ano que vem, quando estrear a sétima temporada, é a dos últimos episódios, dirigidos por Miguel Sapochnik. E que imagem: o penúltimo tem uma das melhores cenas de batalha que vêm à memória e o último tem uma sequência de abertura para se ver de novo, com um piano marcando a preparação dos envolvidos para o julgamento de Cersei e Loras.

Quem frequenta fóruns ou sites que falam de “Game of Thrones” possivelmente já antecipava o incêndio de Cersei (a tese da Rainha Louca), a origem de Jon Snow (R+L=J) e até a vingança de Arya. O roteiro também está longe de ser à prova de buracos (como Arya sobreviveu àquelas facadas na barriga? Por que Sansa não contou que tinha reforços chegando para a guerra? Onde foi parar a feiticeira contratada por Tyrion? Nada disso foi muito bem explicado). Mas não importa muito: a história finalmente engatou a terceira marcha e entreteve. Pela posição de cada personagem ao fim da sexta temporada a perspectiva para o final é muito boa.

ONDE ESTÁ CADA PEÇA NO JOGO DOS TRONOS?

Antes de tudo, um mapa ajuda a explicar o estado atual de Game of Thrones:

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Arya: Depois de duas temporadas vendendo ostras, limpando o chão e apanhando em Braavos (em tempo de série é difícil de saber, já que não são dadas muitas dicas de passagem de tempo), Arya finalmente se juntou ao resto da história em Westeros. Em vez de ir direto para casa reencontrar a família, ela passou nas Gêmeas para riscar um nome na sua lista da morte e matou Walder Frey (e dois de seus muitos filhos). Agora ela pode tanto voltar para casa, no Norte, ou tentar tirar mais alguém da lista, como Cersei, em Porto Real.

Sansa: Reencontrou Jon Snow depois de comer o pão que o diabo amassou desde o começo da série (exemplos: noivou com um psicopata, casou à força, casou à força com um psicopata). Depois de salvar a pele de Jon na Batalha dos Bastardos com reforços que tinha escondido dele, agora divide o controle de Winterfell e do Norte — Jon deu o quarto de Ned e Catelyn pra ela, mas quem é chamado de rei é ele. Trocou um olhar misterioso com Petyr Baelish no final que pode tanto indicar que ela vai se juntar a ele pra passar a perna em Jon quanto uma preocupação.

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Bran: Virou o corvo, seja lá o que isso significa ao certo (sabemos que ele tem poderes, mas não exatamente o que vai fazer com eles). Foi deixado pelo tio Benjen perto da Muralha, com Meera Reed. Se eles conseguirem cruzá-la, estarão bem perto de encontrar com Jon e Sansa em Winterfell. Mas ainda há algumas dúvidas para a próxima temporada: Como eles farão para cruzá-la? Se eles passarem para o outro lado, vão liberar a passagem pros White Walkers? Que outros acontecimentos históricos tiveram o dedo de Bran? Qual é o papel dele na guerra que está por vir?

Jon Snow: Bran agora sabe que Jon é filho de Lyanna Stark, e não de Ned. Não fica 100% claro porque Lyanna sussurra em cena ao falar do bebê para o irmão, mas o mais provável é que seu pai seja Rhaegar Targaryen (e ele seja sobrinho de Daenerys). Quando descobrirem sua verdadeira origem ele deve ter menos direitos a Winterfell, mas ganhar força para disputar o trono dos Sete Reinos com a tia. Por enquanto ele tem que se preparar para lutar contra os Caminhantes Brancos (o inverno chegou), manter o Norte unido e dormir de olho aberto enquanto Baelish estiver por perto.

Cersei: Depois de causar o suicídio do filho, Tommen, e matar quase todos seus inimigos numa tacada só, assumiu o trono dos Sete Reinos (quem diria que seria ela, e não Daenerys, a primeira rainha?). Mas depois de ter instaurado o caos em Porto Real, matado boa parte das pessoas que poderiam lhe dar conselhos e ter criado mais inimigos, está numa situação precária. Jaime, seu maior (único?) aliado, pareceu não ter aprovado sua estratégia de colocar fogo na cidade — ele matou um rei e arruinou sua reputação para impedir que isso acontecesse antes. Uma profecia dos livros diz que ela seria morta pelo irmão mais novo. Tanto Jaime quanto Tyrion são candidatos.

Jaime: Fez uma viagem rapidíssima das Gêmeas (onde escapou de encontrar com Arya) para Porto Real e chegou a tempo de ver a irmã ser coroada, fato que pareceu não aprovar muito. Nos livros, Jaime se afasta de Cersei e parece encontrar o caminho da redenção, o que pode acontecer a partir de agora na televisão. É um dos candidatos a matar Cersei em algum ponto da história.

Tyrion: Sua temporada em Meereen felizmente chegou ao fim e ele faz parte da comitiva de Daenerys rumo a Westeros como seu principal conselheiro. Como os trajetos e o tempo não fazem muito sentido em “Game of Thrones” ele pode chegar já no próximo episódio e finalmente se vingar de Cersei e conquistar o respeito e a posição que merece.

Daenerys: Passou cinco temporadas sendo menosprezada por homens e lançando mão dos seus dragões e da sua imunidade ao fogo para destruí-los, numa história que pouco saiu do lugar. Mas agora finalmente partiu rumo a Westeros, com uma equipe e tanto: Tyrion e Varys como conselheiros, apoio dos Martell, dos Tyrell e de parte dos Greyjoy, com um exército de Dothraki e de Imaculados. E, claro, três dragões. Vai enfrentar os enfraquecidos Lannister chegando lá.

Theon e Yara: Theon recuperou sua identidade depois de uma temporada com Ramsay Bolton e não só ajudou Sansa a escapar como ainda deu apoio à irmã na disputa pelo trono das Ilhas de Ferro. Os dois agora fazem parte da equipe de Daenerys e rumam a Porto Real, onde devem participar da batalha.

Euron: Construindo mil barcos nas Ilhas de Ferro? Não sabemos ao certo.

Família Martell: Deram apoio a Daenerys. Talvez estejam em algum barco rumo a Westeros ou talvez estejam acompanhando à distância de Dorne (de preferência bem à distância).

Brienne e Pod: Foram vistos pela última vez saindo de Correrrio, onde tentaram convencer sem sucesso o Peixe Negro a ajudar Sansa na Batalha dos Bastardos. Provavelmente estão indo rumo ao Norte, encontrar Sansa. Podem cruzar com muita gente no caminho.

Melisandre: Expulsa do Norte por Jon Snow depois que Davos (finalmente, diga-se de passagem) descobriu que ela queimou Shireen. Está indo rumo ao sul, onde pode cruzar com Brienne, com Sandor Clegane…

Sandor Clegane: Se juntou à Irmandade Sem Bandeiras com rumo desconhecido. Apesar de não sabermos ao certo onde ele está e nem para onde vai, tudo indica que eles estão bem ali no miolo de Westeros, e ele pode cruzar com várias pessoas no meio do caminho (Melisandre? Brienne? Arya?).

Petyr Baelish: Está em Winterfell tramando alguma coisa e sonhando em casar com Sansa. Sem dúvidas causará problemas para muitas pessoas ainda. Jon Snow é um forte candidato a alvo.

Davos: Está em Winterfell sendo uma das melhores pessoas da série.

Tormund: Está em Winterfell sendo mais uma das melhores pessoas da série.

Lyanna Mormont: Idem. Melhor pessoa.

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Pense bem antes de recusar o chamado.

Varys: Um dos capitães do time Daenerys, num barco de Meereen rumo a Westeros. Costurou bem a parceria Martell-Tyrell-Daenerys.

Daario Naharis: Ficou em Meereen e deve sumir da série. Sua ausência não será (muito) sentida.

Sam e Gilly: Chegaram à Cidadela, depois de passarem uma temporada viajando, no trajeto geográfico que mais fez sentido durante este ano. Ele deve descobrir algo útil na luta contra os White Walkers numa das tramas mais tediosas rolando agora.

Jorah: Deixou Meereen com a ingrata tarefa de achar uma cura para sua doença raríssima que o transforma em pedra. É um coringa: pode estar em qualquer canto do mundo e cruzar com qualquer personagem a qualquer momento. Com certeza sonha com Daenerys todas as noites.

Gendry: Provavelmente remando, ainda.

Pelo arranjo das peças, a próxima temporada promete vários encontros: reunião Stark em Winterfell, vingança de Arya no centro do continente (Melisandre, Sandor Clegane e outros de sua lista estão por lá) e uma grande batalha em Porto Real que deve envolver metade do elenco. Até Jorah e Gendry podem encontrar alguém no meio do caminho. Com poucos episódios restantes, não há muito tempo a perder e a história tem que chegar ao clímax logo. E os personagens finalmente estão posicionados para que isso aconteça.

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Pasquim na TV:
sem filtro e sem roteiro

Entrevistas em que celebridades fogem do roteiro pré-aprovado por seus assessores de imprensa são cada vez mais raras. Quando acontecem, costumam viralizar e resultar em um monte de pedidos de desculpas. Para ficar num caso da semana passada, com um ator pouco conhecido: Noah Galvin, da série “The Real O’Neals”, deu uma entrevista ao site Vulture, em que contou de suas dificuldades em conseguir papéis por ser gay, fez críticas a como personagens gays são representados — citando o personagem de Eric Stonestreet em “Modern Family”, “uma caricatura de um estereótipo” — e mencionou um boato tão grave envolvendo o diretor Bryan Singer que foi até excluído do texto do site depois. Batata: em poucas horas as declarações já haviam se espalhado e ele fez uma longa retratação nas redes sociais, pedindo desculpas a quem tinha e não tinha ofendido.

Lembrar de algumas das conversas de atores, cantores e políticos com a equipe do Pasquim, jornal que circulou entre 1969 e 1991, encenadas por atores no programa “As Grandes Entrevistas do Pasquim”, que estreou na segunda (13), às 20h, no Canal Brasil, é especialmente impactante nesse contexto. Difícil ver alguém falar com tanta sinceridade. Leila Diniz, por exemplo, declarou (em meio a muitos palavrões e revelações sobre seus relacionamentos com outras celebridades) que não gostava de teatro — Caio Castro fez o mesmo anos depois e, sob uma avalanche de críticas de outros atores, recuou um pouco na afirmação (“não é que eu não goste, só não gosto muito”). Já Agnaldo Timóteo falou mal de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e de Tom Jobim (exemplo: “Caetano é uma merda!”).

Dirigido pelo documentarista André Weller, o programa do Canal Brasil apresenta a cada episódio uma entrevista publicada no Pasquim encenada por um grupo de atores e gravada em uma só tomada, incluindo os trechos em que o elenco sai do roteiro para fazer alguma interjeição pessoal. As cenas de conversa, feitas pelo jornal regadas a álcool e cigarro, são intercaladas por depoimentos de pessoas que participaram da história do Pasquim, num misto de documentário e ficção.

André Weller conta que sempre foi fã do jornal, que o pai comprava e ele folheava por causa dos desenhos. “Nasci em 1971, peguei criança o auge do jornal”, lembra. “A parte gráfica era muito forte, me interessava bastante. Depois descobri as entrevistas do Pasquim, foi uma coisa que li e reli muito na minha vida.” Anos atrás, relia a polêmica entrevista de Agnaldo Timóteo quando percebeu que existia ali uma dramaticidade grande. Quando a primeira edição saiu, o cartunista Jaguar foi o responsável por transcrevê-la e editá-la. Sem ter feito aquilo antes, escreveu tudo exatamente como ouvia, sem editar ou tirar marcas de coloquialidade. Não havia tempo para corrigir o erro antes de mandar o jornal para a gráfica e foi daquele jeito mesmo. Um sucesso.

As entrevistas, que tinham até rubricas (estilo “Agnaldo fala irritado”), viraram marca registrada do Pasquim e tinham toda cara de teatro mesmo. “Cada personagem tinha uma certa função dentro do texto. O Sérgio Cabral era mais apaziguador, o Tarso de Castro é mais ácido, o Millôr com aquelas tiradas dele, o Ziraldo falando muito”, diz Weller. “Eles deixavam muito o entrevistado à vontade. Eles embebedavam o entrevistado, ele falava coisas que nunca tinha falado. Deu um estalo e eu pensei que dava pra transformar num texto dramático e colocar atores pra ler esses textos.”

Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação
Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação

Das 1.072 entrevistas publicadas pelo Pasquim, a equipe de André escolheu 13 para a primeira temporada, buscando diversidade de personagens — musas, como Leila Diniz, Dina Sfat e Elke Maravilha, políticos, como Lula e Jânio Quadros, músicos, como Chico Buarque, Agnaldo Timóteo e Cazuza. Para interpretar cada um desses entrevistados foi escolhido um ator por afinidade. Leila e Dina, por exemplo, são vividas por suas filhas, Janaína Diniz e Ana Kutner. Chico Buarque, que canta na entrevista, é interpretado pelo cantor Marcos Sacramento. Já Elke Maravilha é papel de Michel Melamed, que a escolheu. “A entrevista mais forte de todas é do Gabeira no exílio, ele fala de tortura, do sequestro do embaixador americano, e essa intensidade coube muito bem no Matheus Nachtergaele”, exemplifica.

Não houve ensaio com os atores, que gravaram tudo em uma só tacada. “Veio meu lado documentarista, não encarei aquilo como ficção. Não gravei como ficção. Era uma mesa redonda, dois carrinhos circulares com câmera e a partir do momento que eu falava ação eles faziam a entrevista inteira”, conta Weller. “Documentei essa leitura. Você percebe que tem um momento em que a Janaína está falando o texto da mãe, como Leila Diniz, falando que o pai não falava palavrão. Aí ela fala: ‘Posso fazer um parênteses? Meu avô passou a falar muito palavrão’. Aquilo ficou. Falo muito que o cinema é a arte do diretor e o teatro, do ator. No programa os atores ganharam a batalha. Eles comandaram ali, vestiram a camisa do Pasquim e levaram a entrevista.”

Ver as conversas encenadas como aconteceram (Janaína Diniz, por exemplo, fica o tempo todo com uma toalha enrolada na cabeça, como a mãe) causa uma impressão diferente do que lê-las. Para Weller, a entrevista mais impactante no palco foi a de Dina Sfat. “Ela tinha acabado de se separar do Paulo José e fala da separação. Chamei a Ana Kutner, filha dela. A Ana reencarnou a mãe. A gente ficava muito surpreso. Ela passava a não ler mais a entrevista, como se soubesse aquilo, as palavras saíam. Tem muita emoção”, diz. “Essa entrevista foi a única póstuma do Pasquim, ela morreu logo depois. Demorou um pouquinho pra publicar e ela morreu.”

Depoimentos dos jornalistas envolvidos nas entrevistas são entremeados com as cenas de conversa, para ajudar o espectador o que estava acontecendo naquela época, no que a equipe do jornal estava pensando. “No do Lula, eu queria saber o que era ter um operário do ABC lá em Ipanema. O Jaguar fala no programa que nunca gostou do Lula, desde que ele entrou na sala. Eu queria misturar essa parte documental com a ficção”, diz o diretor, que foi auxiliado nisso por Ricky Goodwin, que editou as entrevistas do Pasquim por 14 anos e foi roteirista da série.

A princípio o programa iria ao ar depois da Copa do Mundo, em 2014, mas atrasou dois anos. Weller diz, porém, que a demora foi oportuna. “Porque a gente está falando do maior jornal subversivo que a gente teve, que se posicionava contra o governo que estava instaurado. A gente vai ver essas entrevistas num tempo em que as pessoas estão se posicionando de alguma forma, seja de que lado for”, afirma. “Acho que esse atraso foi bom, na verdade. Ele vai ser lançado num momento político efervescente, como era. Costumo falar que o Pasquim não era um jornal, era um espírito.”

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Fogo cruzado no combate à cocaína na Colômbia

Entre o governo colombiano e os traficantes de cocaína há uma importante parcela da população do país que fica no meio do fogo cruzado. Essas pessoas cujas histórias são menos contadas — não estão em séries como “Narcos” ou outras produções do gênero, por exemplo –, são agora centro de um documentário da HBO, “Guerras Alheias”, que estreia na segunda (13), às 22h. O filme analisa os resultados de uma parceria entre Estados Unidos e Colômbia — o Plano Colômbia — para combater o tráfico de cocaína, que envolveu a pulverização de glifosato, um herbicida, nas plantações de coca colombianas com aviões. A teoria: o herbicida acabaria com os pés de coca, diminuindo a produção de cocaína, a oferta da droga e o tráfico. Já o uso de aviões tornaria o processo todo mais seguro — tentar matar um pé de coca manualmente poderia resultar em violência e morte de humanos. Todo o mundo sairia ganhando, certo?

Na prática, o que acontece é bem diferente. Primeiro, o glifosato foi apontado pela Organização Mundial de Saúde no ano passado como um agente potencialmente cancerígeno — a Colômbia, aliás, foi durante anos o único país que disseminava a substância pelo ar. Muitos camponeses atingidos pelo herbicida passaram a sofrer com problemas de saúde: machucados na pele, nos olhos, abortos, defeitos congênitos em crianças. Nenhuma dessas pessoas foi indenizada e o governo colombiano contesta que essas doenças sejam causadas pelo glifosato — embora estudos de pesquisadores franceses mostrem que a substância destrói as células humanas.

Tanto autoridades colombianas quanto americanas, envolvidas na pulverização, afirmam que têm um estudo que mostra que nada disso é verdade. Importante ressaltar: um estudo financiado pela Monsanto, líder mundial na produção do herbicida glifosato. Apesar disso, a Colômbia indenizou o Equador, que reclamou que o glifosato estava chegando lá durante as pulverizações. É um reconhecimento de que o glifosato é ruim — para os equatorianos, não os colombianos.

Há também outros impactos, já que a pulverização de herbicida não atinge só as plantações de coca, mas tudo o que os camponeses plantam. Sem conseguir produzir, muitos ficam em situações de muita pobreza e devem migrar para cidades, onde encontram um cenário igualmente precário — a Colômbia é um dos países do mundo com maior número de pessoas deslocadas de suas casas, à frente de países em guerra. É não só uma questão de saúde como uma questão social. Uma massa de camponeses e de populações indígenas é atingida por uma guerra alheia. E segundo dados do documentário pouca coisa mudou no tráfico de drogas desde o início do Plano Colômbia.

Segundo Paul Drago, produtor da HBO, uma das grandes dificuldades na produção do documentário foi não ficar enviesado e dar para todos os lados a oportunidade de falar, permitindo que todos dessem sua opinião, contra ou a favor do uso dos herbicidas. Foram entrevistadas mais de 30 pessoas para o filme, entre políticos, camponeses, sociólogos, historiadores, entre outros. As afirmações das entrevistas, dos dois lados da questão, são contestadas ou apoiadas por pesquisas e estatísticas, exibidos em forma de infográfico ao longo da produção. “Um dos grandes desafios virou uma das grandes qualidades do documentário, que foi separar aquilo que pudemos verificar do que não pudemos”, diz Drago.

Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo
Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo

Quando o documentário estava em fase de edição, prestes a ser concluído, a OMS declarou que o glifosato é potencialmente cancerígeno e a pulverização aérea do herbicida foi proibida na Colômbia. O próprio presidente do país, Juan Manuel Santos, declara no filme que o combate às drogas deve ser pensado como uma questão de saúde pública e social, e não como uma guerra, que tem afetado a vida de tanta gente. Esses desdobramentos tiveram tempo de serem incluídos às pressas no filme. “O projeto meio que se dividiu em duas partes. Quando começamos, dois anos e meio atrás, filmamos as entrevistas, juntamos os materiais. E quando estávamos acabando, editando, várias coisas importantes aconteceram. Uma delas foi a declaração da OMS de que é o glifosato é perigoso e o fato de que o governo colombiano suspendeu a pulverização área”, diz o produtor.

No entanto, a pulverização terrestre ainda é permitida, então a história ainda continua. De acordo com reportagem do El País, o governador de uma das regiões afetadas pelo glifosato é contra, dizendo que o herbicida não é efetivo para combater a cocaína, além de gerar efeitos colaterais. O Ministério de Saúde do país, por outro lado, afirma que as fumigações seguirão protocolos e não prejudicarão ninguém.

Os resultados da pulverização aérea também são debatidos. Segundo dados das Nações Unidas, o cultivo de coca cresceu entre 15% e 20% desde que aviões pararam de jogar herbicida nas plantações. O Ministro da Defesa concluiu, com isso, que a pulverização aérea é eficaz. Estudiosos, por outro lado, afirmaram que o aumento das plantações se deu porque o cultivo de outras plantações não deu os resultados esperados e, com o aumento do preço da coca, os camponeses não viram outra opção a não ser plantar mais coca.

É uma discussão ainda em andamento, mas “Guerras Alheias” é uma boa lembrança do impacto que as políticas antidrogas têm nas vidas de milhares de pessoas que não estão envolvidas no tráfico, e sim presas no meio de uma guerra que não é sua. O filme dá voz a essas pessoas que costumam estar de fora das conversas, inclusive na própria Colômbia. Lançado agora, o filme faz parte de uma conversa que continuará atual por tempo indefinido. “A gente poderia fazer uma segunda versão do filme em julho, depois outra em agosto”, diz Drago. E é uma história em andamento, para se seguir de perto.

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Alice Braga, nova rainha do tráfico na TV

Na televisão, hoje, a realeza do tráfico de drogas é brasileira. O rei é Wagner Moura, o Pablo Escobar de “Narcos”, série do Netflix. A rainha agora é Alice Braga, que protagoniza “A Rainha do Sul”, que estreia neste mês nos Estados Unidos e em 7 de julho aqui, no canal Space. “Eu falei pro Wagner: ‘É nóis na cocaína!’. Ele é um irmão pra mim, foi muito engraçado ele ser o rei e eu, a rainha do tráfico”, diz Alice para um grupo de jornalistas em São Paulo. Na série americana ela é Teresa, que se envolve com as drogas após a morte do namorado traficante. A trama é baseada em livro de Arturo Pérez-Reverte, que também deu origem à novela mexicana “La Reina del Sur”, com Kate del Castillo — aquela que colocou Sean Penn em contato com El Chapo.

A história de Alice com a série começou oito anos atrás, quando ganhou o livro de presente de uma amiga. “[Ela] me deu e disse: ‘Você tem que ler esse livro, a história é linda e é uma super personagem. Você tem que ler, independente de querer fazer ou não. Mas é uma personagem que você pode fazer, ela é latina e tal’. Aí eu li e me apaixonei pela Teresa”, conta a atriz. Na época estava previsto que o texto virasse filme, possivelmente protagonizado por Eva Mendes. O projeto caiu por terra, a história virou novela e o livro continuou na estante de Alice.

Anos depois, quando ela gravava o filme ‘O Duelo’ — ainda inédito — nos Estados Unidos, recebeu um e-mail dizendo que dois roteiristas queriam conversar com ela sobre o projeto “Queen of the South”. “Eles me mandaram a sinopse e eu pensei: ‘Não é possível, depois de oito anos voltou esse projeto pra mim’. Foi muito especial.” Eles se encontraram, conversaram e logo Alice topou. Ajudou que sua estreia em séries fosse em uma produção com 13 episódios por temporada. “Eu não fecharia se tivesse 22. Porque com 22 você fica o ano todo fazendo ela. E eu amo muito fazer cinema”, diz. “Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série. É engraçado, pensei muito nisso quando fui assinar o contrato de cinco anos. Meu Deus, cinco anos. Nunca assinei uma coisa que você fica conectada.”

 

A série tem algumas diferenças em relação ao livro que a originou e à novela que a antecedeu. No original, Teresa foge do México após a morte do namorado e vai para a Espanha e o Marrocos. Na série, ela vai para o Texas, local escolhido parte porque o Estado deu incentivos à produção e parte porque fica próximo da fronteira entre México e Estados Unidos. Lá, Teresa, garota que não tinha muita família ou amigos e veio das ruas, se transforma na Rainha do Sul, chefe do tráfico. Há também novos personagens e tramas. “Eles ainda estão escrevendo e desenvolvendo essa jornada. O que eu achei interessante, também pra se diferenciar do que a gente já viu na série em espanhol.”

[citacao credito=”” ]Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série[/citacao]

Sua Teresa, porém, é totalmente baseada na versão do livro, que ela chama de sua Bíblia. “Eu falei [para os roteiristas]: ‘Vamos nessa, mas vou honrar ela. Tudo que vocês jogarem pra mim eu vou querer sentar com vocês e falar que isso ela não faria e isso ela faria’. Foi muito legal, porque eles foram muito generosos comigo nesse sentido, de entender, de querer saber”, conta. A Teresa do livro, por exemplo, é uma mulher que não se vitimiza. “Teve uma fala que eles escreveram em que ela estava se vitimizando. Liguei pra eles e falei: ‘Não posso falar essa frase, porque isso compromete pra onde a gente está indo. Como é uma série em que a gente sabe onde ela vai chegar, que ela é a Rainha do Sul, a gente tem que tomar muito cuidado.”

Alice fala com bastante empolgação da personagem, que descreve como uma traficante que não é má nem usa violência se puder evitar. “Ela é quase uma diretora de empresa. É uma mulher de negócios, que foi construindo o império dela pelas condições que a vida foi levando, mas que é uma mulher que trabalha nesse business de cocaína, que é um mundo extremamente masculino”, diz. Viver um tipo de personagem geralmente interpretado por homens, aliás, foi um dos grandes atrativos, segundo ela. “Normalmente quando a gente é protagonista de alguma coisa relacionada ao universo masculino ou a gente está procurando marido ou separando do marido. Ou é sobre o universo feminino e por isso é interpretado por uma mulher”, afirma. “Ela tem a força de uma mulher e esse é o diferencial, mas não é interpretada por uma mulher porque é feminino. Nesse tempo em que a gente está tendo essa discussão foi muito especial.”

Gravar “A Rainha do Sul” foi uma experiência bem física. “Quando vi os roteiros pensei: ‘Vocês realmente me acharam a heroína da ação, né?”, ri Alice. “Teve uma vez que o câmera e o foquista estavam num carrinho, eles vinham correndo com o carrinho e eu correndo. E eu comecei a bater o carrinho. Eles diziam: ‘Você tem que ir mais devagar!’. E eu: ‘Gente, não dá pra eu ir mais devagar, eu tô correndo pela minha vida!’. Era eu apostando corrida com o carrinho. Foi muito divertido, esse tipo de coisa eu adoro fazer.”

Alice tinha três dublês disponíveis, mas tentou fazer tudo o que dava, incluindo cenas de explosão e uma em que a personagem dirigia recebendo tiros de um lado, vidros do outro, no escuro (“videogame total!”). “Você ver a cara do personagem até o limite faz diferença. Você ficar com ela até aquele segundo. Talvez seja eu que ache isso, mas quando vejo um filme eu gosto disso”, diz. Mexer com armas não foi novidade. “Sou muito tipo medrosa, mas por uma feliz coincidência fiz muita coisa de ação.” Aprendeu, por outro lado, a contar dinheiro muito rápido. “Gente, ela troca dinheiro todo dia.” Pequenas coisas.

Depois da polêmica do sotaque de Wagner Moura, seria Alice a próxima vítima? Ela diz que quis muito tentar um sotaque mexicano, mas o canal optou por deixar seu acento original. “Foi engraçado, eu passei anos limpando o inglês e eles falam: ‘Esquece a limpeza, usa seu inglês!’. Foi um desafio legal.” Deixar a língua mais neutra é parte de uma estratégia para atrair também as segundas e terceiras gerações de latinos nos Estados Unidos, comunidade alvo de investimento do canal. “A comunidade latina lá é gigante, cada vez maior, cada vez crescendo. Existe um desejo [de trazer latinos para a TV], assim como de um protagonismo feminino, como eu disse, algo que eu quero trazer cada vez mais pra mesa”, diz. “É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor, em busca de realizar um sonho, de ligar a TV e estar lá.”

[citacao credito=”” ]É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor[/citacao]

Na versão brasileira, Teresa será dublada pela própria Alice. “É muito legal as pessoas do meu próprio país me verem falando a minha língua. Teve uma vez, num filme que eu não conseguiu fazer [a dublagem], que a minha mãe não conseguiu ver, mudou de canal!”, conta. “E é um desafio, você revisitar uma coisa que você já fez, é um personagem que está pulsando, vivo dentro de você, mas trazendo uma leitura dele. A música é diferente, a maneira que você imposta sua voz é diferente. É uma releitura daquilo”, continua. “Não tinha como não ser minha voz. Até ia ficar com ciúmes se alguém mais fizesse, ela é minha!”

Depois de passar tanto tempo nos Estados Unidos, Alice se confunde às vezes no português e usa termos em inglês. “Quando eu conversei com os roteiristas a primeira coisa que eu perguntei foi: isso não é uma ‘glamouralização’ da droga? Pelo amor de Deus. O que está acontecendo no mundo, principalmente no México, é muito sério. Muito sério. Então se a gente faz uma glamouriza… Gla-mou-ra-li-za-ção? Desculpa, gente. Glamourização. Glamourization! Mais fácil”, diz, rindo. Glamourizar a droga iria contra o que ela acredita, diz.

“O que eu acho que é o diferencial de ‘A Rainha do Sul’ é que a gente segue ela [a personagem]. A gente não fala ‘ah, é legal a cocaína’, a cocaína é um coadjuvante. A gente está vendo essa mulher sobrevivendo nesse mundo movido por violência, um mundo extremamente masculino. É uma jornada de busca pela sobrevivência, pragmatismo, foco, de buscar segurança”, opina. É que nem “Breaking Bad”. “Por que a gente pirou? Por causa da jornada dele como personagem.”

Ela conta que no último dia de filmagem, levantou as mãos enquanto chorava, momento registrado em foto. “É diferente de um filme, quando você lê um roteiro, discute com diretor e roteirista, faz começo, meio e fim, entregou, próximo projeto. Eles continuam montando, mas em três meses você fez sua jornada. Pela primeira vez estava em contato com uma coisa de ela estar pulsante, os roteiros estavam chegando e a gente mudando ela, vendo pra onde ela vai”, diz. “Você vai quase criando e vivendo com o coração dela. Você vive das cinco da manhã quando senta na cadeira de maquiagem até as oito da noite quando volta pra casa. Foi muito legal. Agora ela é um corpo vivo. É total cenas do próximo capítulo, eu não sei o que vai acontecer na segunda temporada.”

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‘Broad City’: demorou, mas chegou no Brasil

Enquanto séries antigas como “Friends” e “Two and a Half Men” ainda passam direto na televisão, algumas boas produções demoram um pouco para chegar ao Brasil. É o caso de “Broad City”, que depois de dois anos finalmente estreia por aqui, nesta sexta (3) às 21h30 no canal pago Comedy Central. A comédia protagonizada por Abbi Jacobson e Ilana Glazer é praticamente uma unanimidade entre a crítica: suas três temporadas têm, respectivamente, os impressionantes índices de 96%, 100% e 100% no site Rotten Tomatoes, que dá uma nota com base com textos de diversos veículos.

Em tempos não muito bons para comédias com episódios de meia hora de duração — só dar uma olhada nas categorias de humor e drama nas principais premiações de TV para ter uma ideia –, “Broad City” é uma lufada de ar fresco. Criada pelas duas protagonistas, a série estreou na internet em 2009, onde foi exibida até 2011. Na televisão, tem como uma das produtoras-executivas Amy Poehler, um dos principais nomes da comédia hoje e que já havia participado da versão para internet. O maior elogio que se pode fazer à série é que ela não se parece com mais nada que esteja no ar hoje. A princípio, pode parecer que tem um quê de “Girls”, talvez, com suas personagens de vinte e poucos/tantos anos que moram em Nova York (mas não em Manhattan) e que ainda não têm nada resolvido na vida.

Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de 'Broad City'. Crédito: Divulgação
Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de ‘Broad City’. Crédito: Divulgação

Abbi, na versão televisiva (as protagonistas levam os nomes das atrizes), é funcionária de uma academia, responsável pela limpeza e manutenção do local, com o sonho de virar treinadora. Mora com uma amiga — que nunca aparece, mas que tem um namorado que vive lá também às custas delas — e tem uma paixão platônica por um vizinho, na frente do qual sempre passa vergonha. Já Ilana trabalha num escritório, onde aparece vestindo roupas inapropriadas — como uma miniblusa sobre sutiã aparecendo — e passa o dia ou dormindo de olhos abertos na própria mesa ou de olhos fechados sentada na privada. Como a Hannah de Lena Dunham, nenhuma das duas é a funcionária do mês. Falando nesses termos, “Broad City” parece mais uma das séries cuja moral é “millenials são narcisistas com vidas fora dos eixos”. Longe disso.

Não só a série é bem mais engraçada e solar que “Girls”, como suas personagens são verdadeiramente amigas, estranhamente um fato raro na TV (Mindy Lahiri, de “The Mindy Project”, deixou de se relacionar com mulheres na primeira temporada, e as mulheres de “Girls” hoje raramente aparecem juntas em cena, pra ficar em dois exemplos). No terceiro episódio da primeira temporada, uma montagem inicial dá bem o tom da série. Em cada metade da tela, as duas vivem seus dias separadas — Abbi limpando privadas, Ilana dormindo sobre a privada –, até que vão jantar, no que parece um encontro romântico. Ainda com a tela dividida em dois, vemos as duas comendo juntas, uma roubando algo do prato da outra, um retrato da intimidade.

Ilana e Abbi também são, ao mesmo tempo, cheias de defeitos — como gente normal, ressalte-se — e pessoas com as quais você gostaria de conviver. Não representam nem a fofura de Zooey Deschanel (“New Girl”) nem a acidez de Aya Cash (“You’re the Worst”). As duas são quem são, sem se preocupar em entrar em moldes, em agradar aos outros e sem pedir desculpas por isso. Fumam (muita) maconha, transam com quem querem e como querem, dançam peladas pela sala quando estão sozinhas e dão a melhor resposta do mundo para homens que pedem para que elas sorriam — elas sorriem se tiverem vontade.

Entre as séries a que assistimos aspirando àquela vida boa que os personagens levam — ganhando bem, trabalhando pouco, convivendo diariamente com os amigos, conhecendo só gente linda e maravilhosa (“Sex and the City”, “Friends”, “How I Met Your Mother”…) — e aquelas que vemos para pensar que felizmente nossa vida não é tão ruim (“Girls”, “Love”, “Flaked”…), “Broad City” está bem no meio. E, mais importante: ao mesmo tempo em que é original, jamais deixa de ser engraçada, vendo sempre a bizarrice nas situações mais corriqueiras. Demorou, mas chegou no Brasil.

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‘Superstore’ vê EUA pelos olhos da classe trabalhadora

Sem um grande papel na televisão desde o fim de “Ugly Betty”, em 2010, America Ferrera resolveu voltar às séries por um motivo que parece um pouco esquisito. O papel que lhe ofereceram era de uma pessoa normal, que vivia no mundo real (não seriam quase todos?). Explica-se: numa época em que a oferta de televisão está maior do que nunca — mais de 400 seriados foram exibidos no ano passado –, não há tantas opções que retratem pessoas comuns, com trabalhos e vidas comuns. E é bem isso que é Amy, sua personagem em “Superstore”, que estreia na segunda (6) na Warner.

A premissa da série é tão simples que, falando assim, não parece que seja lá grandes coisas. Todos os episódios se passam na megaloja Cloud 9, uma espécie de Wal-Mart, com todos os tipos de produtos e funcionários vestindo coletes azuis com seus nomes nos crachás circulando pelos corredores. Não há propriamente uma trama, cada episódio conta uma história fechada em si, mostrando algumas horas na vida dos empregados, que interagem com os vários tipos de visitantes que passam por lá diariamente. Foi essa “ideia de ver o clima social e político e o que significa ser americano hoje, pelos olhos da classe trabalhadora” que inspirou America, vencedora de um Globo de Ouro, a voltar à televisão em um papel fixo. “Cresci com séries como ‘Cheers’, ‘Roseanne’ e ‘All in the Family’. Ver pessoas comuns era muito normal na televisão e era algo com que eu me identificava muito.” Panorama diferente do de hoje, com tantas séries cheias de glamour e efeitos especiais e menos espaço para comédias mais modestas. “Achei que era uma visão muito excitante.”

Amy é a protagonista da história, ao lado de Jonah (Ben Feldman, de “Mad Men” — descrito com precisão na série como uma mistura de urso panda com princesa da Disney). Ela é a gerente que trabalha há dez anos no mesmo lugar, insatisfeita com a vida que leva, e ele é o funcionário novo e de uma família com mais dinheiro, que faz questão de ressaltar no primeiro dia que não é do tipo de pessoa que costuma trabalhar em uma loja daquelas. “Amy não tem a ingenuidade e o idealismo do Jonah. Ela está meio que se virando, sobrevivendo. Vi muito valor nessa perspectiva. É a forma como a maior parte das pessoas, não só nos Estados Unidos, mas no mundo, vive. Não trabalham por paixão e realização, mas para sobreviver. Mas pode haver inteligência e humor na vida dessas pessoas.”

“Vai ser divertido ver o show progredindo e ver o relacionamento de Amy e Jonah, pessoas que vêm de perspectivas de vida tão diferentes. Não vai demorar muito pra eles começarem a impactar na vida um do outro. Eles não têm como evitar de se sentirem desafiados pelas crenças do outro, o que influencia no seu modo de ver o mundo”, diz ela, por telefone a um grupo de jornalistas da América Latina. America nem precisava dar essa dica. Conhecendo os mecanismos de séries de comédia, fica claro pelas personalidades contrastantes que em algum momento os dois vão se apaixonar (será que eles vão ficar juntos? Será que não? Aquela coisa de sempre). Mas, pelo menos no início, o romance tem um papel menor.

[citacao credito=”” ]Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão[/citacao]

“Superstore” é uma série mais política do que parece pela sinopse. A começar pelo elenco, com latinos, negros, asiáticos, mulheres, personagens deficientes. “Fiquei muito impressionada com a forma como os produtores e criadores escolheram o elenco. Quando chegaram a mim já tinham escolhido vários atores, e quando li o roteiro fiquei surpresa por que nenhum personagem foi escrito com uma etnia em mente. Eram só pessoas na página. E mesmo assim eles estavam contratando pessoas que pareciam com todos os tipos de pessoas”, conta a atriz. “Vieram atrás de mim, uma latina, para fazer a protagonista, que não foi escrita como latina. Foi muito interessante. Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão.”

Com esse elenco, a série pôde abordar questões pertinentes como assédio sexual e racismo — tema do terceiro episódio. Nele, o chefe pede às funcionárias latinas que usem sombrero e carreguem no sotaque mexicano para vender salsa, mas Amy recusa. Quando um colega asiático topa fazer o papel, ela aponta o racismo de sua caracterização e faz uma imitação estereotipada de um asiático para provar sua afirmação, o que ele considera racista. É uma discussão bem feita, com graça e sem grosseria. Algo como faz “Black-ish”, outra série que gira em torno de uma família padrão — negra, não branca –, e uma das boas novidades dos últimos anos.

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America Ferrera e Ben Feldman em 'Superstore'. Crédito: Trae Patton/NBC
America Ferrera e Ben Feldman em ‘Superstore’. Crédito: Trae Patton/NBC

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“Fiquei positivamente surpresa porque a escolha do elenco não foi pra preencher caixinhas num formulário ou ter uma diversidade simbólica. Foi genuinamente uma escolha baseada em quem eram essas pessoas e quem era certo para o papel. Como fazer esse elenco parecer real no mundo em que vivemos?”, diz America. “É uma abordagem nova à diversidade, que não é criada por motivos políticos. É para entender que diversidade é autenticidade, porque nosso mundo é diverso. No nosso caso, é uma oportunidade de contar histórias melhores. Podemos ser mais engraçados, abordar questões mais ousadas, falar de raça, gênero, preconceito, por que vem da nossa experiência.”

America é bastante vocal a respeito da necessidade de mais diversidade, em todos os pontos da indústria do entretenimento. “O problema não está em uma parte de indústria. Está em todos os lugares. Na frente das câmeras, atrás, no financiamento, na promoção, nas premiações. Em todos os pontos da linha de produção falta diversidade de experiências, gênero e etnias. É uma conversa que precisamos ter em voz bem alta”, opina. Para isso, diz que todas as minorias devem se unir — atores asiáticos, por exemplo, se manifestaram depois de terem sido motivo de piada justamente no Oscar que os negros criticavam por ser branco demais.

“Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido”, continua. “Televisão é cultura. É o que dizemos que somos, é o que somos. Fico feliz por estarmos falando disso. Talvez estejamos chegando num ponto em que a conversa não será superficial e que ações de verdade sejam tomadas. Que levemos a indústria para o mundo real, para o século 21.”

[citacao credito=”” ]Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido[/citacao]

A atriz está diz estar contente com o projeto e não se preocupar com audiência nem com repetir o sucesso de “Ugly Betty”, já que isso está fora do seu alcance. “Se eu desvendasse essa equação eu seria muito bem-sucedida”, ri. “Tento não me preocupar com o que não posso controlar. Se eu quero que encontremos um público? Sim. Mas não tenho ideia. ‘Superstore’ já está achando um público e é muito legal ver as pessoas encontrarem alegria e significado nisso. Vai ser um público diferente de ‘Ugly Betty’. É um território novo, não dá pra comparar.”

Por enquanto, America tem razões para ser otimista. A série foi a estreia com maior audiência no canal NBC nos últimos anos e vai particularmente bem entre o público preferido dos anunciantes: pessoas com idade entre 18 e 49 anos em lares com renda superior a 100 mil dólares anuais. Tanto que, em fevereiro, a produção criada por Justin Spitzer, de “The Office”, foi renovada para uma segunda temporada. “Estou vivendo um período incrível. Rimos o dia todo. Trabalhar com esses roteiristas e atores me faz sentir que estou aprendendo. Me sinto muito apoiada nesse desafio.”

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‘True Detective’ encontra ‘Making a Murderer’

Dois anos atrás, a primeira temporada da série “True Detective”, da HBO, figurou em quase todas as listas de melhores programas do ano de críticos de televisão. No ano seguinte, foi a vez de “Making a Murderer”, do Netflix, mostrar que histórias de crime estavam mesmo em alta e provocar discussões intermináveis nas redes sociais. “Killing Fields”, que estreou no Discovery nos Estados Unidos no começo do ano e chegou na segunda (2) ao Brasil, é uma mistura desses dois programas. Como “Making a Murderer”, trata-se da investigação de um crime real. Como “True Detective”, acompanha dois detetives parceiros, com personalidades diferentes, que tentam resolver um caso de 1997.

Diferente de outras produções centradas em crimes reais, como o próprio “Making a Murderer” ou a primeira temporada do podcast Serial, que recuperam casos já encerrados, “Killing Fields” se passa em tempo real, mostrando as investigações à medida em que elas acontecem. Tipo um “Big Brother” policial, em que o espectador não sabe nem se haverá um desfecho no fim das contas — as filmagens, que começaram em agosto do ano passado, continuaram depois da estreia. A temporada se centra no caso da estudante Eugenie Boisfontaine, cujo corpo foi encontrado em decomposição em Iberville Parish, cidade com menos de 35 mil habitantes na Louisiana, nos Estados Unidos. Na época, o detetive Rodie Sanchez não conseguiu resolver o caso. Quase 20 anos depois, ele deixa sua aposentadoria para retomar a investigação, dessa vez acompanhado pelo jovem detetive Aubrey St. Angelo — resultando num conflito de personalidades, como bom programa policial, e de gerações.

O programa poderia muito bem ser uma ficção. Primeiro, pelos personagens. A premissa “detetive aposentado retoma caso antigo que nunca deixou de assombrá-lo ao lado de colega jovem e de personalidade agressiva”, por exemplo, tem toda cara de uma série qualquer. Depois, pelo cenário. A paisagem do sul da Louisiana — cenário da primeira temporada de “True Detective” — também contribui para a atmosfera de mistério. Pela geografia do local, na zona rural do Estado, é possível esconder corpos com facilidade. E pelo clima, esses corpos entram em decomposição com rapidez. Some isso à grande presença de vermes, urubus e jacarés que comem os cadáveres e se chega ao que se chama de “killings fields”, campos de assassinato, ideais para esconder pessoas mortas.

Mas “Killing Fields”, o programa, não é serie, e sim reality show — com pessoas pouco acostumadas com televisão e bem desinteressadas em virar celebridade (um tipo raríssimo de reality show, aliás). Como no caso de “Making a Murderer”, que transformou em celebridades momentâneas os advogados Dean Strang e Jerry Buting, que viraram símbolo do vestuário “normcore” anos 2000 e hoje fazem turnê nos Estados Unidos, “Killing Fields” é protagonizado por pessoas normais, do tipo que, ao comentar o resultado final do programa, dizem que a pior parte foi ouvir sua voz gravada (quem nunca). Os detetives responsáveis pelo caso sequer queriam aparecer na televisão.

“Eu não tinha ideia de que iria investigar esse crime. Quando me chamaram para dizer que iriam reabrir o caso eu soube que teria filmagem envolvida. Não queria fazer parte disso, não acho que essa profissão seja entretenimento. É serviço e dedicação”, diz St. Angelo, o mais novo, por telefone a um grupo de jornalistas de vários cantos do mundo, com respostas curtas de quem não está tão à vontade dando entrevistas. Mas se lhe dão uma tarefa, ele cumpre, e por isso só seguiu em frente. “Se vai envolver câmeras ao meu redor, vai envolver câmeras ao meu redor. Como um investigador e funcionário público, sei que há coisas que você deve deixar pra lá para continuar seu caminho. Eu só deixei as câmeras ficarem lá e continuei a investigar”, diz. Quando as câmeras eram ligadas, eles começavam a trabalhar como fariam em qualquer outro caso: examinando as evidências, seguindo as direções que elas apontam para tentar chegar a uma conclusão. Não mudou em nada ter alguém filmando ali, só o fato de que de vez em quando eles tinham de falar para os operadores de câmera andarem mais rápido porque iria começar a chover e o equipamento ia molhar, diz St. Angelo, pragmático.

“Os produtores falaram pra gente fazer o que geralmente fazia. Mas eu aprendi o que era mais conveniente para a câmera, sabe. Ficava: ok, nós vamos para esse bairro, você pode colocar o equipamento aqui para capturar a imagem que precisa. Aprendi o bastante sobre a indústria da mídia para conseguir trabalhar lado a lado com eles. Não foi difícil, só tínhamos mais gente de fora da investigação olhando pra gente.” A experiência, aliás, lhe deu um “novo apreço” pela televisão. “Nunca achei que a mídia poderia produzir algo tão bonito. Sempre pensei que, ok, a câmera filma e conta uma história, mas eles fizeram um produto lindo sobre essa mulher que foi assassinada”, afirma.

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O detetive Aubrey St. Angelo durante investigação
O detetive Aubrey St. Angelo durante investigação

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Nesse caso, a ideia de fazer um programa sobre uma investigação de um crime veio antes do interesse por um caso particular. Se não fosse Eugenie Boisfontaine, seria outro — não há, portanto, dificuldades em se fazer novas temporadas, diferente de “Making a Murderer” ou “The Jinx”, da HBO, por exemplo, centrados em um personagem com uma história marcante. Quando soube que o Discovery iria fazer um programa sobre a investigação de um caso antigo, conta St. Angelo, o colega, Sanchez, pediu para que fosse reaberto o caso de Boisfontaine, que ele não havia conseguido solucionar no passado. Na época, o departamento tinha muitas investigações em andamento e quando as pistas se esgotaram o caso foi colocado de lado. Mas Sanchez nunca se esqueceu dele e a esperança era de que, com novas tecnologias, hoje ele pudesse ser resolvido.

Fazer televisão sobre crimes reais é uma tarefa delicada. Há o risco de cair no sensacionalismo, o risco de deixar de lado informações na edição e ficar unilateral ou parcial, e a dificuldade de expôr as famílias de vítimas. No caso, os parentes de Boisfontaine viram com bons olhos a abertura do caso e a atenção que os detetives deram ao caso, mesmo com uma equipe de TV acompanhando tudo. “Eles ajudaram muito, responderam todas as perguntas que precisávamos, sobre a vítima e pessoas envolvidas na vida da Eugenie Boisfontaine”, diz St. Angelo. Embora exista perigo da produção do programa atrapalhar os policiais, também há vantagens. Entre os aspectos positivos de levar um caso desses a público e de exibir a investigação na televisão enquanto ela ocorre está a possibilidade de conseguir dicas de espectadores, testemunhas que não se manifestaram na época. “Tivemos várias dicas e pessoas que vieram atrás pra dar informações. Algumas parecem meio esquisitas, mas mesmo quando você recebe esse tipo de informação tem que confirmar ou negar. Tivemos o benefício de ter umas duas pessoas que quiseram permanecer anônimas que deram informações que nos levaram a uma direção particular.”

St. Angelo, que já recebe pedidos de fotos nos Estados Unidos, é tão alheio ao mundo dos programas de televisão voltados ao crime que nem sabe dizer se os retratos que eles traçam se aproximam do dia a dia real de seu trabalho. Não viu, por exemplo, “Making a Murderer”, mas “ouviu que gerou bastante burburinho”. De vez em quando, assiste à série documental “Forensic Files”, que reconstitui investigações. E é só. “Mas não se compara a ‘Killing Fields’, que segue uma investigação ativa.” Ao arriscar uma explicação para o porquê de as pessoas se interessarem tanto pelo mundo da polícia, ele é curto e grosso: “É intrigante e vai além do trabalho normal das 9h às 17h”.

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A era dos desenhos
brasileiros na TV

As crianças dos anos 90 não podem reclamar da falta de desenhos animados para preencher seus dias. Dos clássicos como “Scooby Doo”, de 1969, aos contemporâneos “Doug” e “Pokémon” tinha um pouco de tudo — comédia, ação, fantasia, produções americanas, japonesas. Só faltava uma animação brasileira — ainda mais uma de sucesso. Cenário bem diferente do de hoje, na melhor fase da animação nacional brasileira na televisão, com bastante oferta e retorno de audiência: atualmente, tanto no Discovery Kids quanto no Cartoon Network, os maiores canais infantis da TV paga, animações nacionais estão entre os líderes de popularidade.

A história do primeiro sucesso brasileiro no gênero, “Peixonauta”, começa lá atrás, 20 anos antes de sua estreia, em 2009. Foi quando Celia Catunda e Kiko Mistrorigo resolveram abrir uma produtora de animação quando quase ninguém produzia séries aqui e a animação nacional era mais voltada a publicidade ou vinhetas. A TV Pinguim, uma das produtoras de animação pioneiras no país, começou produzindo programas curtos para a TV Cultura — como “Rita”, em 1990 — e para o canal Futura. Naquele período, com pouco espaço na TV brasileira para produtoras independentes, os dois viajavam pelos mercados de televisão mundo afora com seus projetos debaixo do braço em busca de parceiros para produzir suas animações.

Em uma dessas viagens, fundamentais para o estabelecimento de uma rede de contatos, “Peixonauta” caiu nas graças e, produzido em associação com a Discovery, estreou no Discovery Kids em 2009 — antes da Lei da TV Paga, que estabeleceu cotas para exibição de programação nacional nos diferentes canais da TV fechada e estimulou o mercado de produtores. O programa sobre um peixe detetive em trajes de astronauta logo se tornou um dos campeões de audiência do canal. Na semana de estreia, surpreendeu o canal e foi a atração mais vista por crianças de quatro a 11 anos no horário. No ano seguinte, já era o líder na emissora, ganhou o prêmio de melhor programa infantil de televisão pela Associação Paulista de Críticos de Arte e passava em cerca de 60 países. Hoje, vai ao ar em mais de 80 países e tem um novo longa-metragem em vista para o futuro.

“Peixonauta” colocou a TV Pinguim no mapa do mercado audiovisual internacional. Tanto que a segunda série de sucesso da produtora, “O Show da Luna”, foi ao ar primeiro nos Estados Unidos, alguns meses antes de chegar ao Brasil em 2014. Na série, voltada para crianças em idade pré-escolar, Luna é uma menina curiosa e interessada por ciência que a cada episódio sai com um bloco de notas em busca de respostas para “tudo que é pergunta”, como diz sua canção de abertura. Tanto “Luna” quanto “Peixonauta” foram pensados para poderem ser entendidos e apreciados em qualquer canto do mundo — apesar de um país asiático ter pedido para que Luna não mostrasse as pernas descobertas por uma saia, o que foi negado pela produtora.

Coproduzido pela Discovery, o desenho ultrapassou o britânico “Peppa Pig” em popularidade e terminou o ano passado como líder de audiência no canal, garantindo uma segunda temporada de 26 episódios para este ano. A menina também ganhou as prateleiras e está em roupas, brinquedos, bonecos, artigos de papelaria, ovo de Páscoa, entre outros objetos.

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Cena de "O Show da Luna", do Discovery Kids
Cena de “O Show da Luna”, do Discovery Kids

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DO LADO DE LÁ

No mesmo ano em que “Peixonauta” estreava no Discovery Kids, começava o hit nacional do concorrente Cartoon Network, “O Irmão do Jorel”. Lançada em setembro de 2014, já era a animação mais vista do canal entre crianças 4 a 11 anos já no mês seguinte e teve novos episódios anunciados no fim do ano. O desenho começou a ser esboçado em 2003, época em que o criador Juliano Enrico compartilhava fotos constrangedoras de sua família na internet. “Sem exagero. Existe uma tonelada de fotos lindamente constrangedoras de família na minha casa. Tem foto até da família dos outros”, lembra Juliano.

“Com o tempo fui adaptando memórias e transformando aquelas pessoas das fotos (a maioria da minha família) e aquela atmosfera bizarra brasileira dos anos 70, 80 e 90 em personagens e cenários pra quadrinhos e depois série animada de TV.” O desenho mostra o cotidiano de uma família excêntrica, em que o filho mais novo é conhecido apenas como “o irmão do Jorel”, tamanha a popularidade de seu irmão, Jorel.

Em 2009, o Cartoon Network, que já mapeava o mercado nacional de animação, começou a buscar novos criadores e produtores para fazer novas séries. No Fórum Brasil de Televisão, o canal fez um pitching para que pessoas apresentassem suas ideias, vencido por Juliano. “A ideia do pitching era investir num piloto [primeiro episódio de uma série e espécie de teste], e se ficasse bacana, satisfatório, a gente transformaria em série”, conta Daniela Vieira, diretora de conteúdo do Cartoon Network no Brasil. “Juliano era um criador, não tinha produtora nem é sócio de nenhuma até hoje. A gente demorou anos pra desenvolver o piloto. Porque o que ele fez, com a nossa ajuda, foi literalmente viajar o Brasil procurando produtores ideias de animação, voz original — que é um setor bastante novo no Brasil, o de dublagem já existe há muito tempo, mas o de voz original é bem prematuro ainda.”

Juliano acabou escolhendo o Copa Studio para produzir o piloto. Durante a produção, conheceu Andrei Duarte, ilustrador que criou o conceito visual dos cenários (e que dá a voz para o protagonista, o irmão do Jorel), e Vini Wolf, diretor de animação da primeira temporada. “Esse tempo foi muito valioso pra encontrarmos as equipes certa pra transformar aquelas folhas grampeadas com grampeadores enferrujados em uma série de animação pra TV de humor engraçado.” Quando o piloto ficou pronto, Daniela conta que o canal gostou “muito, muito, muito” e deu sinal verde para a produção da série, que começou em 2011.

"Peixonauta", do Discovery Kids
“Peixonauta”, do Discovery Kids

Segundo Daniela, ter desenhos nacionais sempre foi muito importante para o canal, mesmo antes da Lei da TV Paga. Mas foi só em 2010 que o canal passou a ter uma equipe responsável por conteúdo no Brasil. Hoje, há uma equipe “robusta”: gente para produzir, promover e divulgar as animações, num cardápio bem variado. “A gente tem um misto de personagens que estão enraizados na cultura brasileira, então o Cartoon Network é a casa de ‘Turma da Mônica’ e ‘Sítio do Picapau Amarelo’, e personagens originais, como ‘O Irmão do Jorel’, que tem total aderência ao DNA do Cartoon, mas que tem um saborzinho nacional”, diz Daniela.

Antes da Lei, de 2011, eram quatro as séries nacionais do canal. Hoje são oito, numa lista que inclui ainda “Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas)”, “Gui e Estopa”, “Tromba Trem” e “Carrapato e Catapultas”. Todas, para Daniela, têm uma temática universal e uma veia cômica — fundamental para o canal –, mas elementos com os quais as crianças brasileiras conseguem se identificar. As séries são todas dubladas em espanhol e exibidas no Cartoon em toda América Latina.

MELHORA EXPONENCIAL

Na avaliação de Daniela, nos últimos anos a qualidade dos desenhos brasileiros teve uma melhora exponencial. “Falta muito ainda. Não vou dizer que a gente tem um nível de produção comparado a Estados Unidos, Europa e Ásia, porque a gente não tem. Mas tem um nível excelente”, afirma. Há oito anos, havia uma oferta grande de programas pré-escolares educativos, mas pouca variedade de gêneros, diz ela. “Não tinha série de humor, de ação, que mistura live action com animação. Era muito um gênero só e um público-alvo só. Hoje você encontra uma gama muito variada de projetos.”

O Cartoon Network recebe projetos de muitos criadores com ideias brilhantes, mas com pouca capacitação técnica para desenvolvê-los. É um problema que tanto Celia Catunda quanto Daniela Vieira apontam: não há escolas de animação no Brasil. “Tem muita ideia que precisa ser polida”, diz Daniela. Hoje, inclusive, conta que há aumento de demanda por animações brasileiras e não há produtores que atendam. “Com capacidade de produção e nível de qualidade excelente tem algumas casas que fazem isso. Muito concentradas no eixo São Paulo e Rio, a gente está tentando descobrir casas em outros Estados do país pra trazê-los pro Cartoon. A gente entra em fila indiana. Muitos projetos não estream quando a gente quer porque não dá tempo de produzir.” Mas em sua opinião, nos últimos dez anos o Brasil “fez um avanço absurdo” e no últimos cinco ainda mais. “Deu pra começar a brincar de animação.”

Brincadeira que, segundo Juliano Enrico, é bem trabalhosa. “As maiores dificuldades de se fazer uma série de animação são as inúmeras etapas que precisam começar e acabar com precisão cirúrgica pra não gerar um engavetamento entre os envolvidos e atrasos e tristeza no coração da equipe e de todo o Brasil. Isso tudo até que é divertido. Quando dá certo. Até agora deu certo. Mas é difícil”, diz ele. “É quase uma maratona com umas 50 pessoas correndo juntas acorrentadas umas as outras durante 18 meses. O equilíbrio entre produção e criação mantém essas 50 pessoas correndo loucamente com um propósito.”

Pelo fato de fazer uma série de animação ser um processo demorado — chegando a 24 meses, segundo Daniela –, não haverá produções novas neste ano no Cartoon. “Uma série que receba uma aprovação agora vai pro ar no fim de 2017, comecinho de 2018”, diz. Neste ano, o canal não abriu oportunidades para novos produtores, mas pediu novas temporadas de tudo o que já está no ar, com exceção de “Carrapato e Catapultas”. “A gente prefere criar uma relação longeva, saudável, com produtores que já estão na casa — o que já é bastante, é um volume expressivo de séries”, diz.

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‘House of Cards’ volta como novela das boas

Em tempos em que Donald Trump é o favorito a disputar a presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, “House of Cards” não parece tão novelona assim. Sim, Frank Underwood, presidente na série, já matou duas pessoas, colocou um jornalista na cadeia por cyberterrrorismo e derrubou um presidente com uma facilidade impressionante. Pelo menos nas primárias disputadas por Frank, diferente da realidade, ninguém mencionou o tamanho do seu pênis e pregar a supremacia branca é algo que pode destruir uma candidatura. Mas “House of Cards” abraça cada vez mais a ideia de que é sim uma novelona, com diálogos cheios de frases de efeito, vilões maquiavélicos e reviravoltas. Se você tem uma boa história e bons personagens, como é o caso desta quarta temporada, isso não é um problema.

Na terceira temporada, “House of Cards” deu uma cambaleada. Nos dois primeiros anos, a trama girava em torno da escalada de Frank Underwood — preterido no cargo de Secretário de Estado e com sangue nos olhos –, que passou de deputado a presidente. Na terceira, com o objetivo inicial atingido, o panorama mudou um pouco. Frank tentou emplacar um projeto pouco popular para aumentar os empregos reduzindo programas de governo e se envolveu em questões diplomáticas com a Rússia, governada por um presidente que lembra bastante Putin. Enquanto isso, o braço-direito de Frank, Doug, passou a temporada no fundo do poço, recuperando-se lentamente de uma tentativa de assassinato. As histórias novas não engrenaram, a série só esquentou no final e deu saudades das primeiras temporadas.

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Frank (Kevin Spacey) no quarto ano de 'House of Cards'. Crédito: David Giesbrecht/Divulgação
Frank (Kevin Spacey) no quarto ano de ‘House of Cards’. Crédito: David Giesbrecht/Divulgação

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Não é o caso dos episódios novos, que estrearam na sexta (4). As primárias são bem mais interessantes que o dia a dia de Frank como presidente e ele é muito melhor quando colocado contra a parede. Na quarta temporada, os desafios vêm de vários lados: Lucas, o repórter que Frank colocou na cadeia, é libertado depois de ajudar o governo numa investigação; seu ex-chefe, Tom Hammerschmidt, começa a investigar Frank por conta própria; Claire, mulher de Frank, impõe condições difíceis para ajudá-lo nas eleições; Heather Dunbar continua no páreo para disputar a presidência e o candidato republicano e Will Conway faz bastante pressão sobre os Underwood.

Ajuda o fato de vermos mais da vida dos Conway fora da relação com Frank — Tom Yates, escritor contratado para contar a história do casal na terceira temporada, por exemplo, foi mal construído desde o início e é difícil ligar pra ele até hoje. Os novos episódios deixam de lado alguns velhos conhecidos, como Jackie e Remy, mas os novos personagens — como a complicada mãe de Claire — são melhores que os que apareceram no ano passado.

SURREALISMO

Desde que Frank cometeu o primeiro assassinato com as próprias mãos, lá no primeiro ano, caiu um pouco a aura de “realidade” da série. Quando ele matou uma jornalista em público, numa estação de metrô lotada, a história ficou mais inverossímil ainda. Mas é justamente nesses momentos que a série tem seus pontos altos: não quando tenta ser séria e falar de política externa, não quando quer ser um retrato dos bastidores da política americana, mas quando encurrala Frank e Claire (Kevin Spacey e Robin Wright, que seguraram as pontas mesmo na terceira temporada) e os força a buscar uma saída, por mais louca ou improvável que seja — até porque está difícil competir com a realidade das primárias americanas.

Quando os desafios que eles enfrentam parecem intransponíveis e os adversários dos Underwood estão à altura (a ética Heather Dunbar, que apareceu na temporada anterior, não é), é difícil parar de assistir a “House of Cards”. Não porque é um grande drama político, mas porque é uma novela das boas. E isso a quarta temporada — com menos tramas paralelas, mais focada na busca do casal pela indicação à presidência, mas ainda totalmente maluca — entrega.