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‘Love’: estranho amor

Para quem entrou na adolescência vendo “Dawson’s Creek” ou “The O.C”, do fim dos anos 1990 ao meio dos anos 2000, o futuro parecia relativamente simples: namorar na escola, fazer a faculdade dos sonhos, arrumar um bom emprego e um apartamento grande, casar com o amor da adolescência, ter filhos e pronto. Mas a vida não costuma ser assim tão simples, e as séries que retratam o período dos 20 e poucos aos 30 e tantos anos dessa mesma geração mostram um desfecho um pouco diferente. Entre “Girls” e “You’re the Worst” o que povoa a televisão hoje são os relacionamentos tóxicos, a falta de dinheiro, os sub-empregos ou o desemprego, as noites cheias de álcool e péssimas decisões.

“Love”, série produzida por Judd Apatow que estreou no Netflix na última sexta, é mais uma história nessa linha. Não se trata de nenhuma grande novidade, e sim de um filhote de “Girls”, que também tem Apatow como produtor-executivo. É uma série feita para um público bem específico, nascido entre os anos 1980 e 1990, sobre um grupo que está melhor de vida que muita gente, mas se sente completamente perdido. Como “Girls”, é cheia de personagens que beiram o detestável e situações constrangedoras, mas que, de alguma forma, dão um alento a quem também tem encontros micados, um emprego mais ou menos, e não está onde pensou que estaria por volta dos 30 anos. Por que eles são (provavelmente) mais problemáticos que você.

Na série, Mickey (Gillian Jacobs, a Mimi-Rose de “Girls”) tem um namoro que vai mal com um homem que precisa que a mãe o leve ao shopping para comprar roupas. No trabalho, num programa de rádio, é assediada pelo chefe e acha que vai ser demitida se não sair com ele. Gus (Paul Rust) não tem um relacionamento muito melhor: a namorada, que não o deixa nem escolher a cor do tapete da casa, reclama que ele fala “eu te amo” demais e diz que o traiu. Ele sonha em ser roteirista, mas trabalha num programa de TV como tutor de sua estrela-mirim, uma pequena diva que tem que passar numa prova para que ele mantenha o emprego. Os dois se encontram numa loja de conveniência, quando ela, sem carteira, entra numa briga com um funcionário por um copo de café e ele paga a bebida (e um cigarro) para ela.

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Gus (Paul Rust) e Mickey (Gillian Jacobs) em 'Love'. Crédito: Suzanne Hanover/Netflix
Gus (Paul Rust) e Mickey (Gillian Jacobs) em ‘Love’. Crédito: Suzanne Hanover/Netflix

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Diferente dos anos 1990 e 2000, quando as comédias românticas eram doces e idealizadas, as séries do gênero hoje em dia costumam optar pela abordagem “real”. Seus personagens têm vícios e defeitos, os relacionamentos demoram para se desenvolver, são cheios de idas e vindas, ciladas e momentos tão constrangedores que é difícil de olhar. Em “Love”, no primeiro capítulo, depois de uma discussão com a ex-namorada, Gus joga pela janela do carro todos os seus blu-rays enquanto culpa comédias românticas como “Uma Linda Mulher” por fazê-lo acreditar que o amor podia ser assim fácil. Uma prostituta e um homem rico nunca dariam certo, ele diz.

Essas comédias românticas que Gus despreza, como “Um Lugar Chamado Notting Hill” ou “Mensagem para Você”, são um retrato do que a sua vida provavelmente nunca será, mas seria legal se fosse. É reconfortante ver aquelas pessoas se apaixonando, o livreiro conquistando a estrela de cinema ou os dois inimigos unidos pela internet. A vida poderia ser assim. Com “Girls” ou “Love” — menos “reais” do que almejam ser, nem todo o mundo é narcisista e destrutivo desse jeito –, é o contrário, a sensação de assistir àquilo só conforta como antiexemplo. Pelo menos sua vida é melhor que isso, não?

No caso de “Girls”, é melhor que a protagonista Hannah (Lena Dunham) termine sem Adam (Adam Driver), já que eles não fazem bem um para o outro. Em “Love” é a mesma coisa e seria mais saudável que Mickey e Gus fossem só amigos. É ele quem se interessa primeiro por ela, que só resolve dar uma chance porque sua vida está péssima e ela acha que um “cara legal” é a solução para os seus problemas, o que não é o caso — até porque Gus está longe de ser perfeito. Juntos, é difícil de darem certo. E são as partes em que os dois estão separados, em que eles têm de lidar com seus próprios problemas, que são mais interessantes.

Mesmo sem grandes novidades, “Love” tem seus bons momentos. A amiga australiana de Mickey, Bertie (Claudia O’Doherty), é genuinamente uma boa pessoa e bastante engraçada, uma das poucas personagens ali por quem dá pra torcer. Seu jantar com Gus, arranjado por Mickey antes de ela aceitar o fato de que Gus gosta dela, é exibido quase em tempo real e é desastroso na medida certa, sem que a vergonha alheia tome conta do espectador. Quem gosta de “Girls” provavelmente vai se sentir acolhido com “Love”. Mas para ver uma comédia romântica mais original e mais real o próprio Netflix tem uma opção melhor: “Master of None”, que estreou em novembro do ano passado. Ali a vida amorosa do protagonista é mais próxima da realidade: nem perfeita, nem tão tóxica. E mostra que nem todo final precisa de um “felizes para sempre” para ser feliz.

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A obsessão de ‘Making a Murderer’

Não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A série documental do Netflix é viciante, do tipo que te faz ler comentários em sites, frequentar fóruns atrás de mais informações, elaborar teorias da conspiração e comentar com qualquer um que passe ao seu lado sobre a história de Steven Avery, inocentado após 18 anos na cadeia e preso dois anos depois, acusado de assassinato. Mas não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A cada um de seus dez episódios o programa deixa o espectador mais perturbado. Como aquilo pode estar acontecendo? De vez em quando você se esquece de que aquilo é real e toda vez que você se lembra é uma paulada na cabeça.

Como de praxe quando se trata do Netflix, não há informações sobre audiência, o que torna impossível saber quantas pessoas viram a série (o primeiro episódio, postado pelo serviço no YouTube, tem quase 500 mil visualizações). Em repercussão, porém, o programa é um fenômeno. Desde que estreou, perto do Natal (melhor época para se ver televisão, aliás, quando as pessoas estão cheias de tempo livre e estufadas de comida), o nome Steven Avery não para de pipocar em sites noticiosos, fóruns, redes sociais. Para um programa pouco anunciado pelo Netflix, sem grandes estrelas, foi surpreendente. Mas vendo “Making a Murderer” é fácil de entender por que as pessoas se envolveram tanto.

A história de Steven Avery parece saída da cabeça de Agatha Christie. Se estivesse em uma série de tribunal, como “The Good Wife”, já seria maluca e o fato de ser real torna tudo mais doido ainda. Steven Avery tinha acabado de ser pai quando foi acusado de ter tentado estuprar uma mulher no interior do Estado de Wisconsin, onde vivia. Steven tinha álibi — mais de um, inclusive. Com passagens anteriores pela polícia (por causas variadas, como ter queimado um gato), não havia nada que o ligasse àquele crime. Mas com base no retrato falado feito pela vítima, a polícia o prendeu. Um detalhe importante (todo detalhe é importante nesse caso): Steven havia jogado, pouco tempo antes, o carro para cima de uma prima, casada com um policial do condado. Ele não era exatamente querido.

Dezoito anos depois, um teste de DNA provou que ele era inocente e que o verdadeiro culpado estava preso havia alguns anos e, inclusive, já tinha confessado o crime à polícia, que mesmo assim não liberou Steven. Já solto, ele pediu uma indenização de US$ 36 milhões pelo tempo que passou injustamente na cadeia. Poucas semanas depois que os principais policiais envolvidos no caso deram seus depoimentos, uma fotógrafa, Teresa Halbach, desapareceu após tirar algumas fotos na propriedade de Steven. Mais tarde, seus ossos foram encontrados queimados em seu terreno. Acusado de novo e sem dinheiro no bolso, Steven aceitou um acordo em seu processo e ganhou uma indenização de apenas US$ 400 mil, longe do que havia pedido.

Inocentado após passar 18 anos na cadeia, homem mata mulher e vai preso de novo. Já seria uma história e tanto, digna de filme, e foi isso que levou as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos a fazer as malas para Wisconsin. Durante dez anos elas trabalharam na história de Steven, conversando com ele e sua família, acompanhando o julgamento, coletando documentos e gravações. Nesse tempo, o projeto ganhou outra dimensão. Já não era só uma história curiosa, e sim um retrato chocante do funcionamento do sistema penal. Por isso, não dá pra parar de assistir. Como diz um dos advogados de Steven, você pode ter certeza de que nunca vai cometer um crime, mas não pode ter certeza de que nunca vai ser acusado de um crime. Caso você seja, é isso que pode te acontecer. E é aterrorizante. (Pare aqui caso você não queira saber os detalhes da história.)

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Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação

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No fim de “Making a Murderer” não se sabe o que realmente aconteceu com Teresa Halbach. Não é esse o objetivo. O foco é menos o assassinato em si e mais o funcionamento da justiça e o drama humano que vivem o acusado e sua família, o que tem apelo para todo o mundo. Sabe-se que Steven Avery e seu sobrinho adolescente, Brendan Dassey, foram condenados à prisão perpétua pelo crime sem que a promotoria conseguisse montar um caso consistente. Talvez Steven seja mesmo o assassino, mas o fato é que não dá para ter certeza. E como todos são inocentes até que se prove o contrário, a conclusão inevitável é que eles não deveriam estar presos. É por isso que já existem duas petições, que somam mais de 300 mil assinaturas, para que Barack Obama solte os dois.

Primeiro ponto estranho: os mesmos policiais envolvidos no processo milionário movido por Steven Avery estiveram em sua propriedade após a morte de Teresa procurando por evidências, apesar de não haver motivo para eles estarem ali (a polícia de outro condado investigava o caso). Pra dizer o mínimo, havia um conflito de interesses. Segundo ponto estranho: algumas das evidências contra Steven, como a chave do carro de Teresa, foram encontradas depois de dias de busca, em lugares óbvios. Durante dias ninguém tinha visto a chave do lado do criado-mudo. Certo. A mesma chave não tinha o DNA de Teresa, sua dona, mas tinha o DNA de Steven. Ok.

Terceiro ponto: segundo a acusação, Steven estuprou Teresa no quarto e cortou sua garganta, mas não havia vestígios de sangue ou de seu DNA por lá. Quarto ponto: no carro de Teresa, encontrado do lado da casa de Steven (que tinha um compactador de veículos e por algum motivo não o usou para destruir a evidência), havia sangue de Steven. Mas uma amostra de seu sangue que fazia parte de sua primeira prisão havia sido violada. E por que Steven teria matado Teresa na casa, colocado seu corpo no carro, mantido o carro do lado da casa, tirado o corpo do carro e o queimado no próprio terreno? Nada faz sentido. O estranhamento só cresce.

Segundo a tese de seus advogados, a polícia plantou as evidências para incriminá-lo. Isso não é comprovado, mas há margem para dúvida e, se essa margem existe, Steven não deveria ter sido condenado. Por isso “Making a Murderer” é tão perturbador. Se o espectador consegue ver a injustiça cometida, como o júri e o juiz não conseguem? É a vida de alguém que está em jogo e não conseguimos fazer nada a não ser assistir de mãos atadas. Ninguém é punido por ter deixado Steven 18 anos preso injustamente. Ninguém questiona as lacunas na tese da acusação. “A presunção de inocência só vale pra quem é inocente”, diz o promotor. A sentença de Steven tinha sido dada antes do julgamento começar. Como ele poderia lutar contra polícia e o sistema?

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Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação

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Histórias de crime exercem um fascínio especial sobre as pessoas. Há criminosos famosos, cujos julgamentos são acompanhados como novela, em diversos capítulos nos jornais e televisão. Novas séries ambientadas em tribunais ou delegacias estreiam a cada temporada, várias com sucesso. Sherlock Holmes teve mil encarnações até chegar a Benedict Cumberbatch. Acompanhar essas tramas atiça a curiosidade das pessoas em vários níveis: como alguém pode fazer algo assim? Como foi que isso aconteceu de verdade? Por isso, essa onda de séries documentais sobre crimes reais, como “The Jinx”, exibida no ano passado pela HBO, ou o podcast “Serial”, também de 2015, não espanta. Crimes geram interesse. Mas “Making a Murderer” é diferente de “The Jinx” em algo: não tem fim.

Só dá para especular, mas provavelmente a série teria causado um impacto menor caso houvesse um final feliz. Em “The Jinx”, o protagonista Robert Durst confessa sua culpa e será julgado neste ano. Quando o crime é desvendado, você pode respirar aliviado e deixar a história pra lá porque a justiça foi feita. Não dá pra esquecer “Making a Murderer”. É um soco no estômago ver como o sistema funciona contra Steven Avery, que nasceu com cartas ruins na mão, uma vez e depois outra.

Você termina a série e quer compartilhar sua indignação com o mundo. Por isso as pessoas vão à internet: para discutir teorias, conversar sobre fatos não mencionados pelo programa, para detonar o promotor nas redes sociais, para pedir que Steven seja libertado ou julgado novamente. É como um dos advogados de Steven diz no fim: você quase torce pra que ele seja mesmo culpado. A ideia de ele estar preso de novo por um crime que ele não cometeu é insuportável.

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As melhores séries de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Como é uma lista, claro que há polêmicas. E há questões mais práticas também, como por exemplo, séries que não conseguimos ou não terminamos de ver a temporada desse ano. É o caso de Fargo e Leftovers, duas séries que eu vi alguns capítulos de suas novas temporadas e tô bem empolgado, mas como não terminei, é injusto colocar aqui, certo? Por essas e outras, não há um ranking enumerado – há apenas um monte de séries que gostamos muito neste ano que teima em não acabar. Chega mais:

Jessica Jones

https://www.youtube.com/watch?v=w9ATGrij5qI

Séries de super-heróis há várias: “The Flash”, “Arrow”, “Supergirl”, “Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D.” e por aí vai. Mas “Jessica Jones” é diferente de todas elas. Com uma heroína sem codinome, uniforme, vontade de salvar o mundo ou mesmo poderes tão incríveis, “Jessica Jones” é mais um thriller psicológico. Jessica é uma personagem mais interessante que o Super-Homem, justamente porque é humana. Seu arqui-inimigo é um homem que controlou seus pensamentos e a estuprou e seu maior poder é justamente ter sobrevivido a isso e encarar seus traumas de frente. Tensa, é uma série perfeita para o modelo Netflix: é quase impossível sentar na frente da televisão e assistir a um episódio só. [Fernanda Reis]

UnREAL

Com tantos reality shows por aí, é surpreendente que só agora tenham feito uma série sobre seus bastidores. “UnREAL” fez valer a espera. Ambientada num reality estilo “The Bachelor”, com um grupo de mulheres disputando um solteiro rico, a série mostra como esses programas têm bem pouco de real — colocando uma lente de aumento neles, nem todo reality tem crimes no meio. A protagonista, Rachel, é uma produtora com poucos escrúpulos e uma enorme capacidade de manipular os outros. É um drama super pop, com um pouco de novela e um tanto de suspense. Uma das séries mais originais do ano, com personagens femininas tão ou mais complexas que Don Draper ou Walter White. [FR]

The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst

O retorno do entretenimento true crime aconteceu em grande parte por causa do sucesso estrondoso do podcast “Serial”, mas o seriado “The Jinx”, da HBO, ajudou a catapultar de vez o movimento. A premissa já é incrível: o diretor Andrew Jarecki fez um filme de ficção sobre os mistérios de Robert Durst, um excêntrico milionário de Nova York acusado de matar a esposa. Certo dia, o próprio Durst liga para ele dizendo “ei, legal o filme, mas a história é muito mais complexa que isso”. E é mesmo. Sentados frente a frente em seis episódios, Jarecki confronta Durst e recria toda a narrativa de uma das histórias mais malucas possíveis. Tudo feito de uma forma primorosa e extremamente cativante. [Leo Martins]

You’re the Worst

Desde o começo, no ano passado, “You’re the Worst” era uma comédia romântica esquisita. Não houve enrolação para saber se os protagonistas Gretchen e Jimmy iriam ou não ficar juntos: nos primeiros dez minutos eles já estão na cama. O legal é ver como essas duas pessoas tão egocêntricas e avessas a relacionamentos conseguiriam ficar juntas. A primeira temporada já tinha um humor meio negro, mas a segunda foi além e conseguiu fazer graça mesmo tendo como trama central a depressão de Gretchen. A doença não foi apresentada em um episódio e deixada de lado nem foi tratada levianamente. Foi uma decisão arriscada falar sobre depressão numa comédia e logo na segunda temporada, mas valeu a pena. Neste ano “You’re the Worst” não só continuou fazendo rir como também emocionou. [FR]

Mad Men

https://www.youtube.com/watch?v=3JUqwwjgLAY

Começar uma série bem é fácil, difícil é saber quando e como parar. “Mad Men” conseguiu. A parte final de sua última temporada não teve grandes acontecimentos (pra falar a verdade, a série toda é assim), mas dedicou um tempo para dar um final decente a cada personagem e amarrar todas as pontas soltas. O último capítulo foi especialmente bom, concluindo de um jeito simples e bonito o arco de Don Draper e as três mulheres de sua vida: Peggy, Betty e Sally. Não à toa Jon Hamm finalmente quebrou a maldição Leonardo DiCaprio e ganhou o Emmy que tinha perdido seis vezes antes. [FR]

The Americans

“The Americans” sempre foi uma série boa sem o devido reconhecimento que merece pelas principais premiações de televisão. Mas essa temporada foi particularmente boa, colocando mais drama familiar na trama de suspense político. A filha do casal principal, Paige, começa a se incomodar com a vida misteriosa que os pais levam e pela primeira vez eles se perguntam: será que eles devem contar aos filhos nascidos e criados nos Estados Unidos que são da KGB? Keri Russell consegue deixar a imagem de Felicity para trás, a trilha sonora é maravilhosa e a trama toda foi eletrizante. O último episódio da temporada terminou de um jeito tão inesperado que a espera para o quarto ano não está sendo fácil. [FR]

Master of None

https://www.youtube.com/watch?v=ROATnkhOPfk

Uma boa surpresa que estreou sem muito alarde no Netflix já perto do fim do ano. Quase como uma antologia, com episódios desconectados uns dos outros, a série tem a mesma pegada “retrato da vida das pessoas de 20 e tantos/30 e poucos anos hoje” que “Girls”, por exemplo, mas é mais original nos seus temas. Fala do racismo na televisão e no cinema, de feminismo, de diferenças geracionais, de imigração, tudo com humor e delicadeza. [FR]

Demolidor

A essa altura da lista já dá para dizer que foi um bom ano para o Netflix. Mas, além disso, foi um bom ano para a Marvel na televisão: se o segundo filmes dos Vingadores não foi tão impactante, o núcleo dos quadrinhos de Nova York teve vida boa nas séries. Além de “Jessica Jones”, a ambientação de “Demolidor” em Hell’s Kitchen foi ótima: em uma temporada, foi possível mostrar a história de Matt Murdock, sua relação complicada com seu bairro e a ideia de combater o crime, sua proximidade com a religião e seus amigos, e um Rei do Crime de respeito como vilão. [LM]

Mr. Robot

Sam Esmail, criador da série, buscou inspiração no noticiário para a primeira temporada de “Mr. Robot”. Deu certo. Apesar de ter alguns pontos baixos lá pelo meio, a série é bastante atual e crítica ao capitalismo, mostrando como a tecnologia pode ser usada para lutar contra a desigualdade social. Rami Malek, o protagonista Elliot, é especialmente bom no retrato de um hacker fora do clichê do gênio de óculos que digita números freneticamente em uma tela enquanto fala coisas que ninguém entende. É também uma série linda de ver, com seus enquadramentos inusitados e um retrato de uma Nova York longe do glamour. [FR]

Wet Hot American Summer

https://www.youtube.com/watch?v=j2Z4ew6x99w

Com um humor hiper nonsense, “Wet Hot American Summer” não é pra todo o mundo. O filme que deu origem à série, com atores perto dos 30 anos interpretando adolescentes num acampamento, já é assim: latas de vegetais conversam, cozinheiros têm taras por objetos, e nenhum (nem um!) ator se leva a sério. A série leva tudo isso ao extremo: agora na faixa dos 40 anos, os atores (como Bradley Cooper, Paul Rudd, Amy Poehler e Elizabeth Banks, consideravelmente mais famosos) interpretam os mesmos personagens ainda mais novos, no primeiro dia do acampamento. Nada faz sentido, mas é tudo incrivelmente engraçado. Mais engraçado até que o filme, que inaugurou todo um tipo de humor. Will Ferrell deve muito a “Wet Hot American Summer”. [FR]

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O estranho Natal de Bill Murray

O que você acha do Bill Murray? Talvez essa seja a única pergunta que importa para decidir se vale ou não a pena assistir ao especial de Natal de Sofia Coppola com o ator, “A Very Murray Christmas”, que estreia hoje no Netflix. Se você o ama, possivelmente vai gostar de vê-lo cantar durante quase uma hora. Se não, é provável que apenas ache o programa estranho.

O Netflix começou a diversificar sua oferta de produções originais com séries faladas pelo menos em parte em espanhol e elenco latinoamericano, como “Club de Cuervos” e “Narcos”. Mesmo assim, uma parte significativa do seu conteúdo próprio praticamente só tem apelo para o público americano — ou pelo menos pouco apelo para o público brasileiro. É o caso de vários especiais de stand-up com comediantes pouco conhecidos por aqui e do especial de Natal.

No programa, Bill Murray é contratado para fazer um show natalino ao vivo na televisão americana, com vários convidados ilustres — passando por George Clooney, Paul McCartney e o papa Francisco — na plateia. Só que uma nevasca em Nova York impede que aviões pousem, carros circulem e estações de metrô funcionem. Ninguém aparece no local e Murray quer desistir. Suas produtoras, Amy Poehler e Julie White, o obrigam a se apresentar. A partir daí, o programa é uma viagem.

São muitos convidados (Miley Cyrus, George Clooney, Maya Rudolph, Michael Cera, Rashida Jones, Chris Rock, a banda Phoenix…) em cenas cujo único sentido é fazer todos cantarem músicas natalinas tradicionais nos Estados Unidos. Algumas apresentações, como a de Miley Cyrus, são boas. Outros convidados não cantam tão bem e fica a dúvida: era pra ser bom ou era pra ser engraçado? (Ver Clooney cantando não faz rir, mas pelo menos é curioso.)

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Bill Murray com George Clooney e Miley Cyrus
Bill Murray com George Clooney, Paul Shaffer e Miley Cyrus

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A trama, se é que se pode chamar de trama, é bem solta: no hotel em que sua apresentação está marcada, Murray se sente solitário, quase triste. No bar, conversa com cozinheiros, garçons, e tenta reunir um casal que brigou no dia de sua festa de casamento, à qual ninguém foi. Em certo ponto, Murray começa a sonhar e aí a história passa a fazer menos sentido ainda. Mas a intenção nunca foi fazer uma trama consistente. Segundo Sofia Coppola, que escreveu um depoimento sobre o especial para o site Vulture, o programa não era pra ter lógica mesmo.

Ela queria prestar uma homenagem aos antigos especiais de Natal na televisão americana, em que vários convidados aleatórios, principalmente músicos, participavam de uma trama sem sentido, como quando David Bowie e Bing Crosby cantaram “Peace on Earth” e “Little Drummer Boy” em 1977 ou programas com os Carpenters e Dean Martin. Para ela, esse tipo de especial remetem a uma memória afetiva, de sua infância.

“Eram memórias vagas de como era ser criança, como cápsulas do tempo — Dean Martin parece queimado de sol, como se tivesse acabado de andar no seu conversível. Não quero ser mal-educada falando algo de sua qualidade, mas eles eram divertidos de ver”, escreveu ela. “Acho que a mágica do show business se une com a das festas de fim de anode um jeito legal. Adoro o sentimento não linear, sem lógica, de que tudo pode acontecer, e as músicas que aparecem do nada. Foi ótimo olhar para esse modelo e fazer nossa versão exagerada disso.”

Coppola resume bem o que é o especial do Netflix. Para quem o Natal traz esse tipo de memória, pode ser legal assistir a uma versão daquilo com atores e cantores que fazem sucesso hoje em dia. “A Very Murray Christmas” é pouco comum, diferente dos outros programas que estão no Netflix. É uma mistura de melancolia, humor e nonsense. Mas não dava para esperar algo muito diferente disso vindo do ator.

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As heroínas estão chegando

Em meio aos e-mails sigilosos da Sony Pictures vazados no ano passado, um datado de 7 de agosto listava três exemplos de filmes de super-heroínas que haviam sido um fracasso: “Elektra” (“péssima ideia com resultado muito, muito ruim”), “Mulher-Gato” (“desastre”) e “Supergirl” (“outro desastre”). Com o assunto “filmes femininos”, o e-mail de um executivo para outro procurava provar que, no mundo dos super-heróis, mulheres devem se limitar a papéis coadjuvantes.

Pouco mais de um ano depois, porém, o jogo virou. Este mês, em que o feminismo é o tema do momento no Brasil, marcou a estreia de duas séries praticamente opostas protagonizadas por super-heroínas: “Supergirl”, no ar na Warner, e “Marvel’s Jessica Jones”, que estreou recentemente no Netflix.

Em comum, as duas produções têm uma característica: embora as mulheres se apaixonem (Supergirl) e façam muito sexo (Jessica Jones), seus mundos não giram em torno de homens. Há romance, mas elas estão bem longe de ser comédias românticas. De resto, as duas produções atendem a diferentes tipos de público. Enquanto “Supergirl” é solar, feita para ser vista comendo pipoca num domingo à tarde (algo como “The Flash”, também da Warner), “Jessica Jones” é soturna e super tensa (não por acaso, mais parecida com “Demolidor”, também do Netflix).

Das duas, “Supergirl” é quem faz mais questão de explicitar seu feminismo. Kara (Melissa Benoist) é prima de Clark Kent, o Super-Homem, e foi enviada à Terra com ele para protegê-lo quando ele ainda era um bebê. Sua viagem espacial, no entanto, dá errado e ela passa 24 anos vagando em uma zona na qual o tempo não passa. Quando ela finalmente chega, Clark já é adulto, enquanto ela ainda tem 13 anos. Os papéis se invertem e é ele quem, para ajudá-la, a coloca em uma família humana para que ela viva uma vida normal.

Kara arruma um emprego de assistente em uma grande empresa de mídia cuja dona (fato raro na vida real) é uma mulher: a casca-grossa Cat (Calista Flockhart), uma aprendiz de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”. “Achei que seria legal trabalhar para uma figura feminina poderosa”, diz Kara logo no início, na primeira de várias frases que exaltam o poder de mulheres fortes de influenciar as outras.

Quando Kara vê na televisão que o avião em que viaja sua irmã está prestes a cair, ela resolve usar seus poderes depois de anos para salvá-la. Ao se dar conta do que é capaz de fazer com suas habilidades, ela sorri, legitimamente contente por ter feito o bem. Já é tarde para proteger Clark, pensa ela, mas há um planeta todo cheio de pessoas indefesas a quem ela pode ajudar.

supergirl

Na escolha do uniforme, a série não deixa de alfinetar as tradicionais produções de super-heróis e suas mulheres espremidas em roupas justíssimas, pouco funcionais para lutar. “Eu não usaria isso nem para ir pra praia”, responde Kara quando lhe apresentam um uniforme que lembra a clássica roupa da Mulher Maravilha, mas com mais pele à mostra. Kara também questiona o nome “supergirl” (super menina, vejam bem, e não mulher). Obviamente a série não poderia trocar o nome da personagem, então explicam a escolha assim: se você acha que uma menina é algo menos que incrível, o problema é você.

Outras questões feministas são abordadas logo no primeiro capítulo: a novidade que é finalmente ter uma super-heroína forte para meninas se espelharem, o fato de mulheres não serem levadas a sério por alguns homens e às vezes temerem ser assertivas para não desagradar ninguém — como Jennifer Lawrence declarou recentemente em uma carta explicando como se sentiu após descobrir que ganhava menos que seus colegas homens.

Não se trata, porém, de uma série que bate somente na tecla da desigualdade de gêneros. De cara Kara se interessa pelo fotógrafo James Olsen (Mehcad Brooks), preenchendo o campo “romance” inevitável nessas séries mais leves. Há também boas sequências de ação, indispensáveis para uma produção do gênero. No episódio de estreia Kara descobre que uma nave cheia dos alienígenas mais perigosos do espaço caiu na Terra quando ela chegou. A série dá a entender que seguirá o esquema “vilão da semana”, com a Supergirl enfrentando um antagonista diferente a cada episódio.

É muito cedo para dizer se “Supergirl” será um sucesso, mas os primeiros resultados de audiência nos Estados Unidos mostram que nada impede que uma série protagonizada por uma super-heroína dê certo. Na primeira semana, foi a série nova mais vista da temporada, com 12,95 milhões de espectadores. Na semana seguinte, houve uma queda e 8,86 milhões a assistiram, mas ainda é um número longe do desastre previsto pelos executivos da Sony.

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Jessica Jones e sua amiga Trish Walker. Crédito: Divulgação

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FORÇA BRUTA

Enquanto “Supergirl” afima com todas as letras que está ali, sim, para discutir questões de gênero, “Jessica Jones” adota uma abordagem menos literal. “Supergirl” é o primeiro passo. Precisa ser tão didática e reforçar o tempo todo como é pouco usual ter uma super-heroína? O ideal é que no futuro isso seja tão normal que não seja mais uma questão e que esse “quer que eu desenhe” seja desnecessário. Mas por enquanto, a série tem suas razões.

Jessica Jones” é o próximo passo. Em nenhum momento alguém estranha o fato de Jessica conseguir parar um carro em movimento ou alcançar a varanda de um prédio com um pulo. Ninguém se espanta por ela ser mulher, ela não reforça sua feminilidade e seu gênero não é mencionado uma só vez. Mas é impossível ver a série e não ter certeza de que mulheres podem ser tão fortes, em todos os sentidos, quanto homens.

LEIA MAIS: Jessica Jones, a anti-heroína que merecemos

Nos quadrinhos da Marvel, Jessica Jones é uma personagem que atuou como a heroína Safira, fazendo uma pequena participação no grupo dos Vingadores. Depois de atacar a Feiticeira Escarlate a mando de Kilgrave (o Homem-Púrpura), que a controlava mentalmente, ela é agredida  e entra em coma. Após despertar, ela larga a vida de heroína e abre uma agência de investigações e procura levar uma vida normal.

A série traz algumas mudanças em relação aos quadrinhos e acompanha a rotina de Jessica (Krysten Ritter) após seu período como super-heroína. Ela toca seu negócio de investigação sofrendo de transtorno do estresse pós-traumático depois de Kilgrave ter feito com que ela cometesse atos horríveis. Depois de descobrir, no episódio de estreia, que ele não está morto como ela pensava, Jessica resolve que sua missão será encontrá-lo e acabar com ele.

Diferente da Supergirl, que é doce e só quer fazer o bem, Jessica é perturbada pelo passado, enche a cara, transa com desconhecidos, e se pudesse cairia fora dali para levar uma vida normal. Jessica é uma mulher como outra qualquer, cheia de defeitos, mas calhou de ter super-poderes. O fato de não ser perfeita a torna ainda mais interessante. Se é comum vermos homens complexos como Don Draper (“Mad Men”) e Walter White (“Breaking Bad”), o mesmo não se podia dizer, até pouco tempo, das mulheres. Jessica é um refresco.

As cenas de luta também diferem bastante das de “Supergirl”. Lá, a heroína voa, enxerga através de portas, ouve tudo, solta raios pelos olhos, tem uma força descomunal. Tudo nela é “super”. As batalhas são cheias de efeitos e fica claro que aquilo nunca, nunca aconteceria no mundo real. Jessica é mais vulnerável. Ela é extremamente forte, mas basta uma bala para pará-la. Suas brigas são no corpo a corpo e embora a gente saiba que a vantagem dela, há uma sensação de que tudo pode acontecer.

Basicamente, as duas séries têm pouco em comum. “Supergirl” é daquelas que você pode passar um mês sem ver e retomar depois, tranquilamente, quando quiser se divertir um pouco. Já “Jessica Jones” é tão eletrizante que dá para ser vista toda num fim de semana. São séries para públicos e momentos distintos, o que é bom. Tanto uma quanto outra provam que a Sony se equivocou. Desde que seja bem feita, não importa se a produção tem um super-herói ou uma super-heroína.

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Jessica Jones, a anti-heroína

Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.

A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.

Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.

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Marvel's Jessica Jones
Jessica Jones dando o famoso enquadro. Crédito: Divulgação

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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).

Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.

Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.

Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.

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Os hackers estão de volta

Logo no primeiro episódio de “Mr. Robot”, a serie deu uma mostra de que estaria um passo à frente da realidade: o hacker Elliot, interpretado por Rami Malek, força o namorado de sua psicóloga, que é casado, a terminar com ela. A ameaça: mostrar para a mulher seu perfil no site de traição Ashley Madison. Meses depois a chantagem não valeria nada, já que um grupo real de hackers liberou os dados de milhões de usuários do serviço.

Em tempos em que fotos de celebridades nuas são roubadas de seus celulares e computadores e da divulgação de dados do Ashley Madison, faltava uma série sobre a fragilidade da privacidade na internet. Como a criação de Sam Esmail, outras séries recentes têm colocado em primeiro plano algo importante na vida, mas secundário até então na televisão: a tecnologia. E não de um jeito completamente fora da realidade, como total ficção científica, e sim trazendo o tema para a atualidade. Falam de como a tecnologia influi no dia a dia, de seus prós e riscos.

O tema central é o mesmo, mas são séries bem diferentes. Tem uma sobre o desenvolvimento dos computadores nos anos 1980 (“Halt & Catch Fire”); outra mais futurista, sobre o que aconteceria se máquinas super modernas substituíssem humanos em quase tudo (“Humans”); uma comédia sobre uma start-up no Vale do Silício (“Silicon Valley”); tem até o “Além da Imaginação” da era das redes sociais, que mostra o lado assustador da internet (“Black Mirror”). E “Mr. Robot”, a mais atual de todas, sobre um grupo de hackers idealistas.

Pergunte a alguém a razão do sucesso de seu livro/filme/programa de TV e a resposta, via de regra, vai seguir o mesmo roteiro. O primeiro instinto é dizer algo como “não sei” ou “se soubesse a fórmula, estaria rico”. Depois vêm alguns chutes. Teve química no elenco, o roteiro era in-crí-vel, o público se identificou e por aí vai. Não tem diagnóstico certeiro. Mas a conclusão quase sempre gira em torno de uma observação singela: produzimos a coisa certa na hora certa. Lançada no momento errado, uma série maravilhosa pode se perder no meio da massa — só em 2014 foram exibidas mais de 370 séries nos Estados Unidos (constatação óbvia de hoje: é mais de uma por dia no ano).

O que o sucesso dessas séries tem em comum é justamente o timing. A britânica “Black Mirror”, de 2011, é um bom exemplo. Um pouco mais antiga que as outras, era elogiada pela crítica, mas pouco conhecida pelo público. No Brasil, era exibida pelo pequeno canal I-Sat, fora dos principais pacotes da televisão a cabo. Na TV americana, idem. Quando o Netflix começou a exibir os episódios iniciais da série, virou um sucesso (ainda que meio cult) nos Estados Unidos. Os resultados foram tão bons que o próprio Netflix vai produzir novos capítulos da série.

A cada episódio — todos são independentes uns dos outros — a série mostra o lado negro de uma tecnologia. No primeiro episódio, por exemplo, uma popular figura da nobreza britânica é sequestrada e, como resgate, os bandidos pedem para que o primeiro-ministro faça sexo com um porco ao vivo na TV. Com a pressão das redes sociais o político se vê numa encruzilhada: ou não obedece, ela morre e a reputação dele acaba ou… é melhor ver para crer.

Charlie Brooker, criador da série, diz ter tirado inspiração da “loucura” da vida real. Hoje, pensou, fazemos coisas que há poucos anos seriam consideradas malucas, como conversar com o seu celular e ter seu desempenho como dançarino avaliado por um videogame. “Se a tecnologia é uma droga, quais são os efeitos colaterais?”, disse ao jornal inglês “The Guardian”. Sua série fala tanto do conforto quanto do desconforto que a tecnologia traz. “O ‘black mirror’ [espelho preto] do título é aquele que você acha em toda parede, em toda mesa, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, de uma tela, de um telefone.”

Na televisão tradicional, “Black Mirror” não deslanchou. Foram feitos menos de dez episódios, exibidos até 2013. No ano passado, quando a série já estava no Netflix americano, houve um especial de Natal com Jon Hamm, o Don Draper, de “Mad Men”. Agora ela pode voltar, acompanhada por outras séries sobre tecnologia. E num serviço de vídeo sob demanda, conectado à internet, um dos temas da série. O sucesso foi uma questão de timing.

BOOM

No ano passado estreou talvez a mais popular das séries de tecnologia, “Silicon Valley”, indicada a dois Emmy de melhor série de comédia — o prêmio deste ano será entregue no domingo (20) — e a um Globo de Ouro. Nela, Richard é um programador em uma grande empresa da internet e desenvolvedor um aplicativo de música que envolve um super algoritmo, disputado por dois empresários poderosos. Diferente das outras, fala de tecnologia com humor, brincando com os milionários do Vale do Silício.

Também do ano passado é “Halt & Catch Fire”, uma “ode à tecnologia” segundo Melissa Bernstein, coprodutora-executiva da série. Ambientada nos anos 1980, acompanha um ex-executivo da IBM que monta uma equipe para descobrir como foi produzido o principal computador da empresa e disputar uma fatia no mercado. A época foi escolhida, segundo Bernstein, porque é o ponto de partida para tudo aquilo que temos. E embora não se passe nos dias de hoje, fala de questões ainda atuais, como a dificuldade de ser mulher e trabalhar no ramo.

Em abril, a produtora afirmou que como a ciência não é bem representada na televisão, é um bom tema para seriado. Era verdade, mas neste ano vieram mais duas produções sobre tecnologia. Enquanto “Halt & Catch Fire” fala do passado, “Humans” olha para o futuro. Na trama, que estreou no fim de junho na TV americana, robôs super sofisticados de aparência humana passam a substituir as pessoas em todo o tipo de tarefa. A história começa quando Joe compra uma dessas robôs para ajudá-lo a cuidar da casa na ausência da mulher, Laura, que viajava a trabalho.

Quando ela volta, percebe que a máquina é bem mais eficiente que ela para as tarefas domésticas — e que o marido está contente demais com a nova funcionária. Seu medo é que o robô, que dá mostras de ter sentimentos, tome seu lugar na família. Primeiro problema. Uma das filhas de Laura, Mattie, também não é das mais empolgadas com a novidade. Se os robôs fazem tudo melhor do que um humano, por um valor bem menor, como ela vai arrumar um emprego? Seu medo é ser substituída não na família, mas no mercado de trabalho.

Falar de robôs vivendo entre humanos não é novidade, mas “Humans” trata da questão de um jeito com o qual podemos nos identificar mais do que vendo “Os Jetsons”, por exemplo. Não é um futuro em que as pessoas vestem roupas prateadas, carros voam e pílulas substituem comida. É um mundo como o em que vivemos, mas no qual a tecnologia é tão desenvolvida que o homem fica obsoleto. Segundo estudo da Universidade de Oxford do ano passado, 47% dos empregos dos Estados Unidos correm risco de serem automatizados nas próximas duas décadas. “Humans” fala de temores reais.

HACKERS, 20 ANOS DEPOIS

De todas as séries do gênero, a mais impactante é “Mr. Robot”, dona da impressionante nota de 98% no site agregador de críticas Rotten Tomatoes. À tecnologia a série ainda soma questões sociais contemporâneas. O protagonista Elliot não é só um hacker, é um hacker com consciência social, anticapitalista, que quer causar uma reviravolta no sistema financeiro, apagando os registros de dívidas de milhões de pessoas – o que lembra, de certa forma, o clássico filme “Hackers”, que foi lançado há 20 anos.

Ajuda o fato de que a série é, de forma geral, diferente. Não é uma novelona, como “Grey’s Anatomy”. Não tem vampiros, políticos, médicos ou policiais. É uma série inusitada, começando pelos títulos de seus episódios com nomes de arquivos típicos de quem baixa muita coisa por aí, como “eps1.1_ones-and-zer0es.mpeg”. É também bonita de ver. A clássica abertura e a música tema dão lugar a um letreiro retrô com o nome da série. Nem os enquadramentos são padrão: os personagens ficam bastante no canto da tela, às vezes até em segundo plano, enquanto a câmera mostra uma Nova York cinza, bem distante do glamour de “Sex and the City”.

Mas o principal fator do sucesso da série é seu tema. O criador Sam Esmail assumidamente buscou sua trama no noticiário. Para construir seu protagonista, por exemplo, olhou para seu país natal, o Egito, durante a Primavera Árabe. “Fui ao Egito logo depois que tudo aquilo aconteceu e achei muito legal ver todos aqueles jovens bravos com como o país estava, bravos com a sociedade. E a maior arma que eles tinham era o fato de que eram jovens e bravos”, disse à revista “The Hollywood Reporter”. Gostou de ver como eles usavam nessa luta a tecnologia e as redes sociais, mesmos artefatos de “Mr. Robot”.

Para a primeira temporada, deu certo. Sobre a segunda, é muito cedo para dizer. Mas o fato é que Esmail pretende repetir a estratégia e já está conversando com economistas para tentar antecipar o que aconteceria na realidade se os desdobramentos da série fossem verdadeiros. “Espero que deixemos a economia sexy e divertida.”

A televisão é feita de ciclos, alguns mais longos, outros mais curtos. No ano passado, por exemplo, foi declarada a era da comédia romântica — meses depois, quase todas as séries do gênero foram canceladas. Mas, por enquanto, é a hora e a vez das séries de tecnologia. E, dure ou não, é bom reconhecer na televisão um pouco do que se passa do lado de fora.