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O ídolo nipo-brasileiro dos anos 80

 

Recomendamos a leitura acompanhada desta mixtape produzida pelo pessoal do Suppaduppa. Boa viagem:

O chão está coberto por gelo seco simulando as nuvens. Várias telas de TV reproduzem cenas do mar, uma imagem do céu é plano de fundo, e uma banda com quatro integrantes usando paletós e camisas sociais em tons azuis e beges domina o palco. O vocalista tem uma voz suave e um penteado à la Tom Cruise no filme “Negócio Arriscado”. Seus movimentos de um lado pro outro formam uma espécie de dança sincronizada e o som é uma mescla de sintetizadores com jazz, o mais puro City Pop. O ano é 1986, o local é Tóquio. 30 anos depois, sem gelo seco e com uma réplica de um castelo japonês como imagem de fundo, em Curitiba, mas com a mesma voz e um penteado mais contido, me encontrei com Carlos Toshiki, o ídolo nipo-brasileiro que abrilhantou as paradas musicais japonesas dos anos 80.

Anônimo no Brasil e ídolo no Japão, Carlos Toshiki viveu no Japão por 13 anos, onde fez sucesso com a  banda 1986 OMEGA TRIBE. Foi presença frequente em centenas de programas de música e variedades, teve três álbuns no topo das paradas japonesas, além de diversos hits. Seu rosto estampou revistas e propagandas. Uma carreira pela qual ele possui muito orgulho. Meu encontro com Carlos aconteceu na Praça do Japão, em Curitiba. Assim que o encontro tento quebrar o gelo falando que todo mundo ao nosso redor estava jogando Pokemon Go ali na praça. Ele ri mas confessa não entender nada do tal jogo. Nos sentamos e Carlos começa a contar sua história, que tem início, naturalmente, na sua infância.

Nascido numa colônia japonesa em Maringá, Carlos foi criado de acordo com os costumes nipônicos. Seu pai era DJ da rádio da colônia e era conhecido por sempre tocar novidades vindas do Japão, desde músicas pops ao tradicional enka. Por este motivo, Carlos acabou criando um gosto pela música e pelo canto. Ele lembra que aos 9 anos, chegava do colégio e se trancava no quarto para cantar por horas. “O tempo voava”, fala com um sorriso saudoso. Como não sabia escrever os ideogramas japoneses, escrevia as letras das músicas da maneira que ele ouvia e as decorava. Seu pai começou então a notar o dom do filho para o canto e queria que ele se envolvesse nos concursos de canto que a colônia fazia. O pânico de Carlos, porém, era subir no palco e enfrentar uma plateia – apesar de também ser seu maior sonho. “Eu não gostava de cantar para as pessoas. Era um paradoxo. Eu gostava de cantar só para mim.” Para incentivá-lo, seu pai prometeu que o daria uma passagem para Tóquio caso ele fosse o campião brasileiro do Concurso de Canto.

Carlos me falou que a ideia de ir a Tóquio despertou nele o desejo de seguir um sonho que estava cada vez mais próximo. Primeiro, ficou em terceiro lugar no concurso municipal de Maringá. Depois tornou-se o melhor no Paraná. Ele tinha orgulho de falar para todo mundo que se ganhasse o concurso nacional, iria para o Japão estudar canto. Todos ao seu redor torciam pelo seu sucesso. “O universo conspira a teu favor, né? Quando você tem uma paixão as coisas começam a girar a teu favor, as pessoas te ajudam”, ele conta.

Gratidão é o termo que o Carlos citou inumeras vezes durante nossa conversa. E foi nessa vibe positiva que ele chegou ao concurso nacional e ganhou primeiro lugar como melhor cantor, em 1981, aos 17 anos. “Eu não sei se os jurados tiveram dó de mim, mas eu fui campeão”, diz, rindo.

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Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Seu pai teve que pagar a promessa e assim Carlos finalmente viajaria para o Japão. Apesar da certeza de que iria viajar, ainda era incerta a maneira como viveria lá. O Brasil passava pela ditadura militar e não tinha nenhum acordo diplomático com o Japão. Financeiramente, era impossível enviar dinheiro do Brasil para lá. O sonho parecia distante – mas ao mesmo tempo muito próximo. Mais uma vez, rodeado de positividade, Carlos se apegou às boas energias e embarcou para Tóquio. Depois de 42 horas de viagem e 3 escalas, chegou ao Japão, onde viraria uma estrela nacional. Mas não foi tão fácil assim.

Chegar em Tóquio foi uma explosão de emoções e alegrias para Carlos. Foi lá que ele descobriu novos estilos musicais e se aprofundou em artistas que antes conhecia muito pouco por conta da ditadura militar – ele era fã dos Beatles mas nem imaginava toda a grandiosidade em torno da banda, que no Brasil ficava limitada a tocar uma outra música na rádio. Não tinha mordomia ou luxo algum, se alimentava de amostras grátis de supermercado e amendoim porque “enche a barriga, né”. Sofreu com o preconceito de ser um estrangeiro dentro da sua terra mãe – os japoneses não aceitavam o fato de Carlos ser um nipo-brasileiro. A comunicação também não ajudava: seu japonês soava ultrapassado ao tentar conversar com as pessoas. A solidão assolou sua vida. Porém, a música e o sonho de ser cantor o mantinham esperançoso. Contanto que ele tivesse um microfone e uma caixinha de som, ele ficava feliz.

Foi no seu emprego como lavador de pratos – em que ele ganhava menos por ser brasileiro – que começaram a surgir as oportunidades musicais. Por pedido de seu chefe, começou a cantar no karaokê durante os intervalos. Aos poucos, Carlos começou a ficar conhecido entre os clientes. Algumas pessoas passaram a frequentar o restaurante só para ouvi-lo cantar e uma delas o convidou para gravar comerciais de rádio. Pela grana “fácil”, ele topou e gravou seus primeiros jingles. Ao ouvir sua voz na rádio, seu orgulho em cantar só aumentava.

Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Durante os três primeiros anos de sua estadia em Tóquio, dedicou seu tempo entre os bicos que fazia, as aulas de canto e gravação de demos e ensaios com banda. Após inúmeras tentativas de entrar em uma gravadora e desenvolver sua carreira musical, Carlos pensou em desistir – achava que tinha chegado ao seu limite e precisava dar um rumo na sua vida. Decidiu que tentaria mais um ano e, caso não conseguisse, seguiria sua vida em uma nova carreira. Três meses depois, após ouvir uma das fitas demo do Carlos, o produtor Koichi Fujita queria conhecê-lo. Fujita era o produtor da banda OMEGA TRIBE, que acabava de perder seu vocalista e estava a procura de um novo. “Timing perfeito”, segundo o Carlos. Ele fez o teste e de cara gostaram do resultado. E em pouco tempo, Carlos Toshiki tornou-se o vocalista do 1986 OMEGA TRIBE, rebatizada pela nova formação.

Carlos me contou que a banda tinha uma imagem de veraneio, resort, uma estética bem tropical. E, por isso, o produtor decidiu levá-lo ao Havaí para poderem se conhecer mais e imergir Carlos na estética do grupo. Entre uma conversa e outra, Carlos comentou que achava engraçado que em japonês o numeral 1000 se fala “sen” e no Brasil “cem” é 100. A partir daí, o produtor teve a ideia para o primeiro single de Carlos com a 1986 OMEGA TRIBE: “Kimi wa 1000%” (você é 1000%), uma brincadeira entre Brasil e Japão. Carlos então gravou a música que consolidaria sua carreira e que, mais tarde, seria eleita como uma das músicas da geração. Mesmo sem entender muito o japonês da letra, Carlos gravou “Kimi wa 1000%” focando na energia que colocava em cada melodia. O single, que marca a estreia de Carlos como vocal do grupo, foi lançado em maio de 1986 e virou o tema da novela Doyou Grand Gekijou, que passava em horário nobre da televisão japonesa.


Abertura da novela Doyou Grand Gekijou com a música Kimi Wa 1000%

1986 foi um ano importante para o Japão. Marcou o início de uma bolha econômica pós-guerra, época em que o dinheiro rolava solto e os japoneses consumiam bens de consumo como nunca antes. Musicalmente, era o auge do City Pop, gênero musical que mesclava jazz, sintetizadores, rock adulto e mais um monte de referência absorvida da cena musical americana. O City Pop e a bolha econômica estavam intimamente ligados. O gênero musical representava a imagem urbana e tecnológica pela qual a bolha econômica estava guiando o “novo Japão”. Nesta época, diversos músicos e bandas surgiram (na época chamados de idol), e a música era um negócio super rentável. Novos programas de música surgiam todos os dias, cada vez mais glamurosos.

Recentemente, a internet reviveu o City Pop. O vaporwave, gênero musical que tem como base o uso de samples de músicas oitentistas misturado a outros beats, permitiu o conhecimento de diversos artistas japoneses. Até o Ed Motta tem revivido o som através das suas mixtapes. O Youtube também é uma fonte preciosa de músicas city pop. É impressionante a quantidade de vídeos gravados dos programas de música da época. Eu mesmo conheci o Carlos Toshiki e a OMEGA TRIBE através do Youtube. E isso foi um choque pra ele! Como era possível que eu, aos meus 24 anos, recifense, sem descendência japonesa conhecia uma banda que fez sucesso 30 anos atrás?

“Kimi wa 1000%” foi lançada e atingiu o 17° lugar no Oricon, parada musical japonesa. Com isso, foram chamados para se apresentar pela primeira vez na televisão, no programa mais importante da época, The Best Ten. Como o nome indica, o programa chamava os 10 melhores artistas da parada musical e fazia um segmento chamado de Spotlight, mostrando as apostas da música. Foi nesse segmento que o 1986 OMEGA TRIBE fez sua estreia. Em poucos dias, a música pulou de 17° para 7°, até que chegou ao 2° lugar nas paradas.

Primeira apresentação na TV que Carlos fez no programa “The Best Ten” 

Carlos lembra perfeitamente do dia após sua primeira apresentação na TV. “Eu saí na rua no dia seguinte e as pessoas começaram a falar meu nome, a falar: ‘Olha lá, o Carlos da ÔMEGA TRIBE’!” Da noite pro dia, Carlos tinha virado um idol. Ele brinca que sua história foi igual ao conto da Cinderela: ele dormiu como aspirante a cantor que lavava pratos em restaurante e acordou como um astro da música japonesa. Depois de três anos persistindo o sonho, finalmente conseguiu alcançá-lo. A solidão que ele sentia, entretanto, intensificou. Repentinamente, começaram a surgir inúmeros “amigos” e parentes que nunca tinham procurado o Carlos em seus quatro anos de Japão. O dinheiro não faltava, assim como as amizades por interesse. Sua essência, entretanto, continuava a mesma: contanto que pudesse cantar e expressar sua paixão, tudo estava bem.

A bolha econômica unida às tradições japonesas aumentou a pressão sobre os adolescentes da época. Eles precisavam ser os melhores na escola, na universidade e no trabalho. A concorrência era acirrada e, aqueles que ficavam na margem da excelência, se entregavam ao desespero. O suicídio era uma saída comum dessa situação. A música teve um papel importante para os jovens dessa época pois servia como válvula de escape da vida real. De alguma forma, ela ocupava a mente e evitava pensamentos perturbadores. Carlos percebia a importância que sua música e imagem tinham sobre os fãs. “Eu descobri que a musica é um instrumento que faz com que você entre no coração das pessoas na maior naturalidade”, comenta. Agradar os fãs era sua maior motivação.

O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Sua conexão com os fãs era o elo mais valioso para ele. Diariamente, Carlos recebia cartas das fãs comentando a paixão por ele e também relatando as dificuldades da vida adolescente nos Japão dos anos 80. O sentimento dos fãs inspiravam as composições de Carlos, que de alguma maneira queria retribuir o amor e admiração e ajudá-los a superar as dificuldades, assim como ele estava tentando superar a própria solidão. “Era uma relação de troca.”

Por 5 anos, a 1986 OMEGA TRIBE lançou 6 álbuns, 12 singles, mudou de nome para Carlos Toshiki & OMEGA TRIBE, se apresentou em centenas de programas, virou um dos hinos da geração. Álbum após álbum, os interesses da gravadora e os de Carlos iam se contrastando. Carlos queria seguir sua paixão, fazer músicas que tocassem seus fãs, mas a gravadora da banda não conseguiu acompanhar o amadurecimento dos fãs e começou a forçar Carlos – que na época já tinha seus 27 anos – a fazer músicas cada vez mais adolescentes e com temáticas que não condiziam com seu momento de vida. “Hoje eu vejo que a música é modismo. Se você não cantar de certo modo, você não vende. Música não é arte, é comércio.”. Esse foi um dos motivos do fim da banda, em 1991.

O ano também foi marcado pelo “estouro” da bolha econômica. Com isso, a economia japonesa entrou declínio, influenciando diretamente no modo de vida da população e na música ouvida. O City Pop, que representava toda a prosperidade da bolha, tornou-se obsoleto e ultrapassado. O som não representava mais o Japão contemporâneo. Este novo momento foi crucial para os artistas que marcaram os anos 80. Grande parte deles decaiu das paradas musicais até desaparecer no ostracismo. Carlos Toshiki, após o fim da banda, decidiu seguir carreira solo. Lançou três álbuns solos que mesclavam músicas em japonês e português.

Em certo momento da entrevista, Carlos decidiu mostrar seus vinis, revistas e CDs que guardava numa mala. Após folhear várias pastas com recortes de revista e nos mostrar com orgulho seus vinis, Carlos nos conta qual foi sua maior realização profissional nos seus 11 anos de Japão: entrevistar Zico e Ayrton Senna.

Assim como Carlos, Zico e Ayrton eram dois brasileiros que o Japão idolatrava. Senna, conhecido no Japão após o circuito de Suzuka em que conquistou três títulos, era símbolo de conduta e profissionalismo – princípios marcantes na cultura japonesa – e encantava pelo seu carisma e humor. Zico, por sua vez, conhecido pelos japoneses como “Deus do Futebol”, jogava no Kashima Antlers e ajudou a consolidar a paixão local pelo futebol. Ele abre o Youtube no seu celular e nos mostra a entrevista com muito orgulho.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Em 1995, após operar de hérnia de disco, Carlos decidiu voltar para o Brasil e deixar a carreira musical de lado. A paixão que sentia pela música tinha se transformado em um peso e cantar já não o satisfazia. De volta ao Brasil, tocou o restaurante que a família tinha em Curitiba e, atualmente, trabalha em uma biofábrica, onde reencontrou a paixão que sentia apenas pela música. Após ser um astro no Japão, Carlos é hoje um dos maiores especialistas em alho do Brasil. Mas sua carreira como artista não teve fim.

Neste ano, 30 anos depois do lançamento de sua primeira música, Carlos foi convidado pela sua banda de apoio para fazer uma turnê de comemoração no Japão. Nervoso com a ideia de voltar aos palcos e retomar a carreira que estava parada há mais de 15 anos, mas empolgado com a ideia de encontrar novos e antigos fãs, Carlos aceitou. Quando perguntei sobre suas expectativas ele respondeu, bem sincero: “Eu não faço ideia! A turnê surgiu do nada e foi toda organizada pela banda de apoio. Eu sei que estou empolgado por que vai ser um show com o Carlos de 52 anos mas com a energia que eu sentia no passado”. A turnê vai ter 12 shows – e dois deles, em Tóquio e Yokohama, tiveram os ingressos esgotados no primeiro dia de vendas. É um novo momento – agora misturando nostalgia, gelo seco, passado e presente – para Carlos ser um ídolo no Japão.

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“O silêncio também
faz parte da música” 

Os longuíssimos dreadlocks esbranquiçados que se enrolam por sobre a cabeça de Larissa Baq tem um tom parecido com o de seus olhos claros. Suas frases são embaladas por uma voz mansa de leve sotaque do interior paulista, mas é difícil distinguir se ele foi adquirido em Franca, onde nasceu, ou quando morou em Limeira, Sertãozinho, Campinas, Pedreira e Ribeirão Preto. Mais plural que sua lista de endereços passados são seus talentos para a música. Larissa é cantora, compositora e instrumentista chegada em violão, guitarra, percussão e trompete. Enquanto passa o som para o Festival Concha, ela reserva um tempo para conversar sobre timidez, silêncio e seu álbum VOA, projeto totalmente autoral lançado em abril deste ano.

Larissa Baq se apresenta neste sábado no festa Concha, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.

Risca Faca: A música começou cedo na sua vida. Você diz que aprendeu violão por influência da sua mãe e que, em casa, ouvia muito rock: Queen, Pink Floyd, Beatles… Você vem de um lar musical?

Larissa Baq: Não muito. Minha mãe toca violão e meu pai toca bateria. Eles tocavam de brincadeira na adolescência, mas ninguém acabou levando muito a sério. Quando eu nasci, e meu irmão depois, não existiam instrumentos em casa. Tinha um violão sem corda em cima do armário há muitos anos. O contato com a música se dava a partir do que eles ouviam, mas era tudo no automático. Não teve catequização da parte deles no sentido de nos fazer ouvir essa ou aquela banda.

Sua primeira composição foi aos 15 anos. Mas você só foi tomar a frente do palco mais tarde, saindo de um lugar mais discreto de compositora e instrumentista. Como foi esse processo?

Foi bem sofrido. Eu sentia a necessidade de ter uma independência porque, como instrumentista, eu só acompanhava outras pessoas. E eu também estava em um local de trás. De repente, eu estava indo para frente do palco e, ainda por cima, para cantar coisas minhas. Foram duas barreironas ao mesmo tempo. Eu queria muito fazer isso, então a vontade me impulsionou.

Você chegou a cursar Audiovisual em Ribeirão Preto. Mas a música sempre foi seu objetivo?

Eu tinha aquelas vontade clássicas. Queria ser veterinária até descobrir como tiravam a temperatura dos cachorros. Eu não tinha o sonho de crescer e ser musicista. A coisa foi tomando conta. Já existia uma predisposição desde muito cedo. Fui amadurecendo essa situação de estar tocando até que senti que existia uma linguagem para eu viver só daquilo. Eu já tinha saído da faculdade, mas mesmo enquanto estudava Audiovisual, eu me dedicava a tocar. Foi tudo paralelo. Mas desde que eu assumi só a música, eu amadureci mil por cento.

Qual foi a cronologia dos instrumentos?

Primeiro o violão, depois guitarra elétrica, aí várias percussões e depois o trompete. Levei a percussão mais a sério, estudando e tocando com outra pessoas, mas acabei largando por causa daquilo que disse: era muito sobre acompanhar outras pessoas e eu queria o meu trabalho. Então, peguei o violão e a guitarra para tocar minhas músicas. Hoje em dia é mais a guitarra que me acompanha nos shows, mas ainda vejo os outros instrumentos com muito carinho. Tenho um trompete tatuado no braço e tudo. Ainda tenho em casa todos os instrumentos que toco e, sempre que tenho um tempinho, pego um deles.

O VOA é seu primeiro álbum, mas você lançou o EP iR antes dele.

Ele está no meu canal do YouTube, no SoundCloud, mas ele fica mais escondido mesmo porque é muito diferente do que eu tenho feito nos últimos três anos. Ele é muito genérico. Eu era muito guiada por várias pessoas com que estava produzindo. Os trabalhos que vieram depois são muito mais eu. E o VOA é mais ainda.

Como você compõe?

Bem desordenadamente. Às vezes vem um início de letra que pode ter um potencial na guitarra, aí eu pego o instrumento e dou vazão ao resto da letra. Às vezes é algo na guitarra que puxa alguma lírica interessante. A letra puxa a melodia automático e vice-versa. Tudo serve de inspiração, mas basicamente relações com pessoas. Não só de amor, mas relações universais minhas e de pessoas que conheço. Tem sentimentos no disco que não necessariamente eram meus. Não gosto muito de escrever só sobre amor, mas não tem como fugir porque ele está em todas as relações. Sobre referências, acabei de passar por uma fase bem Chet Faker. Hoje ouço muito Far From Alaska, PJ Harvey, Thom Yorke, Juana Molina, o pop elétrico de Jack Garratt. Eu tenho uma boa relação com o pop, ouço Coldplay, Radiohead. De brasileiros, Guinga, Gal Costa, Lenine e mais uma porrada de gente.

O VOA veio depois de viagens que você fez se apresentando na Europa, Argentina e Uruguai. A viagem teve influência?

Algumas músicas eu compus viajando. Eu gosto muito de fazer isso porque amadureço muito meu som sozinha. E cheguei em uma identidade muito interessante, principalmente na guitarra.

O VOA foi possível por um projeto de crowdfunding no site Partio. Você disponibilizar o álbum livremente foi reflexo disso?

Enquanto filosofia artística, eu gosto muito que as músicas sejam acessíveis porque não é todo mundo que tem cartão de crédito para pagar dez dólares em um disco no iTunes. Enquanto uma pessoa que se liga no mercado da música, acho que não faz mais sentido a gente deixar as pessoas só ouvirem se elas pagarem. Principalmente aqui no Brasil. Na Alemanha, isso dá certo. As pessoas baixam o disco depois que compram. Aqui não tem como ou porque as pessoas não têm grana, ou porque não têm costume.

Como aconteceram as parcerias com a rapper britânica LyricL e com o músico Pedro Altério?

Fui para Londres em 2011 e conheci a LyricL. Voltei para lá nos dois anos seguintes, depois de lançar o iR, e mantivemos contato. Eu pirei porque ela tem uma voz muito interessante no sentido de se posicionar enquanto mulher e negra dentro da cultura hip hop londrina. Fiz o convite e ela foi uma querida. O Pedro Altério é meu irmão, a gente se conheceu há uns quatro anos, inclusive o estúdio em que gravei VOA é do pai dele. Era muito óbvia a participação dele com o álbum.

Sua música parece ter uma relação boa com o silêncio. É curioso que a primeira faixa se chame Pausa, que justamente é uma ausência de música.

Com certeza. Eu acho que muito disso vem da minha personalidade. Não sou uma pessoa que, uau, chegou e fala alto. Nunca fui muito comunicativa. Eu era aquela criança que se escondia quando chegava visitas em casa. Muito disso também é por causa da frente do palco ter me exposto enquanto compositora. Sofri muito por cantar minhas próprias músicas. Hoje em dia, eu consigo me comunicar, mas tenho bastante vergonha. Cantar na frente das pessoas não é mais um problema. Hoje tenho segurança porque é meu trabalho e sei o que estou fazendo. Eu tinha essa apreensão quanto às coisas darem certo e ao que as pessoas iriam achar. Eu amadureci e liguei o foda-se. Mas a relação com o silêncio vem da minha introspecção. Eu adoro os tempos que não existem. A definição de “música” em alguns dicionários é “sequência de sons e silêncios”. O silêncio também faz parte da música.

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Em outra dimensão

Jaloo tem suas razões para confiar no acaso. Em sua vida, a sucessão de acontecimentos imprevistos já lhe rendeu resultados positivos. Foi em uma dessas eventualidades que veio para São Paulo, chamado para trabalhar em estúdios nas regiões da Vila Curuçá e do Belém. Ali, neste mesmo bairro alguns meses depois, conseguiu conhecer seus ídolos da banda colombiana Bomba Estéreo ao chegar cedo para um show no Sesc Belenzinho. O encontro resultou em uma parceria ainda não divulgada nos estúdios da Red Bull Station.

Hoje, é ele a subir no palco. Antes da apresentação a convite da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, ele se esconde do frio de uma noite de São João na comedoria do local. Sua silhueta esguia se encorpa com um casaco azul da Adidas e se alonga sobre um sapato creepers. A touca não deixa ver, mas os cabelos são longos, fartos, negríssimos e levam um corte que remete a índios amazônicos, cantoras pop, e Judy, a irmã beatnik de Doug Funnie.

“Isso aqui que é inverno. Lá no Pará, a gente só finge que passa frio”, ele recorda com bom humor da época em que lhe chamavam de Jaime Melo pelas ruas de Castanhal. Foi ali, a poucos quilômetros de Belém, que ele viveu a maior parte de seus 28 anos. O restante de sua vida se divide entre as viagens de ônibus para Ananindeua, aonde ia estudar Publicidade e Propaganda, e a vinda para a capital paulista, há quatro anos sua casa.

A biografia de Jaloo não segue um roteiro clichê. Se hoje trabalha com música, ele não a conhecia até o fim da adolescência. Ouvia de rabo de orelha o brega que agradava seus pais e os sons de aparelhagem que a irmã punha para varrer a casa. Da mesma maneira, quem vê sua figura no palco hoje, transitando entre masculino e feminino, não imagina que sua sexualidade era reprimida a ponto de quase não existir. Seu primeiro beijo foi acontecer aos 18 anos.

A alegria era encontrada nas existências virtuais: os videogames. Até hoje, Jaloo sabe enumerá-los por ordem de processador: “Tinha o NES de 8 bits. Aqui no Brasil, o piratão dele era o Dynavision versões 1, 2, 3 e 4… No final, era tudo a mesma coisa. De 16 bits, eu tinha o Super Nintendo. Jogava tudo o que tinha para jogar, mas era louco por RPG, tipo Final Fantasy”. Os chiptunes, sons característicos dos games de primeira geração, hoje fazem parte de suas músicas. Faixas como “Last Dance”, “Ah! Dor!” e “Tanto Faz”, de seu primeiro álbum, trazem batidas que parecem saídas de consoles dos anos 1990.

A estreia de seu disco autoral leva o título de #1, lido como “primeiro”. A cifra foi escolhida por sua internacionalidade, já que o ordinal “1º” não é reconhecido mundo afora. Quem deu a dica foi Carlos Eduardo Miranda, diretor do selo Stereomono e definido por Jaloo como alguém que “está sempre um passo à frente”. O álbum sucede trabalhos que já haviam lhe garantido certa notoriedade pela internet, como o “Female & Brega”, lançado em 2012 com divas pop remixadas em tecnobrega; e o “Couve”, batizado com uma corruptela de “cover” em 2013.

Antes com status de DJ e produtor, agora recebe novos títulos. “Nunca me considerei um cantor”, ele rebate. “Eu acho ‘artista’ melhor, porque abraça todo o cuidado que eu tenho em diversos sentidos, inclusive na voz.” No gogó, diz não fazer nem firula. É dono de um sotaque leve e um vocal suave, do qual tem raiva pela falta de intensidade. Para isso, tem tentado aprender o melisma sozinho. A técnica consiste em imprimir diversas notas em uma mesma sílaba. Sabe a Mariah Carey? Então.

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Crédito: Junior Franch

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Sem autodidatismo, aliás, não existiria Jaloo. Na faculdade, depois de assistir no documentário “Brega S/A”, sobre como as festas de aparelhagens eram produzidas, baixou o software Fruity Loops pirateado e se dedicou a fazer versões de suas músicas preferidas. “É um programa que eu não largo de jeito nenhum. Todo mundo tem preconceito, ficam com essa coisa de Mac. E aí eu faço um disco rodando o Fruity Loops craqueado no Windows e a Apple Music vai lá e me considera o melhor novo artista de 2015”, ironiza.

Jaloo pede para a entrevista continuar no camarim. Lançava olhares inquietos ao salão movimentado. Nervosismo, talvez, já que dali a poucas horas ele se apresentaria. Não era. “Sou virgem com ascendente em capricórnio. É tenso. Virgem é ordeiro, chato”, ele explica. Após nos realocarmos, ele se incomoda novamente com um espelho.

Com seu trabalho não é diferente. “Não deixo ninguém encostar nas minhas coisas. A Grimes, uma das minhas cantoras preferidas, diz uma coisa que eu peguei para mim: ‘Eu não estou pedindo ajuda’. Ser autossuficiente é algo pelo que eu prezo”, afirma. “Eu dirigi meus três clipes. Mas o que mais aparece é gente querendo dirigir vídeo, produzir música para eu cantar. Se você quer minha voz, vai levar todo o pacote também.”

Já o ascendente em capricórnio ele responsabiliza por seu planejamento a longuíssimo prazo — que o faz ter até seu quarto álbum já pensado. “A ideia é lançar um por ano. No começo de 2017 sai o próximo.” E o que ele adianta? “Vai ser bem mais agressivo que o primeiro, principalmente na sonoridade. Quero que seja bem bate-coco.” Comparo com Die Antwoord, ele aprova.

[olho]”No segundo disco, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”[/olho]

“Outra coisa é que o primeiro disco segue a estética plástica. É um ser que acabou de vir ao mundo, novinho, polido, e que transita entre os gêneros. No segundo, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”, revela. “Zero Photoshop. Se duvidar, ainda vou puxar mais os defeitos: espinhas, oleosidade de pele, do cabelo. Quero que tudo apareça.”

Assucena Assucena, uma d’as Bahias, irrompe pela sala. Da bolsa, tira peças do figurino que usará no palco. Pergunto sobre o tamanho do salto. Quem responde é Jaloo: “Você acostuma. Quando laceia, não machuca mais”. Sua relação com a moda é próxima e tem se estreitado, com apelo de revistas femininas e figuras como Alexandre Herchcovitch. “Eu não me levo a sério nessa coisa de ícone fashion. Por exemplo, eu adoro repetir roupa. Acho que eles me dão essa atenção pela descontrução que eu faço da próprio moda: ao mesmo tempo que uso figurinos legais, uso moletom surrado no meu dia a dia.”

Sua inspiração artística para as roupas e a música vem de diversos canais, em um exercício de captar algo que ele chama de “tendência invisível”: padrões que se repetem na cultura popular e são identificados antes mesmo de virem à tona. A internet é um campo fértil, descoberto só depois de ganhar seu primeiro computador com 18 anos. Hoje, Jaloo declara paixão a memes em sua profusão de perfis pelas redes sociais, cada vez mais difíceis de administrar sozinho — o Facebook já é responsabilidade de sua assessoria. No visual de sua persona, a paleta de cores rosa e azul e os 3D mal acabados tem referência à onda do vaporwave, originária dos submundos virtuais.

[olho]”Gosto de ser esquisito e parecer um ET”[/olho]

Na música, é apaixonado pelo pop e vidrado em Björk. “Mas escuto muito mais os clássicos do que os trabalhos atuais. Se você for ver, eu ouço mais Ariana Grande”, ele responde em menção a uma fase mais experimental da islandesa. As comparações que tem recebido da imprensa com ela, David Bowie ou Lady Gaga, porém, ele dispensa: “É errado achar que os brasileiros estão chupinhando tudo o que os estrangeiros fazem”.

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Jaloo em ação. Crédito: Fernando Galassi
Jaloo em ação. Crédito: Fernando Galassi

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Da mesma forma em que usa referências populares para criar, Jaloo pretende que suas criações caiam em domínio público em uma espécie de ciclo energético da criatividade. Em apelo aos fãs, pede para que eles postem seus clipes e remixes em seus canais do YouTube. Isso porque o site costuma barrar obras que não possuem direitos autorais, como seu cover de “Baby”, escrita por Caetano Veloso. Afinal, é a partir desse desprendimento inventivo, da pirataria e do sample, que floresceram ritmos como seu tecnobrega nativo.

“O kuduro em Angola, o funk no Rio, o tecnobrega na Amazônia, o bhangra na Índia… São todos feitos com software piratas, são todos distribuídos e consumidos pela periferia, e não se comunicam um com o outro. Eu chamo isso de ‘elo invisível’ entre as periferias e comparo com as pirâmides, que existiam nas civilizações maia e egípcia sem elas nunca terem se encontrado. E aí dizem que os extraterrestres são mediadores disso e eu adoro essa coisa de alienígena. Gosto de ser esquisito e parecer um ET. Eu chamava minha música de sci-fi brega.”

O termo já não é mais usado por Jaloo por receio de que ele engesse sua vontade de estar em constante mudança. Talvez por esse desprendimento de rótulos, ele consiga se aproximar naturalmente de temas que exigem tanto engajamento: maconha, androginia, homossexualidade. “Isso é minha natureza. Não gosto de falar que levanto bandeiras porque não tenho essa pretensão. Ser comparado a uma mulher na juventude me deixava triste. Hoje me fortalece. No fim das contas, é o que sou. Não quero ser uma pauta de programa de TV.”

Jaloo sai apressado sem se despedir. Ainda precisava se maquiar e aprontar o figurino. Quando entra em cena, ele é uma visão em branco com um collant que marca suas costelas. Minutos antes, ainda no camarim, ele dizia que já fora muito julgado por sua origem, sua sexualidade e seu trabalho com batidas eletrônicas e referências populares. Atualmente, ele diz não se incomodar mais por haver encontrado seu público, que neste momento acompanhava-o nos refrões embalados pelos instrumentos da Cozinha Mineira e por sua mesa de som futurística.

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O novo mundo de Mahmundi

Marcela Vale trocou os chinelos na areia pelos sapatos no asfalto. Desde sua recente mudança para São Paulo, a cantora carioca está feliz de uma forma diferente. Abre a janela, repara nos prédios, contempla as pessoas e suas relações. A mudança geográfica, afinal, não veio só. Coincidiu com a chegada de seus 30 anos, uma transformação mais íntima – e com o lançamento de seu primeiro álbum.

Mahmundi é seu nome. Tanto do disco, como do projeto, como da cantora. O termo tem diversos significados. “Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era. Não é a projeção de um personagem”, define. “É um processo de entendimento enquanto indivíduo.”

O álbum nasce dessa autopercepção artística. Em um processo de imersão, sua casa no Rio de Janeiro tomou as formas de um estúdio em janeiro de 2015. A produção foi feita por ela mesma. O resultado é um compilado de canções que lhe agradavam, algumas inclusive já publicadas. “Quase uma mixtape”, em suas palavras.

[olho]“Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era”[/olho]

A comparação com o retrô das fitas cassetes caseiras é adequada. Isso porque Mahmundi tem uma pegada oitentista que não é intencional, mas é natural dado o ressurgimento dos anos 1980 na cultura pop. Essa é sua inspiração: aquilo que escutava nas rádios ou nos discos que comprava, “de Calypso a Phil Collins, tudo que soa bem, que é confortável, que é bom”.

Foi assim, aliás, que ela aprendeu música: a partir daquilo que era ouvido e cantado pelas pessoas. Desde a descoberta musical com o gospel durante a pré-adolescência no bairro de Marechal Hermes, periferia do Rio; até o trabalho como produtora musical da casa de shows Disco Voador.

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“Não quis direcionar para essa ou aquela época, para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Acho que consegui unificar ali um sentimento do mundo. Tem piano e sintetizador; tem o trap de Wild, a refrescância de Hit, a volta de Calor do Amor”, diz. “Quis fazer canções boas o bastante para você me ligar e batermos esse papo sobre música.”

Sua busca por algo intimista neste primeiro trabalho não foi um processo solitário. Ao contrário, contou com olhares alheios como o de seu amigo Hugo Braga, o Yugo, pesquisador musical que está por trás da direção de seus clipes e do visual do álbum. “Foi alguém que olhou para mim quando eu não me via”, lembra ela.

A grande vitória de Mahmundi, para ela, é que seu som esteja tocando em fones de ouvido mundo afora, sua intenção desde o início. Se, há cinco anos ela começava em sites MySpace e Soundcloud; agora ela lança sua obra em serviços de streaming e no YouTube. Muito disso é possível pela direção artística de Carlos Eduardo Miranda, acostumado a trabalhar com artistas independentes no selo Stereomono.

Marcela, assim, fica livre para desenvolver sua criatividade. E Mahmundi se beneficia disso. Seu processo de composição, por exemplo, é próprio. Como toca mais do que escreve, suas letras vêm depois da composição melódica. Assim, Mahmundi é um álbum que fala de amor, verão e mar de forma polifônica. Tanto na voz quanto na melodia.

“O objetivo do meu trabalho é que ele se comunique com as pessoas. A mudança pra São Paulo me deu esse olhar sobre o indivíduo. Eu posso estar aqui, mas sempre projetei minha música para ser de qualquer lugar.”

Talvez por isso ela diga que sua “alma continua com o pé na areia” mesmo com a chegada do (fraco) inverno paulistano. “Acho bonito como os espaços estão sendo apropriados aqui em São Paulo. Os grafites, os estudantes ocupando as escolas…”

Enquanto descobre uma nova cidade, Marcela não se preocupa com o tempo. Sabe que está em trânsito aqui, ainda quer ir para Portugal, para o Japão, para o Nordeste. Na bagagem, tem material e interesse em novos timbres. “Quem sabe não lanço um disco de pagode”, ela ri. “Mahmundi é caminhada. Mas a música é o centro disso tudo. E, sem música, eu não estaria em nenhum lugar.”

Mahmundi toca no Festival Path, neste fim de semana, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.

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Som e imagem

Quando escrevo para Pedro Bromfman para confirmar nossa entrevista para dali cinco minutos, ele responde que seu compromisso com o novo episódio de “Narcos” tinha sido adiantado e que ele teria que sair logo. Remarcamos. Mesmo o espectador mais atento do mundo provavelmente não reconheça o nome de Pedro, mas sua assinatura está em todos os episódios da primeira temporada da série do Netflix. É um tipo curioso de trabalho: se você está entretido na trama, é capaz de nem perceber o que Pedro fez. Porém, não dá pra saber como a série seria sem ele ali. Quer dizer: dá. Seria esquisitíssima. Como em outros trabalhos de José Padilha (“Robocop”, os dois “Tropa de Elite”, “Rio, Eu Te Amo”), Pedro é o compositor da trilha sonora da série.

Uma rápida passada de olhos por sua página no IMDb, o currículo de qualquer um envolvido em cinema ou televisão, revela trabalhos em outras produções bem variadas, passando pela comédia romântica “Qualquer Gato Vira-Lata”, com Cleo Pires e Malvino Salvador, o documentário “Mataram Irmã Dorothy” e, mais recentemente, “Em Nome da Lei”, filme de Sergio Rezende com Mateus Solano e Paolla Oliveira que estreou no fim de abril. A pré-estreia do filme, aliás, é motivo para a visita de Pedro, que mora nos Estados Unidos, ao Brasil. É a melhor parte do trabalho, diz ele, rindo. No resto do tempo, escrever trilhas “é mais transpiração que inspiração”, conta. Não dá pra ficar de papo pro ar, com a página em branco na frente, esperando a ideia chegar.

Pedro Bromfman, compositor de trilhas sonoras para cinema e TV
Pedro Bromfman, compositor de trilhas sonoras para cinema e TV. Crédito: Daniela Scaramuzza

Pedro começou a fazer trilhas um pouco que por acaso, numa época não havia muita gente especializada nisso no Brasil. Começou a estudar música por volta dos dez anos de idade, quando ganhou o primeiro violão, dedicando-se à prática desde o início. “Queria realmente levar a sério, estudar composição e arranjo. Aos 18 anos fui pro Berklee College of Music, em Boston”, conta. Lá, estudou performance e composição. Voltou para o Brasil, montou uma banda, produziu discos e aí começou a fazer algumas coisas para comerciais, o primeiro passo pra nova carreira. Naquela época, gostava de cinema, mas nunca tinha pensado em trabalhar com isso. Seu negócio mesmo era tocar. Foi por iniciativa da mulher, diretora de cinema, que ele voltou aos Estados Unidos, para Los Angeles, onde sua trajetória profissional mudou.

“Eu estava um pouco frustrado com o mercado de música instrumental aqui no Brasil. Isso foi no começo dos anos 2000. Acabamos indo juntos pra Los Angeles e lá entrei de cabeça nesse mercado de trilhas”, lembra. “Fiz uma especialização lá e comecei a trabalhar com alguns compositores de trilha, fazendo música adicional, ajudando com programa de televisão, coisas assim. Eventualmente comecei a ter a minha chance.” Quando vinha para o Brasil batia na porta de produtoras para se apresentar, aproveitando o fato de que ainda não tinha muito gente que fizesse o que ele fazia. “Naquela época era um país com músicos maravilhosos, mas com pouca gente que entendia realmente como a trilha funciona. Hoje tem muito mais gente capacitada trabalhando. Mas em 2004, 2005, pouca gente se dedicava exclusivamente a isso. Começou a me abrir portas aqui também.”

O primeiro grande projeto fez barulho: “Tropa de Elite”, primeira colaboração sua com José Padilha. A continuação do filme, então, era a maior bilheteria nacional no Brasil até “Os Dez Mandamentos”, neste ano. “Estar lá [nos Estados Unidos] me abriu portas aqui, porque eu tinha especialização e experiência de longa data de composição e orquestração. E o fato de fazer filmes aqui — e um filme como ‘Tropa’, que viajou — começou a me abrir portas lá”, diz Pedro. “Sempre digo que não basta estar preparado e ter talento. Precisa de sorte nesse mercado de cinema. Você tem que estar no lugar certo na hora certa, conhecer as pessoas certas e aí estar preparado pra entregar e fazer o trabalho direito quando te chamarem.”

INTERLÚDIO

Ouça a cena prestando atenção na trilha sonora.

LIBERDADE CRIATIVA

Mas o que significa, exatamente, saber fazer trilha sonora? Não é como compor músicas para um disco próprio. Pra começo de conversa, tudo tem que estar de acordo com a visão do diretor. Numa produção americana, por exemplo, costumam chamar o compositor quando já há um primeiro corte do filme ou programa de TV. As fases de roteiro e filmagem já ficaram bem pra trás. “A cabeça de Hollywood é de que não é só arte, é indústria. É mais uma cabeça de cronograma, orçamento, bem certinha”, diz Pedro. Chegar tão tarde na produção não é o ideal para ele. “Eu gosto — é como trabalho com o Zé Padilha — de me envolver o quanto antes. Ler o roteiro, nem pra começar a gravar coisas, mas pra ter ideias, conversas criativas com o diretor, entender os personagens, qual a instrumentação que deve ser usada.”

No caso de “Narcos”, Pedro não foi à Colômbia, onde a primeira temporada foi gravada, mas recebia imagens assim que as filmagens começaram. “Eu já tinha lido o roteiro do piloto [primeiro episódio] e comecei a compôr música lá no início. Muitas das músicas que compus lá viraram os temas principais. Mas muitas vezes acontece também de você começar cedo, fazer algumas coisas e depois olhar as imagens e falar ‘não é bem por aí, vamos repensar’. Às vezes você lê o roteiro e acha que sabe tudo de que o filme precisa, mas aí você vê as primeiras cenas e realmente vê o tom do filme e das atuações, e é aí que você vê.”

Quanto antes o compositor entra no projeto, maior sua liberdade criativa. Quando um filme já chega nas suas mãos em um primeiro corte, muitas vezes já vem com uma música temporária. Sem música, fica estranho ver um filme e os editores colocam algo para ajudar no ritmo. “A música muitas vezes funciona de uma maneira subconsciente. Você nem está ouvindo realmente, mas se ela não estiver ali você não sente a parte emocional do mesmo jeito. Se você passa um filme sem a música a pessoa não chora, mas se você põe a sala inteira vai ficar emocionada porque é pele”, opina.

No caso de “Em Nome da Lei”, por exemplo, Pedro também participou desde o início e pôde dar suas opiniões a respeito de como deveria ser a música. “Obviamente se eu entrego uma faixa que [o diretor] não gosta ele diz que não é bem por aí. Mas num esquema bem colaborativo, de mandar uma coisa, ele responder, eu defender minha ideia”, diz. “Eu acho que é isso que o cinema é, realmente. Uma grande colaboração de todas as artes. O trabalho do diretor é conseguir unificar aquela visão e passá-la pra todos os departamentos do filme.”

Para ser um compositor de trilhas também é preciso ser versado em músicas de diferentes tipos. Cada projeto, ou cada gênero de filme, pede um tipo de música. “Já fiz trilha que era quase só tango do começo ao fim. ‘Robocop’ tinha uma orquestra de 80 músicos com mistura de música eletrônica”, diz. Hoje, acaba mais fazendo mais filmes de ação, o que considera normal pelo caminho de sua carreira. “As pessoas veem um filme de ação ou de drogas e falam ‘ah, gostei da música dele, vamos chamar pra fazer outro filme assim’. Qualquer oportunidade de sair um pouco disso, fazer uma comédia romântica, uma animação que for, eu abraço. Principalmente se for um projeto interessante. Obviamente a primeira decisão do sim ou do não é se o tema me interessa.”

E, é claro, produzir independente de inspiração. Nem sempre é fácil. “Toda vez que eu começo um projeto eu penso que não tenho ideia do que fazer. É como se eu esquecesse o que eu faço cada vez que eu começo. Aí passo duas semanas com o filme, digerindo, experimentando uma coisinha ou outra até a hora que a coisa engrena. Aí a gente encontra o tom e a instrumentação, e a partir dali a coisa flui”, diz. Mas mesmo antes de pegar no tranco ele se compromete a sentar no estúdio todo dia às 9h e trabalhar até as 18h. “Talvez no dia seguinte eu não goste de nada do que fiz. Mas todos os dias tem alguma coisa produzida. Música pra cinema é muito mais transpiração que inspiração. Inspiração é o que você absorveu ao longo da vida, de filmes que viu, músicas que ouviu, estudos que fez, instrumentos que aprendeu a tocar. No dia a dia a coisa é sentar e produzir.”

https://www.youtube.com/watch?v=U7elNhHwgBU

O resultado de tudo isso é fazer com que trilha e filme casem perfeitamente. Pedro diz que sabe que está diante de um grande filme quando ele presta atenção na trilha, mas nem tanto assim. Nesse caso ele ouve de novo a trilha em casa (entre os ídolos aponta Ennio Morricone, atual vencedor do Oscar por “Os Oito Odiados”, Thomas Newman, indicado a 13 Oscar — o último por “Ponte dos Espiões”, neste ano –, e Gustavo Santaolalla, que ganhou o Oscar por “Babel” e “O Segredo de Brokeback Mountain”).

Para quem quer começar a trabalhar com trilhas hoje há mais caminhos, inclusive especializações no Brasil. Há um mercado grande, particularmente, para trilha sonora de videogames, conta ele, que trabalhou no jogo “Max Payne”. “Foi meu primeiro e único trabalho até agora, mas é um mercado que cresce muito. Os fãs jogam o dia todo e aquela música fica embrenhada, eles são mais apaixonados pelas trilhas que os fanáticos por cinema”, diz. A experiência foi boa, mas no cinema há mais controle sobre a obra. “No videogame você faz a música, mas não tem como saber se aquilo que você escreveu vai tocar exatamente naquele momento. Todas as músicas têm que poder voltar pro começo e não terminar nunca até que você passe de um ponto, ou mude de fase. Aí começa uma nova música”, diz. No cinema, se ele escreveu aquilo para a cena X, sempre irá tocar na cena X.

Agora, além de trabalhar na segunda temporada de “Narcos” (acabou de terminar o quinto episódio e faz mais ou menos um capítulo a cada dez dias), faz a trilha da série “Rio Heat”, com Harvey Keitel. Também cita um projeto com José Padilha sobre o qual não pode falar (dias depois da entrevista, o Netflix revelou que vai exibir uma série do diretor sobre a Operação Lava Jato). O ritmo é forte, diz. “Não estou fazendo a música só pela música. Não interessa se ela é a mais bonita do mundo, se a melodia é a mais linda, estou fazendo a música pro bem de uma obra maior, ajudando uma cena e personagens. Esse é o grande lance.”

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Deus e o sexo na terra de Prince

Touré jogou basquete com Prince, o que transforma imediatamente todas aquelas coisas cool que você achou que tinha feito na vida em banalidades. Touré, assim mesmo, sem sobrenome, é pai de Hendrix, que aos oito anos é uma figura excepcional, sempre pronto a abraçar você. É jornalista, trabalhou com cultura um tempo na revista Rolling Stone, MTV, mas hoje é mais conhecido por falar de política.

Touré também é apaixonado por Prince. Escreveu um livro sobre ele, “I Would Die 4 U: Why Prince Became an Icon”, lançado em 2013. Quando recebeu a notícia da morte de Prince ficou um tempo “sem conseguir pensar direito”. E depois, passou mais um longo tempo sem conseguir dar uma entrevista sobre qualquer outro assunto.

Na última segunda, falei com ele por telefone. Expliquei para ele que queria tentar dar uma dimensão da importância de Prince para os americanos.

“Nos anos 80 nos EUA, a conversa era: você gosta de Michael Jackson ou Prince. Você tinha que escolher um, e essa escolha dizia muito sobre quem você era”, ele explica.

“Muitas pessoas estavam do lado do Michael Jackson, e ele representava uma doçura, uma bondade, enquanto Prince era o perigoso, o selvagem, o sexo, a loucura. Prince era religioso e espiritual, mas o que aparece mais em sua música era o sexo. Se você escolhia ele, era isso que estava em sua cabeça.”

Pergunto qual foi a influência de Prince na vida de Touré. “Um exemplo de como ser um homem, de como ser um homem negro, de como falar com as mulheres e se relacionar com elas, de como ser uma pessoa sexual. Para muitas pessoas, Prince é importante porque ele deu a elas a permissão, a liberdade para ser tão sexual quanto elas quisessem. Isso é muito importante pra mim e pra muitas pessoas.”

A dualidade entre sexualidade e espiritualidade é um dos pontos centrais do livro, ao lado da história da infância de Prince, na qual, depois do divórcio de seus pais, o artista fica sem ter onde morar, e acaba indo viver com uma amiga da família. “Veja só: não tinha ninguém em sua família que pudesse recebê-lo, tinha que ser alguém de fora da família? De qualquer forma, é o que sabemos sobre esse período. Essa amiga que o recebe tinha seis outros filhos e fazia faculdade. Quer dizer: quanto tempo ela podia ter disponível para ele? Provavelmente bem pouco, e isso permitia a ele ter todo o tempo para fazer o que quisesse, e o que ele queria era fazer música o tempo todo. Ele tocava em bares de strip, bar mitzvahs, estudando o tempo todo e vivendo a música.”

Com isso, aos 18 anos, Prince já tinha um contrato com a Warner para gravar três discos. “Ele se desenvolveu como músico na adolescência e, mesmo sendo tão jovem, várias gravadoras fizeram propostas. Prince tocava muitos instrumentos, cantava, dançava, era de fato impressionante, ele era visto como ‘o próximo Stevie Wonder’, um artista que escrevia, tocava, cantava, então havia muita excitação na indústria, e ele acabou escolhendo quem ofereceu mais controle sobre a obra,” diz Touré.

Em 1993, Prince brigou com a Warner justamente por causa do controle sobre sua obra. O artista então mudou seu nome para um símbolo impronunciável. Se você curtia Prince à época, talvez se lembre. Se você nasceu entre 1960 e 1975, não pode ter ignorado Purple Rain, e o que veio depois. “O problema é que ele queria lançar tanta música quanto conseguisse. Ele pensava: faço um monte de música, eu sei que ela é ótima, então quero lançar tudo, enquanto a gravadora queria um pouco mais de cuidado, quer dizer, às vezes menos é mais, acho que eles talvez tivessem um ponto aí.”
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“Prince podia lançar um disco de dez faixas em que todas as músicas eram extraordinárias – Purple Rain tinha nove faixas. Mas ele queria lançar um álbum triplo, e algo se perdia aí: havia tanta música que assustava as pessoas e elas não necessariamente queriam passar por tudo aquilo, não havia o mesmo foco, não acontecia aquela conexão que acontecia antes”, analisa Touré. “A fase final de sua carreira foi marcada por uma queda de vendas e atenção por conta de tanta coisa sendo produzida. Muitas pessoas realmente consideravam que ele precisava mesmo era de um editor que pudesse ajudá-lo a decidir que parte daquilo lançar ou não. Mas isso, claro, é uma fantasia, ele não aceitaria isso.”

PERÍODO EXTRAORDINÁRIO

Digo a ele que, embora tenha sido muito fã em algum momento, tinha deixado de prestar tanta atenção em Prince desde a polêmica do “nome/não nome”, e que achava que no Brasil a maioria das pessoas tinha feito o mesmo. Ele não ficou surpreso, mas considera isso pouco importante.

“Para mim o mais importante é esse período inacreditável no começo da carreira em que ele fez tanto sucesso. Ele mudou a música dos EUA, a maneira como as pessoas pensavam sobre música e até sobre como elas pensavam nelas mesmas com essa sequência fantástica de álbuns”, ele conta, antes de começar a listar os melhores momentos. “Dirty Mind, de 1980, estabelece uma base de fãs. Depois vem Controversy, Purple Rain in 1984, no ano seguinte Around The World in A Day, seu tributo aos Beatles, Parade em 1986, um album duplo, Sign O’The Times em 1987 e, em 1988, Lovesexy, uma espécie de distilação, de explicação de sua filosofia musical e religiosa, da relação entre sexualidade e espiritualidade e como ambas estão completamente relacionadas e interligadas para ele.”

“São oito anos, oito álbuns, um deles duplo, e todos são álbuns extraordinários, uma das maiores sequências de lançamentos da história. Ninguém teve isso. Michael Jackson não teve uma sequência como essa.”

No meio desse período porém, Prince grava, mas não lança, o Black Album aquele que, em tese, seria a resposta negra aos Beatles, sua grande obra, seu melhor trabalho.

“O que aconteceu foi o seguinte: na noite anterior ao lançamento do album, na noite anterior ao dia em que ele seria enviado pela gravadora, o último momento em que dá pra parar algo, Prince estava com uma de suas jovens beldades e a história diz que eles tomaram cogumelo, ou algo assim, e Prince teve uma visão de que se esse fosse seu último álbum, o que isso significaria para o mundo, e isso seria algo ruim, a negatividade vencendo a positividade, então ele resolve não lançar o álbum. Ele então recontextualiza o que tinha e faz Lovesexy, que é um álbum positivo, vibrante, do qual ele poderia se orgulhar se fosse a última coisa que ele fizesse antes de nascer.”

E o Lovesexy é um disco incrível, não?, pergunto sobre o que é de longe meu disco preferido de Prince.

“Sim”, ele concorda, “embora não tenha ido muito bem comercialmente”, o que provavelmente se explica pelo menos parcialmente pelo fato de que o disco trazia uma faixa só, contínua, com as nove músicas.

Pergunto se ele acha que nessa dualidade, alguém prestava atenção na parte da espiritualidade, ou se a parte da sexualidade sempre foi muito mais forte. “Acho que as pessoas pegaram mais a parte do sexo, mas é por isso que eu insisti no ponto do amor, da espiritualidade, da divindade, da cristandade, que eram muito importantes para ele”, diz Touré.

ESCOLHIDO

Questiono se Prince e Michael Jackson têm mais uma coisa em comum: o fato de se sentirem “escolhidos por Deus”.

“Definitivamente. Michael e Prince eram tão talentosos mas também extraordinariamente trabalhadores, mas ambos de alguma forma sentiam que tinham recebido algo de Deus, e essa é uma das razões pela qual Prince põe tanto Deus em sua música: ele sente que a música tem que ter um propósito porque a música flui para ele constantemente, ele estava constantemente escrevendo, criando, gravando, e ele sentia que era algo maior do que ele. Ele não tinha controle sobre esse fluxo, então como explicar essa torrente? É um presente divino, então ele tinha que mencionar Deus.”

No final da vida, Prince era Testemunha de Jeová. Há relatos de pessoas que estavam em casa num final de semana quando batia alguém à porta. Era Prince, querendo converter os moradores a sua nova religião.

O lado “hard working” de Prince também é citado por quase todo mundo que fala dele: o cara era capaz de acordar as 3 da manhã e ligar para o engenheiro de som porque queria gravar algo. Quando tinha uma idéia, queria gravar na hora, não podia esperar o dia seguinte. Vê semelhanças com Kobe Bryant, pergunto, influenciado pela aposentadoria recente do craque dos Lakers. Mas Touré dá risada.

“Eu compararia com Michael Jordan, o cara que ensinou o Kobe a fazer isso! E Michael Jordan é muito mais o vencedor contumaz. Entrevistei o Prince mais para o final da carreira do Jordan, e ele, como metade do país naquela época, era torcedor dos Bulls, e tinha uma reverência especial a Jordan.”

Além da fatídica partida de basquete que Touré jogou com Prince, o autor relembra outros momentos marcantes em sua vida. “Depois dos shows sempre tinham umas festas, você precisava conhecer alguém que soubesse onde ia ser, e eu consegui ir a algumas delas. Em uma delas me lembro que estava a Claire Danes, muito antes de ‘Homeland’. Eram Prince, Lovequest e D’Angelo, e era numa época em que Prince simplesmente não tocava as músicas velhas. Então Lovequest resolve testar os limites, e leva D’Angelo a começar uma musica daquela fase, e Prince simplesmente diz ‘não’, e some, de repente.”

Sobre seus últimos dias, o que há são fofocas. A narrativa que parece mais frequente é a de que o cantor não usava drogas nem álcool. Poucos dias antes de morrer, ele tinha sido visto andando de bicicleta por Minneapolis – onde nasceu e de onde nunca saiu.

Touré começa seu livro explicando a importância de Prince para a chamada Geração X. Talvez essa influência seja muito mais sentida nos EUA, de fato, do que no resto do planeta. A história do compositor, do instrumentista que muitos dizem ter sido um dos maiores guitarristas de seu tempo e do cantor cuja voz era várias em uma, porém, é rica, assim como sua obra.

Assim como Bowie, Prince deixa uma obra completa e complexa, daquelas que dá pra descobrir e redescobrir por um outro enfoque algum tempo depois. Completa e complexa como sua personalidade. E como a influência que deixou sobre toda uma geração de americanos – e, por que não, de não-americanos também.

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Vida longa ao CD

Primeiro, a má notícia para os CDs: segundo o último relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, divulgado em abril do ano passado, as vendas de discos físicos caiu 8,1% em 2014. O Brasil não é exceção à regra: se em 2013 a venda de CDs rendeu 185,7 milhões de reais, no no ano seguinte o valor foi 14,4% menor: 159 milhões (no período anterior a queda havia sido semelhante: 15,5%). Mas números não são tudo na vida, e apesar de o CD já ter vivido dias melhores, há uma parcela de fãs que não abre mão do formato, que não tem a aura retrô do vinil, nem a praticidade dos serviços de streaming.

Por influência da família, pelo prazer de ter o encarte na mão, por achar que o som é melhor ou pelo prazer de ver a coleção crescer, os motivos citados para explicar o apego ao formato criado nos 1980 variam. O bancário Emílio Pacheco, 55, é desses que não abandona o barco: desde que começou a comprar CDs, em 1989, nunca mais trocou de formato. “Sou fã de carteirinha do formato compact disc, não vejo nenhuma vantagem nos demais”, conta o dono de uma coleção de cerca de 4.000 CDs. Para ele, o disco é um objeto de coleção, um item de valor, como um selo para um filatelista.

Assim como deixou os vinis de lado, não aderiu às novas formas de escutar música. “Não acredito que o streaming já tenha igualado a qualidade de som de um CD em um bom equipamento. Existe, isso sim, a opção de baixar um arquivo de áudio de alta definição. Mas continuo preferindo o CD original, com um encarte caprichado.” A opinião é compartilhada por Rodrigo Alves, dono de 2.700 CDs e da loja Choke Discos. “A qualidade é bem melhor que qualquer streaming”, diz. Além disso, ter um disco físico em mãos faz com que ele não dependa de celular ou internet pra ouvir música. Mesmo assim, todos os amigos estranham, conta.

Preferência por CD não significa, porém, que serviços de streaming não tenham nenhuma utilidade. Rodrigo até usa e diz que adora, mas não encontra nem em Spotify, Google Play ou Deezer “bandas obscuras e coisas mais independentes”. Pela praticidade, Emílio às vezes recorre ao YouTube. “Se já estou no computador e me dá vontade de ouvir uma música nos fones, é mais rápido procurar no YouTube para rodar na hora”, conta. “Mas jamais deixaria de comprar um CD só porque posso ouvi-lo no YouTube. Acho sensacional poder ouvir álbuns inteiros lá, mas para decidir se compro o CD ou não.”

“Os CDs são caros, sempre foram caros, e não dá pra comprar tudo que desperta seu interesse sem antes ter uma espécie de ‘controle de qualidade’, que só é possível pela audição experimental”, concorda Cesar Sousa, 36. Em reuniões com amigos também é mais prático colocar logo uma playlist no YouTube do que ficar trocando de CD toda hora, concede. “Ideal para momentos em que a gente precisa dar atenção pra muita gente, em casa. Para os momentos mais introspectivos e intimistas, os discos e CDs mandam”, diz. Em sua opinião, CDs são menos supérfluos que downloads. “Você, de fato, tem a obra em mãos, e ela se torna a trilha da sua vida daquele momento. Ela fica na estante, você passa e fica admirando, vez por outra, todos os seus CDs e discos, e eles trazem em si um fragmento da sua vida. É uma relação muito mais profunda, uma relação duradoura com a arte, com o artista.”

NA ESTANTE

A preferência por comprar discos na internet ou em lojas físicas é dividida entre os fãs de CDs. Emílio, por exemplo, prefere comprar seus discos pela internet, mesmo que exista a loja física — nesse caso, vai até o local buscar a encomenda — e recorre também a sites estrangeiros, como a Amazon.

“Achei engraçado quando, há muitos anos, uma pessoa da família me perguntou, bem impressionada: ‘Você compra disco todos os meses?’. Todos os meses? Uma vez por semana, no mínimo! Até hoje é assim”, diz Emílio. “Sempre que vou a lojas como Saraiva e Cultura, dou uma olhada pra ver se não tem nada que me interesse. Raramente saio de mãos vazias.” O cuidado com os CDs é tão grande que para ouvi-los no carro ele faz cópias. “Jamais carrego originais comigo.”

O biólogo Fernando Alvarenga, 43, por outro lado, acha o carro o melhor lugar para ouvir seus CDs — em casa, prefere os vinis. Ouvir discos físicos, diz, é um costume. “Curto pegar o CD, olhar o encarte, ver a arte.” Só no mês passado comprou 30 CDs, e mais 12 vinis. Diz que não tem muitos, “uns mil” CDs. “Por ter sido meio nômade quando mais novo vendi muitos CDs e LPs”, conta. Colecionar CDs é coisa de roqueiro, opina ele. Um público fiel que não para nunca de escutar aquelas músicas. No caso do pop, “em que intérpretes por vezes alcançam sucesso com um hit e depois somem, esse disco fatalmente um pouco e depois some”.

Não é o caso, por exemplo, do DJ Cristiano Pereira, 28, que cita entre seus favoritos CDs de Sandy & Junior, Legião Urbana, Laura Pausini e Silva. Já da geração YouTube e Spotify, Cristiano diz que sempre tem alguém que estranha seu hábito de comprar CDs pelo menos uma vez por mês, de preferência em lojas físicas — sua coleção tem por volta de 400 exemplares. Como os outros fãs de CD, diz que nada substitui o encarte com fotos e letras e o prazer de ter algo físico nas mãos. “Não quero só ouvir a música, quero me relacionar com ela de outra forma.” Mesma resposta que dá Tiago Rolim, 38, dono de aproximadamente 5.000 CDs. Questionado por que ainda compra os discos, diz: “Minha esposa vive me fazendo essa perguntas! Virou um vicio já. Acho chato ouvir musicas em celular, ou no computador. Até escuto, mas não gosto. Gosto de ter o encarte, ler as letras, essas coisas do século passado”. A imensa maioria de amigos, aliás, nem sabe que ainda se vendem CDs. “Sério isso.”

Dimas Marques, 26, vive situação parecida. Seus amigos já abandonaram a mídia, com exceção de uma amiga que já “está mais pra lá do que pra cá”. Ao responder quantos CDs integram sua coleção, dá a resposta precisa: 768, todos catalogados em um arquivo de computador. Ver seus discos elencados na estante lhe dá uma sensação de “real” que o digital não consegue. “Sempre gostei do formato físico, de ir à loja, procurar e achar algo legal, de pegar, olhar o encarte, ter uma estante organizada.” Usa, sim, o YouTube para ouvir música, mas para descobrir coisas novas e acrescentar à sua lista de compras — que inclui fitas cassete, que considera mais difíceis de adquirir. Todo mês ele adquire pelo menos um disco novo. Só lamenta o pouco número de lojas físicas em sua cidade, Maceió, Alagoas.

NA FAMÍLIA

Para a estudante Jéssica Mar, 23, dona da página A Menina que Colecionava Discos, comprar CDs é também algo afetivo: foi uma tradição que começou com seu pai e aumentou depois que ele morreu. “Desde criança eu gostava de ir nas lojas com meu pai e ficava olhando os encartes, mas eu sempre comprava algo mais infantil”, lembra. “Esse foi um dos legados deixados por meu pai: paixão pela música. Cresci vendo ele comprar CDs e discos, aumentando a coleção, cuidando com muito carinho e me ensinando tudo sobre cada artista e música. Quando ele faleceu, não tinha como deixar de lado. Minha paixão aumentou e eu continuo cuidando e aumentando a coleção deixada por ele. Sei que ele está feliz vendo que continuo levando seu legado em frente.”

Jéssica coleciona música em qualquer formato: CD, vinil, fita cassete, DVD. É também eclética na forma de comprá-los: faz pela internet, em sebos, lojas, troca com conhecidos. Toda semana costuma comprar pelo menos um CD de sua lista. “Já me falaram que é estranho eu ficar nas vitrines olhando os CDs, pois geralmente o pessoal já vai na intenção de comprar algo específico. Mas eu adoro ficar olhando, vendo os lançamentos, descobrindo bandas novas, admirando os encartes.”

Ela conta que a maioria de seus amigos adora música, mas nem todos costumam comprar CDs, ressaltando que os preços são elevados. Mas com dois amigos ela costuma levar CDs dos artistas quando vai a shows para que eles autografem. “A maioria leva folha de papel ou alguma foto. Fica nítido que o artista adora ver que compramos algo dele, ou que temos aquele CD em edição especial”, afirma. São os CDs autografados alguns dos xodós de sua coleção. “Mas mais que isso tenho um sentimento muito grande por quase todos que eram do meu pai. Por isso sinto prazer em cuidar e aumentar a coleção.”

NA BALANÇA

O CD tem outro ponto a seu favor: a qualidade do som. Enquanto é consenso que o som de um disco físico é melhor que o de um MP3 baixado na internet (“Eu não tenho um iPod… Eu ainda uso CDs ou discos. Às vezes fitas. Tem um som muito melhor, muito melhor que o digital”, declarou Keith Richards em 2013.), a disputa entre CD e LP é mais acirrada. À reportagem da LA Weekly o ex-engenheiro de som da Philips declarou no ano passado: “Se você medir a diferença, o CD é absolutamente melhor que o vinil. Mas se você disser que a experiência é melhor — como fumar charuto com os amigos –, então faça. Curta fumar charuto com amigos, e beber cerveja e brandy ouvindo a um velho disco. Mas não diga que o som é melhor”.

Segundo o engenheiro de som Bob Clearmountain, quando ele fazia vinis para a Columbia, a gravadora fazia um teste que colocava cada LP em uma vitrola velha e barata, com o objetivo de chegar até o fim sem pular. Caso falhasse, o disco teria que ser mixado de novo. Um som muito baixo ou vocais cheios de som de letra “s”, por exemplo, poderiam fazer com que a agulha pulasse, então seriam menos desejáveis e deveriam ser editados. Uma reportagem de 2014 do site Vox, também investigando qual som é melhor, aponta outras questões e afirma que, se as notas são muito baixas, menos áudio cabe no vinil. Se as notas são muito altas, pode haver distorção. Por isso, na hora da masterização, muitas vezes os extremos eram cortados, deixando a música diferente do que o almejado pelos músicos.

Mas a questão é ainda mais complexa e a LA Weekly acrescenta que todos os engenheiros de som ouvidos pela publicação disseram que não é difícil achar LPs que soem melhor que CDs, já que a qualidade de quem produz cada um pode alterar dramaticamente a posição de cada mídia na balança. Também existe uma questão de preferência pessoal. Muita gente prefere o chiado do vinil e a sensação reconfortante que ele proporciona. Segundo a Vox, isso se deve às mudanças que os engenheiros fazem no som do baixo na hora de produzir o vinil, que acabam agradando esteticamente parte do público, embora o som seja diferente do ao vivo. O fato é que, embora seja comum ouvir por aí que o vinil é superior ao CD, não é bem esse o caso. São experiências diferentes, mas não dá pra dizer que o LP seja melhor em qualidade de som.

NAS LOJAS

Nas paredes da Baratos Afins, a loja de discos mais antiga na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, parte de um acervo de 100 mil CDs dividem espaço com parte de 100 mil discos de vinil, enfileirados por todos os cantos da loja em ordem alfabética — o resto da coleção da loja, presente no local há 37 anos, está em um estoque. O público, conta Carolina — filha do fundador da loja, Luiz Calancas — é variado: tem gente que chega com listas de compras nas mãos e gente que quer buscar algo na coleção — tarefa que pode levar horas. “Dá pra ficar o dia inteiro e não ver tudo.” Alguns, inclusive, são velhos conhecidos.

Como que pra provar a afirmação, entra um cliente fiel, que puxa papo com os vendedores e dá um pitaco na conversa. “MP3 é muito abstrato. É diferente ter o objeto”, diz ele. O papo envereda para o retorno das fitas cassete, mas aí todo o mundo concorda que já é demais. “Eu curtia fazer fitinha, seleção pra dar pras pessoas”, lembra Carolina. “Romântico. Muito romântico”, diz o freguês. Mas ele ressalta, dando mais uma vantagem do CD em relação às mídias concorrentes: com ele ainda dá pra fazer suas próprias coletâneas e dar de presente pros outros. Ele faz até hoje. Romântico. Muito romântico.

Entre os gêneros mais populares, o rock é o maior, responde Carolina sem pestanejar. Principalmente o internacional, mas os nacionais também saem bem. “Nacional a gente tem de tudo. MPB, rock, samba. Mas pra comprar e repor, é menos, porque não tem uma demanda igual de rock”, diz ela. “MPB é muito cíclico. Se você for ver os fãs do Chico [Buarque] de dez anos atrás, talvez metade consome disco. Às vezes o cara já tem tudo. Mas o de rock sempre vem atrás de coisa nova, de coisa que já passou, mas lá atrás ele deu menos importância. Acho que o público do rock é mais fiel ao consumo de disco.”

Não há um tipo específico de cliente em busca de discos físicos na loja — tem gente de todas as idades e todos os gostos. “Desde o moleque que tem a cultura familiar, até aqueles que estão descobrindo esse prazer. Muitos músicos”, conta. Não há som tocando na loja e os funcionários não têm o hábito de dar indicações. “Nem todo o mundo gosta do que eu gosto. É que nem vendedor de sapato, que já traz um monte de opção, mas eu não gosto.”

Quilômetros dali, em Pinheiros, a pequena loja Pops Discos, numa galeria na Teodoro Sampaio, também resiste bravamente — só com CDs, sem discos de vinil. Também rola por ali um clima familiar: enquanto toca a rádio Eldorado, um cliente conversa com o dono da loja sobre o jogo da seleção brasileira da noite anterior enquanto passa os olhos pelos álbuns e escolhe um. Organizados em ordem alfabética, os CDs carregam uma etiqueta com um código. Para os não iniciados, como eu, não faz sentido. Pergunto o preço e me mostram como usar uma tabela que mostra o preço de cada coisa com base nos códigos, “para a próxima vez” que eu for lá. Definitivamente um clima família — e, empolgada, levo uma caixa com cinco CDs do Gil que não fazia parte dos meus planos.

Aberta há 36 anos, a Pops começou como uma loja de vinil — hoje não os vende porque são muito caros. Lá, o que mais sai é música nacional e rock, e a maioria dos clientes já vai à loja com o que quer em mente, depois de olhar na internet, conta Ademir Manzato, fundador da Pops. O público, diz ele, tem faixa etária acima dos 40. Depois concede: 30. Mas não mais novos do que isso. Pelo tamanho do espaço, vender CD é mais fácil que vinil. Além do que, diz Ademir, vinil é muito caro. Se a moda pegar de vez e ficar mais acessível, quem sabe.

Na Barato Afins, Carolina conta que nos últimos anos houve uma queda na venda de CDs, acompanhada de um aumento na venda de vinis. “A gente sentiu uma diferença quando surgiu a internet. Muita loja fechou aqui por causa disso, as pessoas começaram a baixar música. Não precisava mais da fitinha pra trocar música. Não são nem os serviços de streaming [que fizeram a diferença no movimento], quando a internet ficou mais fácil pra todo o mundo deu uma caída, sim. Principalmente nas lojas que só vendiam CD”, diz ela. O disco físico, opina, terá vida longa. “Sempre vai ter mercado. Ninguém deixa de fabricar selo, por exemplo, sempre vai ter comércio pra isso. Colecionador… Quando o movimento começou cair e a gente pensou em abrir outra coisa, a gente pensou que já estava no ramo e sempre vai ter gente nostálgico. Eu sou suspeita. Mas nostalgia mexe com o emocional e sempre vão buscar coisas do passado.”

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As faces de David Bowie

David Bowie se foi. Aos 69 anos, o Starman decidiu partir para novas explorações espaciais e nos deixou aqui, tristes, desconsolados, mas felizes ao revisitarmos toda a sua obra, todas as suas fases, todos os seus discos, todos os seus rostos. E por causa das diversas facetas de Bowie, que lembraremos com emoção em todos os anos que virão pela frente, convidamos o desenhista Odyr Bernardi para retratar alguns dos semblantes mais marcantes do camaleão. Cinco momentos, cinco histórias, cinco faces de alguém que não será esquecido.

Além das belas ilustrações, fiquem também com o lindo relato de Brian Eno sobre o amigo que se foi:

“A morte de David veio como uma completa surpresa, como praticamente tudo sobre ele. Agora, eu sinto um enorme vazio.

Nós nos conhecemos por mais de 40 anos, em uma amizade que sempre foi marcada por ecos de Pete and Dud. Nos últimos poucos anos – com ele morando em Nova York e eu em Londres – nossa conexão foi feita por email. Nós nos despedíamos com nomes inventados: alguns deles eram ‘mr showbiz’, ‘milton keynes’, ‘rhoda borrocks’ e ‘the duke of ear’.

Cerca de um ano atrás nós começamos a conversar sobre o Outside – o último álbum que trabalhamos juntos. Nós dois gostávamos bastante do disco e sentíamos que ele não teve a devida atenção. Nós falamos sobre revisitá-lo, levando-o para um lugar novo. Eu esperava por esse momento.

Eu recebi um email dele sete dias atrás. Como sempre, era algo divertido e surreal, indo e vindo em um jogo de palavras e alusões e outras coisas típicas que fazíamos. E terminava com esta sentença: ‘Obrigado por nossos bons tempos, brian. eles nunca irão apodrecer’. E estava assinado como ‘Dawn’.

Agora percebo que ele estava dizendo adeus.”

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Descanse em paz, Bowie.

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Cultura Música

As melhores músicas de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Ontem já contamos quais foram nossas séries favoritas do ano. Hoje, falaremos das melhores músicas de 2015. Novamente, não é um ranking, apenas as que mais nos agradaram. A diferença aqui é que há duas listas na lista: primeiro, as melhores nacionais do ano, depois as melhores internacionais. Vai vendo:

NACIONAIS

Rodrigo Ogi – “Virou Canção”

O disco do Ogi é um dos melhores do ano e conseguiu a façanha de agradar desde a rapa do rap nacional até a galera que por muito tempo ignorou o rap e agora percebeu que tem muita coisa boa (demorou, mas aconteceu). “Virou Canção” é o símbolo disso: um assunto comum ao rap nacional (a perda dos parceiros durante a vida) contada em uma letra fenomenal, interpretada de forma emocionada por Ogi (“parte de mim falece / e esse dia na deprê eu não fui na quermesse / mas recebi uma proposta que a cobiça cresce / peraí, tava ali, um jeito de impressionar Magali”) e que, de quebra, ainda conta com a participação de Thiago França no sax quebrando tudo e fazendo muitos olhos encherem com a nostalgia daqueles que se foram. [Leo Martins]

Aláfia – “Salve Geral”

“Com a nossa rapa você não é capaz”. “Corpura”, novo disco da super-banda Aláfia, é um manifesto, uma causa, um evento. A música de abertura “Salve Geral” é uma paulada logo de cara para você arregalar os olhos e prestar atenção em cada palavra, cada acorde, cada momento do que vem na sequência. [LM]

Naldo & Mano Brown – “Benny e Brown”

https://www.youtube.com/watch?v=7Sd7o7YxRNQ&feature=youtu.be

“Quando o funk chegou a São Paulo, falei para os rappers: ‘Vocês vão ficar para trás, estão escrevendo música para a minha avó ouvir’.” Que falou isso para O Globo foi Mano Brown que, mesmo tendo lançado um disco novo do Racionais no ano passado, parece não estar mais tão em paz com o rap. Por isso foi até o Rio de Janeiro e fez uma parceria improvável com o Naldo Benny, que faz parte de seu disco “Sarniô”. A letra é cheia de momentos e homenagens curiosas – de Emerson Sheik até Romero Britto –, mas esse funk meio trap segura bem no refrão e a parte do Brown é, como de costume, uma aula de métrica e flow. Como ele mesmo disse na mesma entrevista ao Globo, “o funk é revolucionário, doa a quem doer”. [LM]

Jads & Jadson – “Toca um João Mineiro e Marciano”

Artistas como Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran e Maysa já expressavam em suas canções o sentimento chamado de “fossa”. “Toca um João Mineiro & Marciano” aborda intensamente esse desespero da desilusão no relacionamento, “afogado” na mesa do bar. Não há enredo, personagens, mas apenas a ambientação do porre, do barman desconfiado com uma suposta inadimplência, da jukebox com o hit antigo, dos primórdios do sertanejo romântico. Ele a traiu? O pai dela é coronel? Ele foi pego perambulando pelo Tinder? Nunca saberemos. A música traz uma experiência bastante inovadora, Jads & Jadson são um upgrade às duplas caipiras das décadas de 60 e 70. Há um distanciamento do frescor pop dos demais nomes do sertanejo dito universitário. O clipe da canção é magnífico e, além da homenagem na letra, traz o próprio Marciano em sua exótica indumentária, que remete à figura do Dr. Fu Manchu. [Marcelo Daniel]

INTERNACIONAIS

Drake – “Hotline Bling”

Se não é a música do ano, tá ali nas primeiras posições. É aquele hip hop pop que todo mundo acaba consumindo, com uma letra fácil de grudar, um refrão, um papo de “ei, mina, que isso” típico de quem tomou um pé na bunda e acha que pode ficar palpitando na vida dos outros, e um clipe que instantaneamente virou máquina de piadas por causa das dancinhas do Drake. É o tipo de música que você ouve desde o carro rebaixado na quebrada até a festa descolada lotada de gente branca. Ou seja, tem tudo que um hit precisa. [LM]

Kendrick Lamar – “Alright”

Kendrick não fez só o melhor disco do ano. Ele criou hinos. “Alright” é uma delas, uma música sobre ser negro na América, sobre ser cristão na América, sobre pecar na América, sobre o demônio na América. “All my life I has to fight, nigga”. Além do peso que a canção teve nos EUA em um ano de tantos protestos contra a violência policial contra os negros no país, Kendrick ecoa todas as suas habilidades como rimador, escritor e poeta. Para completar, a música recebeu um dos melhores clipes do ano, com peso, humor e força merecidos. [LM]

Jamie XX – “I Know There’s Gonna Be (Good Times)”

A música mais VIBES de 2015 é de alguém que costumava tocar músicas meio tristes no The xx. O disco do Jamie XX não é uma obra-prima, mas “I Know There’s Gonna Be (Good Times)” é das melhores coisas que aconteceram em 2005, com dois dos rappers de inglês mais difícil de entender (Young Thug, com seu flow solto, e Popcaan) e um refrão que, espero, seja o mote de 2016. [LM]

Justin Bieber – “Sorry”

2015 foi o ano em que boa parte das pessoas tentou se justificar perante algumas músicas do disco novo do Justin Bieber. Não precisa se justificar não, galera. O disco tem boas músicas mesmo. “Sorry” é a melhor delas, com uma produção impecável, uma letra bestinha mas grudenta, e um refrão ótimo. O menino cresceu, aceitem. [LM]

The Internet – “Girl”

Syd the Kid, a mina de 20 e poucos anos que dominou o disco “Ego Death”, do The Internet, é foda. Ela espalha sua habilidade durante o disco todo e se sobressai de seus parceiros. Mas é “Girl”, que ela criou junto com outro jovem prodígio, o produtor KAYTRANADA, uma das melhores músicas-xaveco de 2015, que Syd exibe sua voz, seu flow suave, e dá a letra na garota dos seus sonhos, que ela quer que seja sua namorada, e quer muito. [LM]

Sufjan Stevens – “No Shade in the Shadow of the Cross”

Toda vez que você duvidar que o Sufjan Stevens vai dar uma nova facada no seu coração, ele chega lá e PLEI. Aconteceu de novo com “Carrie & Lowell”, o disco-homenagem para sua falecida mãe. O fenômeno ocorre por diversas faixas, mas “No Shade in the Shadow of the Cross” é uma música tão simples e poderosa, dessas que faz você ficar em silêncio, repensando diversos momentos, acontecimentos, histórias. E lá pros últimos versos ele ainda canta os versos “There’s blood on that blade / fuck me, I’m falling apart” e, putz, dói. [LM]

Beach House – “Space Song”

Dream pop é um nome esquisito para estilo musical, né? A única banda que consegue fazer realmente jus ao termo é o Beach House. A banda lançou dois discos esse ano, os dois com a mesma pegada de fim de tarde na praia, aquela moleza depois do Sol e de algumas latinhas de danone. “Space Song”, do álbum “Depression Cherry”, mantém a história do Beach House em seus primeiros discos, com aquela dose de melancolia misturada com uma certa felicidade, aquela sensação de que, bem, uma hora as coisas vão dar certo, né? [LM]

Joanna Newsom – “Leaving the City”

“Leaving the City” é a música mais completa, complexa e surpreendente do novo disco da Joanna Newsom, “Divers”. A elfa toca a harpa, mostra todos os traços de sua voz e, de repente, quando você acha que a toada será a mesma, entra uma bateria marcada, uma guitarra nervosa, como é bom uma guitarrinha nervosa assim, diz aí. [LM]

Sángo – “Não Falo” (Feat. MC Nem)

O Sángo já lançou três beat tapes em homenagem à favela mais conhecida do Rio de Janeiro. O cara realmente pirou no funk carioca e curtiu fazer várias misturas com elementos de trap. “Não Falo” é uma mistura desses dois mundos: o beat do funk, o vocal acelerado, e os recortes precisos do produtor. É pura curtição. [LM]

The Weeknd – “Can’t Feel My Face”

Lembra Michael Jackson, não lembra? Com um cabelinho doido, mas lembra. A música que uniu todas as tribos em 2015. [LM]

Kanye West – “All Day”

O disco ainda não veio, mas o ano não passou batido para o Kanye West. E “All Day”, a primeira parceria com Paul McCartney, é uma paulada. É forte, tem letra, o refrão curto e rápido do Allan Kingdom tem impacto, o Beatle no final é incrível e, para completar, essa apresentação no Brit Awards foi com vantagem a melhor do ano. [LM]

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A máquina de hits

O que “Everybody”, dos Backstreet Boys, “…Baby One More Time”, de Britney Spears, “Roar”, de Katy Perry, e “Shake It Off”, de Taylor Swift, têm em comum? Todas têm na lista de autores um mesmo nome: Max Martin. O sueco, único compositor na lista dos 50 melhores da revista Rolling Stone a ter construído uma carreira a partir dos anos 90, é uma máquina de fazer hits. Tanto que, neste ano, Justin Bieber declarou não sentir que “ligar pro Max Martin e pedir pra ele te escrever um hit” é fazer música de verdade. Para muitos cantores pop hoje em dia é assim que funciona: em busca de um novo sucesso, procura-se Martin — que costuma entregar o que promete.

Max Martin é o mais bem-sucedido de um pequeno grupo de compositores e produtores da Escandinávia por trás de grande parte dos maiores hits das últimas décadas. Seu mentor, o também sueco Denniz PoP (1963-98), foi responsável por canções como “All That She Wants”, do Ace of Base, e “As Long As You Love Me”, dos Backstreet Boys. Já os noruegueses Tor Erik Hermansen e Mikkel Storleer Eriksen, conhecidos como Stargate, fizeram “Worth It”, do Fifth Harmony, “Don’t Stop the Music”, de Rihanna, e “Irreplaceable”, de Beyoncé.

No livro “The Song Machine” (Editora WW Norton, 288 págs., R$ 150 em papel e R$ 52 em versão digital), o jornalista da New Yorker John Seabrook mostra como a produção de hits é praticamente industrial. Criadas em pouco tempo por equipes munidas apenas de um computador, essas canções seguem quase uma receita, na qual a letra importa pouco e as batidas misturam, em suas palavras, vodca e MDMA ao pop chiclete de antigamente.

A imagem do cantor compositor, sentado na cama com um violão escrevendo suas canções num caderno, não tem lugar no mundo pop de hoje. Quem mais se aproxima disso é Taylor Swift, conhecida por falar de todas suas desventuras amorosas em suas músicas. Mas mesmo ela não costuma compor sozinha. Das 13 canções de seu último disco, “1989”, apenas uma tem só seu nome nos créditos. Max Martin aparece como compositor nos maiores sucessos: “Style”, “Blank Space”, “All You Had to Do Was Stay”, “Shake It Off”, “Bad Blood”, “Wildest Dreams” e “How You Get the Girl”. O mesmo vale para Adele. Em “25”, que lançou neste mês, todas as canções têm coautores — Martin entre eles.

 

Seabrook, que levou quase quatro anos nas pesquisas para o livro, não é exatamente um fã de pop. Seu gosto pessoal pende mais para o rock, mas descobriu anos atrás que o gênero era um ótimo tema para conversar com seu filho adolescente, que controlava o rádio a caminho da escola e escutava canções nas quais ele nunca tinha ouvido falar.

Nos últimos anos, fez alguns artigos sobre música pop para a New Yorker, meio que por acaso. “Nunca fui um escritor de música pop. Sempre me interessei por canções, nos momentos de inspiração e em como ideias podem virar dinheiro”, conta. “Mas meio que caí nesse tema. Começou com uma ideia que um editor da revista sugeriu.” Nas páginas da revista, escreveu sobre o pop coreano, sobre o produtor e compositor Dr. Luke, discípulo de Max Martin, e sobre o próprio Martin. Um texto seu de 2012, no qual traçava um perfil da equipe por trás do sucesso de Rihanna, foi inclusive publicado com o título “The Song Machine”, a máquina de canções.

UMBRELLA ELLA ELLA

Rihanna, aliás, é uma espécie de síntese do processo descrito por Seabrook. “Umbrella”, música que fez com que ela estourasse em 2007, não só não foi escrita por ela como nem foi escrita para ela. A história começa com o grupo de compositores de Atlanta formado por três homens. Um deles, Tricky Stewart, vinha de uma família de escritores de jingles que tinha no currículo canções para marcas como Coca-Cola e McDonald’s. Tricky cresceu em estúdios aprendendo a fazer músicas pegajosas e, por influência da mãe, estudou produção musical em vez de algum instrumento (assim ele teria mais futuro, pensou ela). Com outros membros de sua família, Tricky abriu a produtora RedZone Entertainment e durante anos trabalhou sem produzir um grande hit.

O jogo virou com “Umbrella”, uma criação conjunta. Kuk Harrell brincava com uma batida no computador quando Stewart entrou na sala e complementou o som com uns acordes no teclado. Terius Nash ouviu tudo, pegou um microfone, e começou a cantar algumas palavras aleatórias que vieram à cabeça. Assim nasceu o famoso refrão “under my umbrella ella ella ê ê”.

 

Sabendo que tinham algo bom em mãos, os três procuraram um artista para gravar a música. Tentaram Britney Spears, a cantora mais famosa que conheciam, mas ela recusou. Depois disso, tentaram o executivo L.A. Reid, que a mostrou para Rihanna, que, por sua vez, amou a canção e quis gravá-la. Os autores, porém, queriam alguém mais conhecido para “Umbrella” e, no início, negaram. Com a ajuda de Jay-Z, Rihanna acabou convencendo a equipe.

Mas o nascimento de um hit não é tão simples. É fundamental para que uma música toque bastante na rádio para estourar, e para que isso aconteça é necessária uma campanha pesada da gravadora. Segundo uma investigação da rádio pública americana NPR, citada pelo livro, uma gravadora desembolsa tranquilamente pelo menos 1 milhão de dólares para emplacar uma única música nas rádios, influenciando as datas e horários em que ela vai tocar e o número de vezes em que ela será repetida durante o dia. “As rádios precisam de música contagiante o suficiente para manter as pessoas ouvindo mesmo com os anúncios e as gravadoras precisam das rádios para vender suas músicas. Ambas precisam de hits”, escreve Seabrook.

POP ESCANDINAVO

“Umbrella” foi escrita por americanos, mas a origem dessa fábrica de canções está na Suécia nos anos 1990, com Denniz PoP, então um DJ de 28 anos parte do coletivo SweMix, que remixava sucessos dos Estados Unidos para o público europeu. O sonho de Denniz, conta Seabrook, era misturar as batidas dançantes dos clubes com o pop das rádios e seus refrões marcantes. Ele já havia trabalhado com algumas bandas quando recebeu uma fita com uma gravação de um quarteto chamado Ace of Base com uma mensagem: “Por favor, ouça essa fita e nos ligue”.

O DJ colocou a fita para tocar em seu carro e antes de terminar a canção já sabia que não queria trabalhar com eles. Mas seu rádio quebrou, a fita não saía e Denniz ficou ouvindo a música sem parar por duas semanas. Foi aí que teve o estalo. Mudou a melodia toda, colocou uma linha de baixo, deixou a música em acordes maiores, mas o refrão em menores, simplificou algumas coisas e batizou a composição de “All That She Wants”. A música foi um sucesso, inclusive nos Estados Unidos.

 

Denniz teve uma carreira curta, mas foi o responsável pelo Max Martin compositor. Martin era um cantor de glam-rock chamado Martin White quando assinou um contrato para trabalhar com Denniz, que o colocou sob sua asa. Denniz percebeu que Martin era melhor como compositor do que como cantor e o ensinou a usar o estúdio. Não há nenhuma gravação disponível na internet de Martin cantando, mas segundo Seabrook, que ouviu a versão do compositor de “…Baby One More Time”, sua voz é muito boa. Inclusive, ele envia suas versões das canções para o artista exatamente do jeito que ele quer que elas sejam cantadas.

Martin é bastante recluso e não quis falar com Seabrook, que contornou a questão usando entrevistas que ele havia dado a uma rádio sueca em 2008 que ainda não tinham sido traduzidas para o inglês. “Isso respondeu a maior parte das questões que eu teria perguntado”, afirma. O jornalista diz entender que Martin não goste muito de falar. “Ele é sueco! Eles não gostam muito de chamar a atenção. E como é melhor que todos achem que o artista escreve suas próprias músicas sua natureza reclusa encaixa muito bem com seu trabalho.”

E por que o pop deu tão certo na Escandinávia? Seabrook arrisca uma resposta. “ Nos Estados Unidos os compositores crescem com uma divisão entre pop e R&B que vem de categorias raciais de 60 anos atrás, mas que ainda são muito reais em termos de quem escreve cada música”, diz. “Pessoas brancas não escrevem R&B nos Estados Unidos. Mas na Suécia isso não é um problema. Pessoas como Max Martin se propuseram a escrever R&B para artistas negros, mas como são suecos, não saíram músicas exatamente desse gênero. Quando ele escreveu …Baby One More Time para o trio de R&B feminino TLC, elas ouviram a demo e disseram não.”

ME BATA MAIS UMA VEZ, BABY

Uma consequência curiosa desse arranjo é que as letras dessas músicas às vezes não fazem muito sentido. O refrão de “All That She Wants”, por exemplo, diz “all that she wants is another baby”, que seria algo como “tudo o que ela quer é outro bebê”. Frase estranha para uma música pop. O objetivo, conta o jornalista, era dizer “tudo o que ela quer é outro namorado”. A mesma coisa para “…Baby One More Time”. O nome original da música era igual ao refrão: “Hit Me Baby One More Time”, o que significa, ao pé da letra, “me bata mais uma vez, baby”. O que os autores queriam era dizer “me ligue de novo, baby”.

 

“As letras são menos importantes hoje fora do mundo do hip hop, em que ainda é importante que as frases signifiquem algo, sejam inteligentes ou chocantes. No pop as letras são só levemente melhores que na música disco”, afirma Seabook. “Em parte porque as músicas são construídas em torno da batida e da melodia e a letra é escrita em função delas. Na composição tradicional a letra nasce com a melodia. Agora ela vem no fim do processo.” E, é claro, porque como inglês não é a primeira língua dos compositores, às vezes as frases ficam truncadas.

Sem escrever suas próprias canções, os artistas perdem um pouco de seu controle criativo sobre a própria obra. “Mas eles ganharam poder com a ascensão das mídias sociais e controle sobre a própria imagem. Antes eles precisavam de repórteres musicais. Agora, não. Por isso as revistas de música estão desaparecendo”, afirma. Sobre as cantoras que fazem sucesso hoje, ele diz acreditar que são mais atrizes do que as divas de voz poderosa como Céline Dion e Whitney Houston. “Elas interpretam um papel e a música é como um roteiro. Se elas conseguem fazer diferentes papéis, como Rihanna e Nicki Minaj, melhor. Whitney Houston era sempre Whitney, não importava a música. Mas Rihanna muda a cada canção.”

Após passar anos em estúdio acompanhando processos de composição e produção, Seabrook diz que, embora existam segredos que não lhe contaram, não há uma fórmula secreta para escrever um hit. “Existe um processo industrializado que permite às pessoas que escrevam muitas músicas no mesmo tempo em que compositores levavam para escrever poucas. No livro, chamo isso de ‘track-and-hook’. Mas você ainda deve deixar a arte prevalecer em algum ponto do processo.”

O tal “track-and-hook” se refere à divisão entre a batida (track) e a melodia (hook), inventada por produtores de reggae na Jamaica. Lá, produtores faziam uma batida e convidavam vários cantores para gravar músicas a partir dela. “Hoje, o ‘track-and-hook’ virou o pilar da música popular. É comum que um produtor mande a mesma batida para várias pessoas — em casos extremos, até 50 — e escolha a melhor melodia entre elas.” Para Denniz PoP, conta Seabrook, compor era um esforço coletivo: como num programa de TV, em que vários roteiristas se reúnem numa sala e trocam ideias. Martin compartilha essa filosofia.

No site de John Seabrook há uma série de playlists para serem escutadas enquanto se lê o livro. Há uma divisão por capítulos, que engloba todas as canções citadas em ordem, e por produtor. “Ficou óbvio pela reação dos meus primeiros leitores que as pessoas largavam o livro para ouvir as músicas no YouTube. Idealmente você teria um livro em que você clicaria nas músicas quando elas aparecessem no texto. Mas esse tipo de livro não existe.”

Ouvir as canções dá uma boa dimensão do alcance de um grupo de produtores e compositores tão restrito que se pode contar nos dedos de uma mão. Pense em algum artista pop dos anos 1990 para cá: pelo menos uma música sua estará na playlist. Mas, segundo Seabrook, como todas as tendências na música, esse pop de hoje está fadado a acabar. Em breve? “Já passou da hora!”

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Uma década a 45rpm

Em uma manhã chuvosa, fim do verão de 2004, eu assinava o certificado de reservista na junta militar do Viaduto Jacareí, no centro de São Paulo, e entrava oficialmente na idade adulta, embora sem muita convicção. Longe dos estudos, sem trabalhar e tensionado pela imaturidade, eu sentia no alto dos meus dezoito anos o peso do rito de passagem. Mas essa não era a única metamorfose latente. O rock, especialmente punk e hardcore, que ditara meu comportamento desde a adolescência, influenciando a forma com que eu percebia o mundo e me via perante ele, já não me bastava. Uma necessidade quase física me empurrava a novos ritmos e melodias.

Naquele dia, enquanto aguardava o burocrático processo, rodava no meu discman um CD que eu baixara na internet por influência de um primo, com clássicos do reggae. Gênero que, até então, eu praticamente desconhecia e que há um par de meses absorvia completamente minhas atenções. Ainda que eu não fosse muito afeito à natureza e viagens místicas. Coisas que, pensava eu, faziam, obrigatoriamente, parte da vida de quem curtia Bob Marley. Apesar do meu próprio preconceito e autocensura, não podia disfarçar que a febre jamaicana tinha me acometido.

Descobri, na velocidade de um modem 56K, mais informações sobre aquele ritmo hipnótico e sua cultura. Bob Marley não era o único mito da pequena ilha caribenha; o reggae era apenas uma das possibilidades dentre as vertentes da música jamaicana; sua origem era urbana, nada tinha a ver com som de cachoeira ou trampos de Durepoxi; e o melhor de tudo: em São Paulo, havia uma festa, bem na Boca-do-Lixo, quando o centro ainda não estava na moda, a Susi in Dub. De quebra, ela era comandada por um DJ japonês, que tocava reggae de verdade, com discos de vinil e caixas potentes. Melhor rolê da cidade, diziam.

O disco dá voltas

Lá, ouvi e vi, pela primeira vez, a destreza de Fabio Murakami, ou melhor, Yellow-P, nas pick-ups. Era uma sexta-feira. Logo ao entrar no local, um forte grave irrompeu no meu tórax. Combinado às intermitentes guitarras, o som formava uma espécie de colchão sonoro que dava um toque inebriante ao ambiente. O DJ de olhos puxados, envolto a uma fumaça branca e densa, soltava pedradas musicais, uma atrás da outra. O chiado dos vinis reverberava nas paredes sem reboco, fuzilando de ricochete os ouvidos de no máximo 100 pessoas, apertadas e em transe, dançando ao sabor daquela que, para mim, era a maior novidade do ano.

Passados onze anos, reencontro o paulistano descendente de orientais em outra situação, dessa vez em sua casa, na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, com o reggae emancipado e atraindo cada vez mais público. A cultura sound system, na forma de coletivos e festas, já não é novidade e se multiplica por todos os cantos. Hoje, é possível curtir música jamaicana, seja qual for a vertente, quase que diariamente, sem exageros. Os discos ficaram mais acessíveis por conta da internet e a capital paulista entrou na rota de grandes nomes da cena, com a vinda de cantores, produtores e DJs, jamaicanos ou não, a exemplo de Lee Perry, U-Roy, Skatalites, Mad Professor, Roy Ellis, Tommy Far East, entre outros. Mas nem sempre foi assim, digamos, fácil. Principalmente para os primeiros que se aventuraram a fazer das vitrolas suas vidas.

Apesar de a cultura sound system e a cena reggae serem populares no Maranhão há algumas décadas, sob o nome de “radiolas”, aqui em São Paulo a coisa se desenrolou apenas na virada do século. Lutar contra a escassez de discos e recursos, a estigmatização do ritmo, além da desinformação do público sobre em que consistiam as festas, eram algumas das missões mais árduas para os iniciantes do negócio. Foi necessário muito empenho para que o status do ritmo fosse aos poucos se alterando.

Influenciado por uma tia que frequentava shows de reggae no início dos anos 90 e que chegou a namorar o baixista do Shabba Ranks, Fabio Murakami, 35 anos, começou sua coleção com CDs, ainda adolescente, e comprou seus primeiros discos de vinil por telefone, de uma loja britânica descoberta através do livro “Rough Guide”. “Aqui não havia discos de vinil de reggae, era mais pop e rock. Em Londres, sim, a loja se chamava Dub Vendor. Liguei e tive a sorte de ser atendido por uma portuguesa. Fiz uma seleção dos produtores que eu mais gostava e deu certo”, recorda-se sobre o início da saga. “Aproveitei que minha tia estava na casa da melhor amiga, na Inglaterra, ela que me trouxe os discos. Ainda me lembro: foram 15 vinis de sete polegadas; Lloyd Parks, King Tubby, Johnny Clark… Coisas que toco até hoje.”

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Yellow P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: Divulgação
Yellow-P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: André Freitas

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Com os discos em mãos e algumas parcerias firmadas, não levou muito tempo para que pintassem as primeiras festas e o pseudônimo, Yellow-P, trocadilho com a ascendência japonesa (Yellow Power). Afinal, “DJ Fabinho” lembrava uma coisa meio rádio FM e festa de praia, tudo o que à época ele queria evitar. O primeiro evento com organização própria, oficialmente, aconteceu no fim de 2001, na Green Express, pico tradicional da comunidade maranhense em São Paulo. Falantes ruins, mais de dois mil cartazes colados à mão, trabalho braçal de divulgação. Ali nascia o coletivo de sound system Dubversão, que alcançaria, anos mais tarde, grande projeção devido às famigeradas noites no Susi, culminando na festa mensal Java, que rola desde 2006, e influenciando as novas gerações de DJs que surgiriam ao longo da década.

Aqueles foram anos de militância. Onde quer que abrisse um espaço para o reggae, lá estaria Yellow-P e o Dubversão. A casa de show KVA — conhecida pelo forró –, uma praça na Lapa e até um acampamento do MST abrigaram suas caixas de som e seus vinis. A convite de uma amiga, para um dia cultural na ocupação, ele foi parar em um acampamento do movimento, perto de Mairiporã, debaixo de uma chuva torrencial. “Essa festa no MST foi inesquecível, legal pra caralho. Fomos muito bem recebidos. No dia, caiu um temporal absurdo e, na cabana onde estávamos, entrava água por todos os lados, o equipamento ficou encharcado. Foi a primeira vez que tomei uma chuvarada na cabeça”, diverte-se ele.

Se o pessoal do MST recebeu a festa de braços abertos, não se pode dizer o mesmo do público clássico do reggae, acostumado às tradicionais versões tupiniquins do roots internacional, feitas por bandas como Tribo de Jah e Planta & Raiz. “Cadê os músicos?”, indagavam. É só um DJ? É instrumental e não tem vocal? O que é isso? A estranheza era tamanha que, no início, nos versos dos flyers das festas, a equipe se prontificava a explicar, como numa cartilha, que dub é um recurso de mixagem das bases do reggae em estúdio, com efeitos eletrônicos, criado nos anos 70. Para Yellow-P, o público do reggae não só não entendeu o que era como virou as costas. E os leigos nem frequentavam, porque existia uma imagem estereotipada do gênero. Algo que o Dubversão em muito ajudou a desconstruir.

De lá para cá, tudo mudou. Se no início, Fabio discotecava com apenas 100 discos, ou menos, hoje ele possui aproximadamente dois mil. Não sabe nem dizer. Além disso, tocou em eventos como a Virada Cultural, e recepcionou a vinda de muitos artistas estrangeiros ligados à cena ao Brasil. “Realmente, os gringos descobriram São Paulo. A cena hoje é grande e completamente diferente. Não tínhamos pretensão alguma naqueles primeiros anos, mas sonhávamos com isso. Quem pensou que um dia teríamos dois artistas jamaicanos tocando na mesma semana?”, questiona, fazendo referência a junho deste ano, quando apenas alguns dias separaram as apresentações de Johnny Osbourne e Danny Red.

As facilidades, de certa forma, impuseram uma realidade não programada à ideia de crescimento. Atualmente, é possível encontrar discos de reggae até na feirinha da Teodoro Sampaio. Vendedores na internet disputam compradores ávidos por montarem seus próprios sistemas de som. Há lojinhas espalhadas por todos os lugares, mas este fácil acesso, diz ele, diminuiu a pesquisa e a profundidade necessárias. Tudo está mais superficial. “Há 10 anos, ninguém sabia o que era dub, hoje muitos pensam que conhecem tudo”, comenta o DJ, que enxerga o panorama com certa desconfiança: “Tá bizarro. Claro que o crescimento, a popularização, isso tudo é bom, mas existem poréns. Todo mundo, agora, quer ter um sound system, mas ser DJ, seletor, não é apenas colocar o vinil pra rodar; há um conceito por trás, e, para atingir este nível, exige estudo e dedicação”, sentencia Yellow.

Do outro lado do atlântico

Em 2005, Yellow-P já fazia sucesso tocando dub em São Paulo, mas foi na cidade portuária de Santos que um grupo de skinheads – adeptos da tradicional cultura nascida no fim dos anos 60, mescla da troca entre jovens ingleses e imigrantes jamaicanos, que nada tem a ver com a cena neonazista inventada a partir da década de 80 –, inaugurava uma nova fase na cena sound system regional. Nada de dub ou reggae dos anos 70: o que fazia a cabeça dessa rapaziada eram os antigos sons da ilha, chamados de “oldies”, a música jamaicana produzida até 1969. Ou seja, o ska, o rocksteady e o early reggae. “Entrei em contato com a cultura sound system através das subculturas skinhead e punk. Já frequentávamos festas de reggae em São Paulo, mas nada do que a gente gostava era tocado. A gente curtia as músicas dos anos 60 e foi por isso que as coisas começaram a acontecer”, conta o DJ e produtor musical Felix Barreira, um dos fundadores do que viria a ser o coletivo Reggay 420, um dos mais atuantes do sound system paulista na atualidade.

O Gordão, como é conhecido, fala pausadamente e quase que de maneira enciclopédica. Lembra-se da primeira festa, a Bomboclat, ocorrida no clube Atlético, no canal 3. Um ônibus inteiro de skinheads paulistanos descendo a serra, sentido à Baixada Santista, para curtir a velharia jamaicana, que, naquele momento, ainda era tocada em stereos domiciliares e através de CDs. As informações e os vinis foram chegando aos poucos, as festas cresceram, o reconhecimento do público, também. Ele, que é designer, mas segue na luta tentando viver dos eventos e de música, chegou a ser colunista da revista Sexy por sua pesquisa em relação aos ritmos jamaicanos.

Convidado para tocar fora do país, mostrou a força do sound system brasileiro nos vizinhos Argentina, Paraguai, Colômbia, e também na Europa, quando esteve na Espanha e na Holanda. Deve tudo o que tem conquistado à música jamaicana, que considera como a sua escola. O sucesso e os frutos colhidos, no entanto, não chegam nem aos pés do que lhe aconteceu em 2010, quando atravessou o atlântico para materializar algo experimentado só nos mais loucos devaneios.

Com quase dois mil discos na coleção, decidiu ir buscar na fonte a matéria-prima de seu trabalho. Foi na Jamaica, em dez dias de viagem, acompanhado por outros parceiros de cena, que Felix conseguiu seus discos mais importantes e vivenciou situações impagáveis. Experimentou a sensação de estar perto de seus ídolos jamaicanos, de aprender com eles, e, sobretudo, entender que, por maior e mais significativo que seja o trabalho do seletor e DJ, nada pode superar o que os verdadeiros artistas fizeram, e o que a música jamaicana representa.

[citacao credito=”Felix Barreira” ]Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae[/citacao]

“Teve época de eu ser mais marrudo, entrar na dança, falar e me achar demais. Isso aconteceu, sim. Mas hoje, especialmente depois do rolê que fiz em 2010, só agradeço o reggae por ter entrado na minha vida. Foi uma felicidade conhecer tudo isso. Uma graça. Fizemos as primeiras festas, mas perto dos caras, do que eles construíram, a gente não é nada. Só devemos a eles. Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae. Os amigos que eu fiz, aqui e lá fora, são por causa da música. A cultura sound system, acima de tudo, é amizade e amor pelo som, não status”, confessa, com voz embargada, a lição aprendida.

Na capital Kingston, além de acrescentar algumas dezenas de discos ao seu repertório, Felix conheceu ícones como Derrick Harriot, Stranger Cole e King Stitt. Presenciou, inclusive, os caras na ativa, ali, na sua frente, soltando a voz. Visitou lojas e estúdios, a exemplo da mítica Randys, na North Parade 17, onde Peter Tosh gravou “Whistling Jane”, o Gaylads, “I Love The Reggay”, e onde muitos outros clássicos do early reggae foram registrados. Caminhou por ruas e lugares que até então conhecia somente através de canções.

Lá, notou logo que as principais raridades não se encontravam em lojas oficiais, mas na mão do cidadão corriqueiro. Muitas vezes são parentes que estão se desfazendo da coleção de um ente já falecido; uma viúva vendendo os discos de um marido ou um filho se livrando das velharias do pai. Eles descobrem, de boca em boca, que grupos de turistas estão à procura de discos antigos e vão até os hotéis com caixas de vinis. Sem cerimônia, batem à porta e os oferecem. Para eles, é apenas um disco senil de ska ou rocksteady. Para colecionadores, como o Gordão, a chance de adquirir uma joia rara, um tune para o baile. E foi numa visita assim, de um vendedor comum, que Felix fez valer a visita.

Felix Barreira. Crédito: Divulgação
Felix Barreira. Crédito: Divulgação

Era logo cedo quando um deles apareceu no hotel para oferecer sua mercadoria. E a rapaziada toda acordou para garimpar as preciosidades entre caixas e mais caixas. Menos Felix, que dormiu até mais tarde, e chegou atrasado ao leilão. “Fiquei até puto que os caras não me acordaram.” Esbaforido, foi metendo a mão no primeiro arquivo que viu e, no terceiro disco zapeado, encontrou uma raridade. “Tea House From Emperor Rosko”, do Dice The Boss, de selo amarelo, prensagem original de 1970, alcançava a bagatela de 300 libras esterlinas na internet e, ainda por cima, era a música que representava a Moonstompers Crew, a turma skinhead de Santos. Sem titubear, falou: “Eu quero esse”. “Não, não, eu disse para ninguém mexer nessa caixa”, retrucou o vendedor, visivelmente irritado. “Eu acabei de chegar, você não falou nada pra mim.” Argumentação vai, conversa vem, e o acordo foi selado.

Se a sorte bateu à porta de Felix, ela o brindou por mais de uma vez na mesma viagem. Voltando para o hotel depois de um dia de andanças, os brasileiros, por insistência de um deles e a despeito do cansaço que sentiam, resolveram entrar em uma praça onde parecia acontecer um show. Era O show. Ainda que apenas poucas pessoas o assistissem. Ali, viram monstros da música jamaicana, ao vivo e de graça: Ken Boothe, U-Roy e Dennis Alcapone, este último após oito anos sem se apresentar em sua própria terra natal. “A gente parecia louco, os dez brasileiros mais animados que todo mundo. A gente tava tipo chorando. Os caras olhavam aquilo como um evento na praça, não era uma virada cultural ou algo do tipo, era um show na praça. E foi uma coincidência termos entrado ali”, conta, surpreso como no dia.

Conseguiu, inclusive, tomar umas cervejas com os ídolos – para falar de música, das origens da cultura, trocar experiências e até ser agradecido por um gesto de solidariedade. Enquanto bebia com Stranger Cole, Felix deu um trocado para uma moça, uma pedinte de rua que o abordou de repente. “Não foi muito que eu dei, talvez alguns poucos centavos de dólares.” Mas a ocasião tornou-se especial segundos mais tarde. “O Stranger me pegou pelo braço e disse: ‘Isso o que você fez é lindo, filho, e Deus vai te dar em dobro’. Porra, eu fico arrepiado até de contar.” A cena de humildade lhe arrebatou. Felix teve a plena consciência da dádiva de estar ali. Compreender que os caras são os protagonistas da história e o resto, apenas meros expectadores. Sem eles, nada haveria. Ainda bem.

A novidade de meio século atrás

Ao mesmo tempo em que a internet auxiliou na difusão dos ritmos jamaicanos em São Paulo, impulsionando o colecionismo e habilitando novos ouvintes, houve um período em que o Youtube, e suas sugestões de artistas similares, não reinava soberano. A música por streaming ainda estava a galáxias de distância do panorama atual e o garimpo musical era feito através de programas pouco intuitivos, como o Soulseek, e divulgado por canais hoje tidos como obsoletos. Quem não se lembra das comunidades do Orkut e os infindáveis blogs repletos de mp3 à disposição? A época de ouro dos Ipods Classic e da máxima “quanto mais espaço, melhor”. Foi justamente nesse contexto, da era arqueozóica da digitalização musical, no qual veio à luz uma das mais importantes contribuições da internet para a cena sound system e a música jamaicana em geral: o blog You And Me On A Jamboree.

No ar desde o dia 31 de março de 2006, o blog surgiu da interação entre alguns usuários da comunidade “Skinhead Reggae”, até então a mais efervescente do gênero no Orkut, e não demorou muito para que se tornasse referencial da música caribenha na rede. Aqui e lá fora. Todos os dias por volta de 40 e 50 mil visitantes, metade eram brasileiros e a outra metade formada por estrangeiros – principalmente vizinhos latinoamericanos –, baixavam freneticamente as coletâneas compartilhadas em mp3 e liam as resenhas que contavam um pouco sobre a história das canções, dos ritmos e da cultura sound system.

“Até o surgimento da comunidade ‘Skinhead Reggae’ do Orkut, o público era disperso. Existia quem gostasse de música jamaicana, os ‘oldies’, ska e rocksteady, por exemplo, mas essas pessoas não se conheciam. Eu mesmo passei muito tempo isolado, e minha vontade era interagir mais, conhecer gente, falar sobre o assunto. Foram anos reprimidos”, conta o jornalista Greg Fernandes, 28 anos, um dos primeiros colaboradores do You And Me, como era carinhosamente chamado o blog. Sobre o início, ele recorda: “Lembro quando o Sono, ele fez o blog, postou a página na comunidade. O primeiro post se chamava ‘Skinhead Generation’ e tinha uma coletânea para baixar. Eu achei sensacional e mandei uma mensagem para ele, dando sugestões de conteúdo, porque eu queria participar. De tanto que eu enchi o saco, virei colaborador, no segundo dia de existência do blog”, gargalha.

A diligência foi tanta que resultou em sucesso. Com a disponibilização das músicas para download – agora era possível escutar o que antes apenas se lia sobre – e a organização e concentração da informação em somente um único espaço, sedimentou-se um nicho de público voltado, exclusivamente, para os “oldies”. E foram necessários 21 meses para que o You And Me extrapolasse os limites virtuais da internet e se convertesse em festa.

“A galera começou a se questionar por que não havia festas de som jamaicano dos anos 60 em São Paulo e os pedidos para fazermos uma viraram constantes”, relata Greg. Os primeiros encontros ainda eram rústicos, sem vinis, e tinham a finalidade de divulgar o som, ocupar a lacuna de carência entre os assíduos visitantes do blog e o mundo real. Até que o Alex Jurássico, da Jurassic Sound System, entrou em cena. “Eu e o Sono fomos a um baile em Osasco, em 2007, e lá conhecemos um seletor, com vários discos que curtíamos no case, no meio daquele monte de dub e roots. Convidamos ele, que já conhecia o blog, para fazer uma festa só de ‘oldies’, ele topou na hora. Aprendemos muito com ele, e aí entramos de cabeça no lance de comprar discos, de se aprimorar.” A eles somaram-se Luiz e Neggo. A trupe estava completa.

Pouco mais de dois anos depois das primeiras postagens, um convite vindo da MTV levaria o blog a se hospedar no site da emissora e ingressar na onda dos podcasts. “A MTV, no fim das contas, culminou mais em desaprovação do que resultado. Uma galera, que também havia conhecido a música jamaicana recentemente, começou a nos criticar, porque existe um orgulho de o negócio ser alternativo. Mas, pra mim, sempre vai ser um nicho. Se é moda, para alguém, vai durar um ano. Se alguém se identificar com a coisa, mesmo que sejam 10 pessoas entre 100, é o mais importante”, salienta.

“Para nós, da Jamboree, nunca foi trampo. Eu sempre tive meu trabalho, os caras também. Achar que as festas dão lucro é ingenuidade. Nessa época, comprávamos tunes, como ‘This Life Makes Me Wonder’, do Delroy Wilson, por dois mil reais. A festa apenas sustenta o hobby”, conclui Greg, sem antes acrescentar o significado de todo essa devoção: “Meu sonho sempre foi divulgar ao máximo a música jamaicana. Que todo mundo saiba, pelo menos, o que é rocksteady, o que é ska. Não precisam virar fãs. O mais importante, para mim, é que a música seja conhecida”.

Com o surgimento dos novos modos de se consumir música, o blog, que sofreu o primeiro baque em 2011, depois de seu conteúdo ser apagado da rede por completo, definhou. Já os bailes, não. Após mais dois anos sem atividades e para comemorar o aniversário de oito anos da primeira festa, a You And Me terá uma edição especial, em dezembro. Uma nova oportunidade para que Greg transforme seus anseios em realidade.

Lugar dela é na vitrola

Na cena reggae, como em todos os outros segmentos sociais, não é diferente: as mulheres ainda lutam para ter voz. Elas colam aos grupos nos bailes, dão coro à cultura e, da mesma forma que eles, ajudam a construir a cena. Mas admitir o protagonismo delas, ah, isso é outra coisa. Quando o assunto, por exemplo, é comandar as vitrolas, é inegável perceber que elas não são tantas.

Renata Aguiar Fernandes, 32 anos, é uma das representantes de um movimento em ascensão. Chef de cozinha em um restaurante em São Paulo, ela se desdobra para dar conta de uma rotina atarefada, que, além da gastronomia, envolve criar um filho. Ela é DJ e seletora de música jamaicana, considerada a primeira entre as mulheres paulistanas. Seu som é o dancehall, um ritmo dançante e acelerado, o mais popular entre os jovens da ilha. E o gênero, controverso mesmo lá – existem acusações de homofobia nas letras –, se confunde com o pseudônimo Rude Sistah, adotado por ela em 2008, quando começou a colecionar seus primeiros exemplares.

Renata. Crédito: Divulgação
Renata Aguiar. Crédito: Groovin Mood/Divulgação

Atualmente, ela comanda as picapes de uma das festas mais cultuadas da cidade, Dance Hall Fever, que rola uma vez por mês em uma casa do Centro. O sucesso de suas seleções é inquestionável, mas ainda assim alguns pontos a incomodam. Numa conversa por telefone, ela me explicou, laconicamente, o motivo de não haver tantas garotas discotecando: “Tem muito cara machista na cena.” Contou que, apesar de ter mais amigos homens que mulheres, poucos foram os que lhe deram uma oportunidade. Ainda hoje, escuta que não sabe tocar, e sente seu trampo ser menosprezado. Chegou a ser convidada para se apresentar em um baile e, na hora de acertar o cachê pela noite, veio à tona a frustração. Só os DJs homens foram pagos. Ela, a única mulher, foi ignorada.

“Não é só colocar disco para tocar, eu pesquiso, estudo, crio meu conceito. Cheguei a ouvir que estavam me fazendo um favor, e eu cobrei a pessoa, que no fim acabou me pagando”, disse. Ter de chegar a este limite é péssimo, mas nem de longe isso a desanima. “Dá mais força para continuar. Você não tem ideia o tanto de mensagens que eu recebo no Facebook, de mulheres e de homens. Me elogiam na cena, que eu sou guerreira, mãe, mulher, DJ. Tiram dúvidas sobre como começar a coleção. Para mim, esse reconhecimento vale muito”, confessou, antes de lembrar um causo recente, enquanto ria: “Fui tocar em Brasília faz uns 3 meses. No aeroporto, do nada, uma mina me gritou: ‘Hey, Rude Sistah!’. Eu nem sabia quem era. Mas eu curto muito isso, troco ideia com todo mundo, sou povão”.

Questionei também Andrea Soriano, 29 anos, seletora e DJ brasiliense radicada em São Paulo, sobre a força das mulheres dentro da cultura sound system. Atenta, ela, que é da safra influenciada pelo trabalho seminal da Rude Sistah, desabafou: “O machismo existe no rolê e no mundo. Cada dia mais temos sentido nossa força e temos batalhado pelo nosso espaço. Muitas seletoras estão produzindo suas próprias festas e eventos, com isso estamos fomentando uma cena mais feminina e incentivando as próximas gerações, abrindo caminhos.”

Pensando na abertura de caminhos citada por ela, me vi sentado na fila do serviço militar, com o offbeat invadindo meus fones de ouvido e revolucionando minha breve vida de 18 anos. Depois de uma década, tudo já se modificou ao redor, até que rápido demais. O gosto pela música jamaicana continua. O resto é questão de fase.