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Crítica

O final sombrio de ‘Jogos Vorazes’

Desde que o último livro da série “Harry Potter” foi dividido em dois no cinema, em 2010, outras sagas best-seller para “jovens adultos” — “Crepúsculo”, “Divergente” e “Jogos Vorazes” — seguiram o mesmo caminho. Faz sentido para os estúdios, que aproveitam mais um ano de grandes bilheterias, mas não muito para os espectadores. O primeiro filme geralmente sai prejudicado: é devagar, anticlimático, cheio de cenas que poderiam muito bem ter caído na sala de edição. É o caso de “Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1”, do ano passado, o mais fraco da série.

Aviso: este texto contém spoilers do filme.

Felizmente, “Jogos Vorazes: A Esperança – O Final” é bem melhor. Talvez seja, inclusive, o melhor da franquia. O longa começa praticamente do ponto onde parou a primeira parte, como se fosse um filme só e o espectador tivesse feito uma pausa para ir ao banheiro e beber uma água que se estendeu por um ano. Não há uma cena de contexto ou nada que ajude a lembrar o que aconteceu no filme anterior. O bonde já está andando, e rápido — o que pode ser um choque (a pergunta “quem é esse cara mesmo?” pode passar algumas vezes na cabeça de alguém menos apaixonado pela franquia).

Em pouco tempo, porém, o estranhamento passa. O ritmo continua rápido no resto do filme, mas isso é uma qualidade. “O Final” mistura bem os pontos fortes de seus antecessores: a ação e a tensão dos jogos vorazes dos primeiros filmes com a trama política do terceiro. Um breve resumo para quem precisa: depois de ser resgatada da arena da 75ª edição dos jogos — em que os participantes devem se matar até que só sobre um vencedor –, Katniss (Jennifer Lawrence) vira um símbolo da rebelião contra a capital de Panem e seu presidente, Snow (Donald Sutherland).

Após passar “A Esperança” escondida, gravando propagandas para estimular a revolução e esperando o resgate de Peeta (Josh Hutcherson), sequestrado pela capital no fim dos jogos, Katniss finalmente parte para a ação. Com outros rebeldes ilustres, como Gale (Liam Hemsworth), Finnick (Sam Claflin) e o próprio Peeta, Katniss parte para a capital com uma equipe de vídeo encarregada de filmá-los em ação a tiracolo. Como sempre, porém, ela desobedece as ordens que tem e resolve ir atrás de Snow para matá-lo por conta própria.

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Jennifer Lawrence como Katniss. Crédito: Divulgação
Jennifer Lawrence como Katniss. Crédito: Divulgação

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Nesse trajeto, “Jogos Vorazes” mostra que é um bom filme de ação, capaz de agradar a todos os públicos, inclusive quem torce o nariz para a literatura de “jovens adultos” e suas franquias distópicas. Enquanto tenta chegar até Snow, o grupo se depara com armadilhas dignas das arenas de jogos vorazes: bombas, pisos que desabam com o toque, armas que disparam ao sentir a presença de alguém, avalanches de lama, muros que sobem do nada e fecham passagens, bestantes (animais geneticamente modificados pela capital) furiosos.

O perigo está sempre ali do lado — literalmente, já que Peeta sofreu um tipo de lavagem cerebral durante o sequestro e tenta matar Katniss sempre que pode. Depois de um filme menos movimentado, a ação é bem-vinda. Até porque é bem executada (pense na batalha final de “Harry Potter”. É o oposto).

ZONAS CINZENTAS

Mas “A Esperança” é mais que um filme de ação: é um filme político. “Star Wars” ou “Harry Potter” também falam da luta de rebeldes contra vilões em prol da democracia e da igualdade, por exemplo, mas “Jogos Vorazes” mostra também os efeitos dessa guerra nas pessoas e as zonas cinzentas que há nessa batalha. É uma trama mais próxima da realidade. Katniss não é, como Harry ou Luke Skywalker, “a escolhida” ou predestinada a nada. É uma garota razoavelmente comum, que, por circunstâncias além do seu controle, se torna líder de uma revolução. Como uma pessoa normal numa situação dessas, às vezes ela surta, chora, diz que não consegue ser o modelo que todos esperam, trava.

Não é o ideal de herói, mas é alguém com quem o público consegue se identificar. Katniss tem várias camadas, que Jennifer Lawrence leva bem para a tela — não dá pra dizer o mesmo das outras pontas do triângulo amoroso que ela forma com Peeta e Gale. Justiça seja feita, Hutcherson está bem melhor nesse filme que nos outros, retratando as consequências psicológicas de ter sido torturado pela capital.

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Jennifer Lawrence e Liam Hemsworth
Jennifer Lawrence e Liam Hemsworth. Crédito: Divulgação

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O filme também mostra como até pessoas que lutam do mesmo lado podem ter opiniões diferentes. Para Gale, por exemplo, todos que não se rebelaram estão automaticamente aliados à capital e merecem morrer — e para atingir esse fim todos os meios são válidos. Katniss, por outro lado, não acha que na guerra vale tudo e é contra matar civis. São dois “mocinhos” e duas posições opostas.

Por pensar assim, Katniss quase perde a vida. A cena é interessante: ao destruir o local onde um distrito pró-capital guardava suas armas, ela pede para que uma passagem seja aberta para que quem quiser se render possa sair de lá. Um desses homens, em quem ela não quer atirar, a coloca na mira de sua arma. Por que ele deveria poupar sua vida, ele pergunta. Não foram os rebeldes quem destruíram seu distrito e mataram seus companheiros? Katniss não tem explicação para lhe dar e responde: “Não sei”.

Aos poucos ela descobre também que os objetivos da líder dos rebeldes, Alma Coin (Julianne Moore), não são tão nobres assim. Entre essas sagas para jovens adultos, “Jogos Vorazes” é provavelmente a menos maniqueísta. Katniss e Peeta, por exemplo, matam quando precisam para sobreviver e (mais ela do que ele) não são imunes à vontade de se vingar, da forma que for.

É um filme sombrio, mas o que esperar de uma série que tem como premissa prender 24 crianças numa arena cheia de armas e armadilhas até que só uma delas sobreviva?

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Cultura

MC Soffia, 11: “Duro é seu preconceito”

São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.

Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.

MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.

Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.

Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.

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Crédito: Rodrigo Esper

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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.

Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.

Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.

CRIANÇAS DO HIP HOP

De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.

Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.

Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.

[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]

Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”

Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”

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Crédito: Rodrigo Esper

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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.

Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.

Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.

DURO É SEU PRECONCEITO

No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.

O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”

Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”

A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.

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Crédito: Rodrigo Esper

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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”

A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”

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Perfil

As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

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HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”

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Cultura

A busca de Vincent Moon pelo invisível

É difícil fazer um retrato do cineasta francês Vincent Moon. Em mais de cinco horas distribuídas em dois encontros com o público em São Paulo, ele solta fragmentos de informação fora de ordem, sem planejamento, sem ensaios, num grande fluxo de consciência. De certa forma, Vincent se parece com seus filmes. Feitos em um take só, sem pesquisa prévia, com uma única câmera, eles privilegiam a imaginação à informação. O espectador não sabe exatamente a que está assistindo, mas fica imerso na experiência. Seu trabalho, sintetiza, junta os meios do cinema e da música para formar algo “acima disso”. Totalmente experimental.

As duas conversas seguiram o mesmo padrão. Vincent atrasa um pouco – “vamos começar em uns 15, 20 minutos, ok? Vocês têm tempo, não?” – e deixa o público ouvindo músicas de gravações suas pelo mundo. Depois, diz querer uma conversa solta, sem roteiro. Vai passar um de seus filmes, escolhidos um pouco ao acaso, falar um pouco sobre ele e abrir para perguntas. Depois outro filme e mais perguntas. E por aí vai.

Vincent ficou conhecido pelos vídeos musicais. No site La Blogothèque, criado dez anos atrás, postava pequenos filmes de bandas de rock tocando em lugares inusitados, com a câmera bem perto, sem ensaio prévio, em uma tomada só. Seus vídeos não lembram em nada videoclipes, feitos para vender a música. Um dos filmes que mostrou ao público em um dos encontros é um exemplo claro de sua obra: dá a sensação ao espectador de estar dentro de um show. A câmera treme, vê-se apenas pedaços de cada músico e às vezes você não sabe para o que exatamente está olhando. “Quando você vai para um show, você não vai ver tudo. Você não vai ver nada. Você vai estar no meio de uma coisa que é muito mais que só música. Essa sensação de estar no meio das pessoas, fazendo parte de uma comunidade, tem muito a ver com um ritual”, ele explica.

“Minha ideia era ir pra rua. Iniciei esse projeto muito mais com intuição do que pensamento. O desejo foi de quebrar hierarquias e colocar anarquia. Nunca tive o desejo de filmar algo em seu lugar oficial. Ir num show e fazer um filme… É chato. Não quero dar muitas informações para o espectador, quero ir para o lado experimental”, diz. Vincent nunca gostou de ouvir discos em casa. Teve a sorte de nascer em Paris, ele conta, onde podia ir a um show por noite e “participar” da música. A câmera é uma extensão de seu corpo. Quando caminha, quer que o espectador caminhe junto e sinta que faz parte daquela experiência.

Hoje, ainda trabalha com a união de cinema e música, mas mudou seu foco. Em vez de documentar o rock, Vincent investiga o papel da música em rituais pelo mundo todo. O sucesso da Blogothèque, curiosamente, foi o que o levou a largar o projeto. “Dez anos atrás não tinha nada na internet. O sucesso foi rápido, a gente mostrava música de um jeito diferente. Mas você entra numa relação muito estranha com a quantidade. ‘Opa, tive 50 mil visualizações na semana passada, agora preciso de mais.’ É muito ruim. Uma relação muito perigosa. Depois de quatro, cinco anos, entrei nessa e ai ai ai. Precisei sair.”

RODANDO O MUNDO

Decidiu então rodar o mundo buscando trabalhos de qualidade, independente de quantas pessoas fosse atingir. “Não vou tocar 50 mil pessoas, mas vou tocar de um jeito diferente. Isso é muito mais legal”, diz. “Tinha um desejo de encontrar outras pessoas e outras músicas. De fazer uma grande pesquisa sobre a origem da música.” Nessa busca, encontrou uma ligação entre a arte e o sagrado e resolveu ir atrás de cerimônias e rituais.

Os filmes que mostra passam por Peru, Geórgia, Rússia, Ucrânia, Etiópia, Egito e Brasil. Viaja sem planos, sem saber quanto tempo vai ficar em cada lugar, para onde vai depois ou o que vai filmar ali. Nem pensa em fazer a conta de quantos países já visitou. “Vivemos numa sociedade da quantificação e isso atrapalha”, diz, voltando à questão que o motivou a deixar a França. “Nunca tenho o desejo de saber o que vai acontecer. Filmei muitos grupos sem saber o que eles iam tocar. Rapidamente você pode sentir pra onde vai a música. Você entra num momento de conexão tão lindo”, diz, servindo-se de vinho. “Não sou profissional e nem quero ser. Sou amador.”

Uma vez que chega ao lugar, vai conhecendo pessoas. Dividindo uma garrafa de vinho ou um baseado com um desconhecido, recebe dicas de onde ir. Foi assim, por exemplo, que chegou a uma casinha no centro do Cairo onde encontrou duas mulheres tocando tambor enquanto outra entrava em transe. Outro homem com quem cruzou deu a dica de um grupo tradicional da Ucrânia e salvou sua viagem: ele ia embora no dia seguinte e não tinha filmado nada.

Assim como não gosta de pesquisa diz não gostar de dar muitas informações ao público. “Na internet há informações extra embaixo do vídeo. É fantástico trabalhar um cinema em que você pode ir pra poesia total. Se você tem curiosidade, vai procurar. O desejo inicial é deixar vocês trabalharem.” Também só atrapalha, em sua opinião, a ideia de que um filme precisa de um começo e um fim ou recursos como narração para facilitar a vida do espectador. Vincent é categórico ao afirmar que não tem relações com escolas de cinema. “Fui para a universidade e me falaram de John Ford. Pfffff. Não me encontrei lá”, fala. E vai além: “Não sou diretor, sou só o rapaz com a câmera”.

SEM PROJETOS, SEM DINHEIRO

Alguém pergunta como ele faz para se sustentar na estrada e Vincent desconversa. “Não preciso de muitas coisas pra viver. Viajei por cinco anos e não aluguei nada, não paguei por uma casa. Não tenho nada. Só uma mochila”, diz. “Quando você entra nessa maneira de existência é fácil. É uma coisa estranha, entender como é possível viver com muito pouco. Mas fazer esse tipo de conversa me dá um pouco de dinheiro.” Tampouco conta com patrocínio ou editais para financiar seus filmes. Como não faz planos, não faz projetos. E, sem projetos, resta pagar tudo do seu bolso.

Com esse estilo, é difícil as coisas darem errado. “Gosto muito de trabalhar com qualquer coisa. Pode virar muito experimental.” Uma vez, conta, foi ao Peru acompanhar um ritual inca. Depois de caminhar duas horas no frio, achou que as condições estavam muito ruins para filmar. Mas registrou o som. Na volta, encontrou um vendedor de DVDs que tinha imagens da cerimônia do ano anterior. “Eu tinha o som, filmei o ritual do ano passado. Inventei um pouco uma história e juntei os dois. É!”, lembra, animado. “Deu um filme legal, experimental. É interessante trabalhar com qualquer material, sem ter o desejo de chegar num lugar seguro.”

Nas duas noites, o público faz a mesma pergunta: como filmar um ritual, uma cerimônia religiosa, sem interferir no que está acontecendo? Vincent responde: “Qualquer coisa que você faça vai interferir. Mesmo sem a câmera. Objetividade não existe. Tudo é um intercâmbio de energias. O movimento de ir até lá já muda o lugar”. O que é necessário, continua, é estabelecer uma relação com as pessoas que não atrapalhe a energia do local. “Muito rapidamente você se conecta. Meu trabalho não é o de um antropológo acadêmico, que passa muito tempo no lugar. Gosto da aproximação rápida, sem saber muito antes.”

Paris, diz Vincent, é o lugar menos espiritual do mundo (“muito racional, muito”), mas viajar o fez abrir seu entendimento de mundo. Ao tentar definir sua fé, faz uma pausa longa. “Eu acredito. Em tudo. Gosto muito de ser um camaleão”, afirma. “Esse desejo de encontrar o invisível vem de filmes que fiz anteriormente. Esse é o desejo original da Blogothèque. Busco a interconexão em tudo, sem gênero, sem fechamento.”

Seu projeto mais recente, intitulado “Híbridos”, nasceu dessa descoberta espiritual. Na sua volta ao mundo, passou pelo Brasil e foi tocado pelo candomblé. “Tem uma coisa bem especial nele, que é a ligação com a realidade. Vai além do livro. Voltei pra cá no ano passado pra fazer um grande projeto da espiritualidade. O Brasil é um grande país pra falar disso.”

Ao longo de um ano, Vincent e sua mulher, Priscilla Telmon, viajaram pelo país registrando rituais. Como resultado, lançarão na internet mais de 60 curtas — um para cada cerimônia — e um longa que costure tudo, com estreia prevista para o ano que vem. “O que estamos fazendo no Brasil tem a ver com celebração, com mostrar a beleza. Desmistificar, de uma maneira, sem desmistificar. Sem dar informações demais, mas mostrar que precisamos de tudo isso.”

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Cultura

A irrealidade virtual de Oscar Raby

O pai do artista Oscar Raby tinha 22 anos quando a Caravana da Morte passou por seu regimento, no norte do Chile. Pouco tempo havia passado desde o golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, e a Caravana rodava o país executando presos pelo regime. Raby era tenente e presenciou, sem poder fazer nada, uma dessas execuções.

Anos depois, quando era adolescente, Oscar Raby ouviu essa história pela primeira vez. O pai lhe chamou, pediu para que se sentasse e narrou os acontecimentos daquele dia — como havia feito em depoimentos à polícia– para explicar ao filho porque seu nome iria aparecer em livros de história e notícias no jornal. Por mais de 20 anos Oscar carregou consigo essa lembrança sem saber exatamente o que fazer com ela. Até deparar-se com a realidade virtual.

“Percebi que esse meio era ideal para te colocar numa situação em que você tem controle, mas esse mesmo controle te arrasta. Foi por isso que meu pai passou”, diz o artista, que esteve em São Paulo para o evento Mediamorfosis Brasil, que discute o impacto de novas tecnologias na produção de conteúdo.

“Assent”, trabalho que resultou da descoberta dessa tecnologia, utiliza a realidade virtual para colocar o espectador no lugar do pai de Raby, observando de mãos atadas a morte de um grupo de pessoas. Exibido neste ano na mostra New Frontier, voltada para artistas independentes no festival de cinema Sundance, o trabalho borra os limites entre documentário e videogame.

Em “Assent”, Raby não utiliza, por exemplo, fotografias ou imagens realistas para compor o ambiente no qual, usando óculos de realidade virtual, o espectador fica imerso. O cenário lembra um jogo, com imagens estilizadas e atmosfera que lembra a de um sonho ou de uma lembrança já meio apagada. “O processo envolveu muita tinta jogada sobre uma tela. Há um monte de coisa escondida debaixo de camadas de pintura seca”, conta o artista.

Os personagens tampouco são reais: foi o próprio Raby quem serviu de modelo para todo o mundo que aparece em cena. “A questão mais crucial para mim era: com o que se pareceriam as vítimas? E os assassinos? Quem sou eu para contar a história deles?”, diz. “Não senti que seria justo eu tentar representar a vida deles. A única coisa honesta que eu poderia fazer seria mostrar como essa história afetou a vida do meu pai e a minha. Acabei usando a mim mesmo, minha cara e meu corpo, para representar todos. O usuário se torna meu pai, uma testemunha silenciosa da execução.”

É, portanto, uma interpretação dos fatos. “Não sou jornalista, sou artista. Tudo o que faço é uma interpretação”, afirma. “As memórias do meu pai são parte das minhas próprias lembranças, da mesma forma inescapável em que às vezes você se vê agindo ou falando como seus pais. Às vezes é reconfortante, mas na maior parte das vezes isso te lembra do quanto você tem medo de repetir seus defeitos.”

Depois do primeiro lampejo, Raby levou dois anos refletindo sobre como contar a história (colocar o espectador no lugar das vítimas? Dos assassinos, talvez?) e quatro meses tocando o projeto durante a noite, após trabalhar durante o dia na Galeria Nacional da Austrália. Foi uma jornada completamente solitária. “Duas pessoas estiveram no projeto: o Oscar do dia e o Oscar da noite”, brinca.

Ele nunca tinha trabalhado com realidade virtual antes disso. “Sou um artista visual, mas também um designer multimídia. A maior parte do meu trabalho foi criada com ferramentas digitais. Até pinturas, colagens e performances”, diz. “Por causa desse passado eu penso na realidade virtual não como algo que necessariamente siga a escola do cinema, mas como uma mistura de teatro, arquitetura, fotografia, pintura e, claro, videogames.”

A REALIDADE VIRTUAL PUNK

As experiências com a tecnologia e cinema tradicional são bastante diferentes tanto para espectador quanto para realizadores, segundo Raby. Se ao fazer um filme o diretor determina aquilo que as pessoas vão ver numa cena, na realidade virtual o olhar pode ser direcionado a qualquer lugar, a critério do público. “Agora aprendemos a sugerir, a convidar e montar a mesa para uma festa, para que os convidados à nossa experiência escolham aquilo que os estimula.”

Trata-se, para ele, de uma arte totalmente nova, que assimila elementos de mídias anteriores, as mastiga e as transforma numa linguagem única. “Um trabalho de realidade virtual pode não ser um filme, mas uma performance ou uma peça escrita para o usuário, que coloca os óculos e vira um ator nela. Pode ser um um dançarino seguindo um roteiro visual ditado pelos óculos de realidade de virtual”, diz Raby, listando outras formas de incorporar a tecnologia à arte.

Para ele, a tecnologia ainda engatinha e dá margem para muita experimentação. “Já alcançamos o potencial da pintura?”, compara. “Estou esperando a aparição do jazz da realidade virtual, o punk. Espero por todos os gêneros de realidade virtual, que representem todas as vozes.”

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Por ora, o acesso a projetos do gênero não é tão disseminado, já que não é fácil colocar as mãos nos óculos de realidade virtual. O ambiente também pode influenciar na experiência de imersão, diz Raby. “O entorno, o espaço físico, pode fazer tanto para colocar o público no universo minúsculo que você preparou. Pode dar aquela sensação de ritual que reconhecemos quando as luzes do cinema se apagam ou quando o maestro levanta a batuta.”

FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO

Depois de “Assent”, Raby criou um estúdio de realidade virtual em Melbourne, Austrália, chamado VRTOV, com vários projetos em desenvolvimento. Em “Travelling While Black”, o objetivo é mostrar a dificuldade que negros tinham em circular pelos Estados Unidos na década de 1950. “Alguém publicou um guia de viagem para eles, uma espécie de [guia] Lonely Planet mostrando as melhores rotas para se divertir e evitar problemas”, conta. “Vamos criar uma experiência que coloque o espectador na pele de um desses viajantes.”

Ainda no gênero documentário, uma série procurará mostrar como se vivencia a solidão, colocando o público em situações de isolamento, em locais como uma prisão ou Antártida.

Há também um projeto de ficção, baseado no romance publicado na internet “Queerskins”. O personagem principal é uma das primeiras vítimas da Aids nos Estados Unidos, nos anos 1980. “Conhecemos seus pais e vemos como eles lidam com a perda do filho. Você é convidado à cena como o fantasma desse filho morto.”

Na realidade virtual, a poesia importa tanto quanto a tecnologia. A dica de Raby para quem quer começar a trabalhar com realidade virtual é singela: aprender a focar em si e experimentar aqueles momentos que só se tem sozinho. “Para deixar a realidade virtual acontecer graciosamente você precisa praticar ficar consigo. É como nadar. Você deve encontrar um desses momentos e tentar replicá-lo.”

“Deve-se achar aquele gesto que faça sentido para você, que te faça sentir algo. As chances de que pelo menos uma pessoa no mundo também sinta isso são muito grandes. Recrie e mostre isso ao mundo. Você provavelmente vai ver, assim, que a realidade virtual não é um lugar tão solitário.”

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Cinema

A ficção científica de “Perdido em Marte”

Falando sobre o novo longa de Ridley Scott, o apresentador americano Jimmy Kimmel brincou: “Esse é o segundo filme em que Matt Damon é um cara que fica preso no espaço. Quando o Ben Affleck vai para o espaço, ele explode um meteoro pra preservar a humanidade. Quando Matt Damon vai pra lá, ele se perde e tem que ser salvo”. Um ano depois de ficar ilhado em outro planeta em “Interestelar”, Damon se perde em Marte em… “Perdido em Marte”. Falando assim parece que são dois filmes parecidos. Não são. Ao descrever o filme de Scott, que estreia hoje (1º), o que vem à mente, surpreendentemente, é “engraçado”.

Talvez quem tenha lido o livro de mesmo nome, publicado por Andy Weir em 2011, já espere por algo assim. Sabendo sobre a história apenas que Matt Damon fica preso em Marte, é natural pensar que vem pela frente algo como o périplo de Sandra Bullock em “Gravidade”: um filme cheio de efeitos especiais, cenas tensas de ação e uma trilha sonora meio épica, meio dramática.

Mas não é bem assim. Matt Damon é Mark Watney, astronauta em viagem a Marte, dado como morto pelos companheiros nos primeiros minutos do filme ao ser atingido por uma antena em uma tempestade que os obriga a abortar a missão antes da hora. Quando a poeira abaixa, Watney se encontra sozinho, ferido, e num abrigo feito para durar apenas 31 dias. A próxima missão a Marte, ele sabe, só chega em quatro anos (e, ainda por cima, bem longe de onde ele está). Sua conclusão é simples e uma síntese do filme: para sobreviver todo esse tempo, melhor do que dar uma de herói de ação é “science the shit out of this” (numa tradução livre, a frase vira algo como “usar a ciência ao máximo”).

Watney é bem-humorado, surpreendentemente inabalável e consegue transformar uma situação desesperadora em algo leve. Como Tom Hanks em “Náufrago”, dá um jeito de manter a sanidade mental conversando com alguém. No caso, sua bola de vôlei Wilson é um vlog, que usa para documentar seu progresso. Com pouca infraestrutura para sobreviver por tanto tempo, o primeiro desafio é produzir comida para quatro anos, em um planeta em que nada cresce (se ele encontrasse a água anunciada nesta semana, teria sido bem mais fácil). Por sorte, ele é um botânico — o melhor do planeta, em suas palavras.

É aí que o filme fica interessante. Nada contra a luta desesperada de Sandra Bullock para voltar à Terra em “Gravidade”, mas Watney é mais envolvente. Sua fórmula, como ele mesmo explica, é pegar um problema de cada vez e resolvê-lo racionalmente, mostrando ao público a ciência por trás daquilo. Como plantar batatas naquele solo? Como irrigar sua plantação? Como se manter aquecido? Como atravessar milhares de quilômetros para chegar onde a próxima nave irá pousar? Como se comunicar com a NASA para avisar que está vivo? Todas essas questões são enfrentadas por Watney e descobrir os meios encontrados para solucioná-las é mais legal que saber o fim — principalmente se você tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama.

“Perdido em Marte” é exemplar como filme de ficção científica. É ficção, já que não temos ainda missões tripuladas a Marte (no filme, eles estão na terceira). E é pura ciência. Tudo bem, talvez a ciência ali não seja totalmente compatível com a realidade. Um astronauta em Marte, por exemplo, não andaria como na Terra, e sim se locomoveria por saltos, como na Lua. Com uma atmosfera tão pouco densa, uma tempestade jamais seria violenta a ponto de fazer com que a missão fosse abortada. A radiação no planeta também seria tão forte que Watney ficaria muito doente e não sobreviveria muito tempo mesmo que voltasse logo à Terra.

E tem a questão da água, que deixou o filme levemente defasado. Em “Perdido em Marte”, Watney tem que dar um jeito de produzir o líquido para conseguir regar sua plantação de batatas e se manter vivo. Na semana do lançamento, porém, a NASA anunciou a descoberta de correntes de água salgada no planeta. Tudo bem, não resolveria totalmente o problema do astronauta, mas o enredo poderia ser um pouco diferente, o diretor reconheceu. Scott inclusive soube da descoberta dois meses antes do resto do mundo, segundo contou ao New York Times, mas não dava mais tempo de mudar a trama. “E teria perdido uma grande cena”, disse. O entretenimento vem em primeiro lugar.

De qualquer forma, a ciência por trás do filme é, de maneira geral, bastante crível. A NASA, aliás, deu uma consultoria à equipe de Scott para que os fatos do filme fossem o mais próximo possível da vida real. Para quem nunca mais teve contato com ciências depois da escola, “Perdido em Marte” é bem didático — “explique isso em inglês”, pede um personagem a outro depois de umas raras frases complexas para os leigos — e nada disso importa. Dá até vontade de aprender mais (a primeira coisa que perguntei a um amigo mais entendido, saindo da sala de cinema, foi: “Batatas não apodrecem em Marte?”).

Matt Damon, que passa boa parte do filme falando sozinho, segura as pontas. Não dá para dizer que ele dê um show de atuação, mas consegue se sustentar na base do carisma. O fato de Damon não ser o típico astro de cinema e parecer um pouco gente como a gente, nesse caso, ajuda.

Watney fala bastante palavrão, zoa o gosto musical dos amigos — apesar de algumas escolhas óbvias, como “Starman”, de David Bowie, a trilha sonora tem ótimos momentos — e mantém o otimismo o tempo todo. É um forte candidato a melhor personagem do cinema para ter como companhia numa ilha deserta, pela engenhosidade e pelo humor, e o mérito é tanto do roteiro quanto do ator.

“Perdido em Marte” vai virar um clássico como “Blade Runner” e “Alien”, de Ridley Scott? Num chute sem nenhum critério a não ser instinto: não. Mas é um bom divertimento. E, numa semana em que descobriram correntes de água salgada em Marte, faz com que mais pessoas se interessem pelas viagens espaciais ao colocar graça na ciência. Já é bastante.

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Comportamento

A festa dos animais no Instagram

Bob comemora seu aniversário de dois anos numa tarde de domingo nos Jardins, em São Paulo. Para driblar o calor de mais de 30 graus, serve aos convidados — emperiquitados com lacinhos, lenços coloridos e vestidos de bailarina — picolés de cenoura ou maçã com banana. A festa está cheia, mas Bob brinca sozinho desde que um amigo grandão e levemente invocado rosnou e lhe mostrou os dentes. Um detalhe importante: Bob é um cachorro, assim como a maioria de seus convidados.

É uma festa inusitada e, em alguns momentos, surreal. “Esse brigadeiro é pra gente, não pra cachorro, tá?”, esclarece uma vendedora de doces. A explicação é necessária, já que a maior parte das barraquinhas da festa tem animais como público-alvo. Shampoo, condicionador, roupinhas, biscoitos, cerveja (sem álcool e sem gás) e uma mesa de quitutes formam do cardápio de produtos para cachorros.

“Esse é o Bob?”, pergunta uma mulher ao chegar, com seu cachorro na coleira, para o dono de um dos vários golden retrievers — raça do aniversariante — por ali. “Não, esse é o Bowie”, responde ele, chamando o cachorro que brinca com Lennon e Elvis (“Só cantores aqui!”, comenta uma moça, empolgada) e, minutos depois, devora um picolé canino com palito e tudo. Quase ninguém ali conhece o dono da festa pessoalmente, mas mesmo assim dezenas de pessoas pagaram R$ 22 por cabeça (com direito a dois cachorros por convite), para lhe dar parabéns e entregar presentes.

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Bob, é bom explicar, não é só um cachorro. É um cachorro celebridade no Instagram, com mais de 210 mil seguidores. Boa parte dos outros cães na festa, aliás, tem seus próprios perfis nas redes sociais. Para facilitar a vida dos convidados, quase todos os goldens usavam bandanas com seu nome. Uma busca pelo nome do animal com a palavra golden no Google revela todos os perfis: Chandon (6.155 seguidores), Mell e Reiki (21,7 mil), Hanna (5.035), Google (15,8 mil), Marley (15,3 mil) e por aí vai. Todos admiradores de Bob, o mais bem-sucedido da turma.

O cachorro ganhou fama posando com um hamster e passarinhos que vivem em sua casa. Suas fotos fofas chamaram a atenção de sites como Buzzfeed, Daily Mail, USA Today e Huffington Post em países como Itália, Estados Unidos, e Inglaterra. As matérias lá fora ajudaram a catapultar o número de fãs. Em junho, Bob tinha perto de 50 mil seguidores. No mês seguinte, passou a barreira dos 100 mil. Pouco tempo depois, passou dos 200 mil.

Em julho, fez sua primeira festa. Por R$ 50 (R$ 20 consumíveis) era possível levar um cão para brincar, participar de um concurso de fantasia, “degustar comidinhas pets”, concorrer a prêmios e conhecer Bob pessoalmente. Segundo seu dono, Luiz Higa Júnior, havia mais gente na festa julina do que no aniversário. E mesmo na comemoração dos dois anos de Bob o espaço estava bem cheio. Todas as tentativas de contar o número de cachorros presentes, porém, falharam (experimente contar uma matilha de golden retrievers correndo um atrás do outro).

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Bob tem também um lado empresário: é parceiro de algumas lojas de produtos para cachorro, que anuncia em seu perfil. Entrando no site das lojas e usando um cupom Bob (só escrever o nome do cão no campo de promoções) há um desconto em produtos. Em contrapartida, as lojas às vezes aparecem no perfil do cachorro e expunham no seu aniversário. A tal cerveja canina é um exemplo. “O esquenta aqui em casa foi dos bons!!!! E… Estamos bêbassos”, diz o post em que o cão aparece ao lado da garrafa. O perfil ainda dá dicas de hotéis para cachorro, marcas de ração e restaurantes e padarias que recebem animais.

A figura “Bob Golden Retriever” nasceu meio por acaso. O Luiz participava de um grupo de fãs de golden no Facebook, em que todos postavam fotos de seus cachorros, e começou a fazer o mesmo. “Já tinha os passarinhos, comecei a soltar e colocar para tirar fotos juntos. Todo o mundo gostava. Pra não ficar muito maçante, todo o dia postando foto dele lá, resolvi criar um perfil no Instagram”, conta. “Estou numa época agora meio sem tempo, por causa do trabalho. Não estou conseguindo fazer tantas fotos. Mas tento atualizar todo dia, com pelo menos uma.”

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CICLO SEM FIM

O aniversário de Bob é um reflexo de como funciona o mundo dos perfis de animais no Instagram. Escolha um ao acaso. Leia os comentários. Clique em algum deles. A probabilidade de ser outro perfil de animal é alta, já que muitos se conhecem e interagem com os outros. Repita o procedimento. É um ciclo sem fim.

No meio dessa multidão, alguns se destacam e chegam ao status de super celebridade. É o caso da cadelinha americana Marnie, que tem a cabeça virada para o lado, a língua de fora, 1,7 milhão de fãs no Instagram e mais fotos com famosos do que a Kim Kardashian (Lena Dunham, Tina Fey, James Franco e Miley Cyrus já posaram com ela). Um de seus “amigos” é o Tuna, cão retrognata — que tem a mandíbula retraída — seguido por 1,5 milhão de perfis. É uma versão em escala maior do que acontece no Brasil, com animais posando no perfil um do outro e “conversando” pelas redes sociais como se fossem gente.

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O próprio Instagram fez, no ano passado, um calendário de 2015 só com imagens de seus perfis de animais. E, para os donos, os bichos podem ser uma mina de ouro. Neste mês, a designer gráfica Leslie Mosier publicou um texto no Huffington Post dizendo que tinha largado o emprego para ser empresária de seu pug, Doug, que tem 716 mil seguidores no Instagram.

Leslie comprou Doug em 2012 e começou a publicar fotos dele em seu próprio perfil. Logo percebeu que as imagens do cachorro eram mais curtidas que as outras e passou a investir nele: fez montagens, deu várias fantasias, caprichou nas legendas. As fotos de Doug passaram a ser compartilhadas por outros perfis de cachorro e ela aproveitou o embalo para criar uma conta própria para o cão.

Em pouco tempo Doug ganhou a mídia. Primeiro apareceu no site Mashable, depois em uma série de outros, até chegar à televisão americana. Um vídeo que fez numa festa para comemorar a marca de 100 mil seguidores estourou e teve mais de 20 milhões de visualizações. Foi aí que Leslie decidiu fazer do cachorro seu ganha-pão. “Por mais que tenha sido uma decisão dura, não foi difícil perceber que construir a marca Doug the Pug era uma oportunidade única na vida”, escreveu Leslie. “Com o apoio dos meus pais e amigos, tomei uma das decisões mais difíceis e mais gratificantes da vida, abrindo mão da segurança de um salário mensal.”

As publicitárias Amanda Nori e Stéfany Guimarães seguiram o mesmo caminho, segundo contaram à Folha — tentamos falar com elas mais de uma vez para fazer uma entrevista, sem retorno. Donas do gato Chico, montaram a página Cansei de Ser Gato (342 mil fãs no Facebook e 115 mil no Instagram), com imagens de um felino blasé encarnando vários personagens.

Devido ao sucesso do gato, pediram demissão de seus empregos. Desde então, Chico já protagonizou mais de 70 campanhas publicitárias. Fora isso, as duas abriram uma loja virtual com fantasias para gatos, roupas para seus donos e objetos como almofadas e canecas. Fizeram também um livro com fotos do animal e planejam outro: uma biografia. “Chico é um influenciador da internet”, disse Stéfany ao jornal.

OS VÁRIOS PORQUINHOS

Nem só de “dog people” e “cat people” vive o Instagram. Outro animal tão popular quanto cães e gatos é o porco (confissão: eu mesma sigo quatro perfis). No Brasil, o mais célebre é Jamon (361 mil curtidas no Facebook e 58,8 mil no Instagram), da publicitária Dea Mendes. O porquinho foi seu presente de Dia dos Namorados em 2013. Ela queria um animal que vivesse mais que um cachorro, mas que agisse mais ou menos como um deles e pudesse ser criado em casa.

Segundo a Dea, o porco — que mais tarde ganhou um companheiro, Nero — é pacato, esperto e carinhoso. “Os dois até adotaram dois gatos da rua, que dormem na casa com eles. Meu marido tem certeza que eu adotei, mãs não foi!”, ela conta. Tamanha simpatia fez com que Dea postasse sem parar fotos de seu porco em seus próprios perfis. “Parecia mãe de primeira viagem. Vi o quanto às vezes aquilo me irritava nos outros, então poderia (e devia) estar irritando meus amigos.” Fez, então, um perfil para Jamon, entre junho e julho de 2013.

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Poucos meses depois, em setembro, o perfil oficial do Instagram recomendou Jamon como um animal a ser curtido e lhe deu a hashtag #weeklyfluff (algo como o fofinho da semana). “Era a primeira vez que um ‘pig’ figurava na sugestão semanal deles”, conta Dea. “Chegamos a sair na [revista] ‘Wired’ para contar quem estava por trás do Jamon. Foi uma conquista incrível.” A partir da recomendação do Instagram o número de seguidores cresceu, assim como o espaço na mídia, que gerou mais seguidores, que gerou mais espaço na mídia… E por aí foi.

As fotos de Jamon são, basicamente, fofas. O porco veste chapéu de pirata, sai do banho enrolado numa toalha, tem roupinhas personalizadas e fica uma graça de peruca. Antecipando a popularidade suína em 2010, o personagem da série “How I Met Your Mother” Barney Stinson (também nome de um cachorro no Instagram, vale ressaltar) cravou: é impossível não se derreter por um miniporco.

UM CÃO CHAMADO JIMMY

O animal brasileiro mais interessante do Instagram, possivelmente, é o mais diferente do grupo: o bull terrier Jimmy Choo. Suas fotos não estão expostas num perfil próprio, e sim no do seu dono, o artista Rafael Mantesso. Muitas vezes não há legendas, ele não “conversa” com outros cachorros e, embora Jimmy seja bonito, sua fofura no dia a dia não é o principal atrativo das imagens.

Nas fotos tiradas pelo Rafael, o Jimmy aparece sempre num fundo branco, quase sempre interagindo com desenhos do dono. Tem Jimmy num tapete voador, sendo engolido por um jacaré, mostrando a língua ao lado do Calvin e do Haroldo. De vez em quando há objetos envolvidos, e é surpreendente como o cachorro é tão calmo quanto expressivo. Questionado sobre como fez para tirar uma foto em que Jimmy aparece de toalha enrolada na cabeça e uma rodela de pepino sobre o olho, Rafael responde como se fosse óbvio (quem tem cachorro sabe: não é): “Coloquei a toalha na cabeça dele, um pepino no olho, e cliquei”.

Jimmy foi comprado em 2009, quando o Rafael se casou. Ele queria um bull terrier, ela topou. Foram a um canil e a criadora tentou convencê-los a levar um macho mais forte, maior. Rafael quis Jimmy, o branquinho que foi brincar com ele assim que tinha chegado. Todos os filhotes tinham nome de um X-Men. “Ele ganhou o pior possível, o X-Men mais desconhecido: Fortão”, conta Rafael. “Óbvio que minha ex-mulher não gostou. Ela já tinha na cabeça o nome da marca de sapatos de que ela mais gostava. Ela era estudante de moda e oriental, por isso o apreço pela Jimmy Choo.” O destino cool do cão (chamado, no pedigree, de Jimmy Choo Fortão Di Maredella — o último nome é o do canil) estava mais ou menos traçado.

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Rafael começou seu instagram como um canal de um blog de gastronomia que tinha na época. Postava principalmente desenhos e brincadeiras que fazia com comida e brinquedos, mas as pessoas não acreditavam que o conteúdo era dele. “Achavam que era montagem ou coisa que eu pegava da internet. Daí vez ou outra eu postava fotos do meu cachorro pra mostrar que aquele perfil era de um cara de verdade.”

Quando se separou da mulher, ficou com o apartamento, vazio, e o cachorro. “Decidi não morar mais lá, mas até vender o apartamento eu não queria comprar móveis”, diz. “Não teria móveis, mas teria telas e desenhos. Teria vida e teria a minha cara.” Começou fazendo fotos do cachorro em poses mais básicas, entre suas pernas ou vestindo suas botas. “Um dia comprei uma lixeira e desenhei um esqueleto na caixa. Coloquei o Jimmy atrás e fotografei, como se fosse um raio-x dele. A ideia nasceu aí. Ia desenhar nas minhas paredes e no meu chão e fotografar com o Jimmy do lado ou em frente.”

Cada foto tem uma história, diz. Às vezes desenha o cenário antes e coloca o cachorro nele só na hora de tirar a foto, às vezes desenha depois. O cão topa tudo. “O Jimmy é especial. Ele fica exatamente na posição que eu quero, pelo tempo que eu precisar”, afirma. “Ele sabe que eu preciso dele naquela posição e que não vou desrespeitá-lo, não vou constrangê-lo, não vou fazer nada de ruim com ele. Ele sabe que é importante pra mim e simplesmente fica.”

Há um ano Jimmy ficou famoso internacionalmente. “Em uma semana os principais portais e veículos do mundo todo descobriram meu Instagram e postaram a respeito. Passei de 20 mil seguidores para 100 mil em duas semanas. Daí em diante não parou mais. É meio orgânico. Uma pessoa segue, marca um amigo, que segue e marca outro amigo…” Hoje são mais de 387 mil.

As fotos do cachorro já viraram até livro, chamado “A Dog Named Jimmy” e vendido na Amazon por US$ 11,73. Os convites para publicação começaram já no ano passado. Rafael contratou um agente literário, que fez uma oferta de livro para dez editoras. Todas quiseram e ele fechou com a Penguin. “Lancei o livro lá fora primeiro porque, como tudo no Brasil, as coisas só têm valor aqui quando vêm lá de fora”, diz. Na Amazon, o livro está no topo na lista de mais vendidos com o tema cachorros. A versão brasileira será lançada pela editora Intrínseca.

Jimmy foi convidado para ir a Londres, para fotografar para um editorial de moda. Rafael não quis, mas a marca fez outra oferta: de estampar uma linha de produtos. “Fiquei muito honrado e caí em cima. O resultado ficou incrível e a coleção esgotou antes do que eles previam.” Jimmy talvez seja menos pop star que o aniversariante Bob, mas é modelo de alta costura. Tem celebridades animais para todos os gostos.

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Televisão

Os hackers estão de volta

Logo no primeiro episódio de “Mr. Robot”, a serie deu uma mostra de que estaria um passo à frente da realidade: o hacker Elliot, interpretado por Rami Malek, força o namorado de sua psicóloga, que é casado, a terminar com ela. A ameaça: mostrar para a mulher seu perfil no site de traição Ashley Madison. Meses depois a chantagem não valeria nada, já que um grupo real de hackers liberou os dados de milhões de usuários do serviço.

Em tempos em que fotos de celebridades nuas são roubadas de seus celulares e computadores e da divulgação de dados do Ashley Madison, faltava uma série sobre a fragilidade da privacidade na internet. Como a criação de Sam Esmail, outras séries recentes têm colocado em primeiro plano algo importante na vida, mas secundário até então na televisão: a tecnologia. E não de um jeito completamente fora da realidade, como total ficção científica, e sim trazendo o tema para a atualidade. Falam de como a tecnologia influi no dia a dia, de seus prós e riscos.

O tema central é o mesmo, mas são séries bem diferentes. Tem uma sobre o desenvolvimento dos computadores nos anos 1980 (“Halt & Catch Fire”); outra mais futurista, sobre o que aconteceria se máquinas super modernas substituíssem humanos em quase tudo (“Humans”); uma comédia sobre uma start-up no Vale do Silício (“Silicon Valley”); tem até o “Além da Imaginação” da era das redes sociais, que mostra o lado assustador da internet (“Black Mirror”). E “Mr. Robot”, a mais atual de todas, sobre um grupo de hackers idealistas.

Pergunte a alguém a razão do sucesso de seu livro/filme/programa de TV e a resposta, via de regra, vai seguir o mesmo roteiro. O primeiro instinto é dizer algo como “não sei” ou “se soubesse a fórmula, estaria rico”. Depois vêm alguns chutes. Teve química no elenco, o roteiro era in-crí-vel, o público se identificou e por aí vai. Não tem diagnóstico certeiro. Mas a conclusão quase sempre gira em torno de uma observação singela: produzimos a coisa certa na hora certa. Lançada no momento errado, uma série maravilhosa pode se perder no meio da massa — só em 2014 foram exibidas mais de 370 séries nos Estados Unidos (constatação óbvia de hoje: é mais de uma por dia no ano).

O que o sucesso dessas séries tem em comum é justamente o timing. A britânica “Black Mirror”, de 2011, é um bom exemplo. Um pouco mais antiga que as outras, era elogiada pela crítica, mas pouco conhecida pelo público. No Brasil, era exibida pelo pequeno canal I-Sat, fora dos principais pacotes da televisão a cabo. Na TV americana, idem. Quando o Netflix começou a exibir os episódios iniciais da série, virou um sucesso (ainda que meio cult) nos Estados Unidos. Os resultados foram tão bons que o próprio Netflix vai produzir novos capítulos da série.

A cada episódio — todos são independentes uns dos outros — a série mostra o lado negro de uma tecnologia. No primeiro episódio, por exemplo, uma popular figura da nobreza britânica é sequestrada e, como resgate, os bandidos pedem para que o primeiro-ministro faça sexo com um porco ao vivo na TV. Com a pressão das redes sociais o político se vê numa encruzilhada: ou não obedece, ela morre e a reputação dele acaba ou… é melhor ver para crer.

Charlie Brooker, criador da série, diz ter tirado inspiração da “loucura” da vida real. Hoje, pensou, fazemos coisas que há poucos anos seriam consideradas malucas, como conversar com o seu celular e ter seu desempenho como dançarino avaliado por um videogame. “Se a tecnologia é uma droga, quais são os efeitos colaterais?”, disse ao jornal inglês “The Guardian”. Sua série fala tanto do conforto quanto do desconforto que a tecnologia traz. “O ‘black mirror’ [espelho preto] do título é aquele que você acha em toda parede, em toda mesa, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, de uma tela, de um telefone.”

Na televisão tradicional, “Black Mirror” não deslanchou. Foram feitos menos de dez episódios, exibidos até 2013. No ano passado, quando a série já estava no Netflix americano, houve um especial de Natal com Jon Hamm, o Don Draper, de “Mad Men”. Agora ela pode voltar, acompanhada por outras séries sobre tecnologia. E num serviço de vídeo sob demanda, conectado à internet, um dos temas da série. O sucesso foi uma questão de timing.

BOOM

No ano passado estreou talvez a mais popular das séries de tecnologia, “Silicon Valley”, indicada a dois Emmy de melhor série de comédia — o prêmio deste ano será entregue no domingo (20) — e a um Globo de Ouro. Nela, Richard é um programador em uma grande empresa da internet e desenvolvedor um aplicativo de música que envolve um super algoritmo, disputado por dois empresários poderosos. Diferente das outras, fala de tecnologia com humor, brincando com os milionários do Vale do Silício.

Também do ano passado é “Halt & Catch Fire”, uma “ode à tecnologia” segundo Melissa Bernstein, coprodutora-executiva da série. Ambientada nos anos 1980, acompanha um ex-executivo da IBM que monta uma equipe para descobrir como foi produzido o principal computador da empresa e disputar uma fatia no mercado. A época foi escolhida, segundo Bernstein, porque é o ponto de partida para tudo aquilo que temos. E embora não se passe nos dias de hoje, fala de questões ainda atuais, como a dificuldade de ser mulher e trabalhar no ramo.

Em abril, a produtora afirmou que como a ciência não é bem representada na televisão, é um bom tema para seriado. Era verdade, mas neste ano vieram mais duas produções sobre tecnologia. Enquanto “Halt & Catch Fire” fala do passado, “Humans” olha para o futuro. Na trama, que estreou no fim de junho na TV americana, robôs super sofisticados de aparência humana passam a substituir as pessoas em todo o tipo de tarefa. A história começa quando Joe compra uma dessas robôs para ajudá-lo a cuidar da casa na ausência da mulher, Laura, que viajava a trabalho.

Quando ela volta, percebe que a máquina é bem mais eficiente que ela para as tarefas domésticas — e que o marido está contente demais com a nova funcionária. Seu medo é que o robô, que dá mostras de ter sentimentos, tome seu lugar na família. Primeiro problema. Uma das filhas de Laura, Mattie, também não é das mais empolgadas com a novidade. Se os robôs fazem tudo melhor do que um humano, por um valor bem menor, como ela vai arrumar um emprego? Seu medo é ser substituída não na família, mas no mercado de trabalho.

Falar de robôs vivendo entre humanos não é novidade, mas “Humans” trata da questão de um jeito com o qual podemos nos identificar mais do que vendo “Os Jetsons”, por exemplo. Não é um futuro em que as pessoas vestem roupas prateadas, carros voam e pílulas substituem comida. É um mundo como o em que vivemos, mas no qual a tecnologia é tão desenvolvida que o homem fica obsoleto. Segundo estudo da Universidade de Oxford do ano passado, 47% dos empregos dos Estados Unidos correm risco de serem automatizados nas próximas duas décadas. “Humans” fala de temores reais.

HACKERS, 20 ANOS DEPOIS

De todas as séries do gênero, a mais impactante é “Mr. Robot”, dona da impressionante nota de 98% no site agregador de críticas Rotten Tomatoes. À tecnologia a série ainda soma questões sociais contemporâneas. O protagonista Elliot não é só um hacker, é um hacker com consciência social, anticapitalista, que quer causar uma reviravolta no sistema financeiro, apagando os registros de dívidas de milhões de pessoas – o que lembra, de certa forma, o clássico filme “Hackers”, que foi lançado há 20 anos.

Ajuda o fato de que a série é, de forma geral, diferente. Não é uma novelona, como “Grey’s Anatomy”. Não tem vampiros, políticos, médicos ou policiais. É uma série inusitada, começando pelos títulos de seus episódios com nomes de arquivos típicos de quem baixa muita coisa por aí, como “eps1.1_ones-and-zer0es.mpeg”. É também bonita de ver. A clássica abertura e a música tema dão lugar a um letreiro retrô com o nome da série. Nem os enquadramentos são padrão: os personagens ficam bastante no canto da tela, às vezes até em segundo plano, enquanto a câmera mostra uma Nova York cinza, bem distante do glamour de “Sex and the City”.

Mas o principal fator do sucesso da série é seu tema. O criador Sam Esmail assumidamente buscou sua trama no noticiário. Para construir seu protagonista, por exemplo, olhou para seu país natal, o Egito, durante a Primavera Árabe. “Fui ao Egito logo depois que tudo aquilo aconteceu e achei muito legal ver todos aqueles jovens bravos com como o país estava, bravos com a sociedade. E a maior arma que eles tinham era o fato de que eram jovens e bravos”, disse à revista “The Hollywood Reporter”. Gostou de ver como eles usavam nessa luta a tecnologia e as redes sociais, mesmos artefatos de “Mr. Robot”.

Para a primeira temporada, deu certo. Sobre a segunda, é muito cedo para dizer. Mas o fato é que Esmail pretende repetir a estratégia e já está conversando com economistas para tentar antecipar o que aconteceria na realidade se os desdobramentos da série fossem verdadeiros. “Espero que deixemos a economia sexy e divertida.”

A televisão é feita de ciclos, alguns mais longos, outros mais curtos. No ano passado, por exemplo, foi declarada a era da comédia romântica — meses depois, quase todas as séries do gênero foram canceladas. Mas, por enquanto, é a hora e a vez das séries de tecnologia. E, dure ou não, é bom reconhecer na televisão um pouco do que se passa do lado de fora.

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Cinema

A invasão do terror brasileiro na TV

Dois lutadores, um descamisado com máscara de monstro e outro de fantasia vermelha, se enfrentam numa batalha estilo “Street Fighter” num galpão escuro. Trocam alguns golpes até que um agarra a cabeça do outro e a esmaga com as próprias mãos como se fosse uma fruta molenga, espirrando sangue para todos os lados. Algo como uma das mais famosas mortes do seriado “Game of Thrones”. Igualmente sangrento, mas menos sofisticado.

Produzido a custo zero, só com materiais que a equipe já tinha, o curta que mistura ação com terror é parte do programa “Cinelab”, que chega no dia 16 à segunda temporada (20h, Canal Universal). Cada episódio acompanha a produção de um pequeno filme nessa linha, com poucos diálogos e muitos efeitos especiais. Há cenas em cemitérios, tiroteios, alienígenas, zumbis, assassinos e zumbis assassinos. “O programa dá a oportunidade pra gente de fazer filmes que a Ancine [Agência Nacional do Cinema] não deixaria, por exemplo, se a gente mandasse os roteiros”, resume Kapel Furman, um dos três apresentadores da atração.

De tudo o que Kapel e seus colegas Armando Fonseca e Raphael Borghi – todos especialistas em efeitos especiais – disseram em uma conversa em São Paulo, é essa frase que chama mais a atenção. “Cinelab” não é incrível, é só legal. Mas tem ali algo de diferente. Revirando a biblioteca mental em busca de algo brasileiro parecido com os curtas que o programa apresenta, pouca coisa vem à cabeça.

No ano passado, de 113 longas nacionais lançados em circuito, segundo dados da Ancine, só um era de terror. É “Mar Negro”, aventura zumbi com um pouco de folclore brasileiro (tem um feiticeiro chamado Velho do Saco e seres como Baiacu-Sereia, por exemplo), em que uma vila de pescadores é contaminada misteriosamente e animais marinhos viram criaturas mortíferas. De Rodrigo Aragão, diretor de “Mangue Negro” e “A Noite do Chupacabras”, o filme estreou em janeiro. No resto do ano, alguns suspenses, mas nenhum puramente de horror.

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O público para o gênero, porém, existe. Lançado no ano passado, o americano “Annabelle”, por exemplo, foi o filme de terror mais visto do Brasil nos últimos anos, com 3,7 milhões de espectadores, levando as pessoas a buscar a fantasia da boneca-título na rua 25 de março. O “Cinelab” quer levar justamente esse público de terror americano para a TV. E mais: estimular a produção de terror brasileiro no cinema.

A cada episódio o programa apresenta o making of de um curta de terror, ação ou ficção científica bem improvisado. Com poucos recursos (às vezes nenhum) e só uma diária de filmagem, os três apresentadores devem produzir algo do zero à pós-produção, revelando os truques por trás das cenas (a cabeça esmagada, por exemplo, foi feita com uma máscara maleável cheia de sangue cenográfico acoplada ao braço do ator).

Alguns curtas têm um quê de humor — o da luta, por exemplo, em que o personagem de vermelho se chama Capitão Comunista –, mas outros são tensos de verdade, como um em que uma menina morta volta como zumbi para se vingar do homem que a assassinou. “Tem um efeito bizarro pra caramba. Incomoda, tem pressão psicológica. De vez em quando a gente quer fazer um filme sério. É um filme de terror que poderia participar de festival. Ficou redondo e tenso pra caramba”, avalia Kapel.

TIRO, PORRADA E BOMBA

Citando suas referências, o trio menciona filmes de ação chineses, histórias com grandes catástrofes, gore, e “aqueles filmes dos anos 1980 que passaram despercebidos do grande público”. Produções de terror e ação, basicamente, gêneros com os quais trabalham fora do “Cinelab”. Raphael participou do thriller chinês “Plastic City” e do brasileiro “Pólvora Negra”. Com Armando dirigiu o suspense com zumbis “Desalmados”. Já Kapel é especializado em cinema fantástico e cenas de violência. No currículo tem filmes como “O Cheiro do Ralo” e “Encarnação do Demônio”.

“Sem querer falar que filme de drama, que só tem diálogo, é chato, mas o filme que tem ação, explosão e luta é muito mais divertido de filmar do que ficar 12 horas num banheiro com um casal discutindo. Isso é inegável”, opina Armando. Na televisão, tiveram a oportunidade de fazer o que gostam fora do circuito de festivais de nicho — “Desalmados”, por exemplo, esteve no Fantaspoa, Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, mas não chegou aos cinemas.

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“No programa a gente tem a oportunidade de contar histórias bizarras, ou mesmo de experimentar linguagens, experimentar efeitos”, diz Kapel. “Tá bizarro isso? Tá estranho? A gente gosta. É muito legal. A gente acaba se divertindo porque a experiência é um presente.” E usar a televisão como meio tem ajudado a conquistar o público de cinema, aquele que vai ver “Annabelle” e não encontra alternativas nacionais.

“A gente achava que não tinha público nenhum pro nosso trabalho, pra filme de terror, de ação. Com o ‘Cinelab’ passando na TV a gente descobriu que tem pra caralho. Mas nem todo o mundo pode estar aqui [em São Paulo] vendo nosso filme”, diz Raphael. “Descobrir que tem público pra esse nicho de filme é uma coisa muito massa. A gente achava que cinema de terror no Brasil fosse um fracasso, que não tinha público. O ‘Cinelab’ abriu uma porta.”

Segundo ele, há pessoas de todos os cantos do Brasil entrando em contato com o trio para falar de seu trabalho e apresentar suas próprias produções. “Tem mais gente que gosta desse tipo de filme fora de São Paulo do que aqui. Mas nossos filmes não atingiam esse público. Eles passavam em festival e ninguém vai em festival, só realizador. Por conta do ‘Cinelab’ passar na TV, a gente tem acesso a público e divulga nosso trabalho e o de gente que faz filme de terror. A gente é bem ativista nisso.”

MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL

E quais são as dificuldades para se fazer filmes de terror no Brasil? Segundo Rodrigo Aragão, diretor do solitário “Mar Negro”, todas. O cineasta começou como a equipe de “Cinelab”, trabalhando como técnico de efeitos especiais. “Era um profissional muito frustrado por trabalhar em poucos filmes, já que o cinema brasileiro não tem tradição de usar esse tipo de recurso. Aí resolvi fazer meus próprios filmes”, conta.

Os problemas, porém, não terminaram aí. Produzir terror no Brasil é missão “quase impossível”, diz ele. “Infelizmente, pra entrar na máquina e ser aprovado em edital, você tem que disfarçar seu filme de terror de outra coisa. Tem que fazer filme de terror envergonhado, de ‘suspense psicológico’”, afirma. “Qualquer filme de terror brasileiro que teve apoio e patrocinadores teve que cortar o título ‘terror’ do projeto. Isso é lamentável. Uma grande tristeza. Ou você consegue um caminho totalmente alternativo e independente ou tem que se enquadrar e fingir que está fazendo outra coisa, fazer terror sem sangue e sem tesão.” Esses filmes “pau mole” — diz, rindo — não agradam a ninguém: quem não gosta de terror não vai nem ao cinema assistir, e quem gosta sai frustrado.

O preconceito está em todos os setores da produção de cinema, diz. “Você tem comissões julgadoras de editais que consideram que o gênero tem pouco conteúdo cultural — o que é uma besteira –, patrocinadores que não querem colocar o nome da empresa num filme de terror, exibidores que, por não ter tradição do gênero no país, não aceitam distribuir esse tipo de filme, e um público que não está acostumado a ver terror brasileiro”, enumera Aragão.

“Nunca consegui passar nas leis de incentivo, misteriosamente. Mesmo tirando notas máximas em orçamento, capacidade. A gente não consegue passar. Todos os meus filmes foram feitos de maneira independente, com recursos particulares”, diz. Depois de prontos, é mais fácil exibi-los no Japão ou na Europa do que aqui. “Tento fazer terror tropical, com tempero bem brasileiro, figuras típicas, paisagens bonitas e música brasileira. Isso encanta muito o estrangeiro.”

Sem conseguir “romper a barreira do cinema”, Aragão tem buscado outras vias. Seu próximo filme, “Fábulas Negras”, feito com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, será lançado direto digitalmente. “A contabilidade mais importante dos meus filmes é justamente nessas distribuições alternativas. Se juntar o que tive de downloads, mesmo ilegais, passa de 1 milhão fácil”, afirma.

“Toda semana recebo roteiros de jovens. O terror tem uma legião de fãs muito fiéis. Isso é comprovado com o sucesso de filmes baratos como [o americano] ‘Annabelle’. Mas ainda são órfãos de filmes brasileiros”, opina. Além da internet, a televisão é outra alternativa possível e, assim, programas como o “Cinelab” podem ajudar a mudar essa situação e alavancar o gênero no cinema, acredita. “Meus filmes estão passando no canal Space e sinto que esse apoio da televisão tem sido muito importante. O brasileiro tem que se acostumar a se ver”, diz.

Nas gravações de “Fábulas Negras”, conta o cineasta, Mojica lhe disse algo marcante. “Ele falou: ‘Rodrigo, quem faz filme de terror é maldito’. Isso é uma coisa muito triste. Esse conceito precisa mudar”, diz. “Fazer cinema de gênero no Brasil tem que ser considerado bendito. Estamos colocando cores brasileiras no nosso cinema, que tem sido pastel, às vezes muito careta e intelectual, sem contato com o povo. A gente precisa mudar o foco do cinema de gênero, não ser ‘under’.”

Apesar dos pesares, Aragão é otimista: “Existe uma nova geração de realizadores que está muito interessada em terror, produzindo cada vez mais filmes, e melhores. Vejo o futuro com bons olhos. Acho que as coisas vão mudar”.

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Cultura

“Duna”, 50 anos

Como um complexo livro escrito nos anos 60 levou dois dos diretores de cinema mais excêntricos a embarcarem em projetos mirabolantes, influenciou uma das maiores sagas cinematográficas já criadas e mesmo assim demorou anos, até décadas, para ser reconhecido como um dos marcos da literatura de ficção científica? Não é uma pergunta fácil de responder, mas tudo começou com uma obsessão por montanhas feitas de areia e vento.

Enquanto estava se preparando para uma reportagem que nunca escreveu, Frank Herbert se viu fascinado por dunas. A paixão tinha um quê de poesia: Herbert gostava do fato de que ninguém percebia que as massas de areia eram primas das ondas do mar, movendo-se da mesma forma, mas num ritmo mais lento. Estudando um monte de arquivos sobre areia, ele acabou pensando: “E se existisse um planeta que fosse todo deserto?”. E foi além: “Nos meus estudos sobre desertos e em estudos anteriores sobre religião, vi que muitas religiões nasceram no deserto. Então resolvi juntar as duas coisas, pois não acho que uma história deva ter uma linha só”.

Foi assim, de uma singela observação sobre a areia, que nasceu o livro “Duna”, publicado 50 anos atrás. Às duas linhas — deserto e religião — somaram-se tantas outras que a história pensada como um conto terminou por se desdobrar em seis volumes escritos por Herbert e mais de dez feitos por seu filho, Brian, em parceria com Kevin J. Anderson, como continuação de seu legado. Sozinho, o primeiro livro tem tantas tramas que fazer uma sinopse, ainda que em alguns parágrafos, é uma tarefa complicada.

Mas aqui vai uma tentativa: num futuro distante vive o garoto Paul, herdeiro da nobre família Atreides, designada para governar o planeta desértico Arrakis. É somente lá que se produz a substância mais valiosa do universo, que dá vitalidade e uma clareza incrível a quem a toma, possibilitando longas viagens entre planetas, essenciais para a manutenção da ordem do universo. Tirar essa substância das dunas, no entanto, é um problema, já que qualquer atividade na areia atrai vermes gigantes devoradores de pessoas.

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Por causa da escassez desse recurso natural fundamental, Arrakis é um território cobiçado por outras famílias que querem dominá-lo. Na disputa, Paul acaba por se perder no deserto com a mãe, iniciada em uma ordem político-religiosa de mulheres com poderes como controlar a mente alheia. Ah, e Paul é também uma espécie de messias, aguardado ansiosamente pela ordem há gerações e dotado de poderes incríveis.

Não é fácil de explicar, muito menos de ler. Herbert não introduz seus leitores lentamente a seu universo — que é complicado e detalhado como a Terra Média de J.R.R. Tolkien. Algumas (muitas) consultas na internet ajudam a situar o leitor em meio às tramas e termos como Bene Gesserit e gom jabbar, citados sem cerimônia ou explicações logo nas primeiras páginas.

Essa complexidade não assusta, porém, a legião de fãs de ficção científica. Em 2011, uma enquete da americana NPR (Rádio Pública Nacional) com mais de 60 mil votos elegeu “Duna” como a quarta melhor publicação de ficção científica da história. Mas como acontece com muitas obras do gênero, o livro não foi um sucesso imediato.

Segundo James E. Gunn, autor da antologia em seis volumes “The Road to Science Fiction” e criador do Centro para o Estudo da Ficção Científica da Universidade do Kansas, “Duna” nasceu muito à frente de seu tempo. “‘A Sociedade do Anel’ [de Tolkien] veio em um período em que as pessoas estavam prontas. Independente de seus méritos, é isso que é fundamental para que um trabalho adquira esse nível de popularidade”, diz.

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“‘Duna’ era um livro mais complexo e difícil. Foi um sucesso fora do comum como uma história publicada em revistas, mas teve dificuldades em sair como livro porque estava à frente de sua época tanto em relação aos temas quanto à abordagem”, diz. “É um livro significativo por causa desses temas e do tratamento compreensivo dado a eles, por causa dos personagens e pela capacidade de criar um universo futuro crível com uma história que o sustente.”

Rejeitado por dezenas de editoras até conseguir ser publicado, o livro deslanchou, segundo Gunn, surfando na onda do movimento ambientalista fortalecido nos Estados Unidos após a publicação de “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, sobre os danos causados por pesticidas no ambiente. Foi aí que “Duna” e seu coquetel de assuntos, que falavam de danos à natureza e escassez de recursos naturais valiosos, deu certo. O livro conquistou os prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes do gênero, e ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.

O MAIOR FILME JAMAIS FEITO

Uma história como “Duna” merecia uma versão cinematográfica digna de sua grandiosidade. E se isso não aconteceu nas telas, acabou rolando nos bastidores. A mais curiosa tentativa de adaptação da história foi do diretor, escritor, poeta e cartomante Alejandro Jodorowsky, em 1975. Com o objetivo de proporcionar ao espectador a sensação de uma viagem de ácido, o diretor escolheu para o elenco nomes tão exóticos como Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí. A trilha sonora ficaria a cargo do Pink Floyd. Uma experiência lisérgica completa.

Mas, como na literatura, o filme “Duna” era moderno demais para aquele momento. Se no papel a saga de Herbert deu certo apesar das dificuldades, no cinema o projeto naufragou por causa de sua megalomania, ficando conhecido como um dos melhores filmes que nunca existiram. A história está documentada no filme “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich, lançado em 2013.

Jodorowsky nem havia lido a obra quando um produtor perguntou para ele qual seria seu filme dos sonhos. Poderia ter dito “Dom Quixote”, por exemplo, mas disse “Duna”, o livro de ficção científica mais popular daquele momento. Depois de lê-lo, finalmente, o cineasta teve certeza: precisou de cem páginas para entender o que se passava na trama.

Seu projeto era ambicioso. Só o storyboard, desenhado pelo consagrado artista francês Moebius, tinha mais de 3.000 imagens. O elenco estelar foi escolhido a dedo. Para aceitar um pequeno papel, Dalí exigiu ser o ator mais bem pago da história, pedindo de cara US$ 100 mil por hora trabalhada. Inviável. Mas Jodorowsky deu um jeito de driblá-lo. Como ele apareceria em cena por no máximo cinco minutos, ofereceu-lhe US$ 100 mil por minuto na tela.

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Convencer um estúdio foi mais difícil. A resposta de todos era a mesma: a história era boa, o custo estimado, de US$ 15 milhões, era aceitável, mas os executivos não confiavam no diretor maluco nem acreditavam que alguém toparia ir ao cinema para assistir aquilo — como numa viagem de LSD, a jornada era longa, e estimada em mais de dez horas. Jodorowsky não cedeu: “Esse é meu sonho, não desistirei dele”. E ficou por isso mesmo.

Mas a história não terminou por aí. Quase dez anos após a tentativa de Jodorowsky, o filme “Duna” tornou-se realidade pelas mãos de ninguém menos que David Lynch, em 1984. Nele, o papel de Paul ficou com Kyle MacLachlan, que, anos mais tarde, reprisaria a parceria com o diretor na série “Twin Peaks”. O elenco tem ainda nomes como Patrick Stewart, Virginia Madsen e Sting — sim, o ex-vocalista da banda The Police.

No fim das contas, o filme não agradou nem mesmo a Lynch, que, sem poder fazer o corte final, não reconheceu aquele trabalho como seu. Anos depois, declarou que não seria justo dizer que a produção foi um pesadelo total. “Mas acho que foi 75% de um pesadelo”, afirmou, sincero. A ausência de controle criativo, disse, é a morte para um cineasta. “E eu morri.”

Sem o respaldo de seu diretor, o filme foi detonado pela crítica. No New York Times, Janet Maslin escreveu: “Muitos personagens de ‘Duna’ têm poderes psíquicos, o que os coloca na posição única de serem capazes de compreender o que está acontecendo no filme”. Richard Corliss, da revista Time, não deixou por menos: “A maioria dos filmes de ficção científica oferece um escape, como uma folga da lição de casa. Mas ‘Duna’ é tão difícil quanto uma prova. Você tem que se esforçar”.

GUERRA NAS DUNAS

Apesar do filme que nunca saiu do papel de Jodorowsky e da decepcionante versão de Lynch que foi às telas, o Guardian afirmou, em julho, que “Duna” tornou-se, sim, um grande filme: “Star Wars”.

“Dos poderes mentais dos jedis similares aos das Bene Gesserit à mineração em Tatooine”, há muito no universo de George Lucas que remete a “Duna”, segundo a publicação. “Herbert sabia que tinha sido copiado”, diz o texto. “Ele e alguns colegas formaram, como piada, uma organização chamada Sociedade Somos Muito Grandes para Processar George Lucas.”

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Fãs na internet compartilham o sentimento. “‘Star Wars’ é ‘Duna’”, diz, categórico, um site que compila semelhanças entre a saga de Frank Herbert e a criada por Lucas. Alguns dos pontos que sustentam essa tese são bem simples: Tatooine (“Star Wars”) é um planeta deserto. Arrakis (“Duna”) também. “Star Wars” tem uma princesa Leia, enquanto “Duna” tem uma princesa Alia (se você não se convenceu, diga os nomes em voz alta. A pronúncia é bem parecida, argumentam).

Mas há também teorias mais bem desenvolvidas. Nas duas histórias, por exemplo, há um grupo de rebeldes lutando contra um império. Tanto Luke Skywalker quanto Paul Atreides, protagonistas das duas histórias, são jovens rapazes com destinos ligados a planetas desérticos, com poderes com os quais devem aprender a lidar. E (pequeno spoiler) são descendentes dos vilões da trama.

Cópia ou não, é inegável que há em “Star Wars” uma influência de Herbet, diz James E. Gunn. Segundo ele, “George Lucas foi atrás da literatura de ficção científica para se inspirar e fez homenagem a muita coisa que leu”. Como exemplo, Gunn diz que a forma como os Wookie, espécie do personagem Chewbacca, são retratados é inspirada em um desenho de capa da revista “Analog”, que publicou os primeiros trechos de “Duna”. “E há o esqueleto de um verme de areia [de ‘Duna’] que aparece em um dos filmes [de ‘Star Wars’]”, cita.

VERSÃO BRASILEIRA

No Brasil, a saga ganhou uma nova versão em 2010 motivada pela paixão de um fã. O editor Marcos Fernando trabalhava em uma livraria paulistana quando conheceu Adriano Fromer, publisher da editora Aleph, que tem como foco livros de ficção científica. Conversando sobre o gênero e os pedidos mais frequentes de leitores, Marcos comentou que um dos mais procurados era “Duna”, que estava esgotado.

Havia descoberto o livro tempos antes por indicação de um colega, que sabia de seu gosto pela ficção. “Ele percebeu que eu acabara de ler mais um livro de H. G. Wells, então me indicou ‘Duna’. Acabei devorando o livro, com mais de 500 páginas, em menos de uma semana. De lá para cá, reli esse volume da série pelo menos três vezes”, conta.

Com a indicação em mãos, a Aleph o contratou para fazer a revisão do texto traduzido, cotejando-o com o original do primeiro volume de “Duna” — tarefa que ele repetiu para todos os outros livros da série lançados pela editora até hoje — e para participar de coordenação editorial. Marcos deixou, então, a livraria e mergulhou no universo de Frank Herbert.

“Uma das maiores dificuldades que encontramos de imediato foi realizar uma nova tradução de um livro já consagrado, com seus fãs acostumados com a versão lançada nos anos 1980”, explica ele. “As escolhas da tradução da Aleph sempre se pautaram em um paralelismo com o original, dando espaço para os neologismos e aglutinações, muito empregados por Frank Herbert.”

“Duna” continua rendendo frutos. Da nova edição brasileira a volumes inéditos da saga, passando pelo documentário sobre o filme de Jodorowsky e pelas obras influenciadas pelo livro, há constantemente algo novo com a marca de Herbert circulando. “A prova cabal é a contemporaneidade das questões suscitadas pelo autor: disputas políticas, uso consciente da água, monopólio de combustíveis, a importância social das religiões”, diz Marcos. É sempre complicado explicar os motivos do sucesso de algo, mas, a mesma modernidade que atrapalhou “Duna” no começo está ajudando a trazer novos leitores 50 anos depois.

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Comportamento

A febre do ‘unboxing’ para crianças

Desde março do ano passado, uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) considera abusiva toda publicidade dirigida a crianças. Na TV aberta, os efeitos foram sentidos: sem poder fazer propaganda e com maior dificuldade para vender anúncios, os canais escantearam a programação infantil. Enquanto os olhos se voltavam para a televisão, porém, algo aconteceu na internet.

Entre os vídeos mais populares no YouTube estão aqueles em que pessoas tiram produtos de suas caixas e mostram todos os seus detalhes, do plástico utilizado ao posicionamento do código de barras. Pode ser qualquer coisa, de um celular novo a um chocolate, um DVD. Normalmente, são produtos novos, recém-lançados, o que dá um ar de exclusividade. É uma febre. Os mais populares atualmente, porém, são os de brinquedos, voltados para o público infantil. Não é a publicidade tradicional, mas organizações e grupos de pais argumentam que se trata, sim, de propaganda para crianças.

Segundo dados do Google, a popularidade dos vídeos de “unboxing” cresceu em 57% no ano passado. Em números de vídeos enviados, o aumento foi de 50%. Uma busca no YouTube por “unboxing” resulta em mais de 20 milhões de vídeos — isso apenas com a palavra em inglês. Para ver tudo, seria preciso passar sete anos em frente ao computador. Em 2014, esse conteúdo ultrapassou 1 bilhão de visualizações no YouTube — e o Google diz que 20% de seus usuários já viu um vídeo do gênero.

Nas palavras da empresa, “esses vídeos não apenas documentam a experiência de abrir um produto, mas também frequentemente a dramatizam e, assim, adquirem um espírito brincalhão, mostrando os produtos recém-abertos em toda a sua glória”.

Em suas pesquisas para decifrar a popularidade do conteúdo, o Google concluiu que seu principal atrativo é dar ao espectador a sensação de antecipação infantil que se tem, por exemplo, ao ver uma árvore de Natal cheia de presentes embalados. Não por acaso, as visualizações aumentam no fim do ano.

Combinado a isso está o fato de que ver alguém abrindo a caixa ajuda na hora de decidir se vale a pena ou não comprar o tal produto. Pelo menos em se tratando de adultos, portanto, o Google reconhece que há um aspecto comercial ali, sim.

Embora existam vídeos de “unboxing” para todos os públicos, o maior canal do gênero é direcionado para bebês e crianças em fase pré-escolar, segundo sua própria descrição. Trata-se do FunToyzCollector, antes chamado de DisneyCollectorBR, figura constante nas listas de mais vistos no YouTube. Hoje, ele tem 5,1 milhões de assinantes e mais de 7,6 bilhões de visualizações.

O canal apresenta, em suas palavras, resenhas de brinquedos variados e até de surpresas do chocolate Kinder Ovo. Segundo estimativas do site SocialBlade, que analisa o YouTube, seus ganhos mensais, obtidos pelas propagandas e banners nos vídeos, ficam entre US$ 77,7 mil e US$ 1,2 milhão.

DESEMPACOTANDO NO BRASIL

Não há na pesquisa do Google dados específicos sobre o Brasil, mas a febre também já chegou aqui. O canal Brinquedos & Bonecas Surpresa, por exemplo, com um desenho da porquinha Peppa no avatar, foi criado em março deste ano e tem cerca de 198 mil assinantes e mais de 129 milhões de visualizações. Em sua descrição, diz ter como público “bebês, meninos, meninas e crianças pré-escolares”. Uma mulher com voz infantil abre as caixas mostrando as unhas pintadas com desenhos do Mickey e expõe tudo o que está ali dentro, citando as marcas dos produtos.

Outro canal, o DisneyTopToys Tototoykids, segue a mesma linha. “Somos um canal que diverte e encanta as crianças com novelinhas e novos brinquedos. Abrimos os brinquedos (playsets) mais LEGAIS do momento”, anuncia. São 385 mil assinantes e 306 milhões de visualizações em vídeos que começam com um “venha se divertir com a gente!”. Neles, um casal começa a brincar com bonecos como fazem crianças, criando diferentes vozes e histórias para os personagens.

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Gustavo Machado, um dos criadores do canal Brinquedos e Brincadeiras — Toys and Fun — criado em maio, com 6,4 mil assinantes e 2,5 milhões de visualizações — diz encarar o projeto como um negócio. “Realizamos alguns estudos de caso e fizemos um planejamento a médio e longo prazo para retorno do investimento. Após um mês de estudos decidimos colocar o canal no ar, no final de maio”, conta.

“Somos o único canal de brinquedos a utilizar multi-câmera nos vídeos, em alguns deles além das duas câmeras normais utilizamos também uma GoPro, e isso acaba refletindo no tempo de edição e renderização dos vídeos, o que faz com que o tempo total de produção ultrapasse seis horas facilmente em alguns casos”, diz. “A nossa meta é lançar um vídeo por dia de segunda a sábado.”

Para ele, as crianças se sentem dentro da brincadeira ao verem os vídeos de “unboxing”, mesmo que não tenham os produtos em mãos — todos comprados por eles, nenhum presente de marcas. “Escolhemos os brinquedos baseados em personagens que fazem sucesso com as crianças, filmes recém-lançados e também dados que extraímos da ferramenta de análise de audiência que o YouTube disponibiliza”, conta.

Machado concorda que esse tipo de vídeo pode ser considerado uma forma de propaganda. “Com certeza as crianças acabam sendo estimuladas a realizar a compra. Percebemos isso, pois recebemos seguidamente comentários em nossos vídeos de crianças questionando onde adquirimos os brinquedos e o preço deles.”

Já um dos donos do canal Brinquedos & Bonecas Surpresa — seu nome e seu rosto não aparecem nos vídeos — discorda. Ele diz não acreditar que os vídeos de “unboxing” façam propaganda indireta e que na maioria das vezes as crianças assistem a eles acompanhadas de seus pais.

Também afirma não ter relação alguma com marcas. “Compramos 99,99…% dos nossos brinquedos. Apenas quatro foram enviados por uma marca e gravamos apenas dois. Não me pagaram para gravar. Deixo claro: se quiser enviar, envie, mas não forneço nenhuma garantia de que iremos gravar o brinquedo.”

CLANDESTINA

Nos Estados Unidos, as organizações Commercial-Free Childhood (Infância Livre de Comerciais) e Center for Digital Democracy (Centro para a Democracia Digital) protestaram, pedindo em maio para que o YouTube coloque um rótulo de propaganda em alguns vídeos de “unboxing”. No texto, dizem que muitos dos vídeos gerados por usuários têm acordos não revelados com marcas, citando cinco canais do YouTube que têm afiliação com o Maker Studios, da Disney.

Segundo Isabella Henriques, diretora de defesa do Instituto Alana, organização que defende direitos das crianças, os vídeos de “unboxing” são “verdadeiras publicidades clandestinas, que não se apresentam como publicidades, mas são pensados pelas marcas como comunicação mercadológica, decorrentes de uma estratégia pensada e planejada para atingir, especialmente, as crianças”.

Se o conteúdo aparece misturado com a publicidade, como no caso desses vídeos, é mais difícil para a criança identificar a mensagem publicitária. “Dependendo da idade das crianças será mesmo impossível fazer essa análise, entender que se trata de publicidade”, afirma.

Henriques diz que, até os oito anos, crianças têm dificuldade em identificar as mensagens publicitárias como tal e separar o entretenimento da propaganda. A partir dessa idade, conseguem fazer essa distinção, mas não entendem que a publicidade nem sempre diz a verdade e que seu objetivo é persuadi-las a consumir.

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O professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Yves de La Taille concorda que crianças, até os 12 anos de idade, não conseguem olhar criticamente para os anúncios, e que o fato de não haver uma separação clara entre publicidade e conteúdo dificulta ainda mais essa compreensão. Ele cita o caso da França, por exemplo, em que antes dos intervalos comerciais na televisão há um aviso de que o que se segue é publicidade.

No caso dos vídeos de “unboxing”, se a marca do brinquedo é mencionada, o psicólogo afirma que deve-se considerar, sim, que são uma forma de publicidade clandestina, já que estimulam a vontade da criança de comprar o produto.

Para Livia Cattaruzzi, advogada do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o problema não é anunciar produtos para crianças, como brinquedos. A propaganda deve, contudo, ser direcionada aos pais. Vídeos que utilizem elementos com apelo para crianças, como cores vibrantes, personagens de animações ou vozes infantilizadas, tais como nos vídeos de “unboxing”, constituem publicidade abusiva.

Segundo ela, as crianças têm inclusive o poder de influenciar as compras da família. Se uma marca de tinta, por exemplo, utiliza um personagem de desenho animado em suas propagandas, crianças pedem para os pais que comprem dessa marca, ainda que o produto não seja para elas. Pais que sentirem que alguma publicidade é abusiva devem procurar o Procon local, afirma Cattaruzzi.

Em relação a colocar um aviso de propaganda nos vídeos de “unboxing” do YouTube, como se pede nos Estados Unidos, Cattaruzzi e Isabella Henriques concordam que ao menos eles deixariam de ser publicidade clandestina. “Isso porque, nos termos do artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, a publicidade deve ser facilmente identificável como tal pelo público ao qual se dirige”, diz Henriques. “Mas no caso das crianças menores, que não sabem ler e que têm dificuldade de entender a publicidade como mensagem comercial, não resolveria”, ressalva.

Vanessa Anacleto, do Movimento Infância Livre de Consumismo (Milc) — grupo criado em 2012 que faz campanhas sobre os riscos da exposição precoce às telas e à publicidade –, diz que a iniciativa dos pais americanos é positiva, já que a internet é território livre para a propaganda. No entanto, ressalva que ainda se engatinha no Brasil no que diz respeito à regulação da publicidade infantil.

“A Resolução 163 do Conanda, editada no ano passado, nem sequer é levada a sério pelo mercado. Projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados se arrastam durante anos sem chegarem à fase de votação”, afirma. Embora a resolução do Conanda tenha força normativa, ainda há projetos de lei sobre o tema no Congresso. Qualquer texto aprovado, porém, deve proteger ainda mais os direitos das crianças.

Em tempos de menos programas para elas na televisão, a tendência é que crianças encontrem cada vez mais seu entretenimento na internet. Embora seja mais trabalhoso fiscalizar os abusos lá, onde o conteúdo é produzido por usuários do mundo todo e se renova todos os dias, as regras são claras: “São as mesmas daquelas que valem para os outros canais de comunicação”, diz Isabella Henriques. “Não é necessariamente mais difícil de regulamentar.”

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Cem anos de caligrafia

Tem ares de contos de fadas, mas é assim que a Escola de Caligrafia De Franco, em São Paulo, nasceu, cem anos atrás, conta o professor Antônio De Franco. Sua trisavó, Ida, nasceu numa família nobre na Itália. Apaixonou-se por um plebeu e, sem poder se casar com ele lá, veio para o Brasil na década de 1880 para poder ficar com ele em paz.

Aqui, ensinou a cada um de seus filhos uma arte. A Antônio coube a caligrafia. Sozinho, fundou em 1915 uma pequena escola no centro de São Paulo, na rua General Osório, para passar o conhecimento adiante.

Nos anos 1980, a escola mudou de lugar, passando a funcionar em uma casa ao lado do shopping Eldorado, em Pinheiros, zona oeste da cidade. De resto, tudo continua praticamente igual, como se o tempo tivesse parado por ali. As aulas são ministradas pelos herdeiros de Antônio — Flávio, seu neto, e Antônio, bisneto –, o método continua o mesmo e reina na casa um clima familiar. Não há, por exemplo, recepcionistas. Quem atende o telefone são os próprios professores, que se sentam à porta da casa e se dividem entre dar aulas, corrigir lições e atender aos interessados que tocam a campainha para perguntar se é ali mesmo que se ensina caligrafia.

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Diante do espanto com o fato de ainda existir procura pelas aulas numa época em que as pessoas escrevem tão pouco à mão, Antônio — altíssimo, vestindo roupa social — sorri e afirma que o movimento continua firme e forte.

“A escrita é uma forma de apresentação pessoal. Do mesmo jeito que alguém se destaca por falar bem, é preciso saber se comunicar pela escrita”, diz. “Um tablet ou um computador são ótimos. Mas para nos auxiliar, nunca nos substituir. A tecnologia vai acabar com a escrita? Acho que seria um retrocesso. Deixaríamos de ter uma capacidade para que uma máquina fizesse algo pela gente. Não acredito que isso vá mudar.”

Entre os alunos há pessoas prestes a prestar vestibular ou concursos públicos, querendo aprimorar a letra para as redações, crianças ou mesmo interessados em trabalhar como calígrafos. “A letra das pessoas hoje é ilegível. Elas precisam aprender desde os traços básicos”, diz Antônio.

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O método De Franco é prático. Os alunos recebem uma folha com algumas frases e pautas para letras maiúsculas e minúsculas, copiam e devolvem para o professor, que faz as devidas correções. Depois repetem, repetem e repetem — até acertar. Treinam também sem as pautas, para conseguir manter a proporção das letras — do tipo comercial inglesa, inclinadinha — em qualquer contexto. O resultado sai em dois meses, com cinco lições por semana. Para comprovar a eficácia, Antônio abre uma pasta ao acaso e tira duas amostras de um mesmo aluno: a da aula inicial e uma de dois meses depois. A mudança é radical.

Se o aluno não conseguir comparecer à escola, aberta de segunda a sexta das 10h às 20h e aos sábados das 14h às 15h, cinco vezes por semana, não tem problema. Pode levar as lições restantes para casa e entregá-las depois. Há a opção ainda de estudar por correspondência. Nesse caso, porém, o curso termina em quatro ou cinco meses.

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Não há caso perdido, afirma Antônio, pois a letra cheia de vícios com a qual o aluno chega à De Franco é deixada completamente de lado. “Ensino uma letra nova, do início. Ele vai reaprender a escrever, desde os traços básicos”, diz. “Hoje em dia, nas escolas, os professores não têm orientação de caligrafia. Está um caos gráfico.”

Os problemas começam na postura corporal. Sentar errado, de lado, dobrando a perna e abaixando a cabeça podem ser causa de uma caligrafia ruim. “Aqui trabalhamos de tudo. Como segurar a caneta, como a folha deve ficar, que braço deve segurar o papel, onde o peso deve ser colocado”, conta. Quando as aulas são por carta, essas mesmas instruções são enviadas com as lições.

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A conversa é interrompida por uma mãe, que toca a campainha e pergunta: “É aqui que se ensina caligrafia?”. Ela diz que o filho vai bem na escola, mas tem uma letra horrível. Antônio explica todo o método, dá o preço (R$ 290 ao mês, sem taxa de matrícula) e os horários de funcionamento. Mas pergunta: “Quantos anos ele tem?”. Diante da resposta, diz que a idade mínima é de 11 anos. Ele esclarece: o ensino da caligrafia é pedagógico e eles não querem interferir com a educação das crianças aprendendo a escrever.

Os De Franco dão também cursos de caligrafia artística, que inclui letras como as góticas inglesa e alemã — feitas com pena molhada no nanquim, bem rebuscadas e utilizadas em convites de casamento e diplomas. Trabalhos que os professores também fazem e são expostos pelas paredes da casa. Antônio conta que saiu dali o convite de casamento da filha do governador Geraldo Alckmin, Sophia, em 2007.

“Há também um trabalho nosso no Vaticano”, gaba-se. Quando o papa Bento 16 veio ao Brasil em 2007, o calígrafo do mosteiro de São Bento — ex-aluno da família — pediu que eles fizessem uma placa com o nome do pontífice na letra gótica alemã. O papa gostou tanto que pediu para ficar com o trabalho, conta Antônio. Trabalhos desse tipo demandam tempo e podem custar até R$ 2.000.

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Como os outros professores De Franco que vieram antes dele, Antônio é formado em direito, e continua exercendo a profissão. Ainda assim, vai todas as terças e quintas à escola, pelo prazer de ensinar. Filho único, sobrou para ele o legado. Já receberam pedidos para criação de franquias da De Franco — a primeira e única escola exclusivamente de caligrafia no Brasil, segundo eles –, mas não toparam.

Tampouco pensam em contratar professores que não sejam da família. “Foi meu pai quem me ensinou a escrever. Brinco que desde pequeno tomava sopa de letrinhas. Ele deixava todas as penas à mostra e não deixava eu encostar, para estimular a minha vontade. A gente faz caligrafia com muito carinho.”