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“Muito” além das aspas irônicas

A poucos metros um do outro, dois restaurantes na Faria Lima, em São Paulo, fazem um uso curioso de aspas em seus letreiros. “Por uma alimentação mais saudável”, diz um. “Grande variedade” de lanches, diz o outro. O uso de aspas em contextos esquisitos está em todos os cantos: nas placas nas ruas, em comunicados de condomínio nas paredes de elevadores, em posts nas redes sociais (como aquele do Neymar, desejando “parabéns” para o filho), em textos no jornal (Pergunta Delfim Netto em sua coluna: “Alguém duvida da importância da ‘cultura’ na construção de uma sociedade civilizada?”). Erros de aspas são comuns, mas há mais usos para a pontuação do que mostrar ironia – esse sentido, aliás, é recente se considerarmos a longa vida das aspas.

A história do sinal de pontuação começa antes de Cristo, na Grécia — pelo menos até onde se tem registro e pode-se afirmar com certeza. “Eles usavam aquela marquinha como uma flecha na margem dos manuscritos da Grécia antiga para chamar a atenção para algo (como uma flecha faz), às vezes como um sinal de que algo era corrupto, duvidoso, ou que precisava de algum tipo de atenção”, conta Ruth Finnegan, autora do livro “Why Do We Quote? The Culture and History of Quotation”, em que revê a origem das aspas.

Aspas em um papiro grego do segundo ou terceiro século. Fonte: Universidade de Michigan
Aspas em um papiro grego do século I ou II. Fonte: Universidade de Michigan

Desde então, as aspas ganharam um monte de usos. Alguns deles, enumerados por Ruth: destacar, dar dignidade, conferir autoridade, ligar quem escreve a algo, afastar o autor do que ele está dizendo (“não sou eu quem estou falando, só estou passando adiante”), marcar diálogos (um uso mais recente, de dois séculos para cá) e citações de outras pessoas (muito utilizado na academia) e mostrar ironia.

Em inglês existe, inclusive, um termo específico para as aspas irônicas: são as scare quotes, definidas pelo dicionário Merriam-Webster como “aspas usadas para expressar ceticismo ou escárnio a respeito do uso da palavra ou frase dentro delas”. Nem todas as aspas seriam do tipo scare. Escreve Merrill Perlman, que trabalhou 25 anos no jornal The New York Times, onde chefiava os redatores: “Nem toda aspa que contém uma ou duas palavras é uma ‘scare quote’, claro. Às vezes essas aspas curtas são utilizadas para destacar um termo em discussão. Às vezes são usadas para apresentar um termo não muito familiar”. Aspas podem, por exemplo, destacar uma palavra usada fora do contexto, um neologismo, um estrangeirismo.

Para entender o significado da aspa, contexto é importante, diz Merill, que hoje trabalha no departamento de jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York. Exemplo: se em uma reportagem um jornalista escreve que Fulano ficou “embasbacado” com algo, há duas interpretações possíveis. O autor pode ter colocado a palavra entre aspas para mostrar que aquele foi exatamente o termo usado pelo entrevistado ou para mostrar um estranhamento com a palavra — como se Fulano não estivesse ou não devesse estar embasbacado. “Se o contexto não é claro, a mensagem não vai ser clara. Uma razão para evitar aspas para uma só palavra é que há uma possível confusão”, diz Merill. “Na maior parte das vezes, na minha visão, autores usam aspas em uma palavra para resolver um problema, quando não conseguem pensar numa forma de usar mais palavras. É resolver um problema às custas do leitor.”

Se um restaurante diz que serve comida “saudável”, então, o contexto diz que é pouco provável que haja alguma ironia aí — o restaurante quer enfatizar que sua comida faz bem à saúde. Não quer dizer que não seja esquisito. “A Sociedade Americana de Redatores mostra um slide no seu treinamento de uma placa que oferece comida ‘fresca’. Não sei se é uma falta de compreensão do que uma aspa de uma palavra só deva ser, ou uma tentativa de destacar algo quando nenhuma outra fonte está disponível, mas é muito irritante pra mim”, afirma Merill.

"Grandes variedades" de lanches
“Grande variedade” de lanches

Segundo Merill, o uso de scare quotes é relativamente recente, rastreado a partir da metade do século 20, “apesar da ideia de mostrar ao leitor que você não quer dizer aquilo que está dizendo seja muito mais velha que isso”. Em suas pesquisas, constatou que a popularidade das aspas irônicas aumentou muito no final do século, em 1995, assim como aquelas aspas feitas com os dedos, no ar, quando alguém está falando (em “Friends”, série clássica dos anos 90/início dos 2000, Joey é zoado por não saber usar as aspas irônicas quando fala).

“Também acho que essas aspas estão sendo usadas mais politicamente hoje também. Por exemplo, quando o Affordable Care Act passou nos Estados Unidos, os republicanos o chamaram de Obamacare para mostrar seu desgosto com ele. Quando os repórteres citavam os republicanos, colocavam Obamacare entre aspas para indicar que o termo era usado como forma de ridicularização, zombaria, como se fosse um nome falso. Depois os democratas começaram a usar Obamacare também, tentando eliminar a conotação negativa. A Associated Press continua usando ‘Obamacare’, entre aspas, como usam para apelidos. O problema, pra mim, é que não fica claro para o leitor se eles usam as aspas ironicamente, ou se é para mostrar que é um apelido, ou outra coisa.”

O uso de aspas em textos noticiosos pode gerar outras situações desconfortáveis. Até 2008, por exemplo, o jornal Washington Times utilizava aspas em casamento gay (“casamento” gay), e neste ano o New York Times se referiu à “ocupação” da faixa de Gaza por Israel. Na dúvida, Merill diz para usar aspas irônicas com moderação. “Escritores devem pensar em como usam as scare quotes e se um bom leitor pode interpretar errado.”

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Pasquim na TV:
sem filtro e sem roteiro

Entrevistas em que celebridades fogem do roteiro pré-aprovado por seus assessores de imprensa são cada vez mais raras. Quando acontecem, costumam viralizar e resultar em um monte de pedidos de desculpas. Para ficar num caso da semana passada, com um ator pouco conhecido: Noah Galvin, da série “The Real O’Neals”, deu uma entrevista ao site Vulture, em que contou de suas dificuldades em conseguir papéis por ser gay, fez críticas a como personagens gays são representados — citando o personagem de Eric Stonestreet em “Modern Family”, “uma caricatura de um estereótipo” — e mencionou um boato tão grave envolvendo o diretor Bryan Singer que foi até excluído do texto do site depois. Batata: em poucas horas as declarações já haviam se espalhado e ele fez uma longa retratação nas redes sociais, pedindo desculpas a quem tinha e não tinha ofendido.

Lembrar de algumas das conversas de atores, cantores e políticos com a equipe do Pasquim, jornal que circulou entre 1969 e 1991, encenadas por atores no programa “As Grandes Entrevistas do Pasquim”, que estreou na segunda (13), às 20h, no Canal Brasil, é especialmente impactante nesse contexto. Difícil ver alguém falar com tanta sinceridade. Leila Diniz, por exemplo, declarou (em meio a muitos palavrões e revelações sobre seus relacionamentos com outras celebridades) que não gostava de teatro — Caio Castro fez o mesmo anos depois e, sob uma avalanche de críticas de outros atores, recuou um pouco na afirmação (“não é que eu não goste, só não gosto muito”). Já Agnaldo Timóteo falou mal de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e de Tom Jobim (exemplo: “Caetano é uma merda!”).

Dirigido pelo documentarista André Weller, o programa do Canal Brasil apresenta a cada episódio uma entrevista publicada no Pasquim encenada por um grupo de atores e gravada em uma só tomada, incluindo os trechos em que o elenco sai do roteiro para fazer alguma interjeição pessoal. As cenas de conversa, feitas pelo jornal regadas a álcool e cigarro, são intercaladas por depoimentos de pessoas que participaram da história do Pasquim, num misto de documentário e ficção.

André Weller conta que sempre foi fã do jornal, que o pai comprava e ele folheava por causa dos desenhos. “Nasci em 1971, peguei criança o auge do jornal”, lembra. “A parte gráfica era muito forte, me interessava bastante. Depois descobri as entrevistas do Pasquim, foi uma coisa que li e reli muito na minha vida.” Anos atrás, relia a polêmica entrevista de Agnaldo Timóteo quando percebeu que existia ali uma dramaticidade grande. Quando a primeira edição saiu, o cartunista Jaguar foi o responsável por transcrevê-la e editá-la. Sem ter feito aquilo antes, escreveu tudo exatamente como ouvia, sem editar ou tirar marcas de coloquialidade. Não havia tempo para corrigir o erro antes de mandar o jornal para a gráfica e foi daquele jeito mesmo. Um sucesso.

As entrevistas, que tinham até rubricas (estilo “Agnaldo fala irritado”), viraram marca registrada do Pasquim e tinham toda cara de teatro mesmo. “Cada personagem tinha uma certa função dentro do texto. O Sérgio Cabral era mais apaziguador, o Tarso de Castro é mais ácido, o Millôr com aquelas tiradas dele, o Ziraldo falando muito”, diz Weller. “Eles deixavam muito o entrevistado à vontade. Eles embebedavam o entrevistado, ele falava coisas que nunca tinha falado. Deu um estalo e eu pensei que dava pra transformar num texto dramático e colocar atores pra ler esses textos.”

Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação
Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação

Das 1.072 entrevistas publicadas pelo Pasquim, a equipe de André escolheu 13 para a primeira temporada, buscando diversidade de personagens — musas, como Leila Diniz, Dina Sfat e Elke Maravilha, políticos, como Lula e Jânio Quadros, músicos, como Chico Buarque, Agnaldo Timóteo e Cazuza. Para interpretar cada um desses entrevistados foi escolhido um ator por afinidade. Leila e Dina, por exemplo, são vividas por suas filhas, Janaína Diniz e Ana Kutner. Chico Buarque, que canta na entrevista, é interpretado pelo cantor Marcos Sacramento. Já Elke Maravilha é papel de Michel Melamed, que a escolheu. “A entrevista mais forte de todas é do Gabeira no exílio, ele fala de tortura, do sequestro do embaixador americano, e essa intensidade coube muito bem no Matheus Nachtergaele”, exemplifica.

Não houve ensaio com os atores, que gravaram tudo em uma só tacada. “Veio meu lado documentarista, não encarei aquilo como ficção. Não gravei como ficção. Era uma mesa redonda, dois carrinhos circulares com câmera e a partir do momento que eu falava ação eles faziam a entrevista inteira”, conta Weller. “Documentei essa leitura. Você percebe que tem um momento em que a Janaína está falando o texto da mãe, como Leila Diniz, falando que o pai não falava palavrão. Aí ela fala: ‘Posso fazer um parênteses? Meu avô passou a falar muito palavrão’. Aquilo ficou. Falo muito que o cinema é a arte do diretor e o teatro, do ator. No programa os atores ganharam a batalha. Eles comandaram ali, vestiram a camisa do Pasquim e levaram a entrevista.”

Ver as conversas encenadas como aconteceram (Janaína Diniz, por exemplo, fica o tempo todo com uma toalha enrolada na cabeça, como a mãe) causa uma impressão diferente do que lê-las. Para Weller, a entrevista mais impactante no palco foi a de Dina Sfat. “Ela tinha acabado de se separar do Paulo José e fala da separação. Chamei a Ana Kutner, filha dela. A Ana reencarnou a mãe. A gente ficava muito surpreso. Ela passava a não ler mais a entrevista, como se soubesse aquilo, as palavras saíam. Tem muita emoção”, diz. “Essa entrevista foi a única póstuma do Pasquim, ela morreu logo depois. Demorou um pouquinho pra publicar e ela morreu.”

Depoimentos dos jornalistas envolvidos nas entrevistas são entremeados com as cenas de conversa, para ajudar o espectador o que estava acontecendo naquela época, no que a equipe do jornal estava pensando. “No do Lula, eu queria saber o que era ter um operário do ABC lá em Ipanema. O Jaguar fala no programa que nunca gostou do Lula, desde que ele entrou na sala. Eu queria misturar essa parte documental com a ficção”, diz o diretor, que foi auxiliado nisso por Ricky Goodwin, que editou as entrevistas do Pasquim por 14 anos e foi roteirista da série.

A princípio o programa iria ao ar depois da Copa do Mundo, em 2014, mas atrasou dois anos. Weller diz, porém, que a demora foi oportuna. “Porque a gente está falando do maior jornal subversivo que a gente teve, que se posicionava contra o governo que estava instaurado. A gente vai ver essas entrevistas num tempo em que as pessoas estão se posicionando de alguma forma, seja de que lado for”, afirma. “Acho que esse atraso foi bom, na verdade. Ele vai ser lançado num momento político efervescente, como era. Costumo falar que o Pasquim não era um jornal, era um espírito.”

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Fogo cruzado no combate à cocaína na Colômbia

Entre o governo colombiano e os traficantes de cocaína há uma importante parcela da população do país que fica no meio do fogo cruzado. Essas pessoas cujas histórias são menos contadas — não estão em séries como “Narcos” ou outras produções do gênero, por exemplo –, são agora centro de um documentário da HBO, “Guerras Alheias”, que estreia na segunda (13), às 22h. O filme analisa os resultados de uma parceria entre Estados Unidos e Colômbia — o Plano Colômbia — para combater o tráfico de cocaína, que envolveu a pulverização de glifosato, um herbicida, nas plantações de coca colombianas com aviões. A teoria: o herbicida acabaria com os pés de coca, diminuindo a produção de cocaína, a oferta da droga e o tráfico. Já o uso de aviões tornaria o processo todo mais seguro — tentar matar um pé de coca manualmente poderia resultar em violência e morte de humanos. Todo o mundo sairia ganhando, certo?

Na prática, o que acontece é bem diferente. Primeiro, o glifosato foi apontado pela Organização Mundial de Saúde no ano passado como um agente potencialmente cancerígeno — a Colômbia, aliás, foi durante anos o único país que disseminava a substância pelo ar. Muitos camponeses atingidos pelo herbicida passaram a sofrer com problemas de saúde: machucados na pele, nos olhos, abortos, defeitos congênitos em crianças. Nenhuma dessas pessoas foi indenizada e o governo colombiano contesta que essas doenças sejam causadas pelo glifosato — embora estudos de pesquisadores franceses mostrem que a substância destrói as células humanas.

Tanto autoridades colombianas quanto americanas, envolvidas na pulverização, afirmam que têm um estudo que mostra que nada disso é verdade. Importante ressaltar: um estudo financiado pela Monsanto, líder mundial na produção do herbicida glifosato. Apesar disso, a Colômbia indenizou o Equador, que reclamou que o glifosato estava chegando lá durante as pulverizações. É um reconhecimento de que o glifosato é ruim — para os equatorianos, não os colombianos.

Há também outros impactos, já que a pulverização de herbicida não atinge só as plantações de coca, mas tudo o que os camponeses plantam. Sem conseguir produzir, muitos ficam em situações de muita pobreza e devem migrar para cidades, onde encontram um cenário igualmente precário — a Colômbia é um dos países do mundo com maior número de pessoas deslocadas de suas casas, à frente de países em guerra. É não só uma questão de saúde como uma questão social. Uma massa de camponeses e de populações indígenas é atingida por uma guerra alheia. E segundo dados do documentário pouca coisa mudou no tráfico de drogas desde o início do Plano Colômbia.

Segundo Paul Drago, produtor da HBO, uma das grandes dificuldades na produção do documentário foi não ficar enviesado e dar para todos os lados a oportunidade de falar, permitindo que todos dessem sua opinião, contra ou a favor do uso dos herbicidas. Foram entrevistadas mais de 30 pessoas para o filme, entre políticos, camponeses, sociólogos, historiadores, entre outros. As afirmações das entrevistas, dos dois lados da questão, são contestadas ou apoiadas por pesquisas e estatísticas, exibidos em forma de infográfico ao longo da produção. “Um dos grandes desafios virou uma das grandes qualidades do documentário, que foi separar aquilo que pudemos verificar do que não pudemos”, diz Drago.

Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo
Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo

Quando o documentário estava em fase de edição, prestes a ser concluído, a OMS declarou que o glifosato é potencialmente cancerígeno e a pulverização aérea do herbicida foi proibida na Colômbia. O próprio presidente do país, Juan Manuel Santos, declara no filme que o combate às drogas deve ser pensado como uma questão de saúde pública e social, e não como uma guerra, que tem afetado a vida de tanta gente. Esses desdobramentos tiveram tempo de serem incluídos às pressas no filme. “O projeto meio que se dividiu em duas partes. Quando começamos, dois anos e meio atrás, filmamos as entrevistas, juntamos os materiais. E quando estávamos acabando, editando, várias coisas importantes aconteceram. Uma delas foi a declaração da OMS de que é o glifosato é perigoso e o fato de que o governo colombiano suspendeu a pulverização área”, diz o produtor.

No entanto, a pulverização terrestre ainda é permitida, então a história ainda continua. De acordo com reportagem do El País, o governador de uma das regiões afetadas pelo glifosato é contra, dizendo que o herbicida não é efetivo para combater a cocaína, além de gerar efeitos colaterais. O Ministério de Saúde do país, por outro lado, afirma que as fumigações seguirão protocolos e não prejudicarão ninguém.

Os resultados da pulverização aérea também são debatidos. Segundo dados das Nações Unidas, o cultivo de coca cresceu entre 15% e 20% desde que aviões pararam de jogar herbicida nas plantações. O Ministro da Defesa concluiu, com isso, que a pulverização aérea é eficaz. Estudiosos, por outro lado, afirmaram que o aumento das plantações se deu porque o cultivo de outras plantações não deu os resultados esperados e, com o aumento do preço da coca, os camponeses não viram outra opção a não ser plantar mais coca.

É uma discussão ainda em andamento, mas “Guerras Alheias” é uma boa lembrança do impacto que as políticas antidrogas têm nas vidas de milhares de pessoas que não estão envolvidas no tráfico, e sim presas no meio de uma guerra que não é sua. O filme dá voz a essas pessoas que costumam estar de fora das conversas, inclusive na própria Colômbia. Lançado agora, o filme faz parte de uma conversa que continuará atual por tempo indefinido. “A gente poderia fazer uma segunda versão do filme em julho, depois outra em agosto”, diz Drago. E é uma história em andamento, para se seguir de perto.

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Alice Braga, nova rainha do tráfico na TV

Na televisão, hoje, a realeza do tráfico de drogas é brasileira. O rei é Wagner Moura, o Pablo Escobar de “Narcos”, série do Netflix. A rainha agora é Alice Braga, que protagoniza “A Rainha do Sul”, que estreia neste mês nos Estados Unidos e em 7 de julho aqui, no canal Space. “Eu falei pro Wagner: ‘É nóis na cocaína!’. Ele é um irmão pra mim, foi muito engraçado ele ser o rei e eu, a rainha do tráfico”, diz Alice para um grupo de jornalistas em São Paulo. Na série americana ela é Teresa, que se envolve com as drogas após a morte do namorado traficante. A trama é baseada em livro de Arturo Pérez-Reverte, que também deu origem à novela mexicana “La Reina del Sur”, com Kate del Castillo — aquela que colocou Sean Penn em contato com El Chapo.

A história de Alice com a série começou oito anos atrás, quando ganhou o livro de presente de uma amiga. “[Ela] me deu e disse: ‘Você tem que ler esse livro, a história é linda e é uma super personagem. Você tem que ler, independente de querer fazer ou não. Mas é uma personagem que você pode fazer, ela é latina e tal’. Aí eu li e me apaixonei pela Teresa”, conta a atriz. Na época estava previsto que o texto virasse filme, possivelmente protagonizado por Eva Mendes. O projeto caiu por terra, a história virou novela e o livro continuou na estante de Alice.

Anos depois, quando ela gravava o filme ‘O Duelo’ — ainda inédito — nos Estados Unidos, recebeu um e-mail dizendo que dois roteiristas queriam conversar com ela sobre o projeto “Queen of the South”. “Eles me mandaram a sinopse e eu pensei: ‘Não é possível, depois de oito anos voltou esse projeto pra mim’. Foi muito especial.” Eles se encontraram, conversaram e logo Alice topou. Ajudou que sua estreia em séries fosse em uma produção com 13 episódios por temporada. “Eu não fecharia se tivesse 22. Porque com 22 você fica o ano todo fazendo ela. E eu amo muito fazer cinema”, diz. “Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série. É engraçado, pensei muito nisso quando fui assinar o contrato de cinco anos. Meu Deus, cinco anos. Nunca assinei uma coisa que você fica conectada.”

 

A série tem algumas diferenças em relação ao livro que a originou e à novela que a antecedeu. No original, Teresa foge do México após a morte do namorado e vai para a Espanha e o Marrocos. Na série, ela vai para o Texas, local escolhido parte porque o Estado deu incentivos à produção e parte porque fica próximo da fronteira entre México e Estados Unidos. Lá, Teresa, garota que não tinha muita família ou amigos e veio das ruas, se transforma na Rainha do Sul, chefe do tráfico. Há também novos personagens e tramas. “Eles ainda estão escrevendo e desenvolvendo essa jornada. O que eu achei interessante, também pra se diferenciar do que a gente já viu na série em espanhol.”

[citacao credito=”” ]Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série[/citacao]

Sua Teresa, porém, é totalmente baseada na versão do livro, que ela chama de sua Bíblia. “Eu falei [para os roteiristas]: ‘Vamos nessa, mas vou honrar ela. Tudo que vocês jogarem pra mim eu vou querer sentar com vocês e falar que isso ela não faria e isso ela faria’. Foi muito legal, porque eles foram muito generosos comigo nesse sentido, de entender, de querer saber”, conta. A Teresa do livro, por exemplo, é uma mulher que não se vitimiza. “Teve uma fala que eles escreveram em que ela estava se vitimizando. Liguei pra eles e falei: ‘Não posso falar essa frase, porque isso compromete pra onde a gente está indo. Como é uma série em que a gente sabe onde ela vai chegar, que ela é a Rainha do Sul, a gente tem que tomar muito cuidado.”

Alice fala com bastante empolgação da personagem, que descreve como uma traficante que não é má nem usa violência se puder evitar. “Ela é quase uma diretora de empresa. É uma mulher de negócios, que foi construindo o império dela pelas condições que a vida foi levando, mas que é uma mulher que trabalha nesse business de cocaína, que é um mundo extremamente masculino”, diz. Viver um tipo de personagem geralmente interpretado por homens, aliás, foi um dos grandes atrativos, segundo ela. “Normalmente quando a gente é protagonista de alguma coisa relacionada ao universo masculino ou a gente está procurando marido ou separando do marido. Ou é sobre o universo feminino e por isso é interpretado por uma mulher”, afirma. “Ela tem a força de uma mulher e esse é o diferencial, mas não é interpretada por uma mulher porque é feminino. Nesse tempo em que a gente está tendo essa discussão foi muito especial.”

Gravar “A Rainha do Sul” foi uma experiência bem física. “Quando vi os roteiros pensei: ‘Vocês realmente me acharam a heroína da ação, né?”, ri Alice. “Teve uma vez que o câmera e o foquista estavam num carrinho, eles vinham correndo com o carrinho e eu correndo. E eu comecei a bater o carrinho. Eles diziam: ‘Você tem que ir mais devagar!’. E eu: ‘Gente, não dá pra eu ir mais devagar, eu tô correndo pela minha vida!’. Era eu apostando corrida com o carrinho. Foi muito divertido, esse tipo de coisa eu adoro fazer.”

Alice tinha três dublês disponíveis, mas tentou fazer tudo o que dava, incluindo cenas de explosão e uma em que a personagem dirigia recebendo tiros de um lado, vidros do outro, no escuro (“videogame total!”). “Você ver a cara do personagem até o limite faz diferença. Você ficar com ela até aquele segundo. Talvez seja eu que ache isso, mas quando vejo um filme eu gosto disso”, diz. Mexer com armas não foi novidade. “Sou muito tipo medrosa, mas por uma feliz coincidência fiz muita coisa de ação.” Aprendeu, por outro lado, a contar dinheiro muito rápido. “Gente, ela troca dinheiro todo dia.” Pequenas coisas.

Depois da polêmica do sotaque de Wagner Moura, seria Alice a próxima vítima? Ela diz que quis muito tentar um sotaque mexicano, mas o canal optou por deixar seu acento original. “Foi engraçado, eu passei anos limpando o inglês e eles falam: ‘Esquece a limpeza, usa seu inglês!’. Foi um desafio legal.” Deixar a língua mais neutra é parte de uma estratégia para atrair também as segundas e terceiras gerações de latinos nos Estados Unidos, comunidade alvo de investimento do canal. “A comunidade latina lá é gigante, cada vez maior, cada vez crescendo. Existe um desejo [de trazer latinos para a TV], assim como de um protagonismo feminino, como eu disse, algo que eu quero trazer cada vez mais pra mesa”, diz. “É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor, em busca de realizar um sonho, de ligar a TV e estar lá.”

[citacao credito=”” ]É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor[/citacao]

Na versão brasileira, Teresa será dublada pela própria Alice. “É muito legal as pessoas do meu próprio país me verem falando a minha língua. Teve uma vez, num filme que eu não conseguiu fazer [a dublagem], que a minha mãe não conseguiu ver, mudou de canal!”, conta. “E é um desafio, você revisitar uma coisa que você já fez, é um personagem que está pulsando, vivo dentro de você, mas trazendo uma leitura dele. A música é diferente, a maneira que você imposta sua voz é diferente. É uma releitura daquilo”, continua. “Não tinha como não ser minha voz. Até ia ficar com ciúmes se alguém mais fizesse, ela é minha!”

Depois de passar tanto tempo nos Estados Unidos, Alice se confunde às vezes no português e usa termos em inglês. “Quando eu conversei com os roteiristas a primeira coisa que eu perguntei foi: isso não é uma ‘glamouralização’ da droga? Pelo amor de Deus. O que está acontecendo no mundo, principalmente no México, é muito sério. Muito sério. Então se a gente faz uma glamouriza… Gla-mou-ra-li-za-ção? Desculpa, gente. Glamourização. Glamourization! Mais fácil”, diz, rindo. Glamourizar a droga iria contra o que ela acredita, diz.

“O que eu acho que é o diferencial de ‘A Rainha do Sul’ é que a gente segue ela [a personagem]. A gente não fala ‘ah, é legal a cocaína’, a cocaína é um coadjuvante. A gente está vendo essa mulher sobrevivendo nesse mundo movido por violência, um mundo extremamente masculino. É uma jornada de busca pela sobrevivência, pragmatismo, foco, de buscar segurança”, opina. É que nem “Breaking Bad”. “Por que a gente pirou? Por causa da jornada dele como personagem.”

Ela conta que no último dia de filmagem, levantou as mãos enquanto chorava, momento registrado em foto. “É diferente de um filme, quando você lê um roteiro, discute com diretor e roteirista, faz começo, meio e fim, entregou, próximo projeto. Eles continuam montando, mas em três meses você fez sua jornada. Pela primeira vez estava em contato com uma coisa de ela estar pulsante, os roteiros estavam chegando e a gente mudando ela, vendo pra onde ela vai”, diz. “Você vai quase criando e vivendo com o coração dela. Você vive das cinco da manhã quando senta na cadeira de maquiagem até as oito da noite quando volta pra casa. Foi muito legal. Agora ela é um corpo vivo. É total cenas do próximo capítulo, eu não sei o que vai acontecer na segunda temporada.”

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As origens do crime

Reportagens sobre crimes pipocam diariamente em jornais e sites pelo mundo. Se há bastante repercussão, acompanha-se por algum tempo as investigações, depois o julgamento e a história geralmente morre por aí. O crime começa quando é cometido e termina quando alguém é declarado culpado. É a concepção mais comum, com a qual o jornalista Eli Sanders, que escreve para o jornal semanal gratuito de Seattle The Stranger, não concorda. Quando, no verão de 2009, seu editor lhe pediu para escrever sobre um crime no bairro de South Park, no sul da cidade, ele não tinha muitos detalhes sobre a história, mas foi a fundo nela. Fez uma matéria. Depois outra. Dois anos depois, outra — pela qual ganhou, em 2012, o Pulitzer de reportagem. E depois, neste ano, um livro, chamado “While the City Slept”, no qual investiga as origens do crime, deixando de lado os detalhes mais horripilantes do crime em si.

Em 2009, um homem com uma faca invadiu a casa em que Jennifer Hopper e sua noiva, Teresa Butz, moravam e durante mais de uma hora as estuprou repetidas vezes. Jennifer foi esfaqueada, mas conseguiu fugir da casa, nua, para pedir socorro aos vizinhos. Ela sobreviveu. Teresa, não. A história chocou as pessoas do bairro, com quem Teresa e Jennifer eram bastante ligadas e era esse luto o foco da primeira reportagem de Sanders. “Enquanto eu trabalhava naquele texto estava acontecendo uma caça à pessoa que tinha atacado elas. Quando eu terminei a matéria, Isaiah Kalebu tinha sido preso pelos crimes. Foi assim que comecei. Olhei para o luto, o choque, o alarme no bairro e fiz um retrato breve, da melhor forma que pude, de quem eram Jennifer e Teresa. Depois descrevi a prisão do homem que era suspeito de ter atacado as duas”, conta o jornalista pelo telefone, dos Estados Unidos.

Continuou seguindo o caso de perto depois da prisão, e a reportagem seguinte narrava os meses anteriores ao crime na vida de Isaiah Kalebu, sob o título “The Mind of Kalebu – What the Alleged South Park Killer Was Thinking” (a mente de Kalebu – o que o suposto assassino de South Park estava pensando). O texto tenta entender como ele chegou àquele ponto, passando pelas condições sociais em que ele cresceu e também pela sua saúde mental, humanizando o assassino. É um texto difícil de ler, porque ao tentar decifrar quem era o assassino de Teresa, o que o tinha levado a cometer os crimes, Sanders mostra que se os sistemas de saúde mental e judicial dos Estados Unidos fossem melhores, o estupro das duas e a morte de Teresa poderia ter sido evitados, descoberta que desenvolveu no livro. “Tracei um retrato das fendas pelas quais Kalebu escapou, e hoje as entendo melhor. Acho que no livro tentei demonstrar isso com mais profundidade.”

Os sinais de que Isaiah Kalebu precisava de ajuda começaram na infância, quando um professor percebeu que ele tinha dificuldades na escola, apesar de ser inteligente, e recomendou que ele procurasse um psicólogo. Os pais não só se recusaram a levá-lo como o matricularam numa escola religiosa, que era contra intervenção médica nesses casos. Para a família de Kalebu a solução para problemas mentais não era buscar ajuda. Tudo se resolveria se ele se esforçasse mais, pedir ajuda seria um sinal de fraqueza.

Nos anos seguintes, intensificaram-se os sinais de que ele precisava de tratamento. Em 2008, Kalebu entrou em um prédio comercial com um pitbull, disse que havia comprado o imóvel com dinheiro ganho com comércio de açúcar, “demitiu” várias pessoas e se instalou por lá até ser levado a um hospital psiquiátrico para avaliação, onde deu declarações como “eu sou o rei”. Saiu dali com o diagnóstico de que era bipolar e maníaco. Entre essa primeira avaliação e a morte de Teresa, Kalebu foi preso diversas vezes. Ameaçou matar a mãe, brigou com policiais, aterrorizou uma funcionária de um hospital e a tia, que o expulsou de casa — na semana seguinte o imóvel pegou fogo e ela morreu (ele era um dos suspeitos). Duas vezes um psicólogo do Estado afirmou que ele representava um risco para a sociedade e mesmo assim, menos de uma semana antes da morte de Teresa, um juiz permitiu que ele saísse do hospital e cuidasse do próprio tratamento psicológico, sem acompanhamento.

Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo
Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo

O sistema de saúde mental americano, escreveu Sanders no Stranger, é tão criticado quanto mal financiado. “Permitiu que Kalebu seguisse sua vida normal quando deveria ter sido contido, como fica aparente em quase cem páginas de documentos da polícia e de tribunais que ele gerou nos 16 meses seguintes ao seu exame em Harborview, assim como em vídeos de suas numerosas aparições no tribunal naquele período”, diz sua matéria. Em um julgamento dias antes da morte de Teresa, o promotor não levou em consideração passagens mais recentes de Kalebu pela polícia porque não havia um sistema unificado nos computadores que permitisse que se checasse tudo relacionado a uma determinada pessoa. Se o sistema fosse melhor, ele talvez estivesse preso no dia em que entrou na casa de Jennifer e Teresa.

Tudo isso estava na mente do jornalista quando, em 2011, foi ao julgamento de Kalebu, sem saber ainda se escreveria algo a respeito. “Eu me sentia conectado à história e queria ver no que ia dar. E quando Jennifer deu seu depoimento ficou muito, muito claro para mim que algo precisava ser escrito. Me senti compelido a escrever algo sobre a clareza e a coragem do seu depoimento. Esse texto ganhou o Pulitzer um ano depois”, conta. No relato, Sanders deixa as partes mais escabrosas daquela noite de lado, para colocar os holofotes na coragem da mulher em contar sua história. Segundo o texto, Jennifer sentou no banco das testemunhas para dizer: “Isso aconteceu comigo. Vocês precisam ouvir. Isso aconteceu com a gente. Vocês precisam ouvir quem foi perdido. Vocês precisam ouvir o que ele fez. Vocês precisam ouvir como Teresa lutou contra ele. Vocês precisam ouvir o que eu amava nela. Vocês precisam ouvir o que ele tirou de nós. Isso aconteceu”. O texto foi publicado com o título “The Bravest Woman in Seattle” (a mulher mais corajosa de Seattle).

O autor não achava que os pormenores da violência fossem necessários à narrativa. Pelo contrário, tinham o potencial de distrair o leitor de seu objetivo, que era contar a história de Jennifer. Seu relato é poderoso, sem sensacionalismo. “Você tem que entender o horror do crime para compreender o poder de seu testemunho. Mas é sobre seu testemunho. Sua coragem, o amor que ela e Teresa tinham, a forma como elas tentaram apelar para a humanidade de Isaiah Kalebu. O custo e as constequências das ações. Não achei que precisasse colocar mais horror em algo que já era horrível.”

“Eu já achava que talvez tivesse um livro ali, porque para todo canto que eu olhava na história tinha indivíduos — Jennifer, Teresa, Kalebu, suas famílias — cujas vidas tinham lições importantes. Depois que ganhei o Pulitzer tive a oportunidade de realmente escrever o livro”, lembra o autor. “Senti uma responsabilidade de tirar lições úteis do que foi uma tragédia terrível. Não vi um motivo para seguir com isso a não ser que tivesse um propósito. Espero que tenha alcançado isso.”

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Depois do julgamento, em que Kalebu foi condenado à prisão perpétua, Jennifer se aproximou de Sanders, escrevendo com a ajuda dele um texto para o Stranger. Quando a oportunidade de escrever um livro se concretizou, buscou também as famílias de Teresa e Kalebu. “Normalmente, como jornalista, tenho prazos muito definidos. Nesse caso eu tinha muito tempo para dizer, ok, agora não é uma boa hora para a gente falar disso, talvez a gente possa se falar em uma semana, ou um mês. Podemos falar um pouco agora e um pouco depois. Essa questão do tempo foi fundamental para minha habilidade de trabalhar com todas as pessoas envolvidas.”

Essa falta de tempo na vida de um jornalista explica, em sua opinião, por que a cobertura de crimes na imprensa não explora as causas do crime. “Mas é importante que façamos isso quando podemos. É importante que empresas de mídia coloquem recursos nesse tipo de trabalho quando podem. É caro, em termos do tempo de um repórter, mas acho que é mais esclarecedor do que só cobrir os detalhes do crime, o julgamento e o veredito e pronto”, opina. “É como se falássemos pras pessoas que o crime começa quando é cometido e termina com o veredito. Isso é um episódio da série ‘Law & Order’, não é a vida. Acho que o crime começa antes e suas consequências permanecem muito tempo após o julgamento.”

Segundo Sanders, os Estados Unidos gastam muito mais dinheiro construindo presídios do que investindo em saúde mental. “Chegamos num ponto em que há dez vezes mais pessoas com doenças mentais em cadeias do que em hospitais no país. Está de ponta-cabeça, é um uso muito ruim de recursos”, afirma. “Há décadas falhamos em prestar atenção na saúde mental das pessoas, no sistema criminal e nas necessidades individuais das pessoas.” O sistema criminal, diz, não está na pauta de nenhum dos candidatos à eleição presidencial americana, que será realizada neste ano. “Políticos às vezes falam disso logo que crimes acontecem. Mas mesmo assim não é uma conversa muito esclarecedora”, diz. “Quem está seguindo as eleições deste ano vê que falam de um carnaval de outras questões. Mas disso, não.”

Ele ressalta que a grande maioria das pessoas que vivem com doenças mentais não são violentas. Pelo contrário, há mais chances de que elas sejam vítimas de crimes do que responsáveis por eles. “Não acho que um leitor cuidadoso vá ler meu livro e terminar pensando que pessoas com doenças mentais sejam todas violentas e criminosas em potencial. Se você pensar um pouco, vê que isso é um pouco ridículo. ‘Doenças mentais’, em primeiro lugar, é um termo casual muito amplo sobre o qual nem há um consenso. Engloba tudo desde uma ansiedade leve à esquizofrenia. Acho que qualquer um que parar pra pensar vai perceber o quão louco é dizer que qualquer um que viva algo que chamamos de doença mental seja violento.”

É só importante que para casos como os de Isaiah Kalebu, que tinha um histórico de violência, o tratamento correto seja dado o quanto antes. Contar histórias como essa e aprofundar-se nas raízes do crime, em sua opinião, ajuda as pessoas a prestar mais atenção na origem da violência e a entender que o problema não se resolve só com presídios. “Esse é nosso trabalho como jornalistas. As pessoas não estão ouvindo dos políticos. Temos que tentar fazer nossa parte.” Não era seu sonho, quando começou a carreira, escrever sobre crimes. “Mas minha trajetória me levou até aqui. Desenvolvi com o tempo o sentimento de que há mais coisas em histórias de crimes do que dá pra contar nas matérias pequenas que escrevia. Vi nesse livro uma oportunidade de contar uma história mais abrangente e, espero, oferecer algum significado e lições.”

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Televisão

‘Broad City’: demorou, mas chegou no Brasil

Enquanto séries antigas como “Friends” e “Two and a Half Men” ainda passam direto na televisão, algumas boas produções demoram um pouco para chegar ao Brasil. É o caso de “Broad City”, que depois de dois anos finalmente estreia por aqui, nesta sexta (3) às 21h30 no canal pago Comedy Central. A comédia protagonizada por Abbi Jacobson e Ilana Glazer é praticamente uma unanimidade entre a crítica: suas três temporadas têm, respectivamente, os impressionantes índices de 96%, 100% e 100% no site Rotten Tomatoes, que dá uma nota com base com textos de diversos veículos.

Em tempos não muito bons para comédias com episódios de meia hora de duração — só dar uma olhada nas categorias de humor e drama nas principais premiações de TV para ter uma ideia –, “Broad City” é uma lufada de ar fresco. Criada pelas duas protagonistas, a série estreou na internet em 2009, onde foi exibida até 2011. Na televisão, tem como uma das produtoras-executivas Amy Poehler, um dos principais nomes da comédia hoje e que já havia participado da versão para internet. O maior elogio que se pode fazer à série é que ela não se parece com mais nada que esteja no ar hoje. A princípio, pode parecer que tem um quê de “Girls”, talvez, com suas personagens de vinte e poucos/tantos anos que moram em Nova York (mas não em Manhattan) e que ainda não têm nada resolvido na vida.

Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de 'Broad City'. Crédito: Divulgação
Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de ‘Broad City’. Crédito: Divulgação

Abbi, na versão televisiva (as protagonistas levam os nomes das atrizes), é funcionária de uma academia, responsável pela limpeza e manutenção do local, com o sonho de virar treinadora. Mora com uma amiga — que nunca aparece, mas que tem um namorado que vive lá também às custas delas — e tem uma paixão platônica por um vizinho, na frente do qual sempre passa vergonha. Já Ilana trabalha num escritório, onde aparece vestindo roupas inapropriadas — como uma miniblusa sobre sutiã aparecendo — e passa o dia ou dormindo de olhos abertos na própria mesa ou de olhos fechados sentada na privada. Como a Hannah de Lena Dunham, nenhuma das duas é a funcionária do mês. Falando nesses termos, “Broad City” parece mais uma das séries cuja moral é “millenials são narcisistas com vidas fora dos eixos”. Longe disso.

Não só a série é bem mais engraçada e solar que “Girls”, como suas personagens são verdadeiramente amigas, estranhamente um fato raro na TV (Mindy Lahiri, de “The Mindy Project”, deixou de se relacionar com mulheres na primeira temporada, e as mulheres de “Girls” hoje raramente aparecem juntas em cena, pra ficar em dois exemplos). No terceiro episódio da primeira temporada, uma montagem inicial dá bem o tom da série. Em cada metade da tela, as duas vivem seus dias separadas — Abbi limpando privadas, Ilana dormindo sobre a privada –, até que vão jantar, no que parece um encontro romântico. Ainda com a tela dividida em dois, vemos as duas comendo juntas, uma roubando algo do prato da outra, um retrato da intimidade.

Ilana e Abbi também são, ao mesmo tempo, cheias de defeitos — como gente normal, ressalte-se — e pessoas com as quais você gostaria de conviver. Não representam nem a fofura de Zooey Deschanel (“New Girl”) nem a acidez de Aya Cash (“You’re the Worst”). As duas são quem são, sem se preocupar em entrar em moldes, em agradar aos outros e sem pedir desculpas por isso. Fumam (muita) maconha, transam com quem querem e como querem, dançam peladas pela sala quando estão sozinhas e dão a melhor resposta do mundo para homens que pedem para que elas sorriam — elas sorriem se tiverem vontade.

Entre as séries a que assistimos aspirando àquela vida boa que os personagens levam — ganhando bem, trabalhando pouco, convivendo diariamente com os amigos, conhecendo só gente linda e maravilhosa (“Sex and the City”, “Friends”, “How I Met Your Mother”…) — e aquelas que vemos para pensar que felizmente nossa vida não é tão ruim (“Girls”, “Love”, “Flaked”…), “Broad City” está bem no meio. E, mais importante: ao mesmo tempo em que é original, jamais deixa de ser engraçada, vendo sempre a bizarrice nas situações mais corriqueiras. Demorou, mas chegou no Brasil.

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Televisão

‘Superstore’ vê EUA pelos olhos da classe trabalhadora

Sem um grande papel na televisão desde o fim de “Ugly Betty”, em 2010, America Ferrera resolveu voltar às séries por um motivo que parece um pouco esquisito. O papel que lhe ofereceram era de uma pessoa normal, que vivia no mundo real (não seriam quase todos?). Explica-se: numa época em que a oferta de televisão está maior do que nunca — mais de 400 seriados foram exibidos no ano passado –, não há tantas opções que retratem pessoas comuns, com trabalhos e vidas comuns. E é bem isso que é Amy, sua personagem em “Superstore”, que estreia na segunda (6) na Warner.

A premissa da série é tão simples que, falando assim, não parece que seja lá grandes coisas. Todos os episódios se passam na megaloja Cloud 9, uma espécie de Wal-Mart, com todos os tipos de produtos e funcionários vestindo coletes azuis com seus nomes nos crachás circulando pelos corredores. Não há propriamente uma trama, cada episódio conta uma história fechada em si, mostrando algumas horas na vida dos empregados, que interagem com os vários tipos de visitantes que passam por lá diariamente. Foi essa “ideia de ver o clima social e político e o que significa ser americano hoje, pelos olhos da classe trabalhadora” que inspirou America, vencedora de um Globo de Ouro, a voltar à televisão em um papel fixo. “Cresci com séries como ‘Cheers’, ‘Roseanne’ e ‘All in the Family’. Ver pessoas comuns era muito normal na televisão e era algo com que eu me identificava muito.” Panorama diferente do de hoje, com tantas séries cheias de glamour e efeitos especiais e menos espaço para comédias mais modestas. “Achei que era uma visão muito excitante.”

Amy é a protagonista da história, ao lado de Jonah (Ben Feldman, de “Mad Men” — descrito com precisão na série como uma mistura de urso panda com princesa da Disney). Ela é a gerente que trabalha há dez anos no mesmo lugar, insatisfeita com a vida que leva, e ele é o funcionário novo e de uma família com mais dinheiro, que faz questão de ressaltar no primeiro dia que não é do tipo de pessoa que costuma trabalhar em uma loja daquelas. “Amy não tem a ingenuidade e o idealismo do Jonah. Ela está meio que se virando, sobrevivendo. Vi muito valor nessa perspectiva. É a forma como a maior parte das pessoas, não só nos Estados Unidos, mas no mundo, vive. Não trabalham por paixão e realização, mas para sobreviver. Mas pode haver inteligência e humor na vida dessas pessoas.”

“Vai ser divertido ver o show progredindo e ver o relacionamento de Amy e Jonah, pessoas que vêm de perspectivas de vida tão diferentes. Não vai demorar muito pra eles começarem a impactar na vida um do outro. Eles não têm como evitar de se sentirem desafiados pelas crenças do outro, o que influencia no seu modo de ver o mundo”, diz ela, por telefone a um grupo de jornalistas da América Latina. America nem precisava dar essa dica. Conhecendo os mecanismos de séries de comédia, fica claro pelas personalidades contrastantes que em algum momento os dois vão se apaixonar (será que eles vão ficar juntos? Será que não? Aquela coisa de sempre). Mas, pelo menos no início, o romance tem um papel menor.

[citacao credito=”” ]Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão[/citacao]

“Superstore” é uma série mais política do que parece pela sinopse. A começar pelo elenco, com latinos, negros, asiáticos, mulheres, personagens deficientes. “Fiquei muito impressionada com a forma como os produtores e criadores escolheram o elenco. Quando chegaram a mim já tinham escolhido vários atores, e quando li o roteiro fiquei surpresa por que nenhum personagem foi escrito com uma etnia em mente. Eram só pessoas na página. E mesmo assim eles estavam contratando pessoas que pareciam com todos os tipos de pessoas”, conta a atriz. “Vieram atrás de mim, uma latina, para fazer a protagonista, que não foi escrita como latina. Foi muito interessante. Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão.”

Com esse elenco, a série pôde abordar questões pertinentes como assédio sexual e racismo — tema do terceiro episódio. Nele, o chefe pede às funcionárias latinas que usem sombrero e carreguem no sotaque mexicano para vender salsa, mas Amy recusa. Quando um colega asiático topa fazer o papel, ela aponta o racismo de sua caracterização e faz uma imitação estereotipada de um asiático para provar sua afirmação, o que ele considera racista. É uma discussão bem feita, com graça e sem grosseria. Algo como faz “Black-ish”, outra série que gira em torno de uma família padrão — negra, não branca –, e uma das boas novidades dos últimos anos.

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America Ferrera e Ben Feldman em 'Superstore'. Crédito: Trae Patton/NBC
America Ferrera e Ben Feldman em ‘Superstore’. Crédito: Trae Patton/NBC

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“Fiquei positivamente surpresa porque a escolha do elenco não foi pra preencher caixinhas num formulário ou ter uma diversidade simbólica. Foi genuinamente uma escolha baseada em quem eram essas pessoas e quem era certo para o papel. Como fazer esse elenco parecer real no mundo em que vivemos?”, diz America. “É uma abordagem nova à diversidade, que não é criada por motivos políticos. É para entender que diversidade é autenticidade, porque nosso mundo é diverso. No nosso caso, é uma oportunidade de contar histórias melhores. Podemos ser mais engraçados, abordar questões mais ousadas, falar de raça, gênero, preconceito, por que vem da nossa experiência.”

America é bastante vocal a respeito da necessidade de mais diversidade, em todos os pontos da indústria do entretenimento. “O problema não está em uma parte de indústria. Está em todos os lugares. Na frente das câmeras, atrás, no financiamento, na promoção, nas premiações. Em todos os pontos da linha de produção falta diversidade de experiências, gênero e etnias. É uma conversa que precisamos ter em voz bem alta”, opina. Para isso, diz que todas as minorias devem se unir — atores asiáticos, por exemplo, se manifestaram depois de terem sido motivo de piada justamente no Oscar que os negros criticavam por ser branco demais.

“Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido”, continua. “Televisão é cultura. É o que dizemos que somos, é o que somos. Fico feliz por estarmos falando disso. Talvez estejamos chegando num ponto em que a conversa não será superficial e que ações de verdade sejam tomadas. Que levemos a indústria para o mundo real, para o século 21.”

[citacao credito=”” ]Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido[/citacao]

A atriz está diz estar contente com o projeto e não se preocupar com audiência nem com repetir o sucesso de “Ugly Betty”, já que isso está fora do seu alcance. “Se eu desvendasse essa equação eu seria muito bem-sucedida”, ri. “Tento não me preocupar com o que não posso controlar. Se eu quero que encontremos um público? Sim. Mas não tenho ideia. ‘Superstore’ já está achando um público e é muito legal ver as pessoas encontrarem alegria e significado nisso. Vai ser um público diferente de ‘Ugly Betty’. É um território novo, não dá pra comparar.”

Por enquanto, America tem razões para ser otimista. A série foi a estreia com maior audiência no canal NBC nos últimos anos e vai particularmente bem entre o público preferido dos anunciantes: pessoas com idade entre 18 e 49 anos em lares com renda superior a 100 mil dólares anuais. Tanto que, em fevereiro, a produção criada por Justin Spitzer, de “The Office”, foi renovada para uma segunda temporada. “Estou vivendo um período incrível. Rimos o dia todo. Trabalhar com esses roteiristas e atores me faz sentir que estou aprendendo. Me sinto muito apoiada nesse desafio.”

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Literatura

‘Missoula’: questões essenciais sobre o estupro

Mesmo depois da circulação de um vídeo em que uma adolescente de 16 anos está nua e desacordada enquanto um grupo de homens no Rio de Janeiro diz que ela foi estuprada por mais de 30, o delegado que comandava as investigações afirmou que a polícia não podia “ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo” quando, na verdade, não se sabia realmente o que tinha acontecido. O caso é ilustrativo de como é difícil acusar alguém de estupro — nem um vídeo é suficiente para que a vítima convença o mundo de que está falando a verdade. O caso é da semana passada, no Brasil, mas encontra paralelo nas várias histórias contadas por Jon Krakauer, autor de “Na Natureza Selvagem”, em “Missoula”, livro americano do ano passado lançado há um mês aqui. O tempo passa, o cenário muda, mas as histórias contadas por Krakauer poderiam muito bem estar acontecendo aqui e agora.

Segundo o autor, o livro nasceu de seu choque com a descoberta de que uma amiga sua havia sido estuprada duas vezes durante a adolescência — uma delas por um amigo da família. Envergonhado por saber tão pouco sobre o trauma provocado por esse tipo de violência, começou a pesquisar. Deparou-se, então, com o caso de Allison Huguet, estuprada pelo amigo de infância Beau Donaldson na cidade americana Missoula, no Estado de Montana. Como no caso de sua amiga, Allison não havia sido atacada por um psicopata escondido nos arbustos numa rua deserta: quem a violentou foi alguém próximo, que ela considerava como da família. As duas não são exceção. Pelo contrário: segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a cada cinco estupros, quatro são cometidos por conhecidos da vítima.

Krakauer comprovou isso empiricamente. Só em Missoula, sede da Universidade de Montana, encontrou vários outros casos de estudantes universitárias estupradas por colegas, amigos próximos ou aqueles caras que você conhece numa festa e que parecem super legais e esclarecidos até não serem mais. Ainda sem saber que aquilo seria um livro, o escritor foi até a cidade acompanhar o julgamento de Beau. “O que foi interessante a respeito de Allison foi que era um caso que era uma barbada e ela teve que lutar tanto. Foi tão traumatizante para ela fazer com que os promotores levassem o caso a sério e não dessem apenas uma palmadinha no cara”, disse ele em uma conversa com blogueiras feministas em Nova York. “Pensei que era uma das partes mais interessantes do livro, ver como era difícil até em um caso desses conseguir prestação de contas, justiça, retribuição, como você quiser chamar. Pareceu óbvio, então, que uma vez que eu fiquei sabendo de Allison eu deveria escrever sobre essa série de ataques.”

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Com base em entrevistas com os envolvidos, documentos judiciais e gerados por processos disciplinares universitários, e-mails, boletins de ocorrência e transcrições de audiências, Krakauer faz um retrato bastante representativo das dificuldades enfrentadas por quem denuncia um estupro. A história começa e termina com Allison, que foi a uma festa na casa de um amigo, bebeu e caiu no sono no sofá da sala, pensando estar segura. Acordou com Beau, seu melhor amigo, penetrando sua vagina por trás com o pênis. Com medo de ser mais machucada caso se debatesse — jogador de futebol americano, Beau pesava mais de cem quilos ante os menos de 60 de Allison –, fingiu continuar dormindo. Quando o ataque terminou, ela fugiu correndo, descalça e com a calça aberta (ele havia arrancado o botão e destruído o zíper). A mãe a resgatou e a levou a um hospital coletar um kit de estupro — quando foi “praticamente estuprada de novo”, com todas as áreas íntimas vasculhadas por estranhos durante horas.

As consequências daquela noite foram sentidas por muito tempo. Allison ouviu boatos maldosos a seu respeito, teve dificuldades em retomar os estudos e foi hostilizada pela cidade, que idolatrava o time de futebol, quando decidiu denunciá-lo para a polícia, mais de um ano depois. Até seus amigos a chamaram de puta mentirosa e disseram que ela só queria chamar a atenção, como se ganhar a fama de mulher estuprada fosse algo a ser almejado.

Com a ajuda de um detetive, ela conseguiu gravar uma confissão de Beau, mas mesmo assim o promotor encarregado do caso disse que iria brigar por uma pena branda, que poderia nem ter tempo de prisão. O fato de que ele não tinha antecedentes criminais e de que tinha um futuro promissor pela frente, por exemplo, contariam a favor de Beau — afinal, ele era estuprador arrependido da casa ao lado, não o psicopata com uma faca. O melhor a fazer, segundo o promotor, era não brigar muito e se contentar com a pena que o réu estivesse disposto a aceitar.

Allison representa boa parte das dificuldades encontradas por quem é vítima de estupro: a dificuldade que é passar pela coleta do kit de estupro e fazer a denúncia, as consequências psicológicas não superadas (“a sentença dele é de anos, a minha é para a vida inteira”, diz ela em um ponto do julgamento), a desconfiança de todos — da polícia aos amigos –, a culpabilização pela violência que sofreu, os xingamentos recebidos. É particularmente triste que o seu seja o caso “feliz” do livro: Beau foi preso, mas quase escapou, mesmo que tenha confessado o crime. Outros ataques narrados no livro saíram impunes, em relatos tão pesados quanto importantes.

O autor Jon Krakauer. Crédito: Linda Moore/Divulgação
O autor Jon Krakauer em foto de divulgação de 2003. Crédito: Linda Moore

Outra estudante, por exemplo, foi estuprada por cinco jogadores de futebol americano da universidade depois de beber numa festa, perdendo e recobrando a consciência repetidas vezes enquanto eles se revezavam para fazer sexo com ela durante duas horas. Assim como Allison, ela realizou exames que atestaram seus machucados e fez a denúncia à polícia. Os detetives, porém, duvidaram de seu relato com os motivos clássicos para questionar a vítima. Ela não teria traído o namorado e inventado que tinha sido estuprada por ter se arrependido depois? Será que os homens não tinham achado, por algum motivo, que aquilo era consensual? Será que ela não se enganou sobre o que aconteceu? No fim das contas, o detetive responsável concluiu que não havia “causa provável para oferecer denúncia contra nenhum dos envolvidos no incidente”. Afinal, era a palavra dela contra a de cinco.

Qualquer semelhança com o caso da adolescente estuprada por 30 homens no Rio não é mera coincidência. Segundo “Missoula”, pelo menos 80% dos estupros não são denunciados e uma pequena parcela dessas denúncias resulta em condenação. “Há uma mitologia de que mulheres mentem sobre terem sido estupradas. Algumas mulheres mentem — entre dois e 10% segundo pesquisas. Muitos estudos dizem isso. É um número pequeno, não muito diferente dos outros crimes”, disse Krakauer em entrevista à NPR. “A diferença é que nos outros crimes não se assume que a vítima está mentindo. Você acredita na palavra da vítima. As vítimas de estupro são tratadas de um jeito diferente do que as de outros crimes. O livro é um olhar de perto sobre o que é ser vítima de estupro: a dor e os obstáculos pelos quais você passa para conseguir qualquer tipo de justiça.”

“Missoula” tem o nome de uma pequena cidade americana, mas é sobre muito mais do que ela. Vem à memória, por exemplo, a denúncia de alunas da USP de estupros em festas promovidas na faculdade de medicina e a existência de uma cultura machista nos trotes universitários. Segundo elas, não só as denúncias não eram investigadas pela faculdade como elas ainda eram perseguidas pelos colegas, que as chamavam de mentirosas — como várias personagens do livro.

“É sistêmico pra caramba. Missoula é, infelizmente, um caso típico. Tem bons policiais e promotores, mas até mulheres detetives têm essa sensação de resignação, tipo… Você sabe que os promotores não vão atrás desse cara, por que vamos gastar nosso tempo? Literalmente, se eles não têm uma confissão nem levam à justiça. Temos um longo, longo caminho pela frente”, disse Krakauer no ano passado.

Meticuloso, “Missoula” é uma leitura importante, não só nesta semana, em que houve grande repercussão de um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. É importante porque acontece sempre, uma vez a cada 11 minutos no Brasil — como a maioria dos casos não é registrado, o número deve ser ainda maior. Enquanto 30 homens violentarem uma mulher sem que um só se manifeste, enquanto as pessoas duvidarem das vítimas, enquanto disserem “ninguém merece ser estuprado, mas…”, precisaremos discutir o estupro. Precisamos discutir o estupro. E as questões que “Missoula” levanta são fundamentais.

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Cinema

Um ano depois:
‘Mad Max: Estrada da Fúria’

Quando “Mad Max: Estrada da Fúria” estreou em maio do ano passado, George Miller já havia passado mais de uma década trabalhando no projeto. Catorze anos antes, o diretor atravessava a rua quando teve uma ideia para mais um “Mad Max” — coisa que não pensava em fazer. Deixou o pensamento de lado. Mas dois anos depois, num voo dos Estados Unidos para a Austrália, não conseguiu dormir e começou a desenvolver a ideia. A princípio, o protagonista seria Mel Gibson, o mesmo dos três filmes anteriores da série. Mas depois do 11 de Setembro, em 2001, o dólar americano se desvalorizou em relação ao australiano e eles perderam boa parte da verba para fazer o filme.

O projeto atrasou, mas de vez em quando uma notícia ou outra a respeito do filme pipocava. Em 2013, por exemplo, o site IGN afirmou que uma de suas fontes havia assistido a uma versão não finalizada do filme e que estava incrível. “‘Mad Max’ talvez seja ótimo”, dizia o título da reportagem. Mas quando estreou, “Mad Max” era mais um de uma série de sequências, remakes, reboots que tanto aparecem hoje em dia em Hollywood. Quando o último “Mad Max” tinha chegado aos cinemas, em 1985, o ator Nicholas Hoult — o Nux de “Estrada da Fúria” — não era nem nascido. Fazia muito tempo. Entre esses filmes, Miller havia dirigido dois filmes sobre o porquinho Babe e duas animações sobre pinguins que cantam e dançam (“Happy Feet”). O que esperar de um novo “Mad Max”?

UM ANO ATRÁS

Qualquer que fosse a expectativa, a realidade provavelmente a superou — só o fã mais incrivelmente otimista poderia ter esperado um sucesso maior. A crítica foi praticamente unânime e “Mad Max: Estrada da Fúria” foi um dos filmes mais bem avaliados do ano passado. No Rotten Tomatoes, que dá uma nota aos filmes baseado em críticas de muitos veículos, o longa tem hoje 97% de aprovação — um pouco mais que o vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, “Spotlight”, que tem 96%.

Um exemplo, da Atlantic: “Foram 30 anos desde que o diretor George Miller (ou qualquer um) fez um filme de Mad Max, e era fácil ver essa nova sequência/reboot/o que for com certa quantia de ceticismo. Mas o ceticismo queima como vapor no calor da árida distopia que Miller criou. Estrada da fúria é um filme B nota A+, um filme de ação tão vívido e visceral, tão impactante em concepção e extraordinário em execução, que é quase uma revelação”. Para a New Yorker, é uma das raras ocasiões em que uma continuação é melhor que os filmes anteriores e que, embora não dê pra saber se vai sobreviver ao tempo “pro bem ou pro mal, ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ tem tudo que a gente deseja de um filme agora e leva isso ao limite”.

Além de sucesso de crítica, “Mad Max” foi bem em público. Segundo o site Box Office Mojo, o filme arrecadou no mundo US$ 378,4 milhões — o custo foi de aproximadamente US$ 150 milhões. Mais: o filme ganhou mais prêmios no Oscar deste ano que qualquer outro (foram seis vitórias). Não só dominou as categorias técnicas como também chegou como candidato com chances em categorias como melhor filme e, principalmente, diretor. Mas como “O Discurso do Rei” (sucesso de crítica e vencedor do Oscar) e “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (sucesso de público) estão aí para provar, nada disso basta para que um filme não caia no esquecimento ou seja lembrado com carinho.

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As mulheres de 'Mad Max: Estrada da Fúria'
As mulheres de ‘Mad Max: Estrada da Fúria’

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NOS DIAS DE HOJE

Na semana passada, um ano depois do lançamento de “Mad Max: Estrada da Fúria”, um novo trailer do novo “Os Caça-Fantasmas” — com uma equipe de mulheres caça-fantasmas — foi recebido com desdém no YouTube — o primeiro foi o trailer com mais avaliações negativas no site (mais de 800 mil). Alguns exemplos de comentários, entre os primeiros na página do vídeo enquanto este texto era escrito (sério, não é preciso muito esforço pra achar opiniões do gênero): “Vamos arruinar um filme original e colocar só mulheres pra agradar feministas misândricas! Se isso não é sexista, eu não sei o que é” ou “Tá vendo? Feminismo e igualdade não funcionam”.

No dia 16, um usuário do YouTube postou um vídeo que já passou de 1 milhão de visualizações em que diz que não irá assistir ao filme, irritado com o fato de que o elenco original não voltou e que o uso do nome “Os Caça-Fantasmas” é uma forma fácil de o estúdio ganhar dinheiro. No caso, ele não chega a dizer que não quer assistir ao filme porque as protagonistas são mulheres, mas em um minuto é fácil elencar pelo menos 20 filmes que sejam reboots/continuações de outros com atores diferentes — de “Jurassic World” a “Onze Homens e um Segredo” passando por vários filmes de super-heróis. Vamos ter o terceiro Homem-Aranha desde 2002 e ninguém reclamou assim quando Tom Holland ganhou o papel.

Nem o sucesso de “Mad Max: Estrada da Fúria” foi capaz de mudar essa discussão. Apesar de o personagem de Tom Hardy estar no título, a verdadeira protagonista do filme é a Furiosa de Charlize Theron. A história toda é sobre mulheres, na verdade, e Max é apenas um auxiliar na história delas. Furiosa é parte da equipe do tirano Joe, que controla o acesso da população à água num mundo árido. Mas, sem que ele saiba, ela resgata suas cinco jovens esposas, selecionadas para que ele se reproduza, e parte de carro em busca a um paraíso verde controlado por mulheres. Em uma das cenas, bastante simbólica, Furiosa usa Max para se apoiar enquanto atira. Elas não são donzelas em perigo, são personagens completas, que partem para a ação. Não à toa, grupos de direitos masculinos manifestaram seu descontentamento à época do lançamento. Familiar?

Outro exemplo recente: neste mês, Kevin Feige, da Marvel, disse que, dentre os personagens dos filmes lançados até agora que não tinham ganhado um filme solo, eles estavam “mais comprometidos emocionalmente e criativamente” em fazer um longa da Viúva Negra. Scarlett Johansson estreou no papel em “Homem de Ferro 2”, em 2010. Desde então Capitão América, Thor e Homem Formiga ganharam seus próprios filmes, e já há datas para que Homem-Aranha (de novo: o terceiro desde 2002!) e Pantera Negra se juntem a eles. Que bom que a Marvel está comprometida a fazer um filme da Viúva Negra — uma personagem com ótima história e interpretada por um dos nomes mais conhecidos do universo dos Vingadores –, mas enquanto não houver planos concretos isso significa pouco mais que nada.

Uma última notícia relacionada, também da última semana (não precisa ir longe): Shane Black, diretor de “Homem de Ferro 3”, declarou que o papel de Rebecca Hall no filme, como vilã, seria bem maior, mas que a Marvel vetou a ideia, dizendo que eles venderiam menos brinquedos assim. Afinal, todo o mundo sabe que meninas não gostam de brincar com bonecas, né?

Nesse sentido, “Mad Max” continua tão relevante um ano depois quanto no dia de seu lançamento. Pra quem, surpreendemente, ainda duvida que mulheres possam protagonizar bons filmes de ação ou acha que fazer sequências/reboots/remakes com mulheres nos papéis principais só pode dar errado, o filme prova que tudo isso é uma grande bobagem. Porque “Mad Max: Estrada da Fúria” é um filme de ação muito bom.

George Miller quis fazer algo que qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo pudesse entender sem legendas e deu muito certo. São poucas falas e um roteiro bem simples — tanto que foi pensado como um storyboard –, e o espectador já é jogado no meio da ação, sem muita explicação para quem são aquelas pessoas ou o que está acontecendo. Não é um filme que destaca as atuações, não é um filme para quem gosta de histórias complicadas e nem tem diálogos que as pessoas citarão daqui anos. Mas não há buracos, acontecimentos sem sentido, personagens incoerentes. É o anti “filme isca de Oscar” que alcançou o feito de competir de igual com igual com os dramas, raro para comédias ou filmes de ação.

Por ser um filme mais visual, vê-lo fora do cinema, numa tela de computador, por exemplo, é bem pior. Taí um filme para não ver no avião. Quanto maior a tela e melhor a resolução, melhor. Também sempre há o risco de que os efeitos especiais envelheçam mal, como em “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (e, possivelmente, “X-Men: Apocalipse” — palpite pessoal). Por enquanto, não é o caso. Um ano depois de estrear nos cinemas, “Mad Max: Estrada da Fúria” continua 100% atual.

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Cinema

Um papo reto sobre
‘X-Men – Apocalipse’

O novo filme dos X-Men estreia nesta semana, né?
Sim, na quinta (19). “X-Men – Apocalipse”.

E aí, é tão bom quantos os últimos?
Nossa, não.

Mas é ruim?
Não chega a ser ruim, ruim. Mas é bem médio. Pra se ver uma vez na vida — no avião, se não der pra ver no cinema.

O filme tem o Oscar Isaac, não? Como pode ser ruim?
Sim, ter o Oscar Isaac costuma ser ótimo, mas nesse caso não é tão legal na prática quanto parece na teoria.

Mas é o Oscar Isaac.
Verdade, mas…

Ai, jura?
Infelizmente. É um desperdício de Oscar Isaac.

Por quê?
Bom, pra começar a gente só vê o Oscar Isaac de verdade durante uns 30 segundos, no comecinho do filme. Depois ele aparece todo azul — mas não de um jeito legal, tipo Noturno azul, ou Fera azul ou Mística Azul (tem muita gente azul nesse filme). É um azul meio tosco, meio vilão dos Power Rangers. Você escala o Oscar Isaac, o namorado dos sonhos de metade da internet, e deixa ele irreconhecível! Seria ok se a maquiagem fosse bem feita, se o Apocalipse desse medo, fosse imponente. Mas não. Longe disso.

Ok, tudo bem que a aparência dele não seja das melhores, mas e o papel? Deve ser um bom vilão, né? Afinal, é o Apocalipse. Não faz sentido escalar o Oscar Isaac se for pra cobri-lo completamente e ainda ser um papel ruim.
Concordo, não faz sentido mesmo. Mas a vida é assim. As motivações do Apocalipse não chegam a ser incompreensíveis como as do Lex Luthor em “Batman vs. Superman” e esse é o maior elogio que podemos fazer a ele.

Mas qual é a dele?
A história começa no Egito antigo, com o En Sabah Nur, o primeiro mutante da Terra, adorado como um Deus. Ele é hiper poderoso e consegue transferir sua consciência de um corpo pro de outro mutante. Assim, ele fica eternamente jovem e ainda consegue pegar os poderes da pessoa. No comecinho do filme ele se transfere para o corpo do Oscar Isaac, só que durante essa passagem ele é traído, acaba soterrado e passa milênios debaixo da terra, adormecido. Esses são os primeiros cinco minutos do filme.

Certo, e aí?
Aí ele acorda nos anos 1980 de uma forma bem idiota que vamos deixar passar porque é spoiler. Ele acorda meio chocado com o fato de que os humanos estão dominando a Terra e resolve acabar com o mundo e recomeçar do zero com os mutantes que estiverem do seu lado. O plano não é lá muito elaborado mesmo: recrutar uns mutantes pra ajudá-lo (apesar de que ele conseguiria fazer tudo sozinho), tocar o terror e destruir tudo.

E esse En Sabah Nur é o Apocalipse?
Isso, apesar de não se referir a si mesmo assim. Quando a Moira MacTaggert, da CIA, vai explicar qual é a dele pro Professor Xavier, ela diz que ele é capaz de causar um… Apocalipse.

Uau.
Sim.

Continua.
Certo. O Apocalipse sempre tem quatro capangas mutantes. A primeira que ele recruta é a Tempestade, no Egito mesmo. Além do poder dela de controlar o clima, é a primeira mutante que ele encontra, então faz sentido ele trazer ela pro time. Entre os poderes do Apocalipse está fortalecer o poder dos outros e criar uniformes super legais. Depois de deixar a Tempestade mais forte e, no processo, deixar o cabelo dela branco, eles viajam e encontram a Psylocke, que também se junta a eles — apesar de ela não acrescentar muito ao time. É ela quem apresenta o Anjo, que é ainda menos relevante como guarda-costas de um vilão tão poderoso — tipo muito poderoso mesmo. Quase nem tem graça ver um vilão desses em ação.

Pô, mas legal, eu adoro esses personagens novos!
Não se anime muito, cada um deles tem tipo três falas no filme todo. O capanga que importa mesmo é o Magneto.

Por que eles escolhem o Magneto?
Não fica muito claro. Mas deve ser porque ele ficou famoso no último filme, depois de tentar assassinar o presidente americano. Não questiona muito, vai.

Ok.
Agora que esses quatro mutantes estão mais fortes e bem vestidos (com exceção da Psylocke, que podia estar menos “sexy” e mais confortável pra lutar), eles resolvem ir atrás do Professor Xavier. O Apocalipse é quase onipotente, mas ele acha o poder do Xavier o máximo e quer isso pra ele. Então ele vai atrás do Xavier e é aí que entram na história Mística, Fera e Mercúrio — que já apareceram nos dois últimos filmes da série — e Ciclope, Jean Grey e Noturno, que lutam pra destruir o Apocalipse.

É bastante personagem.
Sim, e é feito de um jeito em que nem todas as histórias ganham o espaço que merecem. É tudo bem corrido, muitas tramas diferentes.

Mas todos se encontram numa grande luta final?
Isso mesmo.

Então, no fim, tem vários super-heróis lutando uns contra os outros? Parece que eu já vi isso antes.
Sim, só neste ano aconteceu com o Batman e o Superman e com uma dúzia de heróis em “Capitão América: Guerra Civil”.

E esse filme tá mais pra Batman ou Capitão América?
Rapaz, bem no meio. No “Guerra Civil” a gente conhece bem todos os personagens e dá pra entender tanto as motivações de cada lado quanto as consequências dessa briga. Nesse X-Men não dá pra entender exatamente o que leva os capangas do Apocalipse (com exceção do Magneto, cuja versão Michael Fassbender já conhecemos de outros carnavais) a se juntarem a ele. O conflito simplesmente não é muito interessante. Não que seja uma briga totalmente sem pé nem cabeça, mas é só… um pouco previsível. Dominar o mundo é um plano genérico. O objetivo do Apocalipse é bem parecido com o do Cérebro de “Pinky e o Cérebro” em nível de profundidade.

Que desperdício de Oscar Isaac.
Nem me fale.

Tá, e a parte boa do filme?
As atuações são boas, apesar de o roteiro ser bem mais ou menos. O “bromance” entre o Magneto de Fassbender e o Professor Xavier de James McAvoy continua forte e os dois fazem o que podem com a história que recebem. Os novos atores também estão bem, principalmente aqueles do time Xavier, que têm mais tempo de cena. É legal ver o começo da relação do Ciclope com a Jean Grey, ver a Tempestade ganhar seu cabelo branco e ver o Professor Xavier finalmente ficar careca. O Mercúrio de Evan Peters também é bem legal, apesar de sua melhor cena ser repetida de “Dias de um Futuro Esquecido”.

Aquela em que ele vai mexendo nas coisas enquanto tudo está em câmera super lenta?
Essa mesmo. Foi a melhor parte do último filme e a demonstração dos poderes dele é um dos destaques desse. O papel não é dos maiores, mas Evan Peters mostrou que tinha carisma e humor lá em 2004 no filme tão ruim que chega a ser (quase) bom “Dormindo Fora de Casa” (que também tem a atual vencedora do Oscar Brie Larson, surpreendentemente) .

Peraí, não muda de assunto. E as lutas? São boas? Diz que sim?
Olha, pra quem gosta de destruição (pontes caindo, prédios indo pelos ares, explosões variadas) é um prato cheio. Tem muitos efeitos especiais — julgue como quiser. O trailer dá uma boa ideia.

Ok, então no fim das contas, é pra eu ver ou não?
Vá ver, claro. Você não vai sair achando que gastou duas horas e meia da sua vida à toa. Mas, como na primeira trilogia de “X-Men”, o terceiro é o pior. Depois de “Primeira Classe” e “Dias de um Futuro Esquecido”, e depois de filmes como “Deadpool” e “Capitão América: Guerra Civil” lançados neste ano, a gente esperava mais.

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Televisão

‘True Detective’ encontra ‘Making a Murderer’

Dois anos atrás, a primeira temporada da série “True Detective”, da HBO, figurou em quase todas as listas de melhores programas do ano de críticos de televisão. No ano seguinte, foi a vez de “Making a Murderer”, do Netflix, mostrar que histórias de crime estavam mesmo em alta e provocar discussões intermináveis nas redes sociais. “Killing Fields”, que estreou no Discovery nos Estados Unidos no começo do ano e chegou na segunda (2) ao Brasil, é uma mistura desses dois programas. Como “Making a Murderer”, trata-se da investigação de um crime real. Como “True Detective”, acompanha dois detetives parceiros, com personalidades diferentes, que tentam resolver um caso de 1997.

Diferente de outras produções centradas em crimes reais, como o próprio “Making a Murderer” ou a primeira temporada do podcast Serial, que recuperam casos já encerrados, “Killing Fields” se passa em tempo real, mostrando as investigações à medida em que elas acontecem. Tipo um “Big Brother” policial, em que o espectador não sabe nem se haverá um desfecho no fim das contas — as filmagens, que começaram em agosto do ano passado, continuaram depois da estreia. A temporada se centra no caso da estudante Eugenie Boisfontaine, cujo corpo foi encontrado em decomposição em Iberville Parish, cidade com menos de 35 mil habitantes na Louisiana, nos Estados Unidos. Na época, o detetive Rodie Sanchez não conseguiu resolver o caso. Quase 20 anos depois, ele deixa sua aposentadoria para retomar a investigação, dessa vez acompanhado pelo jovem detetive Aubrey St. Angelo — resultando num conflito de personalidades, como bom programa policial, e de gerações.

O programa poderia muito bem ser uma ficção. Primeiro, pelos personagens. A premissa “detetive aposentado retoma caso antigo que nunca deixou de assombrá-lo ao lado de colega jovem e de personalidade agressiva”, por exemplo, tem toda cara de uma série qualquer. Depois, pelo cenário. A paisagem do sul da Louisiana — cenário da primeira temporada de “True Detective” — também contribui para a atmosfera de mistério. Pela geografia do local, na zona rural do Estado, é possível esconder corpos com facilidade. E pelo clima, esses corpos entram em decomposição com rapidez. Some isso à grande presença de vermes, urubus e jacarés que comem os cadáveres e se chega ao que se chama de “killings fields”, campos de assassinato, ideais para esconder pessoas mortas.

Mas “Killing Fields”, o programa, não é serie, e sim reality show — com pessoas pouco acostumadas com televisão e bem desinteressadas em virar celebridade (um tipo raríssimo de reality show, aliás). Como no caso de “Making a Murderer”, que transformou em celebridades momentâneas os advogados Dean Strang e Jerry Buting, que viraram símbolo do vestuário “normcore” anos 2000 e hoje fazem turnê nos Estados Unidos, “Killing Fields” é protagonizado por pessoas normais, do tipo que, ao comentar o resultado final do programa, dizem que a pior parte foi ouvir sua voz gravada (quem nunca). Os detetives responsáveis pelo caso sequer queriam aparecer na televisão.

“Eu não tinha ideia de que iria investigar esse crime. Quando me chamaram para dizer que iriam reabrir o caso eu soube que teria filmagem envolvida. Não queria fazer parte disso, não acho que essa profissão seja entretenimento. É serviço e dedicação”, diz St. Angelo, o mais novo, por telefone a um grupo de jornalistas de vários cantos do mundo, com respostas curtas de quem não está tão à vontade dando entrevistas. Mas se lhe dão uma tarefa, ele cumpre, e por isso só seguiu em frente. “Se vai envolver câmeras ao meu redor, vai envolver câmeras ao meu redor. Como um investigador e funcionário público, sei que há coisas que você deve deixar pra lá para continuar seu caminho. Eu só deixei as câmeras ficarem lá e continuei a investigar”, diz. Quando as câmeras eram ligadas, eles começavam a trabalhar como fariam em qualquer outro caso: examinando as evidências, seguindo as direções que elas apontam para tentar chegar a uma conclusão. Não mudou em nada ter alguém filmando ali, só o fato de que de vez em quando eles tinham de falar para os operadores de câmera andarem mais rápido porque iria começar a chover e o equipamento ia molhar, diz St. Angelo, pragmático.

“Os produtores falaram pra gente fazer o que geralmente fazia. Mas eu aprendi o que era mais conveniente para a câmera, sabe. Ficava: ok, nós vamos para esse bairro, você pode colocar o equipamento aqui para capturar a imagem que precisa. Aprendi o bastante sobre a indústria da mídia para conseguir trabalhar lado a lado com eles. Não foi difícil, só tínhamos mais gente de fora da investigação olhando pra gente.” A experiência, aliás, lhe deu um “novo apreço” pela televisão. “Nunca achei que a mídia poderia produzir algo tão bonito. Sempre pensei que, ok, a câmera filma e conta uma história, mas eles fizeram um produto lindo sobre essa mulher que foi assassinada”, afirma.

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O detetive Aubrey St. Angelo durante investigação
O detetive Aubrey St. Angelo durante investigação

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Nesse caso, a ideia de fazer um programa sobre uma investigação de um crime veio antes do interesse por um caso particular. Se não fosse Eugenie Boisfontaine, seria outro — não há, portanto, dificuldades em se fazer novas temporadas, diferente de “Making a Murderer” ou “The Jinx”, da HBO, por exemplo, centrados em um personagem com uma história marcante. Quando soube que o Discovery iria fazer um programa sobre a investigação de um caso antigo, conta St. Angelo, o colega, Sanchez, pediu para que fosse reaberto o caso de Boisfontaine, que ele não havia conseguido solucionar no passado. Na época, o departamento tinha muitas investigações em andamento e quando as pistas se esgotaram o caso foi colocado de lado. Mas Sanchez nunca se esqueceu dele e a esperança era de que, com novas tecnologias, hoje ele pudesse ser resolvido.

Fazer televisão sobre crimes reais é uma tarefa delicada. Há o risco de cair no sensacionalismo, o risco de deixar de lado informações na edição e ficar unilateral ou parcial, e a dificuldade de expôr as famílias de vítimas. No caso, os parentes de Boisfontaine viram com bons olhos a abertura do caso e a atenção que os detetives deram ao caso, mesmo com uma equipe de TV acompanhando tudo. “Eles ajudaram muito, responderam todas as perguntas que precisávamos, sobre a vítima e pessoas envolvidas na vida da Eugenie Boisfontaine”, diz St. Angelo. Embora exista perigo da produção do programa atrapalhar os policiais, também há vantagens. Entre os aspectos positivos de levar um caso desses a público e de exibir a investigação na televisão enquanto ela ocorre está a possibilidade de conseguir dicas de espectadores, testemunhas que não se manifestaram na época. “Tivemos várias dicas e pessoas que vieram atrás pra dar informações. Algumas parecem meio esquisitas, mas mesmo quando você recebe esse tipo de informação tem que confirmar ou negar. Tivemos o benefício de ter umas duas pessoas que quiseram permanecer anônimas que deram informações que nos levaram a uma direção particular.”

St. Angelo, que já recebe pedidos de fotos nos Estados Unidos, é tão alheio ao mundo dos programas de televisão voltados ao crime que nem sabe dizer se os retratos que eles traçam se aproximam do dia a dia real de seu trabalho. Não viu, por exemplo, “Making a Murderer”, mas “ouviu que gerou bastante burburinho”. De vez em quando, assiste à série documental “Forensic Files”, que reconstitui investigações. E é só. “Mas não se compara a ‘Killing Fields’, que segue uma investigação ativa.” Ao arriscar uma explicação para o porquê de as pessoas se interessarem tanto pelo mundo da polícia, ele é curto e grosso: “É intrigante e vai além do trabalho normal das 9h às 17h”.

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Música

Som e imagem

Quando escrevo para Pedro Bromfman para confirmar nossa entrevista para dali cinco minutos, ele responde que seu compromisso com o novo episódio de “Narcos” tinha sido adiantado e que ele teria que sair logo. Remarcamos. Mesmo o espectador mais atento do mundo provavelmente não reconheça o nome de Pedro, mas sua assinatura está em todos os episódios da primeira temporada da série do Netflix. É um tipo curioso de trabalho: se você está entretido na trama, é capaz de nem perceber o que Pedro fez. Porém, não dá pra saber como a série seria sem ele ali. Quer dizer: dá. Seria esquisitíssima. Como em outros trabalhos de José Padilha (“Robocop”, os dois “Tropa de Elite”, “Rio, Eu Te Amo”), Pedro é o compositor da trilha sonora da série.

Uma rápida passada de olhos por sua página no IMDb, o currículo de qualquer um envolvido em cinema ou televisão, revela trabalhos em outras produções bem variadas, passando pela comédia romântica “Qualquer Gato Vira-Lata”, com Cleo Pires e Malvino Salvador, o documentário “Mataram Irmã Dorothy” e, mais recentemente, “Em Nome da Lei”, filme de Sergio Rezende com Mateus Solano e Paolla Oliveira que estreou no fim de abril. A pré-estreia do filme, aliás, é motivo para a visita de Pedro, que mora nos Estados Unidos, ao Brasil. É a melhor parte do trabalho, diz ele, rindo. No resto do tempo, escrever trilhas “é mais transpiração que inspiração”, conta. Não dá pra ficar de papo pro ar, com a página em branco na frente, esperando a ideia chegar.

Pedro Bromfman, compositor de trilhas sonoras para cinema e TV
Pedro Bromfman, compositor de trilhas sonoras para cinema e TV. Crédito: Daniela Scaramuzza

Pedro começou a fazer trilhas um pouco que por acaso, numa época não havia muita gente especializada nisso no Brasil. Começou a estudar música por volta dos dez anos de idade, quando ganhou o primeiro violão, dedicando-se à prática desde o início. “Queria realmente levar a sério, estudar composição e arranjo. Aos 18 anos fui pro Berklee College of Music, em Boston”, conta. Lá, estudou performance e composição. Voltou para o Brasil, montou uma banda, produziu discos e aí começou a fazer algumas coisas para comerciais, o primeiro passo pra nova carreira. Naquela época, gostava de cinema, mas nunca tinha pensado em trabalhar com isso. Seu negócio mesmo era tocar. Foi por iniciativa da mulher, diretora de cinema, que ele voltou aos Estados Unidos, para Los Angeles, onde sua trajetória profissional mudou.

“Eu estava um pouco frustrado com o mercado de música instrumental aqui no Brasil. Isso foi no começo dos anos 2000. Acabamos indo juntos pra Los Angeles e lá entrei de cabeça nesse mercado de trilhas”, lembra. “Fiz uma especialização lá e comecei a trabalhar com alguns compositores de trilha, fazendo música adicional, ajudando com programa de televisão, coisas assim. Eventualmente comecei a ter a minha chance.” Quando vinha para o Brasil batia na porta de produtoras para se apresentar, aproveitando o fato de que ainda não tinha muito gente que fizesse o que ele fazia. “Naquela época era um país com músicos maravilhosos, mas com pouca gente que entendia realmente como a trilha funciona. Hoje tem muito mais gente capacitada trabalhando. Mas em 2004, 2005, pouca gente se dedicava exclusivamente a isso. Começou a me abrir portas aqui também.”

O primeiro grande projeto fez barulho: “Tropa de Elite”, primeira colaboração sua com José Padilha. A continuação do filme, então, era a maior bilheteria nacional no Brasil até “Os Dez Mandamentos”, neste ano. “Estar lá [nos Estados Unidos] me abriu portas aqui, porque eu tinha especialização e experiência de longa data de composição e orquestração. E o fato de fazer filmes aqui — e um filme como ‘Tropa’, que viajou — começou a me abrir portas lá”, diz Pedro. “Sempre digo que não basta estar preparado e ter talento. Precisa de sorte nesse mercado de cinema. Você tem que estar no lugar certo na hora certa, conhecer as pessoas certas e aí estar preparado pra entregar e fazer o trabalho direito quando te chamarem.”

INTERLÚDIO

Ouça a cena prestando atenção na trilha sonora.

LIBERDADE CRIATIVA

Mas o que significa, exatamente, saber fazer trilha sonora? Não é como compor músicas para um disco próprio. Pra começo de conversa, tudo tem que estar de acordo com a visão do diretor. Numa produção americana, por exemplo, costumam chamar o compositor quando já há um primeiro corte do filme ou programa de TV. As fases de roteiro e filmagem já ficaram bem pra trás. “A cabeça de Hollywood é de que não é só arte, é indústria. É mais uma cabeça de cronograma, orçamento, bem certinha”, diz Pedro. Chegar tão tarde na produção não é o ideal para ele. “Eu gosto — é como trabalho com o Zé Padilha — de me envolver o quanto antes. Ler o roteiro, nem pra começar a gravar coisas, mas pra ter ideias, conversas criativas com o diretor, entender os personagens, qual a instrumentação que deve ser usada.”

No caso de “Narcos”, Pedro não foi à Colômbia, onde a primeira temporada foi gravada, mas recebia imagens assim que as filmagens começaram. “Eu já tinha lido o roteiro do piloto [primeiro episódio] e comecei a compôr música lá no início. Muitas das músicas que compus lá viraram os temas principais. Mas muitas vezes acontece também de você começar cedo, fazer algumas coisas e depois olhar as imagens e falar ‘não é bem por aí, vamos repensar’. Às vezes você lê o roteiro e acha que sabe tudo de que o filme precisa, mas aí você vê as primeiras cenas e realmente vê o tom do filme e das atuações, e é aí que você vê.”

Quanto antes o compositor entra no projeto, maior sua liberdade criativa. Quando um filme já chega nas suas mãos em um primeiro corte, muitas vezes já vem com uma música temporária. Sem música, fica estranho ver um filme e os editores colocam algo para ajudar no ritmo. “A música muitas vezes funciona de uma maneira subconsciente. Você nem está ouvindo realmente, mas se ela não estiver ali você não sente a parte emocional do mesmo jeito. Se você passa um filme sem a música a pessoa não chora, mas se você põe a sala inteira vai ficar emocionada porque é pele”, opina.

No caso de “Em Nome da Lei”, por exemplo, Pedro também participou desde o início e pôde dar suas opiniões a respeito de como deveria ser a música. “Obviamente se eu entrego uma faixa que [o diretor] não gosta ele diz que não é bem por aí. Mas num esquema bem colaborativo, de mandar uma coisa, ele responder, eu defender minha ideia”, diz. “Eu acho que é isso que o cinema é, realmente. Uma grande colaboração de todas as artes. O trabalho do diretor é conseguir unificar aquela visão e passá-la pra todos os departamentos do filme.”

Para ser um compositor de trilhas também é preciso ser versado em músicas de diferentes tipos. Cada projeto, ou cada gênero de filme, pede um tipo de música. “Já fiz trilha que era quase só tango do começo ao fim. ‘Robocop’ tinha uma orquestra de 80 músicos com mistura de música eletrônica”, diz. Hoje, acaba mais fazendo mais filmes de ação, o que considera normal pelo caminho de sua carreira. “As pessoas veem um filme de ação ou de drogas e falam ‘ah, gostei da música dele, vamos chamar pra fazer outro filme assim’. Qualquer oportunidade de sair um pouco disso, fazer uma comédia romântica, uma animação que for, eu abraço. Principalmente se for um projeto interessante. Obviamente a primeira decisão do sim ou do não é se o tema me interessa.”

E, é claro, produzir independente de inspiração. Nem sempre é fácil. “Toda vez que eu começo um projeto eu penso que não tenho ideia do que fazer. É como se eu esquecesse o que eu faço cada vez que eu começo. Aí passo duas semanas com o filme, digerindo, experimentando uma coisinha ou outra até a hora que a coisa engrena. Aí a gente encontra o tom e a instrumentação, e a partir dali a coisa flui”, diz. Mas mesmo antes de pegar no tranco ele se compromete a sentar no estúdio todo dia às 9h e trabalhar até as 18h. “Talvez no dia seguinte eu não goste de nada do que fiz. Mas todos os dias tem alguma coisa produzida. Música pra cinema é muito mais transpiração que inspiração. Inspiração é o que você absorveu ao longo da vida, de filmes que viu, músicas que ouviu, estudos que fez, instrumentos que aprendeu a tocar. No dia a dia a coisa é sentar e produzir.”

https://www.youtube.com/watch?v=U7elNhHwgBU

O resultado de tudo isso é fazer com que trilha e filme casem perfeitamente. Pedro diz que sabe que está diante de um grande filme quando ele presta atenção na trilha, mas nem tanto assim. Nesse caso ele ouve de novo a trilha em casa (entre os ídolos aponta Ennio Morricone, atual vencedor do Oscar por “Os Oito Odiados”, Thomas Newman, indicado a 13 Oscar — o último por “Ponte dos Espiões”, neste ano –, e Gustavo Santaolalla, que ganhou o Oscar por “Babel” e “O Segredo de Brokeback Mountain”).

Para quem quer começar a trabalhar com trilhas hoje há mais caminhos, inclusive especializações no Brasil. Há um mercado grande, particularmente, para trilha sonora de videogames, conta ele, que trabalhou no jogo “Max Payne”. “Foi meu primeiro e único trabalho até agora, mas é um mercado que cresce muito. Os fãs jogam o dia todo e aquela música fica embrenhada, eles são mais apaixonados pelas trilhas que os fanáticos por cinema”, diz. A experiência foi boa, mas no cinema há mais controle sobre a obra. “No videogame você faz a música, mas não tem como saber se aquilo que você escreveu vai tocar exatamente naquele momento. Todas as músicas têm que poder voltar pro começo e não terminar nunca até que você passe de um ponto, ou mude de fase. Aí começa uma nova música”, diz. No cinema, se ele escreveu aquilo para a cena X, sempre irá tocar na cena X.

Agora, além de trabalhar na segunda temporada de “Narcos” (acabou de terminar o quinto episódio e faz mais ou menos um capítulo a cada dez dias), faz a trilha da série “Rio Heat”, com Harvey Keitel. Também cita um projeto com José Padilha sobre o qual não pode falar (dias depois da entrevista, o Netflix revelou que vai exibir uma série do diretor sobre a Operação Lava Jato). O ritmo é forte, diz. “Não estou fazendo a música só pela música. Não interessa se ela é a mais bonita do mundo, se a melodia é a mais linda, estou fazendo a música pro bem de uma obra maior, ajudando uma cena e personagens. Esse é o grande lance.”