Categorias
Televisão

‘Gilmore Girls’ e a melancolia

Dizer que “Gilmore Girls” é uma série super realista seria um exagero. Da mágica Stars Hollow, com seus mil festivais e habitantes malucos a velocidade em que as pessoas falam, passando pela quantidade de besteira que as protagonistas comem sem engordar um grama, há muito de fantasia ali. Mas poucas séries conseguem captar como “Gilmore Girls” as complexidades das relações, principalmente familiares. Quando Lorelai, Rory e Emily brigam, trazem à tona década de ressentimentos e vão direto na jugular. Quando se divertem, é com piadas internas cultivadas ao longo de toda uma vida. As dificuldades, as decepções da vida, estão todas lá.

Quando a série terminou na televisão, com a sétima temporada — a única sem a criadora, Amy Sherman-Palladino, no comando –, seu final foi bem aberto. Rory conseguiu um emprego num site pequeno para cobrir a campanha de Barack Obama, Lorelai deu um beijo em Luke, Emily e Richard foram prestigiar a filha e a neta numa grande festa em Stars Hollow. A partir disso, cada um podia imaginar o final que queria. O site de Rory podia ter estourado, ela podia ter conseguido emprego num jornal, poderia estar morando em Nova York ou na Europa, poderia ter voltado com um dos ex-namorados, ou ter conhecido alguém novo, ou estar sozinha. Poderia ter casado, poderia ter tido filhos, ou nada disso. Lorelai podia ter se reconciliado com Luke, casado com ele, tido mais filhos. Ou o beijo poderia ser só uma recaída. Havia uma série de finais felizes possíveis.

Mas não seria “Gilmore Girls” se houvesse um final feliz. Então nos quatro novos episódios, lançados no Netflix, vemos que para Rory, Lorelai e Emily tudo continua complicado como sempre. (Atenção, spoilers a partir daqui!) Não, Rory não voltou com Jess nem estourou como jornalista — nem com um currículo como o de Rory está fácil. Quando a temporada começa, ela acaba de publicar um artigo na New Yorker e acha que com isso muitas portas irão se abrir. Desdenha de uma vaga num site menor e vive viajando o mundo com seus três celulares atrás de frilas, até que termina sem emprego, sem dinheiro e sem perspectivas na casa da mãe, no quarto onde cresceu. Na vida amorosa, também é um desastre: tem um namorado há dois anos, mas vive se esquecendo dele, e o trai com desconhecidos e com Logan, que está noivo de outra.

Lorelai parece mais estável, mas também está desmoronando. Sookie abandonou a pousada que abriram juntas, Michel também quer partir, Luke nunca a pediu em casamento e a ausência do papel assinado começa a incomodar. A relação com a mãe, Emily, também não vai muito bem desde a morte do pai, Richard. Emily, então, perde completamente o chão depois que o companheiro de 50 anos morre. Como viver sozinha depois de tanto tempo? O resto dos personagens também não vai muito bem: Paris e Doyle estão se divorciando, Zack tem um emprego que odeia, Michel se sente sem perspectivas de crescimento, Jess continua apaixonado por Rory, e Lane agora toma conta do antiquário da mãe e não realizou seu sonho de ser roqueira. Dean vai bem, finalmente realizando o sonho de formar uma família cheia de filhos.

Do ponto de vista de fã, é frustrante ver Rory seguir o caminho que segue. A piada sobre Paul, o namorado de quem ela não se lembra apesar do relacionamento ter dois anos, perde a graça logo e se torna cruel — embarcar num namoro desses não parece algo que Rory faria. Apesar de sua relação com a monogamia não ser das mais sólidas desde o início (ela beija Jess quando está com Dean e transa com Dean quando ele está casado), também irrita o fato de ela ser amante do ex-namorado e de trair Paul com Logan e com um cara avulso que ela conhece na rua sem sentir nenhum tipo de culpa. Dá pena dela também pensar que dez anos depois ela ainda está apaixonada por Logan, um namorado que só fazia sentido quando ela tinha acabado de sair da adolescência perfeita e que lembrava seu pai, com quem ela tem questões para resolver.

Rory, Luke, Emily e Lorelai em episódio novo de 'Gilmore Girls'. Crédito: Saeed Adyani/Netflix
Rory, Luke, Emily e Lorelai em episódio novo de ‘Gilmore Girls’. Crédito: Saeed Adyani/Netflix

Mas “Gilmore Girls” nunca quis que Rory e Lorelai fossem perfeitas e esperar que Rory fosse ter a vida resolvida aos 32 anos era uma aposta arriscada de qualquer forma. Podemos não gostar do desenrolar das coisas, mas essa parte é coerente com aquilo que a série construiu ao longo de sete temporadas — “Gilmore Girls” nunca fez questão de que suas personagens fossem perfeitas.

Perfeição, aliás, passa longe desses novos episódios. Podemos perdoar o fato de Rory ter se tornado uma pessoa pior com o tempo, mas outros defeitos não e, no fim das contas, “Gilmore Girls: Um Ano para Recordar” é um fantasma daquilo que foi “Gilmore Girls”. Com a liberdade do Netflix, Sherman-Palladino e seu marido, Daniel Palladino, roteiristas e diretores da temporada, resolveram fazer quatro capítulos de uma hora e meia de duração (originalmente os capítulos tinham em torno de 40 minutos), representando cada um uma estação de um ano. A duração maior não foi bem aproveitada pela dupla e há cenas longuíssimas sem muito propósito e/ou cansativas, como a apuração de Rory para uma matéria sobre filas, as cenas do musical sobre Stars Hollow, os preparativos de Lorelai para sua caminhada e a aventura de Rory com Logan e seus amigos.

Essas cenas tomam espaço que poderia ser ocupado com as três garotas Gilmore juntas, já que a relação delas é o coração da série. Emily e Lorelai interagem um pouco — têm umas duas cenas memoráveis –, só é uma pena que as cenas de terapia que elas fazem juntas, que tanto prometia, não rendam tanto. Lorelai e Rory também, embora Rory passe praticamente mais tempo viajando pra Londres do que com a mãe (aliás: quem faz um bate-volta Estados Unidos/Londres como Rory, que ainda por cima está supostamente falida?). Raras são as cenas com as três juntas.

Juntar todo o elenco original para esses quatro episódios foi uma conquista e tanto e é reconfortante ver todos seus personagens queridos de novo. Mas os Palladino gastam tempo demais mostrando “ah, como Stars Hollow é esquisito!”, com cenas que pouco acrescentam, do que com a história dos personagens que amamos. Seria mil vezes melhor saber mais sobre Lane, para quem eu esperava justiça após o final terrível que foi terminar grávida de gêmeos aos 21 anos, do que ver as cenas na piscina de Stars Hollow (horrível da parte das Gilmore ficar julgando os corpos das pessoas em 2016). Mais Paris e menos Kirk. Mais interações de Jess e Rory. Poxa, até mais Dean seria bem-vindo.

Isso não significa que a temporada não tenha seus bons momentos. Rever Paris é uma alegria, com diplomas de medicina e direito e uma casa de cinco andares em Nova York, como deveria ser. Lauren Graham parece não ter deixado nunca de interpretar Lorelai e revê-la no papel é pura nostalgia mesmo nas cenas meio sem graça. Emily, particularmente, é um destaque. Sem chão após a morte de Richard, ela finalmente fica com uma empregada mais do que um episódio e meio que adota a família imigrante de Berta, com quem ela nem consegue se comunicar direito. Aos poucos, ela aprende a viver sozinha, vendendo a casa e largando tudo para morar na praia, onde passa as noites bebendo vinho e os dias ensinando crianças num museu.

No processo, solta alguns palavrões (no Netflix é liberado) ao deixar o esnobe grupo DAR de maneira memorável. A briga com Lorelai após o velório de Richard também é brutal, numa excelente atuação das duas. O arco de Emily é uma boa síntese daquilo que “Gilmore Girls” consegue ser nos seus melhores momentos: triste, engraçado, complicado, às vezes tudo ao mesmo tempo. Se a série mostra algo, é que a vida não é fácil, mas pode ser muito boa.

Rory e Lorelai na cozinha das Gilmore. Crédito: Saeed Adyani/Netflix
Rory e Lorelai na cozinha das Gilmore. Crédito: Saeed Adyani/Netflix

Nesse sentido, o final é particularmente desapontador: não combina com “Gilmore Girls”. O mais frustrante é que há muitos anos Amy Sherman-Palladino diz que sabia quais seriam as quatro últimas palavras ditas na série. Como ela não trabalhou na sétima temporada, os fãs nunca souberam qual era o final imaginado por sua criadora. Durante a campanha publicitária dos novos episódios, Sherman-Palladino colocou os holofotes repetidas vezes sobre as tais quatro palavras. A expectativa era alta, o que nunca ajuda, mas nem nos meus devaneios mais loucos pensei que pudesse ser tão ruim. Rory diz a Lorelai que está grávida e há um corte.

Não sabemos a reação de Lorelai. Não temos nem certeza sobre quem é o pai. Tudo leva a crer que seja Logan, que a própria criadora disse que representa a figura do pai ausente na vida de Rory. Mas como Logan casou-se com outra, Rory repetiria a experiência da mãe e criaria sozinha a criança. Faria sentido, assim, a conversa que tem com o pai no último episódio: sabendo que estava grávida de Logan, perguntou para ele se ele se arrependia de ter deixado Lorelai criá-la sozinha — para ajudar a se decidir se incluiria ou não Logan na vida de seu filho. Como Christopher, Logan é um homem rico que ama Rory, mas não pode dar a ela aquilo que ela precisa. Alguns fãs de Jess especulam na internet que ele seria o Luke de Rory, o cara que a entende, que está ali pro que ela precisar, e que, no fim das contas, eles terminariam juntos. Mas meio triste pensar que Rory — a tão ambiciosa e estudiosa Rory, que queria ser jornalista pra viajar o mundo e “ver as coisas acontecendo” — terminou naquela cidadezinha, deixando a carreira de lado.

Dá muita alegria pensar que Sherman-Palladino não escreveu a sétima temporada, pois ver Rory como mãe solteira aos 22 anos, recém-formada, seria terrível. O que ela quis dizer com esse final? Que estamos fadados a repetir a trajetória dos nossos pais? Por que fazer Rory repetir a experiência da mãe, que foi tão difícil? Era essa a ideia desde o começo, fazer um final melancólico que mostre que a vida é cíclica e inescapável? Quando Lorelai pede um empréstimo à mãe, como no primeiro capítulo, percebe-se a ideia de “ciclo se fechando”. Se depois de tudo que elas viveram seu final é voltar pro início, é melancólico demais.

Categorias
Televisão

Aqueles “3%”

Pedro Aguilera estava numa fase meio distópica, nove anos atrás, quando cursava cinema na USP. Na lista de leitura estavam “1984”, de George Orwell, e “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Quando viu um edital do Ministério da Cultura para criar uma série, a ideia lhe veio à cabeça: fazer uma distopia brasileira. O resultado, “3%”, é uma espécie de mistura de “Jogos Vorazes” com vestibular, uma receita bem atrativa para adolescentes (ou jovens adultos, como esse público é chamado). Talvez por isso a produção, que virou uma websérie na época, tenha chamado a atenção do Netflix na hora de escolher seu primeiro seriado brasileiro.

Durante esses anos, a websérie ficou no ar, ganhando lentamente legendas em diversas línguas, feitas por fãs, e novos espectadores. Um deles era um executivo do Netflix, que se empolgou com o projeto e o levou para o serviço. A série, que estreou na sexta (25), competindo com “Gilmore Girls”, não é idêntica à websérie. Mas ambas tem a mesma premissa. Nelas, o Brasil do futuro, numa época não especificada, virou uma terra devastada. Não há comida, pessoas vivem em barracos, vestidas em trapos. A única chance de escapar da miséria é passar, aos 20 anos, por um processo seletivo. Os 3% selecionados ganham a chance de viver num oásis chamado Maralto, onde não há escassez e todos vivem confortavelmente e em paz. Quem não conseguir passar pelo processo seletivo, altamente subjetivo, está fadado a viver “do lado de cá” para sempre, sem segundas chances. Pelo menos por enquanto: no primeiro episódio é revelado que há um grupo revolucionário que tenta acabar com a injustiça e que infiltra um jovem no processo.

O grupo de protagonistas é variado: há a mocinha com cara de frágil (Bianca Comparato, um dos poucos nomes conhecidos do elenco), o cadeirante que não quer ajuda de ninguém, o rapaz confiante cuja família sempre passa no processo, a jovem marrenta e esperta, o malandro que tenta burlar as regras. Todos observados por Ezequiel (João Miguel), o misterioso chefe do processo que carrega um passado difícil.

João Miguel, figura comum em minisséries da Globo, disse em encontro com jornalistas que recebeu o convite um ano e pouco antes da série acontecer. “Fiquei interessado por fazer um personagem que nunca tinha feito. Me interessa muito descobrir personagens novos. O Ezequiel é muito estranho de cara”, afirmou. “No início, pensando muito num personagem sistemático, que traz essa coisa corporativa, de poder, e acho que um personagem muito contundente hoje e muito diferente do que eu tinha feito até então. Isso me atraiu bastante.”

Já Bianca, um dos primeiros nomes a fazer parte do projeto, diz que topou fazer “3%” pela mensagem, sem nem ter lido um roteiro. “A primeira coisa que me atraiu foi a ideia do Aguilera dessa segregação. 3% versus 97%. O teor político e a mensagem que a série passa”, contou. “Eu falei: ‘Essa mensagem eu quero passar’. Não sabia como, mas isso estava claro.” Para atriz, não precisa nem de muita imaginação para ver as ligações entre o Brasil real e o Brasil da série. “Costumo dizer que o Brasil é uma distopia”, brincou. “Intelectualmente faz muito sentido o conceito.”

Mas embora os criadores digam que as questões propostas pela série tenham respaldo na realidade brasileira (“é uma alegoria para a discutir a meritocracia”, diz Bianca), trata-se de uma ficção que segue a fórmula dos filmes do gênero feitos em Hollywood, mas menos criativo. Pense em “Jogos Vorazes” ou “Divergente”. As pessoas que aplicam o processo são malvados e/ou cegos para a desigualdade como os moradores da capital nos filmes protagonizados por Jennifer Lawrence. Há até algo que se assemelha com os hologramas com o nome e o rosto de cada participante. Quando é anunciado que há uma rebelião, é pouco surpreendente, não vai muito além daquela velha história dos jovens adultos contra um regime totalitário. As reviravoltas — que existem — não têm a mesma força, pois o roteiro é pouco profundo na crítica.

Ao roteiro pouco especial junta-se performances bem abaixo da média, inclusive de João Miguel, que costuma escolher bons papéis em boas produções. O elenco jovem parece se esforçar, mas parecem estar lendo um roteiro – e não falando. Da dicção super correta ao vocabulário que ninguém usa, parece tudo um pouco artificial. Há episódios melhores que outros — no quarto, por exemplo, o foco sai das provas não muito interessante do processo (como montar cubos em poucos minutos) e a série joga luz sobre os efeitos que a competição tem nos participantes, revelando o pior em cada um deles.

Para dirigir a série, foi chamado César Charlone, indicado ao Oscar de fotografia por “Cidade de Deus”. Coube a ele trazer um pouco de brasilidade para o cenário distópico, afirmou Bianca. “O Charlone dá esse conceito colorido. É um futuro quase que presente, como ‘Black Mirror’ faz. Parece que é lá na frente, mas na verdade estamos falando de nós mesmos”, disse. Mas mesmo com o currículo de Charlone, o visual não é particularmente incrível. Os cenários do “lado de lá” são genéricos, com grandes espaços brancos e design clean. “Do lado de cá”, há realmente mais cores, mas os figurinos são esquisitos, com trapos coloridos sobrepostos uns sobre os outros.

Segundo Pedro, que tem 27 anos, a equipe tentou argumentar a favor dos dois lados do processo de seleção, sem julgar o pessoal do lado de lá. “A gente se esforçou pra tentar pintar um quadro não unilateral, com personagens com pontos de vistas diferentes, indicando levemente nosso ponto de vista, pra deixar o público ter uma opinião sobre essa sociedade e como ela tá montada.” A ideia é boa, tanto que o piloto, disponibilizado no YouTube, fez bastante sucesso. Mas mesmo com toda a infraestrutura do Netflix, a série tem um pouco de cara de produção estudantil. Entretém, mas não espanta muito.

Categorias
Cinema

A sensível ficção científica de
‘A Chegada’

Quer dizer que “A Chegada” estreia na quinta (24)? Mais um ano, mais um grande filme de ficção científica sobre o espaço.
Verdade, mas não dá pra gente reclamar muito, né. No ano passado, “Perdido em Marte” foi uma ótima surpresa e conseguiu até se infiltrar no Oscar deste ano. Dá pra dizer o mesmo de “A Chegada”, do Denis Villeneuve: é um dos melhores filmes do ano e não lembra em nada os últimos filmes com uma temática parecida. Aliás, dizer que esse é um filme sobre o espaço não é certo. Sim, uma parte fundamental do enredo é a chegada de alienígenas na Terra, mas é mais um filme sobre comunicação, sobre entendimento.

E quem é esse diretor mesmo, o Denis Villeneuve?
Villeneuve é um diretor canadense que tem ganhado cada vez mais fama por fazer filmes de suspense com uma velocidade reduzida, trilhas sonoras potentes misturadas com silêncios marcantes, criando um ambiente tenso em todas as suas obras. Um de seus primeiros filmes, “Incêndios”, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Assim como em “A Chegada”, é difícil detalhar os filmes de Villeneuve sem entregar pontos-chave de cada um deles: é prazeroso vê-los sem ter muitos detalhes sobre a história e se surpreender com o roteiro. Isso funciona muito bem em “Os Suspeitos” e “Sicario: Terra de Ninguém”. E espere ouvir mais ainda o nome dele no ano que vem, já que o diretor está filmando a sequência do clássico “Blade Runner”.

Ok, vamos voltar para “A Chegada”, então. Qual é a história?
O filme começa com a chegada de 12 naves de extraterrestres, que pousam em diferentes pontos da Terra: na China, nos Estados Unidos, em Serra Leoa… As naves são habitadas por criaturas que em nada lembram a imagem clássica que temos de ETs. Não são humanos verdes, e sim enormes criaturas escuras, sem rosto, com múltiplas pernas. Para descobrir o que esses alienígenas querem — se vieram em paz, ou se são uma ameaça –, cada país recruta uma equipe de cientistas responsável por tentar estabelecer um diálogo com eles. Nos Estados Unidos, eles chamam a linguista Louise Banks.

É o papel da Amy Adams, certo?
Isso mesmo. Ela e o físico Ian Donnelly, papel do Jeremy Renner, encabeçam uma missão para tentar se comunicar com os visitantes e conseguir a resposta para uma pergunta: qual é o seu propósito na Terra? O filme mostra o processo de Louise para conseguir decifrar aquilo que os aliens querem dizer. Como fazer para entender alguém que não fala sua língua, não escreve como você, não pensa da mesma forma e não tem as mesmas referências?

Mas eu vou me interessar por esse filme se eu não tiver nenhum conhecimento ou interesse por linguística?
Sim. Conhecimento de linguística é completamente dispensável, porque o filme é bem didático. Como Louise tem que explicar o que está fazendo para os militares leigos no assunto, o público também segue seus passos direitinho. É bem legal ver como ela faz para tentar falar com eles, começando por ideias bem básicas, como apresentar seu nome e dizer a eles que é humana. E apesar de ser um filme baseado em ciência real, é uma ficção científica, bem pouco previsível. Enquanto Louise tenta concluir sua missão — antes que o desespero dos humanos resulte em um ataque aos aliens e em uma possível retaliação –, vemos pequenos trechos de sua vida fora dali e a relação com a filha, que ficou doente. Não espere um filme de ficção cheio de cenas de ação, daqueles que só vale a pena assistir no cinema.

O visual não é grandes coisas, então?
Pelo contrário, é um filme muito bonito. Desde as naves espaciais, num formato meio ovalado, simples, até os reflexos nas roupas espaciais dos protagonistas, passando pelos símbolos de escrita alienígenas, circulares, tudo é muito bem pensado. Só não é um filme em que o visual importe mais do que o conteúdo. Como eu disse no começo, é uma história sobre como nos comunicamos, e sobre os riscos que existem na falta de diálogo — no caso do filme, se todas as nações não cooperarem, e se os humanos não conseguirem falar com os alienígenas, uma grande guerra pode acontecer. É uma ficção científica, sim, você pode esperar as clássicas cenas sem gravidade, mas o que interessa é a história — baseada no conto “Story of your Life”, de Ted Chiang, publicado em 1998 e vencedor de vários prêmios de ficção. Para adaptar o conto, que parecia inadaptável, com suas variações temporais e conceitos científicos complexos, foram seis anos de trabalho e um acompanhamento de Chiang. Deu certo.

E as atuações? Já está na hora de a Amy Adams ganhar um Oscar depois de cinco indicações, né. Até o Leonardo DiCaprio conseguiu o dele.
Provavelmente não será por esse filme, o que é uma pena, porque ela foi feita para esse papel. É uma atuação bem minimalista: ela não tem grandes cenas de choro, monólogos de impacto nem nada do gênero. Mas ela consegue transmitir muita coisa com poucas palavras (no outro filme dela que estreia neste ano, “Animais Noturnos”, ela passa boa parte do tempo lendo sozinha). Jeremy Renner também está bem simpático e faz bem o papel de coadjuvante — o resto dos atores tem menos impacto, o filme é quase todo de Amy Adams.

Categorias
Literatura

O encontro de Jango com um mafioso italiano

 

O Risca Faca publica orgulhosamente um trecho do livro “Cosa Nostra no Brasil: a história do mafioso que derrubou um império”, escrito por Leandro Demori e publicado pela Companhia das Letras. O livro conta a história de Tommaso “Masino” Buscetta, mafioso italiano que se envolveu com a história brasileira. Demori é jornalista, editor do Medium Brasil e assinou, no Risca Faca, a investigação sobre “o Lobo da Bovespa” e a história da operação que influenciou a Lava Jato. Você pode comprar o livro, que chega às livrarias nesta semana, clicando aqui.

***

Homero não tinha dinheiro suficiente para topar a proposta que Tommaso acabara de fazer, mas seria difícil recusá‐la. Após sanar as dívidas da Satec e da Staf, Masino tinha derramado mais 35 mil cruzeiros para tapar outros rombos na empresa. Como negócios legalizados, as consultorias eram uma furada. A parceria se mostrava lucrativa para Buscetta, Homero e seus sócios por outras vias. “Quem sabe botamos no nome do Homerinho?”, sugeriu Masino. Homero de Almeida Guimarães Júnior tinha 26 anos e trabalhava com o pai. Tommaso o adorava, e aos poucos os dois se tornaram verdadeiros amigos. Casado há pouco tempo, não tinha dinheiro, mas sua esposa recebeu, como herança, uma casa e um prédio de apartamentos em São Paulo. “Eles podem vender os imóveis…” Homero aceitou. Comprou a metade de uma fazenda de criação de gado em sociedade com o genro Roberto, que entrou com o restante do dinheiro. As terras foram colocadas em nome de Homero Júnior e Benedetto Buscetta, o Bene.

Enquanto Sarti e David viajavam para o Uruguai para continuar as operações do tráfico, Masino recebia por telefone propostas de vendedores de áreas agrícolas. Homero tinha ativado todos os seus contatos, inclusive o general Ernesto Bandeira Coelho, chefão da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam. Além de procurar por terras disponíveis, esperava conseguir do militar o rápido andamento do processo para descontos no Imposto de Renda, concedidos pelo governo a projetos agropecuários.

Homerinho e Bene também tinham se tornado amigos. Com a ideia de adquirir as terras, Masino ordenou que os rapazes rodassem o Brasil em busca de uma oportunidade. Amazonas, Goiás e Mato Grosso foram os estados escolhidos. Antonio, o Toni, terceiro filho de Tommaso com Melchiorra, os acompanhou — havia chegado ao Brasil havia pouco, vindo de Nova York.

Homero ficou encarregado de analisar as propostas que chegavam por telefone entre dezembro de 1971 e fevereiro de 1972, período em que Tommaso e Maria Cristina viajaram, em alegadas férias, pela América Latina. Estiveram na Venezuela, onde Salvatore “Passarinho” Greco morava desde que a bomba de Ciaculli matara sete policiais, em 1963. Embora corresse o risco de ser preso, Masino ainda iria para os Estados Unidos e para a Itália em viagens cujos objetivos até hoje são desconhecidos. De volta ao Brasil pouco antes do Carnaval de 1972, o italiano recebe uma boa notícia: Homero havia localizado uma grande área para negócio no Mato Grosso — com pista de pouso em boas condições. O italiano ficou empolgado quando soube que o dono era um velho amigo do sogro, um personagem público que traria excelentes garantias ao negócio, mesmo que exilado do país pelos milicos: João Belchior Marques Goulart, o Jango, presidente deposto do Brasil.

Jango vivia no Uruguai desde o golpe. Seu rancho em Maldonado, a duas horas da fronteira, era destino de peregrinação de amigos, políticos e militantes de esquerda. A pouco mais de cem quilômetros de Montevidéu, a cidade litorânea era escorada de um lado por dunas muito brancas e águas muito frias e, do outro, por imensidões campeiras de ar gelado onde as estradas pareciam pistas de pouso, e as pistas de pouso, estradas de barro. Por aquelas bandas, a presença de animais de corte era mais apreciada do que a de seres humanos. Os brasileiros que desandavam ao sul buscavam em Jango amparo e conselhos — e tentavam convencer o político a voltar ao Brasil e enfrentar o Exército.

Tommaso, Homero, Maria Cristina, Bene e Homerinho marcaram de se encontrar com o gaúcho no dia 1o de março. São recepcionados com um churrasco, oferecido aos cinco e a outros convidados, em comemoração aos 53 anos de Jango. Cardíaco, Jango bebe uísque e fuma um de seus quarenta cigarros diários — misturados com remédios vasodilatadores que ajudam suas veias a sustentar o coração, maltratado por um infarto que o acometeu três anos antes. Sentia faltas de ar constantes. Abria um vidro e sacava do algodão um Isordil. O comprimido derretia sob a língua, invadia a corrente sanguínea e obrigava a pressão sobre as veias a arrefecer; os pulmões voltavam a se encher de ar.

Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia
Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia

Amigo de Homero havia mais de uma década, João Goulart explica a localização exata da fazenda Três Marias — 10 mil hectares situados à margem norte do Pantanal mato‐grossense. As terras abrigavam um naco de rio, cabeças de gado, uma floresta particular e um pedaço de história. Na sede — uma simples mas acolhedora casa de estância —, Jango, ainda presidente do Brasil, havia se reunido secretamente com o então ditador do Paraguai, Alfredo Stroessner, para assinar o tratado que daria origem à construção da hidrelétrica de Itaipu. Ele conta aos convidados que costumava visitar a área partindo de avião de São Borja, no Rio Grande do Sul, e esclarece que as terras estavam sendo administradas por seu piloto particular e homem de confiança. A localização da fazenda era perfeita: poucas horas de voo da Bolívia e do Paraguai — ponto de reabastecimento adequado para o tipo de empreitada que Tommaso buscava secretamente levantar. Jango acerta os olhos em Homero e estabelece suas condições. O homem era tido como grande negociador. Sua dedicação às atividades agropecuárias vinha desde a adolescência, nas terras da família em São Borja. Deposto, passou a negociar fazendas e tudo o que elas poderiam produzir: bois, arroz, ovelhas, lã. Comprou áreas no Uruguai, no Paraguai e na Argentina. Organizou empresas de exportação de carnes e grãos — e se tornaria tão reconhecido que teria ajudado o presidente da Argentina, Juan Domingo Perón, a desatar nós de exportação bovina entre aquele país e a Líbia. Como os tempos eram incertos, o ex‐presidente, precavido, ofereceu a Homero, em vez da venda, o arrendamento da propriedade. Masino aceitou, sob a condição de que o piloto fosse dispensado. Não queria gente de fora troteando por lá. Negócio fechado.

De volta ao Brasil, Homero procurou o general Bandeira Coelho para apressar a documentação junto à Sudam. Tinha ânsia em tomar posse da fazenda do ex‐presidente, sobretudo pela pressão de Masino. O militar o atendeu amistosamente na própria residência. Homero acreditava que tudo andaria bem antes de ouvir do general que o negócio não poderia ser concretizado. Ao notar que a fazenda era de João Goulart — que se beneficiaria financeiramente com o arrendamento —, Bandeira Coelho se negou a assinar a papelada e mandou Homero procurar outras terras. Ao saber da notícia, Masino ficou desapontado.

O esfriamento do negócio trouxe um problema maior. Os aniversários de João Goulart no Uruguai eram vigiados pelos órgãos repressores do Brasil. Nos anos 1970, fotos das confraternizações em Maldonado seriam anexadas aos arquivos contra Jango, montados pelos serviços de inteligência. Os militares tinham medo de que o ex‐presidente retornasse ao país. Sua liderança ainda era respeitada por boa parte da população.

Com o fim do regime, os arquivos secretos da ditadura correspondentes ao ano de 1972 desapareceram da pasta de João Goulart organizada pelos órgãos de repressão. Seu paradeiro é um mistério. É impossível afirmar se os militares tiveram acesso a uma imagem clandestina daquela criatura cabeluda, estranha ao convívio de Jango. Sem documentos contundentes que esclareçam a história, há apenas um depoimento‐chave de um personagem diretamente envolvido na questão.

Mesmo que os arquivos da ditadura tenham sido destruídos, uma foto familiar sobreviveu ao tempo e foi capaz de desencadear uma tormenta na vida de Tommaso. Orpheu dos Santos Salles, sócio de Homero, teria entregado ao Dops a foto na qual Masino, Homero, Cristina, Bene e Homerinho aparecem abraçados ao ex‐presidente. A imagem enfeitava um móvel na sala do apartamento de Buscetta em São Paulo. Orpheu e os generais ligados a Homero tentariam, assim, se livrar do italiano — e mostrar aos militares que não tinham nada a ver com ele. Àquela altura, eles já desconfiavam de Tommaso, que passava os dias recebendo gente estranha e despachando pelo telefone dos escritórios da firma sem jamais dizer o que realmente fazia.

A foto foi parar direto nas mãos do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um dos mais implacáveis agentes do Dops, reportado como persistente torturador por dezenas de prisioneiros que passaram por sua delegacia. Fleury e a cúpula da repressão não tinham nada contra Tommaso Buscetta. Nem mesmo sabiam quem ele era. Ligados em tudo o que era relacionado a Jango, acreditaram que o italiano pudesse fazer parte de algum grupo comunista disposto a financiar a volta do ex‐presidente ao Brasil — movimento que a ditadura não poderia permitir. Fleury começou a buscar informações sobre “Roberto” sem saber seu verdadeiro nome, muito menos sobre seu passado mafioso e o presente no mercado internacional de heroína. Acreditou estar levantando a ficha de um subversivo europeu. Mirou no que viu, acertou o que não viu.

A frustração provocada pelo distrato do negócio da fazenda pressionou Masino a encontrar uma solução. Ele intuía que Homero entraria em qualquer negócio que propusesse, e tudo indica que tenha forçado o sogro a enfrentar uma nova tentativa. Sabendo que Homero havia recebido a visita de um corretor que lhe oferecera uma fazenda em Echaporã, no interior de São Paulo, Tommaso apelou para o instinto paterno: disse que estava desgostoso com o Brasil e que levaria Cristina para morar com ele no exterior. O velho foi tomado pelo pavor. Em um final de semana, levou Masino, Bene e Homerinho para conhecer o rancho em Echaporã. Masino e o filho ficaram encantados com a fazenda Santo Antônio e seus 4,4 mil hectares, 360 cabeças de gado e diversos animais de montaria. Sem pensar muito, Homero desembolsou 300 mil cruzeiros para dar entrada na papelada das terras — que custariam mais de 1 milhão de cruzeiros —, penhorando a própria casa. Com a promessa de Masino de que cobriria parte da dívida, outros 300 mil, esperava conquistar Bene, que convenceria o pai a ficar no país.

Parecia ter dado certo. Bene e Homerinho tomaram posse da fazenda Santo Antônio e Tommaso visitaria a fazenda diversas vezes ao longo dos meses seguintes. Para ficar mais próximo, saiu da mansão em que morava na avenida Indianápolis, 595, em São Paulo, e alugou dois apartamentos — um para ele e Cristina, outro para Bene e sua esposa, que acabara de chegar de Nova York — em Marília, a quarenta quilômetros de Echaporã. Estava decidido a investir tempo na nova empreitada.

O transporte aéreo de heroína era uma novidade no Brasil, mas já funcionava havia alguns anos em outros países. Um ano antes, em outubro de 1971, Lucien Sarti convidou Helena para mais uma de suas viagens. Juntos, viajaram para São Paulo, Montevidéu, Lima e Cidade do México. Na capital do Peru, o francês se encontrou com Housep Caramian, um correio responsável por fazer a droga voar da América Latina para os Estados Unidos. Lá, combinaram que Caramian colocaria 120 quilos de heroína recém‐chegada da Europa em um avião particular de Sarti. Caramian e um piloto rumaram de Lima com destino a uma pista militar abandonada no deserto mexicano, onde Lucien Sarti, Michel Nicoli e outro homem recepcionaram a carga e a levaram de carro para a Cidade do México. O negócio teria sido feito ali mesmo, com Carlo Zippo, que teria pagado pela droga 840 mil dólares — 7 mil dólares o quilo, valor mais baixo do que se fosse entregue diretamente nos Estados Unidos. Sarti voltou ao Brasil em um voo via Panamá, onde provavelmente depositou o dinheiro.

A ideia de usar o interior do Brasil como entreposto de carga e abastecimento parecia firme. Depois de tomar posse da fazenda em Echaporã, Masino se encontrou com Michel Nicoli no terraço do Edifício Itália, em São Paulo. Tommaso e Nicoli já se conheciam. O francês, nascido em Marselha em dezembro de 1930, era um dos homens de maior confiança de Auguste Ricord. Carteiro desde a adolescência, enveredou para o crime nos anos 1960, dirigindo carros de fuga para uma quadrilha de assaltantes na França. Em 1963, já clandestino em Buenos Aires, importava roupas falsificadas da Europa para revender na Argentina. Sua entrada no tráfico ocorreu aproximadamente em 1966, quando conheceu Lucien Sarti no restaurante El Sol, ponto de encontro de desterrados franceses na capital. Nicoli vivia no Brasil desde 1969 sob o nome de Carlos Collucci da Silveira, um cidadão brasileiro fictício nascido no Rio Grande do Sul. Com o dinheiro que tinha levantado fazendo viagens de leva e traz de heroína, Michel fundou no número 255 da rua Acre, na Mooca, em São Paulo, a empresa Delga Alumínio e Plástico Ltda. As investigações policiais da época não foram a fundo na contabilidade da companhia, mas é provável que a Delga fizesse lavagem de dinheiro. Ao menos dois malotes com dólares sujos viajaram do Rio de Janeiro para Nova York, onde foram depositados na conta da empresa nos Estados Unidos e depois retransferidos para o Brasil como “investimentos externos”.

Tommaso contava com Nicoli para sua nova empreitada. Ele já havia participado da reunião no Copacabana Palace, em agosto de 1971, onde também estavam Carlo Zippo, Lucien Sarti e Christian Jacques David. Sabia trabalhar e estava pronto. Em um depoimento dado ao Dops tempos depois, Nicoli confessaria que conhecia todos os integrantes do grupo, inclusive Buscetta, “elemento de projeção da cúpula da máfia”, e que o havia encontrado “umas quatro ou cinco vezes” no Brasil. Juraria, no entanto, que em nenhuma delas por motivos escusos. Admitia conhecer Tommaso, mas não imputava a ele nenhum crime.

O distrato do negócio com Jango parecia ter trazido mau agouro ao supersticioso Tommaso. Março, mês em que estivera com o ex‐presidente brasileiro no Uruguai, era período de embaraço na história siciliana. Por duas vezes, em séculos distintos, o povo da ilha tentou uma revolução pela independência contra estrangeiros dominantes. Fracassara em ambas. O mês que marcava o começo das guerras para os povos europeus antigos faria seus estragos naquele ano bissexto de 1972.

***

“Cosa Nostra no Brasil: a história do mafioso que derrubou um império” chega às lojas nesta semana. Clique aqui para comprar.

Categorias
Literatura

Por que ‘O Alquimista’ é um fenômeno nos EUA?

“O Alquimista”, de Paulo Coelho, é um livro curioso. Quase todo o mundo diz que odeia, pouca gente diz que leu. Mas muita gente comprou e ainda compra o livro — pelo menos nos Estados Unidos. Entra semana, sai semana, o livro de Coelho aparece na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Em outubro, completou oito anos na lista, feito que nenhum outro escritor alcançou. Na versão mais recente, da primeira semana de novembro, “O Alquimista” ainda está lá, rondando o top 10 em exemplares vendidos, como na semana anterior, na anterior, na anterior… Paulo Coelho seria o Romero Britto das letras: criticado aqui, sucesso lá.

Mas “The Alchemist” é um livro realmente curioso: embora continue vendendo bem nos Estados Unidos, achar algum estudioso de literatura brasileira no país que se dispusesse a falar sobre ele foi tarefa dificílima, com zero porcento de aproveitamento. De um professor na Universidade da Flórida: “Ontem uma estudante do Equador disse que tinha o livro e o havia lido. Posso relatar uma história de quando conheci Paulo Coelho (um jantar na casa dele). Ele me perguntou: ‘Você não leu meus livros, né?’. E eu respondi: ‘Não’. Ele continuou: ‘Não importa’. Não estudo muito ficção, muito menos o Senhor Rabbit. E se você tiver algo a ver com a Rede Globo: não, obrigado”.

Uma professora do Novo México, indicada pelo professor da Flórida, também não podia falar. “Não sou especialista em Paulo Freire”, lamentou. Outro estudioso foi bem sincero: “Não tenho muito interesse nem experiência com a obra do Paulo Coelho. Boa sorte no seu projeto!”. Mais uma negativa na sequência, de uma professora também da Flórida, mais detalhada: “Não falo sobre Paulo Coelho porque considero que seus livros são de autoajuda, mal escritos e mal traduzidos. Sei que um professor de religião que trabalhava aqui e usava Paulo Coelho como um profeta da saúde e da riqueza individual na ascensão da crise econômica e da cultura neoliberal. Como Jonathan Livingston Seagull, acho que o trabalho de Coelho é popular porque oferece às pessoas respostas fáceis para as perguntas difíceis da vida. É isso pra mim”.

Em entrevista ao UOL, o próprio Paulo Coelho tampouco foi muito esclarecedor ao tentar explicar o sucesso do seu livro nos Estados Unidos. “Acho que a história do ‘Alquimista’ é a história de todos nós. Descontadas as diferenças culturais, somos muito parecidos em nossas emoções”, disse, sucinto. Para tentar entender o que é que esse livro tem, a única alternativa possível foi deixar de ser uma pessoa que fala mal de Paulo Coelho sem ter lido seus livros e virar uma pessoa que fala de Paulo Coelho com conhecimento de causa. É uma transformação rápida: “O Alquimista”, mesmo em inglês, é daqueles livros que se lê em poucas horas.

Como numa fábula, a trama é simples, os personagens — salvo pouquíssimas exceções — não têm nome próprio (são “o menino”, “o inglês”…) e o que mais importa é a mensagem. Santiago é um pastor que tem um sonho recorrente com as pirâmides do Egito. Um dia, encontra um velho que lhe conta sobre a missão pessoal de cada um, aquilo que sonhamos em fazer, mas que costumamos deixar pra lá pelas pressões da vida quando crescemos. A missão de Santiago seria encontrar um tesouro nas pirâmides. Ele tem, então, duas opções: continuar com seu rebanho e levar uma vida previsível, cansando-se de tudo em alguns anos, ou jogar tudo pro alto e ir para o Egito atrás de sua missão. Não parece uma tarefa fácil, mas se você for atrás de seus sonhos, diz o livro, o mundo te ajudará a chegar lá.

Para que o livro continue, Santiago, é claro, escolhe ir para o Egito. É nessa jornada que encontra o tal alquimista do título, que o ajudará a terminar sua jornada e o ensinará lições sobre o mundo e a vida — mas não sobre como fazer ouro, pois essa não é a missão de Santiago. Em síntese: vá atrás dos seus sonhos e tudo aquilo que você deseja pode se tornar realidade se você se empenhar e souber ouvir os sinais que o universo te dá. Paulo Coelho estica a fábula por páginas e páginas, mas a moral é bem conhecida: se você quiser muito que algo aconteça, o universo vai te ajudar. Com força de vontade, tudo é possível.

Não chega a ser um livro tão ruim, mas tanto a forma quanto o conteúdo são tão, tão simples, que “O Alquimista” faz mais sentido para crianças, como historinha para ser lida antes de dormir com uma lição de moral otimista. No prefácio do livro, numa edição comemorativa, Paulo Coelho diz que “O Alquimista” não vendeu muito no início. Lentamente, com o boca a boca, os números começaram a crescer. Nos Estados Unidos, a febre começou quando Bill Clinton foi fotografado segurando um exemplar. Depois, celebridades como Will Smith começaram a citá-lo como um de seus livros favoritos.

Escolher “O Alquimista” como livro preferido é uma resposta de miss, estilo “desejo a paz mundial”. Você passa uma imagem de quem tem um bom coração. “O Alquimista” é um incentivo ao sonho americano de “se você trabalhar você chega lá”, uma antecipação de fenômenos de autoajuda como “O Segredo”, mas em roupagem de literatura. Ao escrever uma fábula, Paulo Coelho fez um livro motivacional com menos estigma do que um “Quem Mexeu no Meu Queijo” e que não fica datado — fábulas não envelhecem. Não é um livro estudado por acadêmicos, ou o livro que você vai deixar em cima da mesa pra impressionar seus convidados, mas é fácil de ler e, se você estiver nesse espírito, reconfortante. Respostas fáceis para questões difíceis, como disse uma das professoras que não quis dar entrevista. Quem não quer isso? Por isso, semana que vem, pode apostar, “O Alquimista” ainda estará na lista dos mais vendidos.

Categorias
Cinema

Doutor nem tão Estranho assim

Tudo que “Doutor Estranho” tem de esquisito está no nome. Se fosse uma comida, o filme, que estreia na quinta (3), estaria mais para um prato que você comia na infância do que para um de um restaurante de vanguarda. Num ano cheio de filmes cheios de personagens, com vários heróis (ou vilões) eutando juntos ou uns contra os outros, “Doutor Estranho” chama a atenção por ser, de certa forma, mais tradicional. É um filme sobre as origens de um herói só: o Doutor Estranho do título — sua versão do clássico “tio Ben + mordida de uma aranha radioativa” que já vimos mil vezes.

No início da história, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um cirurgião tão brilhante quanto arrogante. Tempos atrás, teve um romance com Christine (Rachel McAdams, infelizmente desperdiçada), que naufragou por causa de — tudo leva a crer — seu ego inflado. Stephen trata seus colegas como inferiores e seleciona a dedo os casos que pega: têm que ser difíceis, para serem dignos de seu tempo, mas não tão difíceis a ponto de significar uma possível mancha em seu currículo. Sua vida é operar — e gastar o dinheiro com relógios, carros, um apartamento incrível em Nova York –, até que ele sofre um acidente de carro que destrói suas mãos.

Christine, a clássica ex-namorada compreensiva que dá apoio ao herói atormentado, lhe diz que a vida continua. Ele não pode mais salvar vidas com seu bisturi, mas certamente pode arranjar outras formas de fazê-lo, afirma, prevendo o resto da trama. Obcecado, Strange ouve falar que há uma cura possível em Catmandu, no Nepal. Lá, ele conhece a Anciã (Tilda Swinton), uma maga que, com seus discípulos, protege a Terra de forças do mal. Um de seus alunos (Mads Mikkelsen), porém, vai para o lado negro da força, rouba uma página de seu livro secreto de rituais, e tenta colocar o mundo nas garras do supervilão Dormammu.

Stephen quer aprender magia só para curar as mãos e, no começo, não liga muito pra essa história de salvar o mundo. Bom, como essa história termina você já deve saber mesmo sem ter visto nenhum filme de super-herói. “Doutor Estranho” é um filme clássico desse gênero, sem grandes surpresas, mas com muito mais cores e visuais saídos de uma viagem de ácido. É “A Origem” elevado à enésima potência, com muito mais psicodelia. Visualmente, é interessante — o tipo de filme que fica melhor numa sala de cinema, e no qual o uso de 3D não é completamente desnecessário.

Depois de ver Apocalipse (dois, igualmente horríveis: o de “Batman vs Superman” e “X-Men”) e Magia (“Esquadrão Suicida”), Kaecelius, o vilão mais proeminente de “Doutor Estranho”, é uma alegria. É bom ver a cara dele e o ator atuando (parece uma coisa óbvia, mas não é). Também é possível entender qual é seu plano e qual é sua motivação (novamente: nem todo vilão cumpre esses requisitos que parecem básicos). É interessante também ver a história de Mordo (Chiwetel Ejiofor), um vilão nos quadrinhos, mas parte dos discípulos da Anciã, lutando pelo bem nesse filme. Dá pra ver que é um filme construído com o futuro em mente.

Strange também é bem construído e tem um bom arco: de médico metido a vítima desesperada, passando por cético que só acredita na ciência até se tornar um super-herói, disposto a arriscar seu pescoço pela humanidade. Apesar dessa jornada ser meio rápida (afinal, o filme não é tão longo), cada etapa do seu percurso faz sentido. Benedict Cumberbatch, acostumado a fazer papéis de gênios hiper-racionais, mostra aqui seu carisma e chega até a fazer umas piadinhas — é um filme com referências bem pop, que chega a citar Beyoncé.

Mas apesar do visual bonito e de ser um filme competente, “Doutor Estranho” não se diferencia muito de outros filmes de super-heróis. Tem a mulher doce e inteligente, mas pouco desenvolvida, a figura sábia que ensina tudo o que o herói sabe, o vilão todo poderoso, a cidade destruída, um portal no céu. O que mudam são os detalhes. Não é um problema, nem todo prato precisa de ser vanguarda — familiar também é bom. “Doutor Estranho” só não é lá muito memorável. No fim das contas, o filme não é tão estranho assim.

Categorias
História

Poesia e fome dos modernistas na preservação de Ouro Preto

Reza a lenda que foi mais ou menos assim: depois de passarem o dia subindo e descendo ladeiras, tropicando em capistranas escorregadias e parando para observar passarinhos e folhagens, altares e oratórios, os dois burocratas enfim chegam ao restaurante do Hotel Tóffolo, situado na rua São José, 72, uma das poucas casas de pouso da Ouro Preto de meados dos anos 1940. Estavam esgotados e, além disso, preocupados com o que viram: parte do barroco mineiro, se nada fosse feito, estaria com os dias contados.

Com pesar, um dos funcionários, Manuel Bandeira, membro do conselho consultivo do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPAHN), constatava que a antiga Vila Rica era toda “cinza e desgosto”. Também aflito, seu companheiro de versos, carimbos e circulares, Carlos Drummond de Andrade temia que os muros brancos que tudo viram e reviram caíssem não só no esquecimento, mas literalmente. A questão a ser resolvida naquela noite, contudo, era de ordem mais imediata: estavam, os dois modernistas, completamente famintos.

Mas sucedeu que um aspecto do passado que poucos gostariam de ver preservado – a conservação de carnes em gordura animal, uma vez que os refrigeradores ainda não eram acessíveis – impossibilitou a tão ansiada refeição dos poetas. Por não terem avisado com a antecedência devida que gostariam de cear ao hoteleiro, o italiano Olívio Tóffolo, restou o encabulado anúncio de que não haveria jantar.

Não há registros sobre a reação imediata dos dois, mas é de se supor que felizes eles não ficaram. Como Bandeira não estivesse em condições de reclamar – ele se hospedava num esquema de permuta, trocando exemplares de seu “Guia de Ouro Preto”, lançado em 1938 por encomenda do SPAHN, por uma cama no hotel –, coube a Drummond expressar o descontentamento da dupla.

Nascia ali o poema “Hotel Tóffolo”, publicado originalmente em 1951 no livro “Claro Enigma”:

“E vieram dizer-nos que não havia jantar.

Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos.

Como se a cidade não nos servisse o seu pão de nuvens.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior e só pretendemos a mesa.

Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.

Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia.”

[imagem_full]

Ouro Preto. Crédito: Daniel Maia
Ouro Preto. Crédito: Daniel Maia

[/imagem_full]

Em 1893, a nascente república brasileira decidia que Minas Gerais precisava de uma nova capital. Os motivos eram muitos, desde disputas políticas entre Juiz de Fora e Ouro Preto, passando pela necessidade de descentralizar a economia do Estado e mesmo de dissociar o núcleo administrativo do forte simbolismo colonial da cidade do ouro. Ficou resolvido que em Curral del-Rei, antigo arraial próximo a Sabará, seria erguida a moderna capital. Em 1897, Belo Horizonte substituía Ouro Preto como principal centro do Estado.

As coisas já não iam bem na antiga capital. Como escreveu Manuel Bandeira no “Guia de Ouro Preto”, as ruas e prédios da cidade eram constantemente descritas por viajantes europeus como “devastadas” e “arruinadas”. Com a perda do status político, muitos deixaram a cidade, abandonando ao tempo os casarões e os sobradinhos – em pouco mais de uma década, estima-se que a população decresceu 45%. Foi nessa época, mais precisamente no ano de 1915, que o jovem Olívio Tóffolo realizou seu temerário investimento e comprou os dois andares da casa de número 72 da rua São José.

Como quem coordena a composição das mesas de uma festa literária, vai narrando Gracinda, a atual hoteleira do Tóffolo: “A mesa 6 é a do Bandeira; na mesa 8 Cecília Meirelles começou a escrever o ‘Romanceiro da Inconfidência’; ali, no fundo, o pintor Guignard tomava seus conhaques e rabiscava desenhos, era um sujeito muito simpático”. A parede do bar, além do poema impresso de Drummond, ostenta também uma variação do painel “Os cavalos”, presente do mestre japonês Yoshiya Takaoka, outro artista que se apaixonou por Ouro Preto e pela hospitalidade dos Tóffolo.

A fachada do Hotel Tóffolo no livro de desenhos de Manuel Bandeira. Crédito: Guilherme Aguiar
A fachada do Hotel Tóffolo no livro de desenhos de Manuel Bandeira. Crédito: Guilherme Aguiar

A octogenária de cabelos brancos e modos despreocupados, nora de Olívio Tóffolo e que desde a morte de Rodrigo, seu marido, é quem toca o hotel, força um pouco mais a memória: “O Olavo Bilac também morou aqui uns meses, muito antes de eu nascer; o arquiteto Lúcio Costa, colega do Niemeyer, era presença constante, e perto da porta lateral foi onde se sentava Vinícius de Moraes: dizem que ele queria se ausentar da cidade grande depois de 1964”.

As linhas de Drummond, atrevimento do poeta à parte, honram a família. Gracinda enche a voz para declamar o poema e não se cansa de recontar a história aos hóspedes dos dias de hoje. “Aqui era o point de antigamente”, diz.
A matrona faz questão de sublinhar, contudo, que apesar de popular o ambiente tratava-se de um recinto “familiar”. “É estranho imaginar, mas aqui se tocava ópera na vitrola. Em que bar se escuta ópera hoje em dia?”, questiona. E o local segue familiar: no carnaval, quando as ruas são tomadas por multidões e, como diz a hoteleira, por “coisas que a gente nem sabe”, o acesso ao bar é restrito aos hóspedes e vedado aos demais foliões.

Modernistas e burocratas

Dois anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, uma comitiva que contou, entre outros, com Oswald de Andrade, Tarsila de Amaral e Mario de Andrade percorreu algumas das cidades históricas de Minas naquela que ficou para a posteridade como a “viagem de redescoberta do Brasil”.

Ali, onde o barroco é à base do ouro e da pedra-sabão e não do mármore e do bronze europeus, os modernistas pareciam ter encontrado a identidade genuinamente nacional que buscavam. Logo depois da viagem, fundaram a Sociedade dos Amigos das Velhas Igrejas de Minas, grupo que influenciaria na formação do SPAHN, ao qual Drummond e Bandeira logo se vincularam. Após sucessivas trocas de nomes, a instituição chegou ao formato atual, tornando-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN.

O SPAHN tratava-se de um movimento amplo que congregava políticos, arquitetos de renome como o já citado Lúcio Costa, escritores e burocratas (encarnados muitas vezes na mesma figura), cujo objetivo era realizar um primeiro esforço institucional pela preservação do patrimônio e da memória histórica brasileira. Subordinado ao Ministério da Educação liderado pelo mineiro Gustavo Capanema, homem de confiança de Getúlio Vargas e amigo de Drummond, as diretrizes do SPAHN estavam afinadas também aos ideais nacionalizantes que perpassavam as políticas de Vargas, promovendo uma conveniente aproximação com os intelectuais da época.

Em parte por consequência da pressão exercida pelos modernistas ligados ao SPAHN, em 1938 Ouro Preto foi alçada à condição de patrimônio nacional, sendo tombada em todo o seu conjunto.

Embora as atividades mineradoras na região – que, como se viu no caso envolvendo a Samarco, arrasaram Bento Rodrigues, distrito vizinho de Ouro Preto – o tráfego intenso de carros e ônibus e um ou outro excesso estudantil continuem atentando contra as casas que ainda restam, Ouro Preto resiste. Se não é “a cidade que não mudou”, como queria Bandeira, ao menos não sofreu mudanças tão intrusivas quanto as que ameaçam parte do patrimônio histórico de Recife e do Rio de Janeiro, por exemplo.

A outra cruzada de Bandeira e Drummond, em favor da satisfação de seus apetites, também não foi em vão. Gracinda afirma que tempos depois do incidente que os deixou a ponto de comer as mesas do Tóffolo, os poetas puderam coordenar a cozinha do hotel para que ela preparasse o prato perfeito: juntando batata frita e mandioca (“só a antropofagia nos une!”), filé mignon e linguiça calabresa, sem esquecer da farta muçarela derretida em cima, nascia, é o que dizem, o “Véu da Noiva”, iguaria presente em 9 a cada 10 bares do Estado – o que, em se tratando de Minas Gerais, não é pouco.

Categorias
Televisão

Discutindo ‘Black Mirror’ S03E04: San Junipero

A nova temporada de Black Mirror chegou na última sexta-feira no Netflix. Para discutir de forma mais detalhada — com spoilers! — cada um dos episódios do seriado distópico, decidimos fazer uma conversa dedicada a cada um deles. Um episódio por dia, seis dias seguidos.

Leo Martins: Estamos de volta! Depois de um breve intervalo (fiquei doente, faz parte), voltamos para discutir mais um capítulo de “Black Mirror”, o quarto, “San Junipero”. O capítulo conta a história de duas personagens, Kelly e Yorkie, que se conhecem numa festa, se divertem, sentem um clima rolando… Acompanhamos o desenrolar dessa relação até descobrirmos que, na realidade, as personagens são apenas avatares virtuais de duas pessoas vivas, duas senhoras de idade próximas da morte. O capítulo é cheio de nostalgia, referências e consegue discutir diversos assuntos em uma hora. Por esses motivos, eu já posso dizer que ele foi meu favorito da temporada – enfim, um capítulo realmente marcante. E você, Fê? Gostou também? Podemos entregar a coroa?

Fernanda Reis: Sim, também foi meu favorito. Achei a história bem bonita e, talvez pela primeira vez vendo “Black Mirror”, terminei o episódio contente. A história também é bem bolada, não me lembrou nenhum episódio antigo (tem uma temática parecida com “Be Right Back”, falando de como prolongar a vida ou como a tecnologia pode mudar nossa relação com a morte) e foi me surpreendendo. Demorei para entender onde a história queria chegar, apesar de que o episódio dá várias dicas, como a escolha da música “Heaven Is a Place on Earth” (a Salon fez um guia legal de referências assim que não dá pra pegar na primeira vez assistindo). Do que você gostou mais no episódio?

Leo: A lista de motivos para gostar é longa, mas meus detalhes preferidos: você só começa a desvendar de verdade o mistério do capítulo na metade do capítulo, apesar de um ou outro sinal. A construção da primeira meia hora, fazendo o espectador se importar com a relação, é muito bem feita, e quando o elemento futurista/distópico entra em cena, é tudo bem natural e funciona muito bem. O apelo nostálgico funciona muito bem e achei todas as escolhas – trilha sonora, roupas, cores, detalhes de cultura pop – muito acertadas. E esse apelo também funciona como uma forma de metalinguagem ou até mesmo crítica à nostalgia: Kelly, no mundo real, chega a falar com desdém sobre isso. E é uma história de uma hora que consegue discutir sexualidade, imortalidade, futuro, legado e várias outras questões de forma inteligente e bonita. A atuação das duas atrizes, Mackenzie Davis e Gugu Mbatha-Raw, também merece destaque. Sobre o final contente, quero voltar ao assunto já já, porque não sei se ele é tão bondoso quanto parece…

Fernanda: Quando comecei a assistir fiquei com um pouco de medo de que o episódio fosse ser algum tipo de versão de “A Casa do Lago”, aquele filme com a Sandra Bullock e o Keanu Reeves em que eles dividem a mesma casa em tempos diferentes, sabe? Tenho um pouco de pé atrás com viagem no tempo em histórias, acho que muitas vezes é um recurso mal utilizado. Mas achei a ideia muito boa, é um pouco da tecnologia do especial de Natal, em que você consegue clonar a consciência da pessoa e colocar num outro lugar, mas usada para o bem. O dilema da Kelly é muito bem construído: será que ela deveria seguir o marido e a filha, apesar de achar que não existe nada após a morte, ou quebrar essa promessa antiga e viver esse novo amor? Mas queria voltar logo à questão do final, porque estou curiosa pra saber o que você achou. Li umas teorias por aí e quero saber se é disso que você está falando…

Leo: Bom, a gente já avisou que tem spoilers, né, mas não custa avisar de novo. A partir daqui, muitos spoilers sobre o final.

Minha impressão sobre as cenas finais: apesar de parecer um final feliz em que as duas estão juntas e felizes em San Junipero, fiquei com a sensação de que a Kelly não foi. O jeito que ela pede a eutanásia é misterioso, mas dá a entender que ela quer descobrir o que há do outro lado — San Junipero ela já conhece bem. Em nenhum momento entre a briga feia entre as duas e o retorno inesperado há um sinal de que ela mudou de ideia. E quando a Yorkie vai buscá-la na versão virtual, tudo me pareceu estranho: ela não fala nada, elas saem para curtir, fim. Mas e se o sistema não criou uma Kelly para a Yorkie ser feliz na sua versão de “eternidade”? Não seria bom para a empresa que cuida da cidade virtual ter uma pessoa infeliz depois de uma briga feia daquelas do outro lado, imagino. Tô viajando demais ou faz algum sentido?

Fernanda: Era mais ou menos essa a interpretação que eu tinha visto. Mas eu interpretei o final da maneira mais óbvia mesmo. Eu acho que Kelly não acredita que haja alguma coisa depois da morte, mas ela tinha se preparado para não ir para San Junipero com o marido dela porque ele tinha feito essa escolha acreditando que ia se encontrar com a filha deles. Ela não achava isso, mas fez essa escolha por uma questão de lealdade, talvez. Então não achei que ela queria descobrir o que tem do outro lado. Também não sei se o sistema tem essa capacidade de criar pessoas. Porque se fosse assim você ia poder criar sua própria cidade, trazer seus amigos (a Kelly poderia trazer o marido e a filha, por exemplo). Acho que você vai pra San Junipero e convive só com quem está lá, por isso a Yorkie insistiu pra Kelly ficar. E bem no fim aparece aquela máquina colocando duas luzinhas uma do lado da outra, ou algo assim, dando a entender que tem duas pessoas novas ali juntas em San Junipero. Talvez tenha sido uma pegadinha dos roteiristas… Mas depois do terceiro episódio e seu final horrível, acho que prefiro acreditar no final feliz também hahaha.

Leo: É, talvez seja melhor mesmo acreditar que o final foi assim, apesar de achar que nos dois casos o episódio continua bonito, cada uma com sua crença e seus motivos para ir ou não para San Junipero. Uma frase da Kelly, em tom irônico, me marcou bastante: “uploaded to the cloud… sounds like Heaven”. Agora, eu gostei bastante dos detalhes de ambientação de cada ano: o começo, em 1987, mostra o Max Headroom na televisão, e essa é uma das histórias mais bizarras que eu já vi; a Alanis marcando os anos 90; a melhor música da Kylie Minogue marcando 2002 – e os fliperamas evoluindo junto. Esses detalhes junto com as cores, os neons, as roupas, a fonte mudando em cada “uma semana depois”, tudo isso ajuda na hora de acreditarmos e discutirmos se, bem, se tivéssemos essa opção, será que iríamos querer viver nessa vasta eternidade? É possível não querer ir para San Junipero depois de testá-la por cinco horas, todo sábado?

Fernanda: Achei legal que você reparou nas fontes, porque só fui reparar nisso depois que um texto me chamou a atenção. Mas gostei muito de todo o cenário mesmo, eles conseguiram marcar a mudança de tempo sem obviedade — e essas músicas todas que você apontou têm tanto relação com o ano quanto com a temática do episódio (“não consigo tirar você da cabeça”, por exemplo). Eu acho possível, sim, não querer ir para San Junipero, tanto que aquelas pessoas que vão no Quagmire piram pra conseguir sentir alguma coisa. Depois de um tempo deve ser bem tedioso viver aquela vida, frequentando aquela mesma boate, encontrando as mesmas pessoas, morando sempre naquela cidade festeira. Também acho válido o dilema da Kelly, porque essa vida eterna que prometem pra ela não tem as pessoas que ela mais amava. Vale a pena encarar uma eternidade dessas? Vivendo uma vida que não é aquela que você passou sua existência toda construindo? Eu acho que não iria pra San Junipero, na verdade. Você ia querer viver essa eternidade?

Leo: De jeito nenhum! No fim, há uma discussão quase religiosa sobre eternidade. É importante lembrar que o Eterno é, na verdade, aquele que não só existe para sempre, como sempre existiu, sem início ou fim. A eternidade oferecida em San Junipero é um fragmento de realidade, um punhado de doses nostálgicas para que você não se sinta sozinho, nem eliminado no mundo – o medo de desaparecer que muitos sentem, sendo que no fim todos viemos ao mundo para morrer e, quem sabe, descobrir que essa eternidade sem início ou fim realmente existe. Viver em pedaços esparsos de felicidade não me parece uma boa eternidade.

Categorias
Televisão

Discutindo ‘Black Mirror’ S03E03: Shut Up and Dance

A nova temporada de Black Mirror chegou na última sexta-feira no Netflix. Para discutir de forma mais detalhada — com spoilers! — cada um dos episódios do seriado distópico, decidimos fazer uma análise dedicada a cada um deles. Um episódio por dia, seis dias seguidos.

Contei à minha mãe, num dia desses, que era melhor colocar uma fita adesiva sobre a câmera do seu computador, por questões de segurança. Afinal, é possível que um hacker se aproveite da câmera descoberta para espionar o que ela anda fazendo pela casa. Ela pensou um pouco e disse: “Mas por que um hacker ia querer filmar a minha casa?”. Certo, talvez nada de especialmente incomum aconteça na sua casa, mas não é porque a situação não seja particularmente inusitada que você gostaria que alguém a filmasse. Ligado sobre a mesa, na cama, no sofá, o computador é um observador íntimo do seu cotidiano. Pensar que alguém pode usá-lo para invadir sua privacidade é uma ideia aterrorizante. E é sobre essa ideia horrível que “Black Mirror” se debruça no terceiro episódio da terceira temporada, “Shut Up and Dance”.

Kenny (Alex Lawther) é um adolescente comum. Trabalha numa lanchonete e mora com a mãe e a irmã – com quem não quer dividir seu computador. Computador é pessoal, né. Mas num dia qualquer, alguém (não sabemos quem) o filma se masturbando na frente do computador e lhe manda o vídeo num e-mail com uma ordem: passe seu número de telefone ou seu vídeo será enviado para todos os seus contatos. Como dirão mais pra frente, masturbar-se em frente ao computador não é esquisito. Não é ilegal. Mas a sensação de vergonha de se ver exposto assim frente a seus conhecidos é suficiente para que Kenny passe o número.

“Shut Up and Dance” é uma história de suspense que lembra bastante “White Bear”, episódio de uma temporada anterior em que uma mulher é perseguida e, em vez de receber ajuda, é filmada por todo o mundo que encontra – nos sentimos mal até que há uma revelação no final. Durante o episódio, Kenny vai recebendo dos desconhecidos desafios cada vez mais difíceis de cumprir: começam pedindo que ele pegue um bolo, entregue por outra vítima de chantagem, e leve a um endereço, e chega a um ponto em que pedem para que ele cometa crimes.

Kenny é uma figura simpática, muito pela atuação de Lawther, com quem é possível se identificar. A situação em que ele é colocado é difícil: quão longe ele deve ir para preservar sua honra? Será que não era melhor ele ceder logo à chantagem e se ver livre de tudo isso? Será que não é melhor conviver com a vergonha de ter a intimidade exposta do que com a culpa que esses desafios que lhe impõem vão trazer?

Em tempos em que hackers invadem os computadores de pessoas para expor informações pessoais e fotos, por exemplo, são questões e medos que estão por aí. Aconteceu com atrizes brasileiras, como Carolina Dieckmann, que teve fotos em que aparece pelada expostas na internet. Aconteceu com atrizes americanas, como Jennifer Lawrence, que passou pela mesma situação pouco tempo depois. Aconteceu neste ano com a comediante Leslie Jones. Nesta semana mesmo um hacker foi condenado por pedir 300 mil reais à primeira-dama Marcela Temer para não vazar suas fotos íntimas e áudios depois de clonar seu celular.

Além de fotos, e-mails e documentos também são hackeados com frequência – de tempos em tempos o Wikileaks solta na internet informações que as pessoas queriam esconder (Hillary Clinton que o diga). O assustador é que poderia ser você – afinal, nesse episódio, a tecnologia é bem próxima da que temos hoje.

O final é um dos mais pessimistas de “Black Mirror”: Kenny, a tal figura simpática, estava se masturbando enquanto via fotos de crianças (uma interação que parecia fofa dele com uma menina, no início do episódio, ganha outra conotação no final). E todos os desafios que ele cumpriu foram em vão: não importa que ele tenha feito tudo que eles pediram, o vídeo foi divulgado mesmo assim. Ele termina o episódio destruído, arrasado com aquilo que teve que fazer para tentar escapar da vergonha — mesmo que o vídeo tivesse sido deletado, já não haveria mais final feliz para ele.

Não fica claro por que os chantagistas misteriosos fizeram isso com Kenny: foi uma tentativa de justiça com as próprias mãos? Foi sadismo? Era justificável punir Kenny dessa forma por aquilo que ele fez (questão proposta por “White Bear” também)? Nesse episódio de “Black Mirror”, fica claro que não é a tecnologia a vilã da história – somos nós, e o que fazemos com ela.

Categorias
Televisão

Discutindo ‘Black Mirror’ S03E02: Playtest

A nova temporada de Black Mirror chegou na última sexta-feira no Netflix. Para discutir de forma mais detalhada — com spoilers! — cada um dos episódios do seriado distópico, decidimos fazer uma conversa dedicada a cada um deles. Um episódio por dia, seis dias seguidos.

Fernanda Reis: Depois de um primeiro episódio todo em tons pastel e mais engraçado e otimista que a média, “Black Mirror” engatou uma fábula de terror, com um tom bem diferente. Em “Playtest”, a série nos apresenta a uma figura assustadora com corpo de aranha e cara de pênis — uma representação daquilo que o protagonista, que testa um jogo de realidade virtual, mais teme na vida. Talvez porque eu não seja muito fã de terror, pra mim, o episódio foi um pouco esquisito. Tanto a premissa quanto a execução não me animaram muito. O que você achou, Leo?

Leo Martins: Olha, eu gosto de algumas ideias do episódio: o conto de terror que tem início, meio e fim, a mistura de videogame futurista com elementos de terror clássico (casa abandonada, criaturas bizarras etc) e simpatizei com o personagem. Há outros detalhes interessantes, como o “gênio dos games” que aparece e lembra, em alguns momentos, o personagem do Oscar Isaac em “Ex Machina” e uma boa discussão sobre fugir dos seus problemas, doença, família etc. Mas, no fim, a escolha de diversos plot twists me incomodou. Por que ele foi esquisito pra você?

Fernanda: Eu gosto mais de “Black Mirror” quando sinto alguma conexão com as questões que ele propõe — do tipo “o que eu faria se eu tivesse a possibilidade de trazer alguém de volta dos mortos” ou “o que eu faria se eu pudesse saber a verdade sobre o que aquela pessoa está me falando”. Nesse caso, não senti isso nenhum momento. Desde que o Cooper vê uma oferta de uma empresa de games para testar um jogo por muita grana, num aplicativo de “trabalhos estranhos”, eu soube que algo ia dar muito errado e que eu, com certeza, não iria. A cada decisão que ele tomou eu pensei “péssima ideia”, a escalada foi bem previsível pra mim até aquela sequência de viradas na história bem no fim. Esse episódio não me fez refletir em nada, não acho que tem muito pé na realidade — e isso pra mim é a melhor parte de “Black Mirror”. Você tirou alguma coisa dessa história ou foi entretenimento puro?

Leo: Entretenimento puro, certeza. E, é verdade, mesmo eu não tendo gostado tanto do primeiro capítulo por diversas questões que já discutimos, ele me fez questionar e refletir — ou pelo menos debater com outras pessoas — questões muito mais ligadas ao nosso cotidiano. Nesse sentido, e pensando em tudo que “Black Mirror” já produziu, “Playtest” foge um pouco da regra de causar aquela angústia, o sentimento de que estamos caminhando para um precipício tão comum em outros episódios. Ele funciona como entretenimento sem grandes mistérios. E é tão entretenimento puro que, oras, aquele jogo nem faz muito sentido, né? Não há objetivos, não há nada nele que me lembre um jogo de verdade.

Em vários momentos na parte da casa eu lembrava do “P.T.”, o jogo da franquia “Silent Hill” que nunca vai existir: há o elemento de não saber de nada, de ter que explorar, mas no jogo, você ia aos poucos descobrindo detalhes, repetindo movimentos, tudo de forma muito misteriosa e assustadora. Esse jogo que o Cooper jogou não tem nada disso, coitado. Talvez isso tenha dificultado qualquer grau de reflexão também: os elementos mais sensíveis do capítulo — a morte do pai, a fuga da mãe — são tratados em pequenas pílulas, em breves momentos, enquanto aranhas gigantes e truques da mente ocupam boa parte do capítulo.

Fernanda: Não acho que seja um problema ser só entretenimento, apesar de que acho que “Black Mirror” é melhor quando critica alguma coisa ou coloca uma sacada nova sobre uma tecnologia que a gente usa hoje. Mas “Playtest” me pareceu mal construído. Aquela introdução antes de ele chegar ao jogo me pareceu muito longa e pouco necessária pra história. A cena dele no avião, toda a história dele com o aplicativo de encontros… Demora muito tempo pra chegar ao momento de terror da história e não acrescenta muito à história, não vi muito desenvolvimento do personagem. Tudo acontece muito lentamente, mesmo o começo da experiência dele com o jogo de realidade virtual, e de repente é acontecimento atrás de acontecimento de um jeito que parece um pouco “vamos surpreender a galera aí” mais do que um plot twist inteligente, bem feito.

Leo: E tem o agravante de que, a partir do momento em que ele entra no jogo, na realidade virtual que tudo pode não ser real, eu passei o resto do capítulo esperando a “sacada”. Fica aquele clima de que vai ter algum plot twist usando a divergência entre virtual e real. E realmente tem, só que tem tanto, de tantas formas, que perde o sentido. Não é um tipo de plot twist bem construído e amarrado como, por exemplo, em “Primer”. O que você achou da sequência do final, até o final mais mórbido possível?

Fernanda: Não gostei, não. Pra mim, o final teria sido mais forte se fosse aquele segundo, quando ele consegue escapar do jogo meio traumatizado, entendendo os riscos de misturar realidade com ficção, e vai atrás da mãe, quando descobre que chegou tarde demais e que ela está vivendo o pesadelo dele. Descobrir que isso tudo não era verdade e que ele tinha morrido por causa da interferência do celular me pareceu um truque meio barato. O tempo todo era o celular o vilão? E depois que eu descobri isso comecei a ver umas coisas estranhas na história. Ele nem chegou a participar da experiência na casa assombrada? Quando foi exatamente que o celular tocou e ele morreu? O que significa aquela cena de ele encontrando a mãe se não era parte do jogo? Comecei a ficar com várias dúvidas, mas não de um jeito bom. Você gostou do fim?

Leo: Pelo que eu entendi, tudo o que aconteceu a partir do momento em que o telefone toca é invenção da cabeça dele. Ou seja, a mente dele “inventou” a casa (que ele mesmo diz que fazia parte do jogo antigo da empresa, ou seja, ele tinha a referência), a mente dele inventou tudo, até os dois plot twists: ele sendo carregado sem memória e ele encontrando a mãe dele. Entendi assim porque a Kelly, a funcionária, disse que tudo durou menos de um segundo, anotando até que a experiência durou 0,4 segundo no final. Ou seja, metade do episódio foi uma invenção da cabeça dele, um clima meio “Lost”, o que não é um bom sinal. Eu também não gostei do fim, e é curioso perceber que qualquer um dos outros finais seria mais impactante para mim: se o “jogo” comesse a memória dele e ele tivesse uma espécie de síndrome de Alzheimer, uma ironia macabra relacionada ao pai dele, ou se ele voltasse para a casa da mãe e tivéssemos um final mais misterioso, no estilo “A Origem”, sem saber ao certo se aquilo era o jogo ou não. O roteiro preferiu um final mais bruto e impactante, como se precisasse a qualquer custo fechar a história.

Fernanda: Mas então metade do episódio foi um filme que passou na cabeça dele um segundo antes de ele morrer? Nesse caso tudo fica ainda mais sem força. Se não fosse o sinal do celular, ou se ele não fosse ganancioso a ponto de querer ganhar mais dinheiro com a experiência vendendo fotos do lugar, tudo teria terminado bem? Acho bem mais assustador pensar nos perigos da realidade virtual, nos usos que podemos fazer dessa tecnologia, do que pensar que a culpa foi do celular e que o episódio inteiro foi uma alucinação. Se o final era pra ser chocante, o que aconteceu comigo foi o contrário: uma sensação de “fuen fuen fuen”. “Black Mirror” já foi mais inteligente.

Leo: Isso me faz pensar que as duas primeiras temporadas de “Black Mirror” (e o especial de Natal) deixaram o patamar muito alto: sinto que muita gente, incluindo nós dois, esperamos muito dessa temporada, por diversos motivos: a liberdade criativa dentro do Netflix, o número de episódios, o estado atual da tecnologia e da política no mundo todo… É como se precisássemos que “Black Mirror” fosse muito forte e nos desse um chacoalhão. Isso, de alguma forma, acontece no primeiro episódio. No segundo, a série fica mais próxima de entretenimento sem grande reflexão. Será que estamos esperando demais?

Fernanda: Nunca sei muito o que esperar de “Black Mirror”. Pra mim, a série é oito ou oitenta. Não gosto, por exemplo, do segundo episódio — aquele do show de talentos, que é a chance para você ser libertado de uma vida que é só pedalar para gerar energia — nem daquele em que um personagem de desenho animado se candidata a uma eleição. Em compensação, fiquei meses passada depois do primeiro episódio, com a história do primeiro-ministro britânico e o porco. Nessa temporada mais nova sinto a mesma coisa. Gostei bastante de uns, e outros — como “Playtest” — achei fracos. Mas é normal isso acontecer numa série em que cada episódio é independente e quase longo como um filme. Não dá pra acertar todas.

Categorias
Cinema

Não se faz mais comédias românticas como antigamente

Saindo da sessão de “O Bebê de Bridget Jones”, sala cheia em um sábado no shopping, um sentimento estranho, meio nostálgico pairava no ar. Uma lembrança de 2003, 2004, quando assistir a uma comédia romântica no domingo à tarde era um programa comum. Explica-se o estranhamento: as comédias românticas estão em extinção. Pare uns minutos para aceitar esse fato — nem todo o mundo aceita essa afirmação de primeira. “Ah, mas eu vi uma comédia romântica outro dia”, você pode dizer. Repare na data desse filme. É recente mesmo? E depois: tem certeza de que é uma comédia romântica e não só uma comédia ou um drama romântico? Caso a resposta para as duas perguntas seja “sim”, ok, você achou uma exceção. Afinal, as comédias românticas estão em extinção, não completamente extintas.

Dos anos 1980 aos 2000, as comédias românticas viveram uma era de ouro — não só em quantidade, mas em qualidade. “Harry & Sally: Feitos um para o Outro”, de 1989, concorreu ao Oscar de roteiro original; Renée Zellweger disputou a estatueta de melhor atriz em 2002; atores como Tom Hanks e Sandra Bullock, ambos vencedores do Oscar, eram figurinhas fáceis em filmes do gênero. Você sempre podia contar com Meg Ryan ou Hugh Grant, o rei da comédia romântica, para protagonizar outra história em que garoto conhece garota, garoto e garota enfrentam algum empecilho (um deles está num relacionamento, o outro não quer compromisso, os dois não querem arruinar uma amizade), até que garoto e garota descobrem que foram feitos um para o outro e vivem felizes para sempre. Comédias românticas, com algumas exceções, costumam seguir um roteiro básico. Mas seu atrativo não é a previsibilidade, e sim uma sensação confortante de que tudo vai ficar bem.

Tom Hanks e Meg Ryan — que fizeram juntos “Joe Contra o Vulcão” (1990), “Sintonia de Amor” (1993) e “Mensagem pra Você” (1998) — passaram o bastão para Hugh Grant — de “O Diário de Bridget Jones” (2001), “Amor à Segunda Vista” (2002), “Simplesmente Amor” (2003), “Letra e Música” (2007) — e Drew Barrymore , que fez (segura que a lista é longa): “Afinado no Amor” (1998), “Nunca Fui Beijada” (1999), “Como se Fosse a Primeira Vez” (2004), “Amor em Jogo” (2005), “Letra e Música”, “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (2009) e “Amor à Distância” (2010). A comédia romântica deu um último suspiro com Ashton Kutcher, que tem um currículo cheio de filmes do gênero e Katherine Heigl, cuja última comédia romântica no currículo é a mesma de Kutcher: “Noite de Ano Novo”, no distante ano de 2011.

Desde o início da década, caiu muito o número de estreias de comédias românticas. Sim, são lançadas comédias em que há um quê de romance (“Como Ser Solteira”, deste ano, por exemplo) e são lançados filmes românticos que tenham alguns momentos engraçados. Mas um verdadeiro filme do gênero é uma comédia em que a principal trama seja romântica — “Legalmente Loira”, por exemplo, não entra na lista, já que o romance de Reese Witherspoon e Luke Wilson é secundário. São esses os filmes em extinção. Mesmo quando uma comédia romântica é feita, ou ela chega sem estardalhaço (“Será Que?”, com Daniel Radcliffe, que estreou no Brasil dois anos atrás) ou nem estreia por aqui, caso de “Sleeping with Other People”, bom filme com Alison Brie e Jason Sudeikis.

Há vários fatores jogando contra a comédia romântica, que talvez possam explicar porque ela foi deixada de lado. Hoje o foco dos grandes estúdios é fazer filmes que possam virar franquias, se desdobrar em outros muitos filmes. Além dos filmes de super-heróis, da Marvel e da DC, há a franquia de Star Wars, a nova série de filmes do universo de Harry Potter (serão cinco filmes sobre criaturas mágicas), Jason Bourne, 007, Jurassic Park, Jack Reacher… Até “Truque de Mestre” ganhou uma continuação neste ano. Com comédias românticas, isso não é tão fácil: o “felizes para sempre” não é tão legal de ver quanto o caminho até ele. Tem exceções, como Bridget Jones, que chegou ao terceiro filme. Mas são raras.

Hugh Grant e Sandra Bullock em 'Amor à Segunda Vista'
Hugh Grant e Sandra Bullock em ‘Amor à Segunda Vista’

Além disso, comédias românticas — como comédias, de modo geral — são mais difíceis de traduzir, de serem entendidas por outras culturas, que têm outro humor. E o mercado internacional, principalmente a China, é responsável por grande parte dos lucros de um filme. É mais fácil que um “Mad Max”, com pouquíssimo diálogo e muita ação, seja um sucesso internacional do que uma história sobre os percalços enfrentados por um casal jovem e branco em Nova York. Tem também o mito de que só mulheres gostam de comédias românticas. Para atrair também o público masculino, coloca-se às vezes um elemento de ação na trama — caso de “Par Perfeito”, com… Ashton Kutcher e Katherine Heigl. Também pesa a favor dos filmes com mais efeitos especiais e cenas de ação que é maior o atrativo para que as pessoas os vejam na sala de cinema. Um romance pode ser visto tranquilamente em casa, sem que se perca muita coisa, diferente de um “Gravidade” ou “Avatar”.

Mas talvez tudo isso fosse diferente se a geração de Hugh Grant e Sandra Bullock tivesse passado o bastão para atores melhores. Uma comédia romântica depende 100% de química entre os atores e roteiro. Não há efeitos especiais e grandes cenas de batalha para distrair o espectador, como em “Batman v. Superman”. Se os atores não tiverem sintonia, o filme não dá certo. Tom Hanks é puro carisma, Hugh Grant é o charmoso canastrão, Sandra Bullock era a desengonçada mais preocupada com a carreira do que com o amor, Drew Barrymore era a fofa. Ashton Kutcher não tinha essa magia — assista “Sexo sem Compromisso” pra ver. Katherine Heigl tampouco — e ainda foi prejudicada pela fama de antipática. Uma boa comédia romântica tem alguém tão famoso quanto simpático, por quem você torça, com quem você sofra junto. Não era o caso dessa última geração, e depois deles ninguém mais assumiu o trono. Quem poderia fazer isso? Emma Stone, por exemplo, tem carisma pra tanto. Mas quem poderia ser seu par? Zac Efron não é nenhum Hugh Grant.

A última safra de comédias românticas foi tão fraca, que não é bem surpresa que as pessoas tenham um pé atrás com o gênero — atores, estúdios, diretores, público. As boas comédias românticas ficaram nos anos 1990 e 2000. Mas “O Bebê de Bridget Jones” — por mais surpreendente que isso pareça — está aí para provar que com bons atores e um roteiro redondo, o gênero ainda dá um caldo. Nada como uma boa comédia romântica num fim de domingo.

Categorias
Televisão

Discutindo ‘Black Mirror’ S03E01: Nosedive

A nova temporada de Black Mirror chegou na última sexta-feira no Netflix. Para discutir de forma mais detalhada cada um dos episódios do seriado distópico, decidimos fazer uma conversa dedicada a cada um deles. Um episódio por dia, seis dias seguidos.

Leo Martins: Black mirror! Não se fala de outra coisa. Futuro distópico. Crítica social foda. A terceira temporada chegou. Essa primeira conversa é sobre “Nosedive”, o primeiro episódio da nova temporada. Fe, como eu sei que você tem uma certa questão com notas de avaliação, conta um pouco sobre o episódio e suas sensações assistindo.

Fernanda Reis: Acho que muitos episódios de Black Mirror ainda são bem distantes do mundo em que a gente vive — por enquanto não conseguimos rever nossa vida toda como num filme nem fazer uma espécie de clone de alguém que morreu –, e os que mais me assustam, ou me tocam de alguma forma, são esses que têm um pezinho na realidade. Desde que eu descobri que os passageiros também eram avaliados no Uber e que minha nota não era das melhores (não vou revelar o número pra não queimar o filme), trabalhei bastante pra melhorar a minha pontuação, e por isso me senti um pouco (bastante) representada pela trama desse episódio, em que todo o mundo batalha pra melhorar sua nota pessoal com base em todas as interações do dia a dia. E foi meio tenso.

Leo: Foi meio tenso como? Eu também sempre gostei mais dos capítulos que passam mais próximos da realidade — o primeiro de todos, do primeiro ministro britânico, ainda é meu favorito, mas só porque consigo imaginar tudo aquilo acontecendo de verdade. mas no caso do “nosedive”, não sei se você concorda, eu achei que a história ficou muito clara e sem mistérios nos primeiros cinco minutos do capítulo. uma hora de busca por notas melhores, não sei… Achei um pouco demais.

Fernanda: Mas acho que nesse episódio o importante não é tanto o mistério, o que eu acho bom, porque outros episódios dessa temporada tem momentos meio M. Night Shyamalan de “ahá, te peguei, olha aí a surpresa!” que eu achei meio fracos. Nesse eu sabia que a nota dela ia cair e ela ia chegar ao fundo do poço, mas eu queria saber como. Gostei de ver como ela, na tentativa de agradar desconhecidos e ser a pessoa perfeita, foi aos poucos pirando. Vale a pena batalhar pra subir a nota do Uber e forçar a simpatia? Calcular quando postar a foto no Instagram pra ter mais curtidas? Eu pensei bastante sobre essas coisas depois de ver.

Leo: O fundo do poço é realmente bom, e a atuação da Bryce Dallas Howard (gosto demais dela desde “A Vila”) é sensacional, desde aquela cena do começo no espelho até a derrocada completa, a cena do casamento. As cenas de frustração dela são muito boas. Porém achei o formato um pouco exagerado, talvez? Quando ela fala bem do café mas depois toma e faz cara feia, ou até mesmo quando ela cai na lama, num momento meio “Trapalhões”. Mas se o capítulo te causou reflexão, já acho isso bom. No meu caso eu achei um tanto óbvio e sem nenhuma sutileza, e no fim acabei achando um pouco maniqueísta. Acho que eu daria uma nota 2.78. Mas isso de calcular quando postar, se importar com a nota do Uber: você acha isso essencialmente ruim ou só em uma versão distópica como essa?

Fernanda: Não sei! Acho que é bom você ser uma pessoa simpática com quem você não conhece, mas você é verdadeiramente uma pessoa legal se você só é legal porque quer uma nota? Não ter problema você ser falso desde que suas atitudes sejam boas? Não tenho certeza se isso é essencialmente ruim, mas a versão distópica acentua os problemas desse tipo de atitude. Isso às vezes me incomoda em Black Mirror, que a tecnologia seja sempre ruim, que todos os defeitos da internet, dos computadores, da ciência, sejam elevados à enésima potência. Tudo bem, talvez seja a proposta mesmo, mas falta sutileza mesmo. Você já começa um episódio esperando as piores consequências e nove entre dez vezes você está certo. Esse episódio, pelo menos, achei menos pessimista. Tão exagerado quanto os outros, mas um pouco menos pessimista.

Leo: Me incomoda bastante também isso de “a tecnologia é a vilã”. Normalmente eu acho que o problema maior é a humanidade mesmo. E acho que o capítulo só não é muito pessimista por causa daquele final com alívio cômico, extravasado. Fora isso, achei o capítulo bonito em alguns trechos, como quando ela está na estrada a pé, mas no geral esse exagero afeta até as escolhas visuais – é tudo tão exagerado… Mas como um conto quase de terror, podemos dizer que funciona?

Fernanda: Eu acho que funciona, gostei dos contrastes daquele cenário todo pastel, todo feito pro Instagram, em que tudo dá errado. Algo meio “Mulheres Perfeitas”. Costumo ficar mais assustada quando coisas ruins acontecem num cenário que parece perfeito, em que você não espera que algo dê errado, do que quando coisas ruins acontecem numa casa mal assombrada. No caso do segundo episódio eu pensava “eu nunca estaria nessa situação, é óbvio que é uma cilada”. Em “Nosedive” o impacto é maior e eu fiquei mais interessada na derrocada dela, porque me pareceu mais real. Voltando à sua nota 2.78, você acha que foi o pior episódio de Black Mirror até agora?

Leo: Talvez, acho que ele só perde para aquele da segunda temporada, “The Waldo Moment”, que é bem fraco. Sei que você já viu vários dessa temporada nova, mas só vi o “nosedive” e é possível que a fórmula da série tenha se esgotado pra mim: mesmo tendo histórias fechadas em um capítulo de uma hora, o que dá espaço para surpreender e causar espanto, esse formato “distopia para chocar” não me atrai mais tanto, principalmente quando não há nenhuma sutileza — lá vou eu voltar pra esse ponto –, o que diminui meu interesse em ficar refletindo sobre. É tudo tão claro, tão “a tecnologia é do mal, estamos fadados ao caos” que fica complicado. Pra mim, fica parecendo tudo um microuniverso do Vale do Silício, uma coisa meio “o que os fundadores do Google ou o Mark Zuckerberg” gostariam de ver como mundo ideal”.

Fernanda: Concordo com você, e eu senti isso em alguns outros episódios que a gente comenta mais pra frente. Mas com esse não tive essa sensação, porque a tecnologia é, entre muitas aspas, próxima do que a gente já tem. Não é a tecnologia em si o problema, mas o que as pessoas fazem com ela: usar esse status social pra dar vantagens pra alguns e não pra outros, tentar acabar com a vida de quem você não gosta diminuindo o status dela, deixar as amizades e relações reais de lado em nome disso. Nesse caso acho que os vilões somos nós, e por isso achei mais interessante. Colocaria esse episódio bem mais pra cima na minha lista.

Leo: Então qual seria a sua nota precisa dada naquele aparelhinho esquisito para o capítulo?

Fernanda: Quatro estrelas — não é o meu favorito, mas tá acima da média.

Leo: Justo! Amanhã voltamos com “Playtest”.