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Largar tudo e ir morar no mato

“Ano que vem eu quero estar na praia, vendendo minha arte… das coisas que a natureza dá pra gente.” Foi com essa resposta meio desconexa que uma jovem atriz disfarçada de atrasada do ENEM 2013 ganhou a simpatia dos internautas brasileiros e virou ícone de uma juventude, digamos, pouco ambiciosa. Mesmo desmascarada, a personagem Milena ainda aparece na foto de perfil da página “Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga” — criada pela curitibana Dominique Vargas, que trocou de faculdade sete vezes antes de descobrir que sabia fazer humor no Facebook.

Em 2012, Eric Barone morava em Seattle e tinha acabado de terminar o curso de Ciência da Computação quando se candidatou a algumas vagas de emprego. Ninguém telefonou. Desanimado com as pressões da vida adulta, mas acolhido pela namorada e amigos “boêmios”, resolveu fazer sua própria versão do colar de miçangas do povo de Humanas: um joguinho simples que serviria como exercício de programação e nada mais. O passatempo acabou se transformando em quatro anos de autoexílio de apartamento, busca pelo sentido da vida e, graças a uma rotina de trabalho de até 10 horas diárias, no maravilhoso jogo Stardew Valley. Lançado em fevereiro de 2016, o RPG conquistou uma das comunidades mais empolgadas da história do indie e vendeu mais de 1 milhão de cópias só nos dois primeiros meses.

Embora até o horroroso Farmville já tenha explorado a vida no campo, Stardew Valley é uma criatura bem diferente. Com seu jeito amigável, parece ter encontrado o terreno perfeito no coração de uma geração que conhece bem a insatisfação profissional e as perguntas que levam ao caminho da simplicidade. Seria Stardew o jogo terapêutico feito sob encomenda para o novo milênio? Para entender esse fenômeno, conversamos com seu criador, Eric Barone, com desenvolvedores brasileiros que acompanham a comunidade indie e com jovens que decidiram viver mais perto da natureza sem o auxílio de computadores.

Melão, trigo, flor.
Melão, trigo, flor.

Um lugarzinho chamado nostalgia

O protagonista de Stardew Valley tem um privilégio que o próprio Eric Barone, os atrasados do ENEM e milhões de moradores do Brasil em crise não tiveram: uma resposta fácil. Quem oferece a saída de emergência é o avô, numa carta planejada para um futuro em que o “fardo da vida moderna” se tornaria insuportável. A praga “do bem” se concretiza já na cena seguinte, quando encontramos o neto, agora adulto e deprimido, em um dos cubículos de uma grande empresa chamada Joja Corporation. Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo.

[olho]Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo[/olho]

Na conveniente cartinha, nosso herói ou heroína descobre que herdou uma fazenda na cidade de Pelican Town, na região fictícia que dá nome ao jogo. E o remetente já avisa que essa história não tem nada de original: “A mesma coisa aconteceu comigo muito tempo atrás. Tinha perdido de vista o que mais importa na vida… conexões reais com as pessoas e com a natureza. Então larguei tudo e fui para o lugar a que eu realmente pertencia”. De maneiras que talvez só a psicanálise explique, Eric Barone também parece ter buscado refúgio no universo em que se sentia mais à vontade: o exercício que decidiu fazer naqueles dias de desemprego começou como um clone capenga de um dos jogos de videogame que mais assombraram sua infância, o simulador de fazenda Harvest Moon.

Em uma conversa por e-mail e DMs pelo Twitter, em meio à fama recém-adquirida e à falta de tempo, Eric conta que foi o gameplay “simples, doméstico e pacífico” que o atraiu no primeiro título da franquia, lançado em 1996 para Super Nintendo. “A maioria dos RPGs leva o jogador a uma aventura grandiosa e cheia de perigos. Em comparação, ‘Harvest Moon’ era seguro e reconfortante”, relembra. “E tem a ideia romântica de que a vida no campo é mais real, mais natural. Acho que uma parte de mim também buscava isso.”

Gente como a gente. Crédito: Arquivo pessoal
Gente como a gente. Crédito: Arquivo pessoal

É tudo tão familiar que não dá para saber onde as semelhanças entre Stardew Valley e Harvest Moon começam e terminam. A sensação de perder tempo demais com uma atividade ingênua e constrangedora, mas estranhamente prazerosa, é uma delas. Outra está nos ciclos da natureza que regem a plantação de frutas e legumes, a criação de animais e o relacionamento com a comunidade. Cada dia propõe um espaço aberto para que o jogador possa planejar seus objetivos como quiser, apenas aceitando que o fazendeiro, trabalhador que é, dorme cedo e acorda com as galinhas. Cada mês equivale a uma das quatro estações do ano e traz sementes exclusivas, comemorações sazonais e oportunidades imperdíveis de fazer negócio. Por mais idealista que seja, o personagem precisa vender o que produz para sobreviver (ou para ficar rico, mesmo, nada contra).

[olho]Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia[/olho]

Parece natural, também, que as fitas do passado tenham influenciado diretamente a estética da homenagem. Os gráficos de Stardew Valley — que Eric refez várias vezes enquanto suas técnicas evoluíam ao longo do tempo — trazem o que a era 16-bit tinha de mais vistoso. São cores vivas, folhas pequeninas voando com o vento e seres humanos com um rostinho que você não enxerga direito, mas simpatiza bastante. Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia.

Quem acompanhou o trabalho dos desenvolvedores independentes nos últimos anos sabe que o “retrô” não é uma escolha tão incomum: já tinha acontecido em sucessos como FEZ, Braid e Terraria, para citar só alguns. Eric explica que a opção vai além do impacto emocional: “Enquanto a gente envelhece e as novas gerações chegam aos 20 anos, o período que chamamos de ‘retrô’ também vai mudando. Mas tem uma coisa: alguns estilos de arte envelhecem melhor que outros. Gráficos em pixel art 2D, por exemplo, ainda têm uma cara ótima para os jovens de hoje, mas os gráficos 3D da era do Playstation 1 ficaram horríveis”.

Thais Weiller, pesquisadora e game designer que fez parte da equipe dos jogos nacionais Oniken e Odallus, ambos com gráficos 8-bit, vê a tendência também como um caminho necessário para que equipes indie sobrevivam. “Um jogo em pixel art, apesar de ser muito trabalhoso, pode ser feito por uma ou poucas pessoas, como o próprio Stardew Valley. Um jogo 3D ou com pintura digital já envolve mais horas de trabalho e diferentes habilidades, o que torna tudo mais difícil para uma equipe pequena.”

As coisas que a natureza dá

Em Pelican Town, o primeiro contato com a plantação tende a ser modesto e até desastroso: o jogador mais descuidado corre o risco de demorar para entender algumas das mecânicas, já que não há nada parecido com um tutorial. Conversar com os moradores da vizinhança pela primeira vez não é lá grande coisa, embora o personagem possa, se cultivar uma paixão com muito esforço, casar e ter filhos. Pescar também não relaxa ninguém — o minigame difícil rendeu muita reclamação. Nas minas, o herói, munido de espadinha e picareta, pode tanto encontrar tesouros e riquezas quanto sucumbir ao ataque de insetos e morcegos. Muitas dessas experiências meio truncadas, meio vida real, só começam a fazer sentido com a prática e mostram a inteligência do design do jogo.

Pescando ilusões.
Pescando ilusões.

Chamar o protagonista de Stardew Valley de “fazendeiro”, na verdade, não faz jus a seus talentos. Com os ingredientes que se multiplicam já nas primeiras estações, nasce um artesão. Não basta plantar, regar (à exaustão) e colher. Uva e morango vão para os potes de geleia, rabanete e berinjela fazem ótimos picles, leite fresco se transforma em queijo, ovos em maionese — itens que o menu chama de “Artisan Goods”. Peixes, vegetais, farinha e açúcar também se misturam em receitas na cozinha da casa — só não vale carne: Eric é vegetariano e disse não se sentir à vontade com o abate dos animaizinhos. Com recursos como madeira, pedra e fibra, é possível fazer anéis, espantalhos e objetos de decoração. Encontrando diferentes minerais, o personagem se torna um colecionador excêntrico e colaborador frequente do museu da cidade.

A variedade impressionante de flores, frutos e surpresas que Eric Barone criou, sozinho em casa, faz com que ele também ganhe ares de colecionador ou artesão. “Dá pra ver o quanto cada coisinha foi feita com carinho”, diz Thiago “Beto” Alves, game designer da produtora Black River Studios.

Há objetivos maiores que organizam o inventário e guiam as conquistas. Um deles é a reconstrução do Community Center, um espaço comunitário que promete trazer uma vida melhor à pequena população. Mas nem o amor ao próximo é obrigatório: no começo da história, o jogador mais incoerente tem opção de entregar o casarão abandonado à mesma Joja Corporation que o fazia infeliz. Já os festivais e comemorações, inspirados em datas como Natal e Dia das Bruxas, se espalham pelo calendário e levam a comunidade às ruas, às vezes para fazer nada em conjunto, como na apática “Flower Dance”. Na “Stardew Valley Fair”, feira em que produtores locais expõem sua produção, dá vontade sincera de mostrar o melhor da fazendinha aos visitantes.

[olho]Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem[/olho]

Como acontece em aventuras pouco lineares, que deixam o destino à sua escolha e costumam durar mais, Stardew Valley tem muita chance de inaugurar um período de isolamento, o famoso “adeus, vida social!”. Na versão atual, a narrativa principal chega ao fim no começo do terceiro ano de tempo do jogo, mas há registros de jogadores que investiram mais de 400 horas de vida real. Beto conta, rindo, que completou 66 horas em dez dias. Na última vez que chequei, eu estava com 55 horas de jogo.

Entre gamers um pouco compulsivos, parece haver um acordo silencioso: o exagero está permitido quando, no fundo, se entregar a uma jornada como a de Stardew Valley também é um jeito de realizar o sonho de “largar tudo e ir morar no mato” sem sair do conforto da cidade. Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem: “Como jogador, gosto muito de jogos imersivos que me tirem da rotina. Não é que eu esteja tentando evitar minhas responsabilidades, mas gosto de tirar uma folga da consciência normal”.

Selfie nas profundezas da mina.
Selfie nas profundezas da mina.

Menos sarcasmo, mais carinho

Stardew Valley tem a seu favor o charme do passado e as armadilhas do vício, mas esses não são os únicos motivos por trás de seu sucesso instantâneo. Na opinião do game designer Beto Alves, a proximidade entre criador e público é uma das vantagens da cena independente. Pela internet — que ironicamente não existe em Pelican Town, um lugarejo movido a papel de carta e TV de tubo —, Eric Barone conseguiu se manter muito próximo dos futuros fãs. Na fase de desenvolvimento, recheou o blog oficial com novidades redigidas sem cerimônia e seu perfil no Reddit com anedotas e respostas amistosas às perguntas de anônimos. Como se não bastasse, Eric tem usado o Twitter para divulgar novidades, fazer enquetes sobre novos conteúdos e até ajudar jogadores com bugs ou arquivos danificados.

Wizard ✓
Wizard ✓

Toda essa generosidade despertou uma reação igualmente generosa na comunidade virtual. Também no Reddit, fãs chegaram a enviar cópias originais para usuários com menos recursos financeiros ou uma versão falsificada no HD, numa corrente de ódio à pirataria e amor ao desenvolvedor. Em poucos meses, a página no Steam — que também vende a ótima trilha sonora, feita adivinha por quem? — registrou mais de 18 mil resenhas positivas, enquanto os votos negativos não passam de 400.

Voltando à ficção, alguns dos personagens de Pelican Town falam de forma tão gentil, tão direta, tão despida do humor irônico da internet que parecem um pouco anestesiados, meio fora do ar. Seria herança da Nintendo ou apenas um jeito econômico de escrever? “Foi uma escolha consciente. Acho que meu jeito acabou aparecendo”, diz Eric. E aproveita para alfinetar: “Na vida real, não sou muito fã de sarcasmo e piadas internas. Acho que geralmente são uma forma de diminuir os outros”.

Essa abordagem tão pessoal ainda é rara mesmo na cena indie, opina Beto. “Hoje há uma receptividade maior para esse tipo de jogo. Vejo isso pelo impacto que ‘Firewatch’, ‘Her Story’, ‘Life is Strange’, por exemplo, tiveram. Na minha opinião todos eles atingem, cada um à sua maneira particular, questões sensíveis aos jogadores e, por isso, geram um engajamento muito grande.”

Cenas quentes.
Cenas quentes.

Há estereótipos, como o adolescente atlético, o médico hipocondríaco e a mãe preocupada, que aparecem em Stardew Valley para tentar driblar as expectativas do jogador, revelando aos poucos uma personalidade mais rica. Imperfeitos, Pam e Linus mostram elementos sombrios que ajudam a equilibrar o clima alegre da cidade. Ela, que mora num trailer e trabalha como motorista de ônibus, é uma mulher de meia-idade com problemas com o alcoolismo. Ele, que vive em uma barraca de acampamento — único ambiente privado da cidade em que o protagonista consegue entrar a qualquer momento — e às vezes vasculha o lixo dos vizinhos, um dia revela o inesperado: “O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”.

[olho]“O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”[/olho]

Ao contrário do que os mais humanitários pensariam, Eric Barone apoia as decisões de Linus: “Ele está feliz de verdade com a vida que tem. É um lembrete para que a gente não tire conclusões sobre as pessoas antes de tentar entender de onde vieram”. Diante desse conflito, o desafio do jogador é não se sentir cúmplice do inimigo, a própria Joja Corp: se o protagonista tem tanta terra, por que não divide um pouco com o novo amigo que passa frio em sua tenda no inverno rigoroso — vestindo apenas um traje amarelo de homem das cavernas sem calças por baixo?

Linus, me ajude a te ajudar.
Linus, me ajude a te ajudar.

Viver de amor e geleia caseira

Até o começo de 2016, Eric Barone era um desenvolvedor com um currículo vazio que não se imaginava vivendo o dia a dia de um escritório ou trabalhando em equipe — comportamentos que, para muitos, ainda estão ligados a uma carreira sólida. Em seu perfil no Reddit, ele conta que o momento “fundo do poço” veio mais ou menos um ano antes do lançamento de Stardew: em uma reunião de família, sua avó comentou que não acreditava mais que o neto um dia terminaria aquele tal joguinho de videogame.

Hoje, Eric e sua produtora de um homem só, a ConcernedApe, têm propostas de trabalho e projetos para o futuro. “Encontrei meu ‘emprego dos sonhos’, com certeza. Sei que sou muito privilegiado por estar nessa posição e que isso é impossível para muita gente. A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”, pondera.

[olho]”A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”[/olho]

Eric conta que a narrativa de Stardew Valley, além da óbvia inspiração em “Harvest Moon”, surgiu quando notou em si mesmo e nos amigos uma dificuldade de lidar com o “vazio da vida moderna”. Ele não costuma enumerar os elementos que compõem esse vazio, talvez intuindo que o público já o conheça bem. “Acho que é uma história com que muitas pessoas podem se identificar”, diz. Thiago “Beto” Alves concorda que essa é uma das qualidades do jogo: “É um momento bem apropriado, em que muitas pessoas estão buscando a fuga da rotina caótica. Eu mesmo já pensei em largar tudo e viver no mato, mas ainda tenho coisas que gostaria de fazer. Ainda não é o momento (risos)”.

A ideia de um estilo de vida mais consciente ou menos sujeito ao vazio a que Eric se refere parece guiar muitos dos jovens nascidos entre 1970 e 1990. O emprego estável, tão importante para outras gerações, não tem mais o mesmo apelo. No lugar do fast food, do fast fashion e do carro do ano, ressurgem a bicicleta, o consumo sustentável e um jeito mais cuidadoso de tratar a comida. Escolhas a que alguns atribuem o termo “hipster” são, para outros, experiências de pertencimento e cidadania.

Apetitosos e lucrativos ”Artisan Goods”.
Apetitosos e lucrativos ”Artisan Goods”.

No Brasil, se a crise aumentou o desemprego, também pode ter encorajado o espírito empreendedor de quem tem condições mínimas para abrir o próprio negócio. Com o maior interesse na alimentação saudável, o setor dos orgânicos vem crescendo há alguns anos. Nesse cenário, o fascínio por ideias “menos urbanas” parece ganhar espaço.

Caio Tavares queria encontrar uma vida “mais conectada à natureza” quando saiu de São Paulo, onde trabalhava com planejamento em agências de publicidade, para morar na Chapada Diamantina. “Durante um período de descontentamento com minhas escolhas profissionais, esbarrei em uma coisa chamada permacultura. Isso mudou minha forma de olhar e pensar o mundo”, explica. Hoje, numa espécie de Stardew Valley realista, Caio se dedica ao cultivo de alimentos, mas diz buscar um meio-termo para seguir a transição do urbano para o rural.

[olho]Nesse cenário, interesses “menos urbanos” parecem ganhar espaço[/olho]

Em sintonia acidental com Eric Barone, Caio — que desativou seu perfil no Facebook há poucos dias — se refere ao cotidiano nas grandes cidades e sua “lógica do capital” como “a máquina de amassar gente”. Para ele, a vontade de fugir da máquina não aumentou, as ferramentas é que evoluíram. “O que vejo, sim, é uma busca por alternativas, mesmo que nos ambientes urbanos. Composteiras e minhocários de apartamento, por exemplo, têm gerado discussões nos papos de bar.” E completa: “O êxodo urbano é a onda”.

Para quem não pode viver integralmente esse novo fugere urbem, uma das alternativas é levar um pouco da ideia de natureza para casa — seja em forma de samambaia, compota, bordado ou roupa produzida de forma artesanal. Em São Paulo, a Jardim Secreto Fair reúne pequenos produtores e suas criações em “jardins escondidos” por vários bairros. Em três anos e 12 edições, os 15 expositores do começo se multiplicaram: hoje são 120. No início circulavam pelo evento 300 pessoas, na última edição foram 5 mil.

Compras e diversão em Pelican Town.
Compras e diversão em Pelican Town.

Criadoras do projeto, as amigas Claudia Kievel e Gladys Tchoport veem um “lance de consciência coletiva” na busca que une expositores — que têm de 18 a 50 anos — e visitantes — de 25 a 40. E uma mudança de comportamento na crise: “As pessoas estão não só dando mais valor a quem faz com cuidado, mas também estão percebendo que produzir suas próprias coisas faz muito mais sentido. Comprar do pequeno produtor funciona melhor”, conta Claudia.

Como acontece na “Stardew Valley Fair” da ficção, a insatisfação com os empregos tradicionais motivou muitos dos artesãos que participam da feira paulistana. “A maioria dos expositores tinha trabalhos tradicionais e resolveu mudar. Alguns ainda têm e levam os dois caminhos juntos. Quem tem medo de abandonar a vida segura em um emprego acaba levando como hobby”, explica Gladys.

‘Achievements’ da realidade

Enquanto o trabalho de escritório e o sucesso profissional ficam cada vez mais impopulares, o buzz em torno de Stardew Valley mostra que ainda há espaço para jogos de videogame que convidam o jogador a, vejam vocês, trabalhar por horas a fio. Nas últimas décadas, quem aprecia o gênero talvez já tenha acumulado experiência na administração de cidades, zoológicos, hospitais, prisões e restaurantes. Mas será possível que o ser humano possa gostar mais de trabalhar de mentira do que quando há dinheiro real envolvido? O que fizemos com nossas vidas?

Um dia normal na Joja Corporation.
Um dia normal na Joja Corporation.

A pesquisadora Thais Weiller tem uma explicação: “O ‘trabalho’ do jogo é uma experiência que foi feita para ser prazerosa. Tem duração certa, com intervalos para feedbacks e bonificações. Se toda atividade laboral tivesse um pouco mais desse cuidado, com certeza o trabalho ‘real’ poderia ser bem mais divertido”. Eric Barone concorda, observando que as pessoas gostam de trabalhar quando há “propósito real” naquilo que fazem, não quando se sentem presas a funções “chatas e repetitivas”.

Em busca de propósito e prazer, uns voltam para o campo, outros para o campo pixelado do videogame da infância — e o que poderia ser “egotrip” improdutiva ganha mais sentido quando alcança o outro. Quem se dedica a Stardew Valley na solidão no computador compartilha o espírito do tempo, as boas intenções e a má postura com Eric Barone. Em resposta a uma pergunta meio cínica sobre seus sentimentos naqueles quatro anos em que aperfeiçoava o jogo, ele resume seu objetivo ao mesmo tempo humildão e ambicioso: “Trazer mais alegria para o mundo”.

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A confraria do pinball

A primeira coisa que Iure Gomes fez ao abrir as portas do Pinball Clube de São Paulo, no bairro do Cambuci, foi dar as boas-vindas e, antes que eu formulasse qualquer pergunta, disparou escada acima. Fazendo um gesto de “vem comigo”, bradou: “É aqui que acontece a mágica”, e novamente desembestou a andar entre as fileiras de máquinas de pinball alinhadas pelo espaço. A cada dois ou três metros, sempre falante, ele parava, ligava uma ou outra máquina, fazia demonstrações e até removia o tampão de vidro para revelar detalhes de cada peça. Em poucos minutos percorremos todo o imóvel enquanto Gomes se empenhava na meta de transmitir o máximo de informações possível a respeito daquela cultura. Aos 44 anos, o diretor comercial de uma empresa de TI é um dos sócios fundadores do clube, inaugurado em 2003. Atualmente, a agremiação conta com 25 sócios e 120 máquinas.

“O clube é fechado para os sócios”, explica. “Nós nos encontramos todas as terças, quintas e sábados, e isso aqui é como se fosse a nossa confraria. O nosso refúgio.” O acesso restrito ilustra o fato de que a prática do pinball, no passado hábito corriqueiro dos bairros populares, com seus fliperamas disputados por office boys e estudantes a matarem aula, nos últimos anos virou uma espécie de hobby de luxo. A maioria dos sócios do Pinball Clube de São Paulo, na faixa dos 40 anos, é um pessoal tão empolgado quanto Iure. Colecionadores de notável poder aquisitivo, já que essas máquinas, bem como sua manutenção, demandam um belo investimento. Para se ter ideia, uma máquina nova custa em torno de R$ 35 mil, e pode chegar até mais de R$ 50 mil, dependendo do modelo. Já uma máquina restaurada, antiga, custa em torno de R$ 22 mil. Cada integrante do clube tem, no mínimo, uma dezena delas.

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Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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Quando chega alguém novo querendo ser sócio, espera-se que o aspirante coloque pelo menos duas máquinas lá dentro. Fora isso, todos devem colaborar com os gastos de manutenção do lugar, do aluguel ao IPTU. O uso dos equipamentos é compartilhado livremente entre eles. Gomes, por exemplo, disponibiliza nove máquinas no clube. Segundo ele, a obrigação de cada membro é manter as suas funcionando e em bom estado, “para não virar depósito”. “Não existe intenção de ganhar dinheiro com o clube. Não queremos que o lugar fique lotado, e sim reunir um grupo de pessoas com um interesse em comum para bater papo. No final das contas, vira uma família”, observa o nosso cicerone. E complementa: “O perfil do pessoal é bem heterogêneo. Aqui você vai encontrar piloto de avião, assessor de imprensa, advogado, executivo, empreendedor, engenheiro. Todos unidos por essa paixão em comum que é o pinball.”

O modelo do Pinball Clube de São Paulo é replicado em outras cidades. Atualmente, funcionam outras duas células no estado do Rio de Janeiro – uma na capital e outra em Petrópolis – e mais duas no estado de São Paulo, em Boituva e no ABC paulista. Gomes revela que há iniciativas de expandir para Belo Horizonte, Porto Alegre e Caruaru, e explica: “Quando falamos em filial, não significa que o sócio tem a chave de acesso aos outros clubes, mas existe uma política muito legal de boa vizinhança. Só se paga para entrar quando temos as etapas do Campeonato Brasileiro, que passa por Petrópolis, ABC e São Paulo, onde rola a final. Ou, duas vezes por ano, sem data certa, quando abrimos para o público”. Os eventos open house aos quais ele se refere são anunciados nas redes sociais.

São recorrentes entre os membros do clube as declarações de que a nostalgia funciona como o maior atrativo da retomada do pinball. O próprio Iure Gomes teve contato com o pinball aos quatro anos de idade e nunca mais parou. “Meus pais me colocavam numa cadeirinha, eu botava o queixo naquela barra de metal do vidro da máquina, estendia os braços, e jogava completamente esticado. Eu também pirava naqueles pequenos arcades: Space Invaders, Asteróide, Bazuca, e por aí afora. Tem foto minha, bem pequeno, jogando”, relembra. O advogado Cid Rudis, de 41 anos, foi tragado por este universo aos sete anos. “Eu sou carioca. Morava em Copacabana e lá tinha um fliperama. Eu me lembro até hoje da primeira máquina que chegou com voz. Quando eles tiraram da caixa e ela emitiu o som de fala, foi um negócio inacreditável”, conta. Isso foi em 1981.

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Crédito: Guilherme Santana
Uma das máquinas de ‘Star Wars’. Crédito: Guilherme Santana

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Rudis é da geração das máquinas Taito, que dominaram o mercado nacional entre 1972-85 com franquias como Cavaleiro Negro, Fire Action e Oba Oba. “A Oba Oba eu jogava com meu pai, ele era amigo do [Osvaldo] Sargentelli, dono da casa de shows Oba Oba, no Rio. Meu pai já morreu. Me lembro até hoje do dia que reencontrei uma Oba Oba depois de 30 anos. Chorei. Veio aquele mar de recordações”, comenta sem conseguir esconder a emoção. “Foi quando senti que precisava trazer o pinball de volta para a minha vida.” Treze das máquinas mantidas no clube paulistano são dele. Fora isso, Rudis é dono de mais cinco arcades (máquinas multijogos) e outras duas máquinas de pinball, que estão em sua casa.

Das 220 máquinas que ocupam os dois andares do clube carioca, 70 pertencem ao seu fundador, o gerente de TI Mário Sérgio da Rocha, 40 anos. “Tudo no pinball me fascina”, discorre ele sobre os maiores atrativos da prática. “Mas a nostalgia tem um peso maior. Faz eu me recordar da época de infância e adolescência, quando as preocupações da minha vida eram ganhar uma bola extra ou um novo crédito com aquela fichinha comprada com o dinheiro suado. As economias do lanche da escola ou do ônibus.” Ele também chama a atenção para a jogabilidade física das máquinas. “A bola nunca traça o mesmo caminho. Por isso, cada partida é uma partida. Duas máquinas iguais, lado a lado, vão te oferecer um jogo totalmente diferente. Isso tem a ver com a elevação do playfield, o estado das borrachas, entre outros fatores.” Na ativa desde 2003, o clube do Rio hoje conta com 20 sócios.

A história de Ricardo Kobe é menos emoção e mais fissura. Aos 52 anos, ele é dono de uma loja voltada ao público geek. Como todo nerd, Kobe curte colecionar uma variedade de artigos que remetem à cultura pop. E o pinball, para ele, é parte desse barato. Hoje, ele é dono de onze máquinas, mas conta que já chegou a ter 56 – vendeu para investir na abertura da loja. A primeira aquisição foi em 1989, uma Fire Action da Taito. “O que eu mais gosto no pinball são os temas das máquinas. Tipo a Tommy, do The Who. Essa máquina é fantástica”, comenta. “Às vezes você acha algo muito raro e sabe que, se não fizer a doideira de comprar, vai perder a oportunidade.” Uma dessas “doideiras” ele cometeu na feirinha da 13 de maio. “A certo ponto da caminhada olhei para o lado e vi uma máquina de 1957. Sem minha mulher perceber, dei meu cartão para o cara e falei: ‘Amigo, essa máquina é minha. Cubra ela e me ligue amanhã. Só não levo para casa agora porque minha mulher não pode saber’.” Por muitos anos, a mulher de Kobe achou que ele possuía apenas três máquinas, enquanto ele já tinha investido em mais de trinta.

O analista de sistemas Marcelo Pereira Batista, 48 anos, é o fundador do clube de Petrópolis (Imperial Pinball Clube) e acaba de faturar o título de Campeão Brasileiro de Pinball. Em abril, ele vai para os Estados Unidos disputar o mundial. Segundo MPBola, como é chamado no âmbito do pinball competitivo, “existe uma cena mundial forte no mundo atualmente, porém restrita a colecionadores, já que não temos mais fliperamas por aí como nos anos 80”. Inaugurado em 2013, o clube de Petrópolis já conta com 40 máquinas, em sua maioria adquiridas em sites de compra na internet. “Algumas nós tivemos que mandar restaurar. Outras, ainda estão em seu estado original, mas em perfeitas condições de uso”, informa. Diferente do clube de Petrópolis, a coleção de máquinas que deu vida às unidades do Rio e de São Paulo guarda um aventureiro histórico de caça ao tesouro.

Muitos exemplares raros funcionando em perfeito estado, como a Ace High, criação da Gottlieb de 1957, as eletromecânicas Drakor, lançadas pela Taito em 79, a clássica máquina Tommy, inspirada na ópera rock do The Who, lançada pela Data East em 90, correram o risco de virar entulho. “Na hora de se desfazer delas, a única opção que o cara tinha era desmontar ou destruir. Então a gente começou a fazer um resgate”, explica MPBola. Nesse sentido, o conceito que deu vida aos clubes pode ser entendido como o de um museu, mesmo não se tratando de uma organização formal. “É a gente que salva as máquinas”, frisa Iure Gomes. “Pegamos aquelas que estão para ser destruídas e conseguimos recuperá-las. Tem muita história de resgate de máquina que estava para ser queimada. Em alguns casos, vimos lugares onde as máquinas já estavam queimadas, restando apenas os metais”, lamenta.

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Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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O Brasil já teve diversos fabricantes de pinball. Um dos últimos fabricantes foi a Taito, a marca mais bem-sucedida e dona de uma produção gigantesca no período de atuação. As atividades da empresa se encerraram no azul, sem dívidas. Ela simplesmente saiu do país e não recolheu o ativo. Então, quem tinha um fliperama com máquinas da Taito, passou a ser dono. E foi isso que tornou as coisas interessantes para os colecionadores. As máquinas permaneciam nesses lugares, mas os técnicos que geralmente faziam as visitas de manutenção, deixaram de ir. “Os caras começaram a dar um jeito de consertá-las diretamente com os técnicos que foram dispensados. Mas depois de um tempo, pararam também, porque deixou de ser interessante”, detalha Gomes. “Sumiram as peças de reposição, coisas do tipo. O interessante disso tudo é exatamente a possibilidade que foi aberta no mercado de uma hora para a outra. Alguns profissionais que existem hoje são oriundos justamente desse buraco que se abriu no mercado. Há casos antigos de máquinas que nos foram doadas. O cara falava: ‘Tira esse negócio daqui, porque isso é um trambolho que está tomando meu espaço’. Era pura verdade. No fim das contas, aquilo num bar ocupa o espaço de duas mesas”, reflete.

Na missão de resgatar máquinas antigas da destruição ou do ostracismo, os integrantes do clube do Rio conseguiram recuperar todas as máquinas um dia pertencentes a um antigo e gigantesco fliperama em Nova Friburgo. Mário Sérgio não mede esforços. Ele teve a ousadia de alugar um caminhão e passar em todos os depósitos recolhendo máquinas. Dessa vez, retornou com cerca de 20 exemplares e isso virou história na cidade. Mas ele tem uma extensa lista de outras histórias para contar: “Já desci máquina usando cordas, roldadas e a força de um caminhão, do segundo andar de um depósito que não tinha escadas. Já passei um carnaval em Búzios acompanhando o leilão de um exemplar raro pela internet, sem ir à praia. Quando ainda era solteiro e morava com minha mãe e avó, povoei a sala de estar com cinco máquinas. E já fiquei um dia inteiro sem comer para poder receber um lote de raridades”.

Em outra ocasião, eles subiram os morros das favelas correndo atrás de máquinas. Assim, conseguiram salvar duas e toparam com os destroços de mais três ou quatro. “O sujeito disse que ateou fogo porque não aguentava mais. Vimos somente os metais retorcidos e alguns vidros. O caixote de madeira e o playfield tinham virado estatística”, conta Gomes. “Uma das máquinas foi encontrada pelo pessoal do Rio num sítio do interior, no meio de um galinheiro, sendo usada como poleiro. Uma Shock, que hoje é raríssima”, comenta Cid Rudis. E prossegue: “Aqui, em São Paulo, já rolou de fazer comboio pelo interior, correndo atrás dos sítios e chácaras. E aí você encontrava máquina até na chuva. Infelizmente a maioria dos exemplares dos anos 80 veio nesse estado”.

A mania do pinball no mundo teve duas fases de ouro. A primeira foi no final da Segunda Guerra, entre 1945-55, quando dispararam as vendas e o número de fabricantes. A segunda, foi entre os anos 1980-90. Atualmente, até encontra-se gente que atua na restauração de equipamentos de ambos os períodos no Brasil, como a JSW, mas fabricante mesmo, não. Nessa nova fase em que o pinball virou culto, a fabricante norte-americana Stern dominou o mercado. Apostando na temática classic rock, a marca tem investido em máquinas licenciadas por bandas como AC/DC, Kiss, Rolling Stones e Metallica, além de séries, como The Walking Dead, Game of Thrones, Star Trek, e filmes, tipo Indiana Jones e Thron. Recentemente, eles fizeram uma edição comemorativa aos 50 anos do carro Mustang.

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Um típico encontro da confraria. Crédito: Guilherme Santana
Um típico encontro da confraria em São Paulo. Crédito: Guilherme Santana

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A concorrente direta da Stern é a Jersey Jack Pinball, que lançou as máquinas do Mágico de Oz e de O Hobbit. “Eles deram uma sacudida no mercado”, comemora Iure Gomes. “A Stern estava com uma qualidade muito baixa nos produtos, e isso fez com que ela arrumasse mais investidores para melhorar as máquinas. Aumentou muito a qualidade, para bater de frente com a Jack Jersey. E isso foi, sinceramente, maravilhoso para o pinball no mundo. Abriu portas para outros fabricantes, muito pequenos, que estão buscando investimento para tentar entrar no mercado”, avalia.

O fetiche dos sócios do clube, no entanto, continua sendo pelas máquinas vintage. Por isso, vários colecionadores acabam aprendendo os macetes de manutenção e restauração. “Basicamente a manutenção das máquinas é simples”, explica o engenheiro eletrônico e sócio do clube de São Paulo, Nikolaos Mbakirtzis, 50 anos. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no local, ele não jogou nem ficou de bobeira papeando, bebendo ou comendo churrasco, como os seus colegas da “confraria”. Naquela noite, zanzava de um ambiente anexo à garagem até o piso superior, onde ficam as máquinas. Ia e voltava repetindo o trajeto com ferramentas e peças na mão. Fez isso diversas vezes.

De perto, foi possível notar que, naquele ambiente, o clube acolhe uma impressionante oficina de restauração improvisada. “Em vários momentos você tem que trocar peças. Todas as máquinas têm conserto”, diz Nikolaos, empenhado em fazer funcionar uma delas. “Você tem que botar peças novas. É como se fosse um carro: quebrou uma peça, tem que trocar. Não adianta você tentar ficar só consertando.” Observando de esguelha, Gomes continua animado. Conversa com todos ao mesmo tempo e ainda joga. Ele não se contém. Interrompe a fala do colega e crava, no bom humor: “Tirando os exageros é tudo verdade! Temos aqui pessoas que pegam uma máquina caindo aos pedaços e a deixam zero bala. Tipo os Mestres da Restauração”. Já é tarde da noite, a maioria dos presentes começa a se despedir. Semana que vem tem mais.

 

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Comportamento

Magic: The Gathering ainda tem o poder

Quinze anos depois de entrar pela última vez em uma loja de card games, me vejo novamente rumo a um desses oásis perdidos de jogos analógicos, ainda tão escondidos do grande público. A mochila nas costas, dessa vez, não abriga uma imensa pasta cheia de cards e decks, mas a mente já se encontra tentando emular os mesmos sentimentos daquela época. Magic: The Gathering esteve na minha vida entre 1995 e 2000 – joguei, colecionei, troquei cards, participei de torneios e até mesmo tive alguns cards roubados. Tanto tempo depois o jogo continua firme e forte, mas algo mudou.

Magic: The Gathering é um Trading Card Game (TCG), ou jogo de cartas colecionáveis, no qual cada jogador tem um baralho de cartas, chamado “deck”, que ele próprio constrói a partir de uma coleção imensa de cartas já lançadas. As cartas fazem o papel de mágicas de diversos tipos (criaturas, encantamentos, feitiços), que juntas em um deck formam uma estratégia, com o objetivo de reduzir os pontos de vida do adversário a zero. Pelo menos era assim há quinze anos, e provável que regras assim, tão essenciais, não tenham mudado tanto. Mas os cabelos…

É essa a missão que me fez ir até a Bazar de Bagdá, loja de card games na Zona Norte de São Paulo. A intenção era a de acompanhar um torneio chamado PPTQ – Preliminary Pro Tour Qualifier, que qualifica jogadores (ou “duelistas”, bem mais legal) para os Pro Tour Qualifiers, que por sua vez dão vaga para os Pro Tour, torneios profissionais de nível mundial, que acontecem quatro vezes ao ano. Claro que tudo isso me foi explicado bem depois – tudo o que eu conhecia de torneios até então era o sistema suíço, “fantasmas” (quando o número de jogadores é ímpar alguém sempre tem a sorte de ficar de bobeira em uma rodada).

Assim que abri a porta da loja, revivi uma cena bastante comum na minha adolescência: jovens com pastas, mochilas nas costas, todos escorados no balcão da loja, esperando o início do torneio, conversando e trocando cards – pelo menos essa última eu imaginei que estivessem fazendo, o que se provou errado logo depois. “Vai jogar o torneio?”, alguém sacou na minha direção, como um Raio (um mana vermelho, três de dano em qualquer alvo). “Não, vou só acompanhar”, respondi já sem nenhuma atenção voltada para mim, como se esperassem pela resposta.

Um novo mundo de Magic

Posso dizer com segurança que, na época em que joguei, não havia um décimo da quantidade e variedade de produtos ligados a Magic que vi naquela loja. Lembro-me bem de pastas decoradas e deck shields, “plastiquinhos” individuais para proteger os cards, itens que não eram fáceis de serem adquiridos com o dinheiro do lanche da escola convertido em nerdices. O que eu vi na Bazar foi uma miríade de pastas, cases, protetores, dados marcadores de pontos de vida, “playmats” (um “tapetinho” que se usa para cobrir um dos lados da mesa onde se joga), e várias outras coisas coloridas que chamam muita atenção.

E não foi só no vasto universo dos acessórios que Magic se transformou num mundo estranho e terra de novas maravilhas. A gama de produtos oficiais aumentou muito de quinze anos para cá, e pobre de nós que comprávamos apenas “boosters” e “decks”. O duelista hoje tem acesso a baralhos pré-montados (bons e ruins, segundo relatos), caixas promocionais com brindes, edições especiais, de colecionadores, além de cards avulsos vendidos pelas lojas, chamados de “singles”.

Magic: The Gathering foi lançado em 1993 pela Wizards of the Coast, então uma empresa de garagem com poucos jogos no portfólio. Uma simples e rápida pesquisa mostra que hoje a WotC tem hoje em suas prateleiras os dois maiores bastiões quando se fala em jogos analógicos: Dungeons & Dragons, o mais famoso e jogado dos RPGs (Role-Playing Games), e Magic – além de ser uma subsidiária da gigante dos brinquedos Hasbro. “Bala na agulha” é a palavra que eu buscava e que representa bem o momento da empresa, que nos últimos anos investiu pesado em marketing e desenvolvimento de novos produtos e estratégias para os jogos.

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Um típico cenário de Magic nos anos 90: um joguinho para virar a noite com os amigos. Crédito: Abbamouse/Flickr
Um típico cenário de Magic nos anos 90: um joguinho para virar a noite com os amigos. Crédito: Abbamouse/Flickr

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“Atenção, duelistas do segundo PPTQ da Bazar de Bagdá! A lista de jogos da primeira rodada já está disponível! Tomem seus lugares e aguardem o sinal dos juízes para dar início ao duelo!” – soou nos auto-falantes da loja Leonardo “Estranho” Martins, o juiz principal de um time de três árbitros responsáveis pelo torneio, todos eles vestidos a rigor – sapato, calça social e uma camisa com o bordado oficial, indicando que eram, afinal, juízes oficiais. Isso eu realmente nunca tinha visto: um nível de profissionalismo, excelência e seriedade que não era comum naquele Magic que eu jogava entre amigos, “na zoeira”. Nítida também era a questão da idade dos duelistas – todos certamente na fase dos “vinte e poucos”, a maioria nos “vinte e muitos”. Com vinte, ninguém mais da minha antiga turma ainda tinha um card sequer.

Informação é a chave

O que melhor explica as mudanças em muitos (quase todos, aliás) setores da sociedade é a universalização da o acesso à informação. Claro que o Magic se beneficiou disso e abraçou a causa. “A disseminação da informação foi o que mais mudou no Magic de quinze ou vinte anos para cá, e com a internet, o jogo e suas estratégias foram se difundindo muito mais”, explica Estranho. Faz sentido: sem a internet, pouca ou nenhuma informação chegava até nós, sempre por meio de informativos ou revistas que cobriam eventos e torneios internacionais, com meses de atraso. “Hoje, dá para acompanhar torneios de alta competitividade e em nível mundial, como o Pro Tour, em tempo real, via streaming”, comenta.

Eduardo Beraldo, o “Dudão”, um dos sócios da Bazar de Bagdá, lembra um período no qual a internet engatinhava e, para o Magic, as revistas eram o principal baluarte de dados para trocas. “No começo, nossa referência para cartas e informações de forma geral era a Duelist, revista que só conseguíamos em bancas de importados”, conta. A grande referência para trocas e eventuais vendas de cards veio depois: a InQuest, com quase metade das páginas dedicadas a imensas listas de preços de referências de cards. “Ninguém vendia ou trocava cards de uma coleção nova sem antes conferir seus valores na InQuest.”

A informação de qualidade estratégica também foi um dos grandes diferenciais que a disseminação digital trouxe ao jogo, melhorando a experiência dos duelistas. “Foi na época da InQuest que começaram a sair os artigos sobre arquétipos (tipos de estratégias de deck e de jogo), e ao mesmo tempo torneios internacionais como os Pro Tour, Mundial e Latino-Americanos começaram a ter grande importância”, revela Dudão. A internet, ainda segundo o lojista e jogador (Dudão venceu o PPTQ mencionado acima), fomentou essa busca dos jogadores por informações a respeito de arquétipos e estratégias. “Dias atrás tivemos um torneio aqui na loja e, ao mesmo tempo, passava no telão o streaming do primeiro torneio oficial da nova coleção, “Battle for Zendikar”. Todo mundo colado na tela, vendo as novas cartas, novas estratégias e os novos decks que ela trouxe”, completa.

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Leonardo "Estranho" Martins. Crédito: Flávio Alfonso Jr
Leonardo “Estranho” Martins. Crédito: Flávio Alfonso Jr

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Embora o Magic seja um jogo de alta complexidade (a comparação com o xadrez é recorrente no meio), ele hoje se mostra simples e de fácil acesso para o iniciante, diminuindo o fator de intimidação que a complexidade traz e, por consequência, afasta o jogador novato. Para completar, Magic já virou jogo para computador, tablet e celular, indo além das mesas e angariando mais e mais jogadores – que, pelas versões de software e aplicativos, têm mais facilidade em entender as regras. “Hoje, é fácil entrar no Magic, mas dominá-lo é outra história”, emenda Estranho.

A profissionalização

Torneios oficiais, mundiais, estabelecimento de estratégias e um mercado (oficial e paralelo) sólido são elementos cruciais para a germinação de um ambiente profissional e de duelistas profissionais. E foi o que aconteceu. Magic: The Gathering completou 20 anos em 2013 contando com uma massa fiel de duelistas “federados” de todos os níveis, uma ampla rede de lojas onde se realiza torneios oficiais e não-oficiais, e torneios de nível mundial nos quais se paga (muito) bem. O último Pro Tour, que aconteceu em Milwaukee, EUA, premiou seus vencedores com a soma de 250 mil dólares. Dá para viver.

Um dos melhores representantes brasileiros da atualidade nesse mundo é Willy Edel, carioca eleito para a turma de 2015 do Hall of Fame do Magic, segundo brasileiro a conquistar o feito (o primeiro foi Paulo Vitor Damo da Rosa, em 2012). Willy foi campeão do Pro Tour de Toronto, em 2012, e campeão brasileiro no ano seguinte, tendo ainda se classificado “Top-8” em diversos outros Pro Tour e Grand Prix. Toda essa trajetória fez com que Willy fosse indicado e conquistasse o cobiçado anel do Hall of Fame – sim, é como no Super Bowl.

Para Willy, o Magic está bem diferente hoje em comparação com os primeiros anos, e acabou se tornando referência para muitos outros jogos que foram surgindo ao longo do tempo. “Mudou completamente. Antigamente, 99% do público era casual, havia pouquíssimas lojas, poucos torneios, basicamente nada que favorecia a vertente competitiva. Hoje há vários incentivos, e para muitos o Magic virou profissão”, explica.

Se o jogo se profissionalizou, podemos comprovar também que os ambientes seguiram o mesmo caminho? Em toda a minha trajetória no Magic, tive como “base de atuação” uma locadora de games que vendia decks e boosters como alternativa para os jogos eletrônicos – e lá jogávamos de maneira bem casual, trocávamos cartas e muito raramente comprávamos um do outro. Isso também mudou? Para Willy, sim. “A troca de cartas ainda existe, mas é bastante rara nas lojas, e não sem motivo: por que limitar seus ‘parceiros de troca’ se hoje todas as lojas têm um estoque bastante amplo de cards avulsos para vender? A vida hoje é mais simples e fácil”, esclarece.

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Um torneio de Magic em São Paulo. Crédito: Flávio Alfonso Jr
Um torneio de Magic em São Paulo. Crédito: Flávio Alfonso Jr

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Apesar do contexto profissional no qual o jogo se encontra hoje, trilhar o caminho “sério” não é nada fácil. Praticamente todos os torneios grandes são fora do Brasil, e a rotina de treinos, viagens e hospedagem pode ser assustadora para a maioria dos duelistas que iniciam nessa vida. Para ajudar esses duelistas profissionais de primeira viagem, Willy presta auxílio com relação a todos os fatores envolvidos nessas jornadas rumo aos grandes torneios. “Quando sou procurado, ensino os primeiros passos, desde marcar a passagem a reservar hotel. Se a pessoa está disposta a treinar sério para o evento, eu tento incluí-la no meu grupo de treinos. É muito difícil entrar no circuito profissional, então esta pode ser a única oportunidade desta pessoa, por isso tento ajudar no que posso e mostrar que tem que ser algo levado a sério”, revela Willy, conhecido no meio por essa atitude como “Godfather” do Magic.

Magic é um jogo de muitas possibilidades, inclusive de carreira. Leo “Estranho” Martins é um árbitro de nível 2, credenciado e graduado pela própria Wizards of the Coast. Se ele “apita” por hobby? “Somente em 2015, já viajei quase dez vezes para o exterior para ser juiz em grandes eventos”, conta. Estranho abandonou a graduação em Filosofia na Unifesp e um cargo público na Secretaria Estadual da Educação para se dedicar apenas ao ofício de árbitro de Magic.

O papel das lojas

Desde seu início, a cultura do Magic esteve ligada de forma íntima às lojas que comercializam os cards e outros produtos relacionados. A loja está para o Magic assim como o campinho de bairro está para o futebol, nas devidas proporções. E se nos primeiros anos esses ambientes eram simples pontos de encontro e espaço para duelos (além da venda de produtos), hoje as lojas de Magic são verdadeiras “células” que agregam jogadores em um ambiente profissionalizado.

É nas lojas que o jogador conhece pessoas e tem contato físico, real e presencial com cartas, decks e o principal: joga Magic com diferentes pessoas. Willy emenda: “Em lojas o jogador faz amigos, joga torneios, compra suas cartas e tem chance de começar ali uma carreira profissional”.

Em uma busca no site LigaMagic, um agregador de torneios e lojas, encontrei mais de 50 lojas na cidade de São Paulo e um total de 230 estabelecimentos no estado. No site é possível também fazer busca por torneios a serem realizados – localizei 49 torneios durante todo o mês de novembro de 2015, só na cidade de São Paulo. No próprio site da Wizards of the Coast o duelista pode usar o localizador de lojas e torneios, que também retorna dezenas de resultados para a cidade de São Paulo. Ou seja: opções não faltam para o duelista iniciante, intermediário e experiente. “O jogo se chama Magic: The Gathering, e para mim o “Gathering” (“reunião”) é a grande razão do seu sucesso”, completa Willy.

Fora do circuito

Apesar da força e relativa importância da rede de lojas e da comunidade de jogo que as envolve, alguns duelistas de longa data preferem se manter à parte de todo o esquema. É o caso do também carioca radicado em São Paulo Rodrigo Esper – seu ambiente de jogo, na verdade, é a sala do apartamento que divide com amigos também duelistas na região central de São Paulo.

A experiência de Esper com o jogo – começou nos primórdios, com a jurássica Quarta Edição, que saiu no Brasil em 1995 – sem dúvida o credenciaria para estar entre alguns dos mais proeminentes duelistas da comunidade. Mas, por opção, se manteve em círculos restritos de jogo, bem no estilo “entre amigos”. “Comecei como todo mundo, na lojinha de bairro que era meio locadora, meio loja de coisas nerds, mas logo me mantive em grupinhos mais restritos, sem me envolver muito em comunidades”, conta. Esper considera que o clima de intensa disputa que permeia o ambiente do Magic de forma geral tem conotação negativa. “Não queria competir, só jogar entre amigos mesmo. Todo mundo se conhecia e sabia das cartas e dos decks de cada um”, revela.

Entendi bem o que ele quis dizer, e compartilho de certas aflições que vivi quando adolescente em ambientes assim. Há uma certa insegurança em se lidar com alguns tipos de nerds, em epecial os mais “hardcore”. “Tem um tipo de nerd que é bem difícil de se lidar, são arrogantes, chatos, não compartilham conhecimento, te desprezam. Isso faz perder totalmente o prazer na coisa”, confessa.

Esper chegou a parar de jogar em determinado momento, quando viveu uma experiência traumática: “Roubaram meu deck, o principal deck. Desanimei”. Um bom deck de Magic, com 60 cartas, diversas raras, pode ser vendido de forma avulsa por boas centenas de reais (dependendo do deck, pode chegar na casa dos quatro dígitos). Ao mesmo tempo, segundo ele, muitos dos seus amigos duelistas também paravam de jogar e vendiam as cartas. Fiz a mesma coisa em 2000, quando parei e vendi minhas cartas (e recuperei quase tudo que investi), acompanhando a tendência de todos os outros da turma. Estávamos crescendo, indo para a faculdade e “virando adultos”.

Claro, adultos não jogam Magic – ou pelo menos não gostam muito de admitir isso. Jogam futebol, sinuca e tomam cerveja, mas não jogam Magic. Como bem postulou Esper, “jogar magic não é maneiro”. Eu mesmo, na época em que jogava, mantinha minhas atividades em segredo dos amigos de escola, que preferiam andar na rua e jogar futebol. Duelos, trocas e papos de Magic só com quem também jogava e via aquilo como uma coisa legal demais, mas entendia que a maioria das pessoas não absorvia facilmente.

O hiato de Esper com o Magic durou bons anos, pontuados por uma ou outra aquisição esporádica. “Não contava para ninguém, não era uma coisa bem vista, estava velho.” Estamos velhos. A vida, também conhecida como “convenções sociais absurdas”, travestida de consciência/responsabilidade, nos cobra se aparecermos em casa com um deck turbinado para torneio, ou com aquele combo imbatível que inventamos. Não há espaço e não é maneiro. Mas a verdade é que o mundo mudou nas duas últimas décadas: o que era tido como estranho, nerd e esquisito virou cultura popular — a tal cultura pop — e jogar esse tipo de jogo, e também jogos de tabuleiro, se transformou em uma forma de entender que podemos gostar daquilo que nos agrada sem preocupações. E isso, por consequência, transformou o ato de gostar de Magic em algo cool.

A história do Esper ajuda a comprovar isso. Fotógrafo profissional e sócio de uma agência, Esper cobria eventos, festas e shows no Rio. “Foi quando descobri uma galera que jogava escondido. Cara de banda, advogado – e a gente ficava de cara, porque aquele cara era muito maneiro para jogar Magic!”. Que “a vida” me perdoe, mas se um cara de banda joga Magic e tudo bem, não sei o que eu estou fazendo da minha vida. Jogar Pokémon, quem sabe? Já joguei e foi maneiraço.

Jogo Magic e sou maneiro, sim

A imersão no mundo do Magic a que me submeti nas últimas semanas foi altamente revigorante, mesmo descobrindo o quanto o jogo mudou desde que o abandonei – principalmente porque as mudanças parecem mesmo ter sido feitas de forma consciente, planejada e visando a oferecer ao duelista diferentes formas de abordagem e de encarar o jogo como um todo.

Em 2015, Magic The Gathering completa 22 anos de existência, gozando de boa popularidade (a quantidade de lojas e torneios disponíveis não deixa mentir), mas ainda permanece oculto de boa parte do público, sendo para a maioria das pessoas que o conhece uma vaga lembrança da adolescência – ou apenas “aquele joguinho de cartas estranho que fulano brincava na escola”. Essa lembrança distante ajuda a manter o jogo no “submundo” e em níveis de popularidade bem inferiores aos que o videogame, por exemplo, alcançou nos últimos anos.

Por outro lado, Magic parece estar em um patamar bem consolidado, com sinais claros de que não vai definhar e cair no limbo dos jogos ultra alternativos – pelo menos não em um futuro próximo. Bora, então, montar um deck e jogar uns torneios?

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Bem-vindos ao Risca Faca!

Chega mais. Hoje é um dia de festa pra gente, e queremos que seja para vocês também.

O Risca Faca é o novo site de cultura e comportamento da F451. A gente sabe que a internet é grande e já tem muita coisa rolando por aí, mas acreditamos que há espaço para certos conteúdos que sentimos falta em nosso cotidiano: jornalismo aprofundado, grandes histórias, personagens interessantes, análises incomuns. Sim, a internet é enorme, mas sempre há histórias incríveis que ainda não foram contadas.

Queremos fugir da cobertura que somente acompanha o ritmo das redes sociais. E queremos mostrar novas histórias, e novas formas de contá-las – pode ser em áudio, em quadrinhos, em vídeo. E ao mesmo tempo, como o nome sugere, não queremos ser sisudos nem cabeçudos – a gente curte um forró às 6h da manhã no Largo da Batata e isso também é uma forma de explicar o que queremos por aqui.

Para fazer isso, contamos com uma rede de colaboradores de várias partes do Brasil, de todos os tipos e estilos, que estão produzindo matérias e histórias que nos deixaram bastante orgulhosos. Leandro Demori, Peu Araújo, Taís Toti e Bolívar Torres são alguns dos jornalistas que você vai encontrar nos primeiros dias do Risca Faca. Assim como os fotógrafos Felipe Larozza e Lucas Lima, a artista Barbara Scarambone e o ilustrador Issao Nakabachi.

De cara, recomendo a leitura do nosso dossiê sobre a febre dos trenzinhos. O repórter Felipe Maia e o fotógrafo Felipe Larozza viajaram pelo interior de São Paulo para entender, e explicar, esse fenômeno que gera comoção entre as pessoas e, ao mesmo tempo, é pouco conhecido para muita gente. Na entrevista da Fernanda Reis, Lourenço Mutarelli conta como começou a acreditar em sereias. E também temos os conteúdos que já foram publicadas no Gizmodo Brasil, nosso site-irmão-mais-velho – recomendamos esta sobre nudez e o mergulho do repórter Marcelo Daniel pelo mundo de League of Legends.

Ficamos bem felizes também com o visual do site: imagens grandes, fonte boa para leitura e sem muita firula. Nessa seara, agradecemos bastante o trabalho da Datadot e da Haste, e também da Casa Rex, que assina nossa identidade visual – sem esquecer, claro, toda a equipe da F451.

Tem muita coisa boa na manga e esperamos que vocês aproveitem. O site ainda não tem comentários porque não encontramos a ferramenta ideal, e estamos esperando o surgimento de uma, tipo o Civil Comments. Enquanto isso, toda e qualquer sugestão, crítica, elogio, bate-papo, GIF animado, pode ser enviada pra mim: leo@riscafaca.com.br. Isso também se estende a ideias de pauta.

Sem mais blábláblá: seja bem-vindo! E não esqueça da canção popular: “foi no Risca Faca que eu te conheci”.

De bar em bar,
De mesa em mesa
Bebendo cachaça,
Tomando cerveja.

Foi assim, que eu,
Te conheci…

Olha que foi no Risca Faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra,
Tô nem aí

Foi no risca faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra, tô nem aí…

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MC Soffia, 11: “Duro é seu preconceito”

São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.

Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.

MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.

Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.

Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.

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Crédito: Rodrigo Esper

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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.

Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.

Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.

CRIANÇAS DO HIP HOP

De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.

Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.

Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.

[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]

Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”

Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”

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Crédito: Rodrigo Esper

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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.

Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.

Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.

DURO É SEU PRECONCEITO

No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.

O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”

Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”

A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.

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Crédito: Rodrigo Esper

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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”

A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”

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Perfil

As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

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HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”

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Cultura

Um trenzinho de doido

Durante a perseguição a um caminhão colorido, cheio de luzes e personagens, um garoto de bicicleta aborda o fotógrafo Felipe Larozza. Papo vai, papo vem, ele descobre que somos de São Paulo e, com um olhar curioso, indaga: “Como são os trenzinhos de São Paulo?”. Em São Paulo não tem disso, não, mas em Ribeirão Preto, onde vive o pequeno, todo mundo tem uma história com trenzinho. Contarei algumas das que ouvi e todas que vivi ao desbravar o mundo de reluzentes colossos mecatrônicos, seres antropozoomórficos, casamentos entre profano e sagrado e confrontos de todos os tipos em uma cidade rodeada por um denso cinturão de cana de açúcar no interior de São Paulo.

Distantes do centro da cidade, nas quebradas onde as classes se confundem, jovens de máscaras e corpos vestidos com roupas malucas dançam, pulam, correm, brincam. Veículos imensos arrastam pequenas multidões ao som dos últimos lançamentos musicais em meio a uma erupção de cores. O povo admira, interage, para ou vira a esquina. Correm luzes como as das aparelhagens de Belém, gambiarras de baile funk, sistemas de som de trio elétrico, referências carnavalescas, símbolos infantis e delírio adolescente.

A nossa bandeira foi investigativa e nossa entrada, pacífica. A ideia platônica de trenzinho da alegria estava em nossa mente: um veículo mais ou menos comum que reboca vagões coloridos seguido por pessoas fantasiadas formando um pitoresco comboio cuja única função é circular pelos pontos turísticos de cidades pequenas — a orla, o coreto, a igreja, a ponte mais bonita. Sabíamos, contudo, que em Ribeirão Preto havia alguma coisa diferente por causa do trenzinho mais famoso do Brasil, o Trenzinho Carreta Furacão.

Ele foi o primeiro tipo exportação da cidade. No vídeo que correu a internet em 2010, Homem-Aranha, Fofão, Palhaço, Capitão América e Popeye marcam a cultura popular do país ao deturpar nosso imaginário lúdico com molejo, suíngue e mistura que só um Brasil brasileiro é capaz de oferecer. “Samba do Mestiço”, na trilha do vídeo original, canta para seguir em frente e olhar para os lados. E nessa toada o Carreta Furacão chegou aos canais de TV aberta naquele ano.

Os trenzinhos hoje são marco na internet brasileira em novos clássicos como Fofão sobe o muro, mas eles também são parte fundamental de Ribeirão Preto há pelo menos trinta anos. E isso não fica evidente na piada do meme ou do programa de auditório. A cidade tem a única organização exclusiva da classe no país, a Associação de Trenzinhos, com 14 empresas. Esse é apenas mais um detalhe de um fenômeno cultural interessante e de muita festa.

[olho]”Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”[/olho]

Seus protagonistas são garotos como Renan e André Luiz “Sheyck”. Os irmãos de 17 anos, com apenas meses de diferença de idade, vivem na periferia de Ribeirão Preto. Eles estudam e trabalham de dia. À noite, saem de casa com uma fantasia remendada e um capacete de isopor embaixo do braço. De 20h a 23h, são estrelas do Trio Big Folia, trenzinho da empresa Dominium — também proprietária do Carreta Furacão. Um dos maiores da cidade, o mastodôntico duplex ambulante de luminosos e som potentes é palco para Renan, o Palhaço, e André, o Fofão.

“Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”, diz André. O cruzamento de espécies que resultou no personagem original não previa a aparição de uma linhagem hábil nas peripécias que ele faz. O Fofão de André sobe um muro e posa sob a luz em seu topo ao som de MC Sapão, dá um mortal apoiado na parede como Jackie Chan e treme os quadris freneticamente como uma integrante do Bonde das Maravilhas — tudo em cinco minutos. “Tem que ser louco!”, completa Renan. “Tem que passar dos limites!”

Encarnar o Fofão é atingir o mais alto nível no plano de carreira dos trenzinhos. O Palhaço vem a seguir. “É como qualquer empresa: quer subir?”, me perguntou Renan. “Tem que fazer por merecer.” Os personagens com as cabeleiras vastas são os mais cobiçados entre os dançarinos. Com trejeitos femininos, eles jogam as madeixas de lã de um lado para o outro. Nasce um novo gênero com uma dança que mistura passinhos do funk paulista, breakdance e footwork.

A coreografia é liderada pelo dançarino que dispara à frente. “Trenzinho é um pouco de tudo: axé, sertanejo, funk, arrocha, eletrônica”, explica Renan. Tem também parkour aplicado aos obstáculos próprios de uma cidade do interior, destreza de pixadores na escalada de muros e acrobacias circenses e humor pastelão de grupos como Os Trapalhões ou Os Três Patetas — ainda não tenho certeza se um cachorro realmente mordeu a bunda de um dos dançarinos que rebolava junto ao portão de uma casa.

Os garotos pouco ensaiam e de vez em quando vão a um parque para tentar uns passos. Quedas e acidentes são frequentes, mas a máscara dos personagens não cai. Enquanto dão voltas pelas quadras, os trenzinhos disputam espaço com carros e motos acostumados à festa itinerante. Entendi por que o Popeye é atropelado enquanto o Fofão sobe o muro quando eu mesmo corria ao lado dos trenzinhos. “Eu já fui atropelado por bike, moto, carro”, diz Renan. “Teve uma moto que me jogou pro alto, mas nem me machucou.”

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Leandro Wesley e os irmãos Renan e André Luiz “Sheyck”. Crédito: Felipe Larozza

Garotos com suas bicicletas também disputam o espaço durante a noite nas ruas de Ribeirão Preto. No decorrer do trajeto do trenzinho, aumenta a quantidade de moleques sobre duas rodas naquela carreata pela cidade. Uma senhora descontente sai de casa. “Eu acho isso horrível. Tem até consumista aí no meio”, diz ela, sobre o uso de drogas. Uns garotos baforam loló, outros fumam cigarro artesanal. A maior parte só passa em alta velocidade ao lado dos dançarinos. “Eles trombam na gente e falam: você está na minha quebrada!”, explica André.

Contei trinta desses garotos em uma das voltas do Trio Big Folia numa noite de sexta no entorno da desleixada praça Rômulo Morandi. Do chão, eles observam o espetáculo com reverência e desprezo por um motivo evidente: garotas, cujos olhares se voltam para os dançarinos. Mais de vinte meninas compõem o público. De roupas de festa e maquiagem pesada, elas gritam, batem palmas e rebolam até o chão. Enquanto mães e filhos pequenos ficam no térreo, as adolescentes desfilam pela cidade no topo do trenzinho.

GALERIA: Veja mais fotos dos trenzinhos em Ribeirão Preto

O andar de cima parece acessível somente a quem está na puberdade. Vitória Teodoro comemora seu aniversário de 15 anos naquela noite. Passa das 22h. Sua irmã pequena, Sofia, acompanha o cortejo bocejando vez ou outra, mas suas amigas aproveitam o passeio como quem vai a uma animada festa de aniversário. Dançando, elas chamam a atenção dos garotos de bicicleta; esgoelando-se, elas chamam a atenção dos dançarinos que correm no chão.

Vitória diz que sempre acompanha o Trio Big Folia. Os grandes trenzinhos da cidade têm seu séquito fiel. No Facebook existem páginas dos fã-clubes formados exclusivamente por garotas, como as Trenzetes. As Dominiunzetes, por exemplo, adoram os trenzinhos da Dominium — Carreta Furacão incluso. Como qualquer grupo do tipo, seu álbum online tem fotos e vídeos dos ídolos, os personagens.

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Vermelho é a cor mais quente. Crédito: Felipe Larozza

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Fama, mulheres e brigas

Alguns dançarinos me falaram que em Ribeirão Preto existe até o apelido de “Maria Trenzinho”, dado às garotas que têm preferência pelos personagens de trenzinho. “Tem uns caras que zoam a gente, mas a gente pega muita mulher!”, diz João Victor Urbines, dançarino do Trio Trem Balada. Propriedade da Tony Leme Eventos, esse trenzinho de dois andares, som potente e muitos luminosos disputa o título de maior da cidade com o Trio Big Folia da Dominium.

João tem 21 anos, seis deles dedicado a dançar como personagem. Há pouco tempo ele se tornou pai, então arranjou um emprego comum para os dias da semana. Nos fins de tarde de quinta a domingo, contudo, ele vai até o bairro Planalto Verde para encontrar seus amigos de equipe. Muitas vezes ele tem de ajudar na manutenção do trenzinho do qual faz parte, carregando alto-falantes, ou soldando alguma peça com os olhos fechados — não há máscara para protegê-lo das faíscas. Quando a noite chega, é hora de sair.

O Trio Trem Balada tinha uma agenda cheia a cumprir naquele sábado. A bordo, os moleques na faixa dos vinte anos estão mais acostumados ainda. Eles bebem uma mistura alcoólica no andar debaixo. Em cima, seguram uma caixa de som atentos a árvores e fios elétricos que passam rentes à cabeça.

Pouco a pouco eles entram no personagem. Trocam as camisas do Barcelona e bermudas da Hollister por panos puídos sobrepostos em camisetas velhas, meias longas de cores berrantes, calças largas de material leve e tênis baixos de sola aderente. Eles enfiam a cabeça nos elmos depois de vestir as armaduras de tecido. Quando pisam no asfalto, os garotos formam uma gangue de máscaras: Mario, Luigi, Patolino, Patati, Patatá, Mickey, Cebolinha e Fofão — personagem encarnado por João.

O primeiro compromisso é em um buffet a quinze minutos do centro. Francieli Esteves, recepcionista de 33 anos, tinha contratado o Trio Trem Balada para a festa de aniversário do filho, Rafael Lopes, de 2 anos. “A gente é mais chegado nesse trenzinho”, diz ela ao descer do veículo. “Toda quinta-feira a gente vai pra praça ver esses personagens.” Astros da festa, os dançarinos abrem o espetáculo com apresentações individuais. Dali em diante se vê um rebuliço, uma zona, um alvoroço vistos em poucos lugares do mundo.

Um outro trenzinho cruza o caminho logo na primeira esquina. Trata-se do Carreta Tremendão, com cinco dançarinos. Um veículo dá preferência ao outro, mas no chão os garotos disputam o espaço como guerreiros tribais. Cercada por meninos de bicicleta, a aglomeração com mais de dez personagens parece um círculo aberto para bate-cabeça em um show de death metal. Pisando com força no asfalto, ficando cara a cara a poucos centímetros das máscaras e simulando chutes e socos, os dançarinos quase partem pra porrada.

João já tinha me mostrado um vídeo em que está prestes a brigar com outro personagem. Vestido como Fofão, ele toma um soco do Mickey de outra equipe. “A gente sabia que a gente tinha treta, ele acha que é bonzão”, diz. “Eu estava dançando, aí ele veio e eu fiquei bravo”. A confusão foi evitada pelos seus companheiros, mas nem sempre é assim. No YouTube é possível encontrar vídeos de tensos encontros entre trenzinhos — outro sinal da ocorrência dos conflitos.

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De dia, os dançarinos também trabalham na manutenção dos trenzinhos. Crédito: Felipe Larozza

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“Todo mundo já brigou”, me conta Renan, o Palhaço do Trio Big Folia. “Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”. Além do ego, rivalidades entre grupos, desentendimentos por namoradas e provocações simples podem dar em confusões perigosas. “Acho que antes de existir Associação a molecada que trabalha com trenzinho era mais unida que agora”, diz João. “Tinha menos briga, mas tinha umas que dava até morte.”

O clima pesado ficou apenas na ameaça naquela noite. Após o encontro com o outro trenzinho, o Trio Trem Balada segue em um frenesi dantesco. O volume da música é nocivo ao lado dos alto-falantes, as luzes piscantes confundem os olhos. O alarme de um carro dispara. O Patolino acende um rojão que explode a poucos metros do chão. O Patati entra em uma casa, o Patatá toca a campainha de outra. Mario e Luigi sobem rapidamente em um beiral de três metros de altura — atendendo a pedidos do público. Num pedaço de terreno baldio, o grupo se espalha dançando numa coreografia feita para levantar poeira.

[olho]”Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”[/olho]

De repente, todos os dançarinos sobem na caçamba de um carro utilitário. A suspensão do veículo sente o peso. O motorista buzina. Ele ri de alegria. Uma pequena que tem a idade do aniversariante da noite está no banco de passageiros com cara de quem adora aquela farra mesmo sem entendê-la. Crianças são prioridade dos personagens. Algumas pessoas saem de suas casas para saudar a bagunça. “A gente gosta, passam vários por dia”, diz uma senhora.

Apenas convidados da festa podem subir no trenzinho — nas praças, basta pagar três ou quatro reais para embarcar. Além da garotada nas bicicletas, do fotógrafo e de mim, outro grupo o acompanha do chão. Como os personagens, eles têm máscaras, roupas coloridas, muito pique e uma destreza com o corpo que lhes permite fazer o quadradinho de oito do funk, o top rocking do breakdance e até o espacáte do balé clássico. No entanto, é tudo mais mambembe, malajambrado. E o grupo tem média de um metro e meio de altura.

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“Os tremedeira”. Crédito: Felipe Larozza

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Eles são os seguidores: garotos com menos de 15 anos que se fantasiam, brincam e atuam como os dançarinos oficiais. Eles aguardam os trenzinhos nas noites de quinta a domingo nas imediações de praças e buffets marcando território como a gangue de menores do filme “Cidade de Deus”. A lei natural que passa de boca a boca os autoriza a ficar ao lado do veículo oposto ao lado reservado aos dançarinos oficiais. De vez em quando, todos dançam juntos na frente dos trenzinhos. É um encontro de gerações.

Alguns seguidores dão nomes para seus grupos. A equipe que dança ao lado do Trio Trem Balada naquela noite se autodenomina “Os Tremedeira”. “Isso aqui é uma diversão que você nem imagina”, diz Pedro dos Santos, um dos integrantes do time. Durante o dia, estuda; à noite, fica em busca de trenzinhos no seu bairro. Ele sonha em ser um dançarino oficial das equipes. Por quê? “Estou fazendo uma criança feliz e fazendo algo que eu gosto: dançar no trenzinho.” Pedro usa a máscara do Pica-pau. Ele tem 13 anos.

O garoto reproduz o discurso dos mais velhos que, por sua vez, reproduzem o discurso de ídolos: jogadores de futebol, cantores populares e celebridades unânimes. A grana que os dançarinos de trenzinho ganham, no entanto, está bem aquém da remuneração nessas categorias. Deydison Santos é o Mickey no mesmo grupo do João. Ele diz que ganha sete reais por festa. Isso dá, em média, sessenta reais por fim de semana. Ele trabalha durante o dia e vai ao trenzinho por prazer. “Isso aqui pra mim é um rolê”, diz ele.

Tiquinho, como é apelidado Deydison, tinha desistido da vida de dançarino há alguns meses por causa do trabalho na organização de festas e shows em Ribeirão Preto. Ele fez 20 anos em março de 2015, mas o fim da linha para a maior parte dos personagens de trenzinho costuma chegar mais tarde, aos vinte e poucos. Além da vida adulta, até relacionamentos botam fim à carreira. “Tem namorada que diz ‘ou eu ou o trenzinho!'”, diz André, o Fofão do Trio Big Folia.

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Uma avalanche de referências desconexas. Crédito: Felipe Larozza

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Um de seus amigos, Gabriel Lopes, é outro exemplo de quem faz participações especiais por causa da saudade. Ele tem 17 anos, mas parou com a vida de dançarino logo cedo porque seu joelho esquerdo não suportava mais a frenética rotina de saltos, correria e passos sensuais que dura até cinco horas por noite. Se dá vontade, ele volta à ativa. “Quando eu ponho a fantasia não dá pra ficar parado, aí eu só sinto o joelho depois”, diz ele. “Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair.”

Sem fantasia, os garotos passam despercebidos até entre eles mesmos. Eles são apenas jovens com espinhas na cara às portas da vida adulta. O bom-humor e o erre retroflexo típico do interior fazem parte deles tanto quanto as incertezas adequadas à idade. Não fosse por alguma ótima oportunidade, Renan diz que não faria as estrepulias que faz desprovido de seu traje super poderoso. O que você sente quando coloca sua fantasia? “Emoção”, diz ele.

[olho]”Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair”[/olho]

O fim do encantamento está marcado para meia-noite. As festas ou as voltas na praça terminam por volta de 23h. Os personagens tiram suas fantasias. Uns vão gastar o curto soldo em outras festas e outros vão descansar para o dia seguinte. Na cidade não há rastro da barulheira dos vários alto-falantes, nem sombra das lâmpadas cintilantes dos trenzinhos. Nas ruas por onde passou uma tempestade de gente fantasiada, o dia vai nascer sob a imperativa calmaria do Brasil profundo.

 

Trenzinho para tudo

Todo tipo de evento tem um trenzinho em Ribeirão Preto. Festa de aniversário de senhoras centenárias, festa de aniversário de animais de estimação, casamentos, festas de 15 anos, rodeios, inauguração de supermercado, encontro empresarial, balada universitária, dia das crianças. Das mais impensáveis que ouvi, pude viver a pregação de uma igreja evangélica sobre um trenzinho. A louvação em forma de cortejo neon aconteceu no sábado à noite a pedido da Igreja Batista do Simioni, bairro da periferia da cidade.

O Trio Trem Balada fora contratado para o evento. Ao se aproximar da igreja, o som emitido pelo trenzinho muda de “Farra, Pinga e Foguete” para uma canção da cantora gospel Aline Barros. Os dançarinos são dispensados quando o veículo para. Três equipes de fiéis são formadas: enquanto uma embarca, outras duas ficam encarregadas de panfletar com santinhos pelo trajeto. Os times de jovens adultos, homens e mulheres, se revezam a cada 15 minutos entre o chão e o trenzinho.

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Crédito: Felipe Larozza

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“A gente se juntou com outras igrejas para falar de Jesus para outras pessoas”, me explica Nemias Magalhães, 26 anos, organizador do evento. “O trenzinho é só um meio de chamar atenção, a gente quer falar de Jesus Cristo.” É a primeira vez que eles chamam um veículo daquele tipo para pregar os ensinamentos cristãos pelas ruas da cidade. Isso fica flagrante com o andamento do trenzinho. “Grita quem vai pro céu” e “cuidado com o galho!” são duas frases ditas com frequência — ainda assim, duas árvores me acertam.

Nemias volta a falar comigo quando voltamos a ficar de pé, ultrapassados os obstáculos. “A gente está acostumado com o trenzinho aqui e, por onde ele passa, as pessoas param, olham, acham legal”, diz ele. “Agora a gente uniu o útil ao agradável: evangelizar e chamar a atenção das pessoas.” No chão, seus colegas conversam com transeuntes. No trenzinho, os fiéis gritam: “Ah! Eu sou de Cristo!” enquanto balançam seus cartazes de cartolina.

Silmara Gonçalves é uma das passageiras da noite. Ela tem 35 anos e afirma sem pestanejar que tem trenzinho em Ribeirão Preto desde que era criança — uma época em que eles eram menores, seu público era essencialmente infantil e suas canções falavam de temas lúdicos. Silmara também não titubeou ao dizer o que pensa das músicas que geralmente fazem a cabeça da molecada que frequenta o trenzinho: “É algo muito imoral para crianças”.

O mecânico Pélcio Ferreira reforçou o coro: “Hoje em dia tem que tocar esses raio desses funks”. Mineiro de Governador Valadares, ele saiu da cidade a bordo de seu trenzinho em 1983. Foram anos numa vida de circo. “A gente ficava uns seis meses em cada cidade”, diz ele. “A gente alugava uma casa e no fim de semana ficava na pracinha”. A rotina andante chegou ao fim em Ribeirão Preto por caprichos do coração: Pélcio conheceu sua amada, casou-se, fixou pouso e virou o maior mecânico de trenzinhos na cidade.

Ele abriu sua oficina em 1998 e, hoje, boa parte dos trenzinhos da região saem de lá. “O trenzinho começa do zero”, explica ele. “Às vezes é um chassi de caminhão pra fazer e às vezes é ônibus, aí a gente corta e utiliza a estrutura mecânica.” Diferencial de um, motor de outro, câmbio daquele e sistema de freio daquele outro dão forma a um frankenstein metálico sobre rodas. Sem pintura ou acabamento, um trenzinho fica pronto em dois meses por R$ 80 mil. “Você pensa, nós faz”, diz ele.

O mecânico tem seu próprio trenzinho: o carcomido City Bus, construído em 1992. Além de fabricação, ele também faz manutenção dos brilhantes veículos. O trabalho é preventivo, embora às vezes ele tenha de socorrer um ou outro trenzinho que para no meio do trajeto. A demanda de construção e cuidados cresceu desde os anos 90. Hoje, metade do faturamento da sua oficina vem do trabalho com Carretas, Trios, Naves, entre outros, mas os negócios estagnaram. “Com essa crise, está tudo parado.”

 

Dos pés à cabeça

Alguns motoristas de trenzinho sabem lidar com problemas mecânicos urgentes dado o tempo de dedicação. Fabio Jeferson, 29 anos, dirige trenzinhos há sete anos. Ele trabalhou como personagem dos 14 aos 25 anos. Hoje, fica atrás do volante do Trio Big Folia mantendo o motor entre a primeira e a terceira marcha. “Dou uma volta de 45 minutos e volto pra descarregar o pessoal”, diz ele. “Tem que prestar atenção em velocidade, galhos, fios, altura do som, meninos que ficam tumultuando na lateral.”

Quem ajuda Fabio na labuta é João Quaglio, 17 anos. Ele trabalha ao lado dos passageiros como DJ de trenzinho. Suas funções são selecionar as melhores músicas em um aparelho similar a um rádio de carro, regular o som em uma mesa de som adaptada e abaixar o volume quando passam em frente a igrejas ou hospitais. Seu naipe bonachão, sua voz empostada e o microfone na mão denunciam algo mais. “Sou locutor também e tenho de agitar a galera”, diz ele. “Sempre foi meu sonho trabalhar com trenzinho.”

Apesar da diferença de idade, Fabio e João frequentam trenzinhos desde moleques. Fabio começou a brincar como seguidor aos 10 anos. A vontade de participar daquilo era tamanha que levou o então garoto a fazer suas próprias cabeças de personagem. “Você faz uma máscara com um bloco de isopor, vai fazendo no formato da cabeça”, diz Fabio, esculpindo o ar. “Depois tem a fibra de vidro, o mesmo material usado em capacetes de moto.” Cada máscara leva três dias para ser feita ao preço médio de R$ 250.

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Crédito: Felipe Larozza

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A identidade dos personagens está quase somente no rosto que carregam. Como poucas fantasias são fiéis aos modelos originais, não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó — uma colcha de retalhos. Ainda assim, existe um mercado de roupas específicas para os dançarinos. “Se eu vejo na rua, eu sei exatamente qual fantasia eu fiz”, diz Tania Cardoso, 52 anos, costureira que confecciona roupas para trenzinhos há dez anos.

Seu primeiro molde foi feito em 2005. Ele foi destinado a seu próprio filho que era personagem de trenzinho. Hoje em dia, ela costura camiseta e macacão em apenas um dia cobrando R$ 50 pela mão de obra. O trabalho é constante: como a correria é grande, as fantasias rasgam com frequência. Cabe ao dançarino cuidar do seu uniforme de trabalho, às vezes até facilitando o reconhecimento do público com um detalhe ou uma estampa. “São eles que colocam os nomes dos personagens na fantasia”, diz Tania.

Além do isopor, os materiais mais usados na confecção do conjunto são cetim e lã para o cabelo e acabamento das mãos e pés. A Palhaçaria, única loja especializada da cidade, vende seus melhores trajes por cerca de R$ 420 — um baita presente para crianças que se divertem nos trenzinhos. “Os pais que podem dão a festa de aniversário e compram a roupa do Fofão, mas alguns trocam a festa pela roupa”, diz Sandra Cruz, 42 anos, gerente e coproprietária da loja. “Tem crianças que dizem: ‘eu só quero ganhar a roupa!'”

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Crédito: Felipe Larozza

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Segundo Sandra, 60% do rendimento da empresa vem de fantasias. Cerca de 60 conjuntos de vários tamanhos e modelos são vendidos mensalmente. “Temos fantasias para outros estilos também, mas as fantasias do trenzinho são carro-chefe”, diz ela. Os personagens são vários: Mario, Luigi, Cebolinha, Cascão, Mônica, Magali, Ben 10, Máscara, e por aí vai. Adivinhe quais os mais procurados? “Fofão e Palhaço são os personagens que mais vendem.”

[olho]Não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó[/olho]

Sandra e sua irmã fundaram a loja há quatro anos. A mãe delas faz fantasias desde 2008 e a demanda aumentou com o sucesso da confecção. Sandra lembra que sua casa vivia cheia de garotos e donos de trenzinho em busca de fantasias. O bico virou emprego em tempo integral quando os rendimentos aumentaram. “Eu e minha irmã deixamos nossos trabalhos para investir nisso”, me conta ela. “Hoje nós vivemos da loja, praticamente três famílias vivem da loja.”

Que trem é esse?

Como não há literatura a respeito, existem poucas informações confirmadas sobre a cultura dos trenzinhos no Brasil. Em arquivos da década de 50 é possível encontrar as primeiras menções ao termo. Em 1956, um trenzinho dava voltas pelos gramados ainda pelados do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Em 1958, uma loja da falida rede Mappin contratou um trenzinho para comemorar o Natal. Segundo uma carta enviada por um leitor ao Estadão, coube a um funcionário empurrar o trambolho pelas ruas no centro de São Paulo.

A Trenzinho Star Tolomelli, de Governador Valadares, é uma das empresas mais antigas do ramo ainda em atividade. Criada em 1979, ela hoje tem um dos mais famosos trenzinhos da cidade mineira. Seu fundador não revela o nome por receio de se tornar muito conhecido. Ele tampouco confirma a lenda de que construiu seu primeiro trenzinho inspirado após uma visita à Disney nos anos 70 — os recorrentes casos de valadarenses que migram para os Estados Unidos dão um toque de realidade ao mito fundador.

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Em uma conversa por telefone, contudo, o senhor responsável pela Star Tolomelli conta vantagens de alcance nacional. Apoiando-se em conversas de colegas de trabalho, ele afirma ter sido o primeiro a construir um veículo de dois andares no Brasil, há 30 anos, e ter estreado os tipos de caminhões usados hoje em trios elétricos baianos, também há três décadas. Ele arrisca uma cifra. “Os trenzinhos empregam mais de cinco mil pessoas, direta e indiretamente, em todo o Brasil.”

Hoje, o plantel de trenzinhos da Star Tolomelli diminuiu de cinco veículos espalhados em São Paulo, Minas Gerais e Bahia para um único representante em Governador Valadares. O modelo é sofisticado: tem Wi-Fi, banheiro, DJ profissional, palco e, claro, personagens. “O pessoal universitário aderiu ao trenzinho, tem gente que me fala que vinha no trenzinho quando era filho e agora traz o neto e o sonho das crianças aqui é trabalhar no trenzinho Star Tolomelli”, afirma o anônimo empresário. “Passou a ser uma cultura.”

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À exceção da alta velocidade dos seus trenzinhos, a cidade mineira repete o esquema de Ribeirão Preto: exímios dançarinos fantasiados, público adolescente, músicas de sucesso, veículos gigantes e ostensivas turnês locais e regionais. A cultura dos trenzinhos ribeirão-pretana, no entanto, se apoia na fraqueza do equipamento e do sistema públicos de lazer, esporte e cultura; no elevado índice populacional frente a outras cidades do interior; e na relevância regional da cidade.

Para 2015, por exemplo, a despesa da prefeitura de Ribeirão Preto com as pastas de cultura, lazer e esporte foi orçada em cerca de R$ 24 milhões. Isso corresponde a 1,2% do R$ 1,8 bilhão investido ou R$ 36 por ano para cada um dos 666 mil habitantes estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Segundo a mais recente classificação do órgão, a cidade apresenta o 28º maior PIB do país, uma pirâmide etária larga nas faixas de 15 a 34 anos e IDH 0,800 — índice muito alto.

A pujança interiorana se deve parcialmente a séculos passados. O campus da Universidade de São Paulo que alimenta a cidade com novos profissionais ocupa o que fora uma fazenda cafeeira até meados de 1950. As lavouras da região agora são lembranças em ruas asfaltadas como a principal via de acesso a USP, a Avenida do Café. Segundo um recente levantamento, a cada quatro habitantes de Ribeirão Preto, três estão empregados no setor de comércio e serviços. E eventos como o último Agrishow mostram que o agronegócio diminuiu.

Esse misto de importância socio-econômica, desenvolvimento relativo, políticas públicas lenientes, população jovem e clima de interior criou um cenário favorável ao agigantamento metamórfico dos trenzinhos na cidade. “O pessoal de Ribeirão Preto é festeiro pra caramba também”, me explica Wellington Cardoni, 37 anos. Ele e sua esposa, Fabiana Cardoni, 34 anos, são proprietários da Dominium, maior empresa de trenzinhos da região. Com cinco veículos e quarenta funcionários, eles chegam a fazer cento e sessenta festas por mês.

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Wellington e Fabiana no pátio de trenzinhos da empresa do casal. Crédito: Felipe Larozza

“Quando era criança, eu andei muito no trenzinho Pancadão porque tinha um supermercado que chamava ele toda semana das crianças”, me conta Wellington. “Tinha gente virando a esquina na fila, tinha a Cuca, o Fofão… Eu não imaginava que esse trenzinho ia ser meu.” Esse foi o terceiro trenzinho comprado pela sua empresa. O primeiro foi o singelo Encantado. O segundo foi o clássico Carreta Furacão. Até hoje, ele é a maior locomotiva do sucesso da Dominium.

Quem vê o sorridente rosto estampado na frente desse trenzinho mal sabe que ele não passava de tristes ferragens largadas em uma garagem em Franca, cidade do interior de São Paulo, em 2010. O antigo proprietário tinha começado a montar o veículo havia alguns meses, mas ele não pôde finalizar obra. Ao saber disso, Wellington e Fabiana arremataram o potencial trenzinho por R$ 50 mil. Ele só foi à rua após ganhar reforma e nome. Naquele mesmo ano, o Carreta Furacão foi ao mundo na filmagem de um segurança da equipe.

“Quando o cara que vendeu descobriu o sucesso, ele ligou pedindo pra gente vender de volta”, diz Fabiana. No meio da conversa, ela atende à chamada de algum cliente da capital. O marido lembra de algumas histórias do trenzinho: a ligação feita pelo cantor Leandro Lehart agradecendo a divulgação involuntária da sua música ou os jovens dançarinos do Guarujá que cogitaram pedir emprego na Dominium. “Não tem como vender o Carreta Furacão”, sentencia Wellington. “Muitos já ligaram pedindo, mas não tem como.”

Ainda assim, a menina dos olhos é estimada pelo empresário em R$ 200 mil. O valor aumentou com a reforma concluída em outubro. A reestreia do Carreta Furacão será no Dia dos Trenzinhos, evento organizado pelo casal junto de outras empresas da cidade. Como todo dono de trenzinhos, Wellington puxa sardinha para seu lado — com um fundo de razão. “O Carreta Furacão levou o nome dos trenzinhos pro mundo”, diz ele. “Você veio de São Paulo por causa da Carreta Furacão.”

Tamanha fama não viria sem efeitos indesejados. Segundo o casal, há trenzinhos que aproveitam a relevância conquistada pelo seu trabalho. Eles relatam dois casos em que empresas fecharam contratos em nome do Carreta Furacão, mas, na verdade, outros trenzinhos foram usados nas festas. A concorrência, que chegava a seis ou oito representantes nos anos 90, hoje chega a 40 veículos em uma única cidade.”É um mercado desleal”, afirma Fabiana.

A competição fica mais acirrada com a presença de trenzinhos de outros lugares. O contrato para uma festa com trenzinho de Ribeirão Preto varia entre R$ 200 e R$ 350, mas trenzinhos forasteiros cobram até 100 reais a menos que isso. Embora Wellington tenha excursionado com sua equipe em outras cidades, ele se opõe a essa prática em sua própria terra. “Eles não pagaram o que a gente pagou pra manter advogado, assessoria, os laudos dos veículos da Associação”, diz ele.

A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto foi formada em 2011 para impedir a presença de trenzinhos de outras cidades. Desde as primeiras reuniões ela é presidida por Tony Leme. Ele construiu seu primeiro trenzinho há quarenta anos — uma Variant adaptada. Hoje, seu filho comanda o trenzinho Trio Big Folia. Presidente da Associação, o patricarca também cuida da empresa com seu nome. “Minha preocupação como presidente é ajudar os donos de trenzinho que querem ser ajudados”, diz ele.

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Tony Leme. Crédito: Felipe Larozza

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Nem mesmo o neto pequeno balbuciando a palavra trenzinho consegue derrubar o semblante turrão do empresário. Para ele, outro problema no mercado é a crise econômica. Na sua análise, ela reduziu até mesmo a procura por atividades de lazer baratas. “A crise cai sobre a população”, diz ele. “O único divertimento que uma pessoa pobre tinha até então era o trenzinho: se for ao shopping, ela gasta R$ 150; se for ao parque, ela gasta R$ 20; se for à praça, não tem nada porque está tudo destruído.”

Os proprietários da Dominium também pensam dessa maneira. Fabiana reconhece que a maior parte de seu público é formado pela camada de menor poder aquisitivo da população. O trenzinho é o único divertimento acessível a crianças e adolescentes dessa parcela. “Ribeirão Preto não tem o que fazer, é uma cidade muito grande e não tem nada”, diz ela. “Se uma pessoa tem quatro, cinco filhos, como ela vai levar todos pra um parque de diversão?”

Seu marido afirma que a Associação surge para proteger os trenzinhos, mas que ela não atua nesse sentido. “Hoje, a Associação não exerce o papel dela”, afirma Wellington. Ele também diz que há queixas de vários associados a gestão da entidade, da qual ele mesmo faz parte. Segundo o proprietário da Dominium, chegou ao fim o mandato da chapa atual da Associação, mas não houve novo pleito. “O presidente tem vantagens com trenzinhos, pra ele não é interessante essa votação”, diz ele.

Segundo o presidente da organização, nem todos associados pagam a taxa de manutenção exigida em estatuto. Tony também alega que poucos filiados ajudam nos trâmites burocráticos. Para ele, vale aquela máxima: a união faz a força. “Nós, da Associação, somos desunidos. Se alguém vier aqui, eu passo o cargo porque isso é só bucha, dor de cabeça”, afirma ele. “Mas eu não vi ninguém que vista a camisa como eu visto.”

 

Cultura pra quem?

A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto também nasceu para defender os interesses da classe ante as regulações do governo. Em 2011 a câmara legislativa da cidade deu início às primeiras discussões sobre a atividade dos trenzinhos. “A gente percebeu que, de fato, era uma atividade cultural irregular da cidade que estava trazendo uma série de situações de risco para os trabalhadores e para seus próprios usuários”, afirma Gláucia Berenice, vereadora do PSDB, em seu gabinete no prédio de inspiração brutalista que abriga a Câmara Municipal da cidade.

Segundo ela, há vários relatos de cidadãos incomodados com trenzinhos. As reclamações em geral recaem sobre o comportamento do público ou sobre as músicas dos veículos — não só o volume. “Tem letras de conotação sexual e muita apologia a criminalidade”, diz ela. A vereadora conta a história de uma mãe que acenava com o filho de colo para o personagem Homem-Aranha em um trenzinho. “Quando levantou a máscara, ele tinha um cigarro de maconha enorme na boca!” Acidentes também estão na lista de problemas.

O aumento da quantidade de trenzinhos acentuou o número de denúncias. Segundo Glaucia, o Ministério Público da cidade era favorável à proibição da atividade, mas o legislativo buscou uma alternativa. Em julho de 2013 foi aprovada a lei nº 13.030, a “lei dos trenzinhos”, após debates entre bombeiros, policiais, engenheiros, fiscais, legisladores e representantes do trenzinhos — em um dia de protesto, eles levaram os poderosos veículos para a frente da Câmara.

A lei, no entanto, criou um limbo jurídico por dois motivos. Ela prevê que todos os trenzinhos da cidade recebam um alvará da prefeitura para circular e cria um departamento de fiscalização para atender denúncias dos cidadãos, mas não determinava qual representante da prefeitura desempenharia essas funções. Sem documentos, empresários como Tony Leme e o casal Wellington e Fabiana eram clandestinos na própria cidade. Sem fiscalização, qualquer trenzinho agia como bem queria.

No papel, esses problemas foram solucionados com um novo decreto de lei publicado em diário oficial no fim de agosto. O dispositivo legal coloca o Departamento de Fiscalização Geral da Prefeitura de Ribeirão Preto para atuar junto aos trenzinhos. Segundo Osvaldo Braga, diretor do setor, uma questão simples, mas de grande importância seria resolvida até o fim de outubro. “Nós teremos a realidade de quantos trenzinhos existem na cidade porque todos terão de apresentar documentação”, diz ele.

Segundo Osvaldo, houve um grande período de debates e revisões até que a lei fosse sancionada pela prefeita. “Coube a nós estudar mais a lei e foram feitas várias reuniões no Departamento junto aos profissionais dos trenzinhos”, diz ele. Embora o alto volume do som dos veículos entre 22h30 e meia-noite seja a causa de maior parte das reclamações, os empresários do setor estavam mais preocupados com o estilo das músicas: eles queriam funk. “Era uma briga grande dos profissionais, mas prevaleceu que esse tipo de música não será executado.”

A atuação das empresas de outras cidades em Ribeirão Preto também será verificada pela fiscalização. Para Osvaldo, é preciso que todos os trenzinhos tenham CNPJ e firma aberta no município. “Temos uns três ou quatro trenzinhos de outras cidades que vêm atuar aqui e agora vamos agir no rigor da lei”, diz ele. “Será uma fiscalização árdua, principalmente nesse início, e daremos prioridade para os casos do pessoal de fora que vem trabalhar aqui.”

A punição para empresas que cometerem infrações varia de multas entre R$ 501 e R$ 11 mil a cassação do alvará. O departamento recebe denúncias no 156. Dois funcionários verificam as denúncias feitas à noite, mas eles também estão encarregados pelos casos de perturbação do sossego em toda a cidade. Por isso, Osvaldo pede que as reclamações sejam realizadas com imagens dos veículos infratores. “Se eu recebo uma denúncia, na hora que o fiscal chega o trenzinho já passou e foi embora”, diz ele.

Perto do fim da conversa, Osvaldo me conta de uma recente visita que tinha feito a Caldas Novas, no interior de Goiás: “Lá os trenzinhos não têm música alta, eles ficam andando pela cidade com um sininho.” Estranho. Caldas Novas é conhecida por dionisíacos festivais sertanejos, beberranças homéricas, canhões de luz tão potentes quanto o sinal do Batman, paredões de alto-falantes que fazem o som da percussão de qualquer arrocha estalar pelos ossos. Seriam os trenzinhos de lá meros bibelôs?

Este vídeo me mostra que sim. Depois da descoberta no interior de São Paulo, contudo, não deixo de pensar que há um potencial, um devir maior em qualquer carroça férrea que circule pelo interior do Brasil. Na saída de Ribeirão Preto, em uma calorenta tarde de domingo, vi uma dessas correndo pela estrada. A pintura opaca do dia, as lâmpadas ofuscadas pelo sol, as cadeiras vazias, o motorista oculto, os personagens ausentes. Tudo isso, mas um nome estampado. Trenzinho da Alegria.

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CHOOSE YOUR DESTINY. Crédito: Felipe Larozza

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