Dez anos atrás, no fatídico ataque do PCC e nas rebeliões que se seguiram, diversas histórias marcaram o Estado de São Paulo. Várias se perderam no mar de boatos, conflitos e confusões. Histórias como a de Araraquara, em que a penitenciária Sebastião Martins Silveira, em rebelião, sentiu a mão pesada de Antônio Ferreira Pinto, que acabara de assumir a Secretaria de Administração Penitenciária.
Convidamos o artista Rafael Coutinho para ilustrar uma história frequentemente esquecida, mas que mostra como o Estado de São Paulo estava em regime de exceção em 2006.
Em meio aos e-mails sigilosos da Sony Pictures vazados no ano passado, um datado de 7 de agosto listava três exemplos de filmes de super-heroínas que haviam sido um fracasso: “Elektra” (“péssima ideia com resultado muito, muito ruim”), “Mulher-Gato” (“desastre”) e “Supergirl” (“outro desastre”). Com o assunto “filmes femininos”, o e-mail de um executivo para outro procurava provar que, no mundo dos super-heróis, mulheres devem se limitar a papéis coadjuvantes.
Pouco mais de um ano depois, porém, o jogo virou. Este mês, em que o feminismo é o tema do momento no Brasil, marcou a estreia de duas séries praticamente opostas protagonizadas por super-heroínas: “Supergirl”, no ar na Warner, e “Marvel’s Jessica Jones”, que estreou recentemente no Netflix.
Em comum, as duas produções têm uma característica: embora as mulheres se apaixonem (Supergirl) e façam muito sexo (Jessica Jones), seus mundos não giram em torno de homens. Há romance, mas elas estão bem longe de ser comédias românticas. De resto, as duas produções atendem a diferentes tipos de público. Enquanto “Supergirl” é solar, feita para ser vista comendo pipoca num domingo à tarde (algo como “The Flash”, também da Warner), “Jessica Jones” é soturna e super tensa (não por acaso, mais parecida com “Demolidor”, também do Netflix).
Das duas, “Supergirl” é quem faz mais questão de explicitar seu feminismo. Kara (Melissa Benoist) é prima de Clark Kent, o Super-Homem, e foi enviada à Terra com ele para protegê-lo quando ele ainda era um bebê. Sua viagem espacial, no entanto, dá errado e ela passa 24 anos vagando em uma zona na qual o tempo não passa. Quando ela finalmente chega, Clark já é adulto, enquanto ela ainda tem 13 anos. Os papéis se invertem e é ele quem, para ajudá-la, a coloca em uma família humana para que ela viva uma vida normal.
Kara arruma um emprego de assistente em uma grande empresa de mídia cuja dona (fato raro na vida real) é uma mulher: a casca-grossa Cat (Calista Flockhart), uma aprendiz de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”. “Achei que seria legal trabalhar para uma figura feminina poderosa”, diz Kara logo no início, na primeira de várias frases que exaltam o poder de mulheres fortes de influenciar as outras.
Quando Kara vê na televisão que o avião em que viaja sua irmã está prestes a cair, ela resolve usar seus poderes depois de anos para salvá-la. Ao se dar conta do que é capaz de fazer com suas habilidades, ela sorri, legitimamente contente por ter feito o bem. Já é tarde para proteger Clark, pensa ela, mas há um planeta todo cheio de pessoas indefesas a quem ela pode ajudar.
Na escolha do uniforme, a série não deixa de alfinetar as tradicionais produções de super-heróis e suas mulheres espremidas em roupas justíssimas, pouco funcionais para lutar. “Eu não usaria isso nem para ir pra praia”, responde Kara quando lhe apresentam um uniforme que lembra a clássica roupa da Mulher Maravilha, mas com mais pele à mostra. Kara também questiona o nome “supergirl” (super menina, vejam bem, e não mulher). Obviamente a série não poderia trocar o nome da personagem, então explicam a escolha assim: se você acha que uma menina é algo menos que incrível, o problema é você.
Outras questões feministas são abordadas logo no primeiro capítulo: a novidade que é finalmente ter uma super-heroína forte para meninas se espelharem, o fato de mulheres não serem levadas a sério por alguns homens e às vezes temerem ser assertivas para não desagradar ninguém — como Jennifer Lawrence declarou recentemente em uma carta explicando como se sentiu após descobrir que ganhava menos que seus colegas homens.
Não se trata, porém, de uma série que bate somente na tecla da desigualdade de gêneros. De cara Kara se interessa pelo fotógrafo James Olsen (Mehcad Brooks), preenchendo o campo “romance” inevitável nessas séries mais leves. Há também boas sequências de ação, indispensáveis para uma produção do gênero. No episódio de estreia Kara descobre que uma nave cheia dos alienígenas mais perigosos do espaço caiu na Terra quando ela chegou. A série dá a entender que seguirá o esquema “vilão da semana”, com a Supergirl enfrentando um antagonista diferente a cada episódio.
É muito cedo para dizer se “Supergirl” será um sucesso, mas os primeiros resultados de audiência nos Estados Unidos mostram que nada impede que uma série protagonizada por uma super-heroína dê certo. Na primeira semana, foi a série nova mais vista da temporada, com 12,95 milhões de espectadores. Na semana seguinte, houve uma queda e 8,86 milhões a assistiram, mas ainda é um número longe do desastre previsto pelos executivos da Sony.
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FORÇA BRUTA
Enquanto “Supergirl” afima com todas as letras que está ali, sim, para discutir questões de gênero, “Jessica Jones” adota uma abordagem menos literal. “Supergirl” é o primeiro passo. Precisa ser tão didática e reforçar o tempo todo como é pouco usual ter uma super-heroína? O ideal é que no futuro isso seja tão normal que não seja mais uma questão e que esse “quer que eu desenhe” seja desnecessário. Mas por enquanto, a série tem suas razões.
“Jessica Jones” é o próximo passo. Em nenhum momento alguém estranha o fato de Jessica conseguir parar um carro em movimento ou alcançar a varanda de um prédio com um pulo. Ninguém se espanta por ela ser mulher, ela não reforça sua feminilidade e seu gênero não é mencionado uma só vez. Mas é impossível ver a série e não ter certeza de que mulheres podem ser tão fortes, em todos os sentidos, quanto homens.
Nos quadrinhos da Marvel, Jessica Jones é uma personagem que atuou como a heroína Safira, fazendo uma pequena participação no grupo dos Vingadores. Depois de atacar a Feiticeira Escarlate a mando de Kilgrave (o Homem-Púrpura), que a controlava mentalmente, ela é agredida e entra em coma. Após despertar, ela larga a vida de heroína e abre uma agência de investigações e procura levar uma vida normal.
A série traz algumas mudanças em relação aos quadrinhos e acompanha a rotina de Jessica (Krysten Ritter) após seu período como super-heroína. Ela toca seu negócio de investigação sofrendo de transtorno do estresse pós-traumático depois de Kilgrave ter feito com que ela cometesse atos horríveis. Depois de descobrir, no episódio de estreia, que ele não está morto como ela pensava, Jessica resolve que sua missão será encontrá-lo e acabar com ele.
Diferente da Supergirl, que é doce e só quer fazer o bem, Jessica é perturbada pelo passado, enche a cara, transa com desconhecidos, e se pudesse cairia fora dali para levar uma vida normal. Jessica é uma mulher como outra qualquer, cheia de defeitos, mas calhou de ter super-poderes. O fato de não ser perfeita a torna ainda mais interessante. Se é comum vermos homens complexos como Don Draper (“Mad Men”) e Walter White (“Breaking Bad”), o mesmo não se podia dizer, até pouco tempo, das mulheres. Jessica é um refresco.
As cenas de luta também diferem bastante das de “Supergirl”. Lá, a heroína voa, enxerga através de portas, ouve tudo, solta raios pelos olhos, tem uma força descomunal. Tudo nela é “super”. As batalhas são cheias de efeitos e fica claro que aquilo nunca, nunca aconteceria no mundo real. Jessica é mais vulnerável. Ela é extremamente forte, mas basta uma bala para pará-la. Suas brigas são no corpo a corpo e embora a gente saiba que a vantagem dela, há uma sensação de que tudo pode acontecer.
Basicamente, as duas séries têm pouco em comum. “Supergirl” é daquelas que você pode passar um mês sem ver e retomar depois, tranquilamente, quando quiser se divertir um pouco. Já “Jessica Jones” é tão eletrizante que dá para ser vista toda num fim de semana. São séries para públicos e momentos distintos, o que é bom. Tanto uma quanto outra provam que a Sony se equivocou. Desde que seja bem feita, não importa se a produção tem um super-herói ou uma super-heroína.
Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.
A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.
Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.
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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).
Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.
Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.
Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.
Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.
No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.
“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.
Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”
Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.
“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.
REALIDADE E PRAZER
Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”
[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]
Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”
Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.
Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”
Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”
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HIATO
Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”
Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”
A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”
“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”
Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.
No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”
NAS TELAS
Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”
Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”
O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”
E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”