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‘Gilmore Girls’ e a melancolia

Dizer que “Gilmore Girls” é uma série super realista seria um exagero. Da mágica Stars Hollow, com seus mil festivais e habitantes malucos a velocidade em que as pessoas falam, passando pela quantidade de besteira que as protagonistas comem sem engordar um grama, há muito de fantasia ali. Mas poucas séries conseguem captar como “Gilmore Girls” as complexidades das relações, principalmente familiares. Quando Lorelai, Rory e Emily brigam, trazem à tona década de ressentimentos e vão direto na jugular. Quando se divertem, é com piadas internas cultivadas ao longo de toda uma vida. As dificuldades, as decepções da vida, estão todas lá.

Quando a série terminou na televisão, com a sétima temporada — a única sem a criadora, Amy Sherman-Palladino, no comando –, seu final foi bem aberto. Rory conseguiu um emprego num site pequeno para cobrir a campanha de Barack Obama, Lorelai deu um beijo em Luke, Emily e Richard foram prestigiar a filha e a neta numa grande festa em Stars Hollow. A partir disso, cada um podia imaginar o final que queria. O site de Rory podia ter estourado, ela podia ter conseguido emprego num jornal, poderia estar morando em Nova York ou na Europa, poderia ter voltado com um dos ex-namorados, ou ter conhecido alguém novo, ou estar sozinha. Poderia ter casado, poderia ter tido filhos, ou nada disso. Lorelai podia ter se reconciliado com Luke, casado com ele, tido mais filhos. Ou o beijo poderia ser só uma recaída. Havia uma série de finais felizes possíveis.

Mas não seria “Gilmore Girls” se houvesse um final feliz. Então nos quatro novos episódios, lançados no Netflix, vemos que para Rory, Lorelai e Emily tudo continua complicado como sempre. (Atenção, spoilers a partir daqui!) Não, Rory não voltou com Jess nem estourou como jornalista — nem com um currículo como o de Rory está fácil. Quando a temporada começa, ela acaba de publicar um artigo na New Yorker e acha que com isso muitas portas irão se abrir. Desdenha de uma vaga num site menor e vive viajando o mundo com seus três celulares atrás de frilas, até que termina sem emprego, sem dinheiro e sem perspectivas na casa da mãe, no quarto onde cresceu. Na vida amorosa, também é um desastre: tem um namorado há dois anos, mas vive se esquecendo dele, e o trai com desconhecidos e com Logan, que está noivo de outra.

Lorelai parece mais estável, mas também está desmoronando. Sookie abandonou a pousada que abriram juntas, Michel também quer partir, Luke nunca a pediu em casamento e a ausência do papel assinado começa a incomodar. A relação com a mãe, Emily, também não vai muito bem desde a morte do pai, Richard. Emily, então, perde completamente o chão depois que o companheiro de 50 anos morre. Como viver sozinha depois de tanto tempo? O resto dos personagens também não vai muito bem: Paris e Doyle estão se divorciando, Zack tem um emprego que odeia, Michel se sente sem perspectivas de crescimento, Jess continua apaixonado por Rory, e Lane agora toma conta do antiquário da mãe e não realizou seu sonho de ser roqueira. Dean vai bem, finalmente realizando o sonho de formar uma família cheia de filhos.

Do ponto de vista de fã, é frustrante ver Rory seguir o caminho que segue. A piada sobre Paul, o namorado de quem ela não se lembra apesar do relacionamento ter dois anos, perde a graça logo e se torna cruel — embarcar num namoro desses não parece algo que Rory faria. Apesar de sua relação com a monogamia não ser das mais sólidas desde o início (ela beija Jess quando está com Dean e transa com Dean quando ele está casado), também irrita o fato de ela ser amante do ex-namorado e de trair Paul com Logan e com um cara avulso que ela conhece na rua sem sentir nenhum tipo de culpa. Dá pena dela também pensar que dez anos depois ela ainda está apaixonada por Logan, um namorado que só fazia sentido quando ela tinha acabado de sair da adolescência perfeita e que lembrava seu pai, com quem ela tem questões para resolver.

Rory, Luke, Emily e Lorelai em episódio novo de 'Gilmore Girls'. Crédito: Saeed Adyani/Netflix
Rory, Luke, Emily e Lorelai em episódio novo de ‘Gilmore Girls’. Crédito: Saeed Adyani/Netflix

Mas “Gilmore Girls” nunca quis que Rory e Lorelai fossem perfeitas e esperar que Rory fosse ter a vida resolvida aos 32 anos era uma aposta arriscada de qualquer forma. Podemos não gostar do desenrolar das coisas, mas essa parte é coerente com aquilo que a série construiu ao longo de sete temporadas — “Gilmore Girls” nunca fez questão de que suas personagens fossem perfeitas.

Perfeição, aliás, passa longe desses novos episódios. Podemos perdoar o fato de Rory ter se tornado uma pessoa pior com o tempo, mas outros defeitos não e, no fim das contas, “Gilmore Girls: Um Ano para Recordar” é um fantasma daquilo que foi “Gilmore Girls”. Com a liberdade do Netflix, Sherman-Palladino e seu marido, Daniel Palladino, roteiristas e diretores da temporada, resolveram fazer quatro capítulos de uma hora e meia de duração (originalmente os capítulos tinham em torno de 40 minutos), representando cada um uma estação de um ano. A duração maior não foi bem aproveitada pela dupla e há cenas longuíssimas sem muito propósito e/ou cansativas, como a apuração de Rory para uma matéria sobre filas, as cenas do musical sobre Stars Hollow, os preparativos de Lorelai para sua caminhada e a aventura de Rory com Logan e seus amigos.

Essas cenas tomam espaço que poderia ser ocupado com as três garotas Gilmore juntas, já que a relação delas é o coração da série. Emily e Lorelai interagem um pouco — têm umas duas cenas memoráveis –, só é uma pena que as cenas de terapia que elas fazem juntas, que tanto prometia, não rendam tanto. Lorelai e Rory também, embora Rory passe praticamente mais tempo viajando pra Londres do que com a mãe (aliás: quem faz um bate-volta Estados Unidos/Londres como Rory, que ainda por cima está supostamente falida?). Raras são as cenas com as três juntas.

Juntar todo o elenco original para esses quatro episódios foi uma conquista e tanto e é reconfortante ver todos seus personagens queridos de novo. Mas os Palladino gastam tempo demais mostrando “ah, como Stars Hollow é esquisito!”, com cenas que pouco acrescentam, do que com a história dos personagens que amamos. Seria mil vezes melhor saber mais sobre Lane, para quem eu esperava justiça após o final terrível que foi terminar grávida de gêmeos aos 21 anos, do que ver as cenas na piscina de Stars Hollow (horrível da parte das Gilmore ficar julgando os corpos das pessoas em 2016). Mais Paris e menos Kirk. Mais interações de Jess e Rory. Poxa, até mais Dean seria bem-vindo.

Isso não significa que a temporada não tenha seus bons momentos. Rever Paris é uma alegria, com diplomas de medicina e direito e uma casa de cinco andares em Nova York, como deveria ser. Lauren Graham parece não ter deixado nunca de interpretar Lorelai e revê-la no papel é pura nostalgia mesmo nas cenas meio sem graça. Emily, particularmente, é um destaque. Sem chão após a morte de Richard, ela finalmente fica com uma empregada mais do que um episódio e meio que adota a família imigrante de Berta, com quem ela nem consegue se comunicar direito. Aos poucos, ela aprende a viver sozinha, vendendo a casa e largando tudo para morar na praia, onde passa as noites bebendo vinho e os dias ensinando crianças num museu.

No processo, solta alguns palavrões (no Netflix é liberado) ao deixar o esnobe grupo DAR de maneira memorável. A briga com Lorelai após o velório de Richard também é brutal, numa excelente atuação das duas. O arco de Emily é uma boa síntese daquilo que “Gilmore Girls” consegue ser nos seus melhores momentos: triste, engraçado, complicado, às vezes tudo ao mesmo tempo. Se a série mostra algo, é que a vida não é fácil, mas pode ser muito boa.

Rory e Lorelai na cozinha das Gilmore. Crédito: Saeed Adyani/Netflix
Rory e Lorelai na cozinha das Gilmore. Crédito: Saeed Adyani/Netflix

Nesse sentido, o final é particularmente desapontador: não combina com “Gilmore Girls”. O mais frustrante é que há muitos anos Amy Sherman-Palladino diz que sabia quais seriam as quatro últimas palavras ditas na série. Como ela não trabalhou na sétima temporada, os fãs nunca souberam qual era o final imaginado por sua criadora. Durante a campanha publicitária dos novos episódios, Sherman-Palladino colocou os holofotes repetidas vezes sobre as tais quatro palavras. A expectativa era alta, o que nunca ajuda, mas nem nos meus devaneios mais loucos pensei que pudesse ser tão ruim. Rory diz a Lorelai que está grávida e há um corte.

Não sabemos a reação de Lorelai. Não temos nem certeza sobre quem é o pai. Tudo leva a crer que seja Logan, que a própria criadora disse que representa a figura do pai ausente na vida de Rory. Mas como Logan casou-se com outra, Rory repetiria a experiência da mãe e criaria sozinha a criança. Faria sentido, assim, a conversa que tem com o pai no último episódio: sabendo que estava grávida de Logan, perguntou para ele se ele se arrependia de ter deixado Lorelai criá-la sozinha — para ajudar a se decidir se incluiria ou não Logan na vida de seu filho. Como Christopher, Logan é um homem rico que ama Rory, mas não pode dar a ela aquilo que ela precisa. Alguns fãs de Jess especulam na internet que ele seria o Luke de Rory, o cara que a entende, que está ali pro que ela precisar, e que, no fim das contas, eles terminariam juntos. Mas meio triste pensar que Rory — a tão ambiciosa e estudiosa Rory, que queria ser jornalista pra viajar o mundo e “ver as coisas acontecendo” — terminou naquela cidadezinha, deixando a carreira de lado.

Dá muita alegria pensar que Sherman-Palladino não escreveu a sétima temporada, pois ver Rory como mãe solteira aos 22 anos, recém-formada, seria terrível. O que ela quis dizer com esse final? Que estamos fadados a repetir a trajetória dos nossos pais? Por que fazer Rory repetir a experiência da mãe, que foi tão difícil? Era essa a ideia desde o começo, fazer um final melancólico que mostre que a vida é cíclica e inescapável? Quando Lorelai pede um empréstimo à mãe, como no primeiro capítulo, percebe-se a ideia de “ciclo se fechando”. Se depois de tudo que elas viveram seu final é voltar pro início, é melancólico demais.

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Risca Faca apresenta: “Narcofútbol”

A Colômbia de Pablo Escobar era fanática por futebol. O notório traficante, retratado na série “Narcos”, da Netflix, era um aficionado pelo esporte e fez de tudo para que o país entrasse no mapa. A relação entre o narcotráfico e o futebol no final dos anos 80 e começo dos anos 90 foi próxima e, de várias formas, extremamente perigosa. Uma história que começa nos campos de terra de Medellín e termina em tragédia em 1994, após a Copa do Mundo.

O Risca Faca apresenta “Narcofútbol”, uma história em quadrinhos contando diversos detalhes e histórias dessa época de glórias e sofrimento no futebol e na sociedade colombiana. A arte é de Amilcar Pinna, autor de “Another Planet” e que já assinou HQs da Marvel, DC, Editora Moderna e também dá aulas na Quanta Academia de Artes.

Leia abaixo a HQ:

 

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Fitas de alta periculosidade

Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.

Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.

É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.

Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.

[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]

De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.

No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.

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Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação
Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação

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Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.

Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.

A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.

Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.

Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.

É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.

Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.

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O estranho Natal de Bill Murray

O que você acha do Bill Murray? Talvez essa seja a única pergunta que importa para decidir se vale ou não a pena assistir ao especial de Natal de Sofia Coppola com o ator, “A Very Murray Christmas”, que estreia hoje no Netflix. Se você o ama, possivelmente vai gostar de vê-lo cantar durante quase uma hora. Se não, é provável que apenas ache o programa estranho.

O Netflix começou a diversificar sua oferta de produções originais com séries faladas pelo menos em parte em espanhol e elenco latinoamericano, como “Club de Cuervos” e “Narcos”. Mesmo assim, uma parte significativa do seu conteúdo próprio praticamente só tem apelo para o público americano — ou pelo menos pouco apelo para o público brasileiro. É o caso de vários especiais de stand-up com comediantes pouco conhecidos por aqui e do especial de Natal.

No programa, Bill Murray é contratado para fazer um show natalino ao vivo na televisão americana, com vários convidados ilustres — passando por George Clooney, Paul McCartney e o papa Francisco — na plateia. Só que uma nevasca em Nova York impede que aviões pousem, carros circulem e estações de metrô funcionem. Ninguém aparece no local e Murray quer desistir. Suas produtoras, Amy Poehler e Julie White, o obrigam a se apresentar. A partir daí, o programa é uma viagem.

São muitos convidados (Miley Cyrus, George Clooney, Maya Rudolph, Michael Cera, Rashida Jones, Chris Rock, a banda Phoenix…) em cenas cujo único sentido é fazer todos cantarem músicas natalinas tradicionais nos Estados Unidos. Algumas apresentações, como a de Miley Cyrus, são boas. Outros convidados não cantam tão bem e fica a dúvida: era pra ser bom ou era pra ser engraçado? (Ver Clooney cantando não faz rir, mas pelo menos é curioso.)

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Bill Murray com George Clooney e Miley Cyrus
Bill Murray com George Clooney, Paul Shaffer e Miley Cyrus

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A trama, se é que se pode chamar de trama, é bem solta: no hotel em que sua apresentação está marcada, Murray se sente solitário, quase triste. No bar, conversa com cozinheiros, garçons, e tenta reunir um casal que brigou no dia de sua festa de casamento, à qual ninguém foi. Em certo ponto, Murray começa a sonhar e aí a história passa a fazer menos sentido ainda. Mas a intenção nunca foi fazer uma trama consistente. Segundo Sofia Coppola, que escreveu um depoimento sobre o especial para o site Vulture, o programa não era pra ter lógica mesmo.

Ela queria prestar uma homenagem aos antigos especiais de Natal na televisão americana, em que vários convidados aleatórios, principalmente músicos, participavam de uma trama sem sentido, como quando David Bowie e Bing Crosby cantaram “Peace on Earth” e “Little Drummer Boy” em 1977 ou programas com os Carpenters e Dean Martin. Para ela, esse tipo de especial remetem a uma memória afetiva, de sua infância.

“Eram memórias vagas de como era ser criança, como cápsulas do tempo — Dean Martin parece queimado de sol, como se tivesse acabado de andar no seu conversível. Não quero ser mal-educada falando algo de sua qualidade, mas eles eram divertidos de ver”, escreveu ela. “Acho que a mágica do show business se une com a das festas de fim de anode um jeito legal. Adoro o sentimento não linear, sem lógica, de que tudo pode acontecer, e as músicas que aparecem do nada. Foi ótimo olhar para esse modelo e fazer nossa versão exagerada disso.”

Coppola resume bem o que é o especial do Netflix. Para quem o Natal traz esse tipo de memória, pode ser legal assistir a uma versão daquilo com atores e cantores que fazem sucesso hoje em dia. “A Very Murray Christmas” é pouco comum, diferente dos outros programas que estão no Netflix. É uma mistura de melancolia, humor e nonsense. Mas não dava para esperar algo muito diferente disso vindo do ator.

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Crítica Televisão

Jessica Jones, a anti-heroína

Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.

A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.

Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.

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Marvel's Jessica Jones
Jessica Jones dando o famoso enquadro. Crédito: Divulgação

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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).

Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.

Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.

Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.