Neville D’Almeida começa o papo perguntando quanto tempo a entrevista vai demorar. Sugere duas conversas, de 15 minutos cada uma, para não cansar. Sabe como é, não é lá muito confortável falar tanto tempo seguido no celular. Mas logo de cara dá pra perceber que é impossível conversar por apenas 15 minutos com Neville. A conversa vai crescendo, crescendo, indo por caminhos improváveis — passando pelos dois únicos estadistas do mundo, em sua opinião, pela fase pornográfica de Picasso e pela série “Breaking Bad” — até que, quando você vê, já se passou uma hora. Neville também é daqueles que pergunta, como se estivesse numa conversa mesmo, não numa entrevista. Pergunta minha idade, minha opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e não fica satisfeito com uma resposta evasiva. “Quando você vier pro Rio a gente faz um vídeo”, promete.
Diretor de “A Dama do Lotação”, uma das cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, Neville volta ao cinema depois de 18 anos sem lançar um longa, com “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que estreou no dia 28 de abril. O cineasta não mede as palavras para explicar a ausência de quase duas décadas das salas de cinema. “A resposta é: [por causa da] mediocridade e hipocrisia dos produtores brasileiros. Falta de visão, burrice, incapacidade diante dos verdadeiros talentos, que é o meu caso”, diz. Fazer cinema hoje sem fazer parte de panelinhas é praticamente impossível, em sua opinião. “Dá pra fazer, sim, mas os produtores não vão querer produzir e os exibidores não vão querer exibir.”
Segundo Neville, o Brasil é uma “república de filhos”. Só quem é parente de alguém bem relacionado consegue fazer cinema. “Os filhos estão sempre fazendo, fazendo. É uma coisa… Como chama isso? Essa coisa de família, dentro da política?” Nepotismo? “Isso, total. O cinema também é vítima disso.” Sem ter contatos em festivais, por exemplo, é dificílimo de emplacar um filme. “O Festival do Rio é um exemplo de nepotismo total e absoluto. Mais do que isso. Da falta de alternância de poder”, diz. Como dois casos positivos, cita os festivais de Brasília e Gramado, em que há uma rotatividade maior de curadores (“déspotas medíocres”, diz Neville). “Isso é muito saudável pra democracia. Mas aqui no Rio não é assim que se faz. Está há 20 anos a mesma turma. E é a ditadura do gosto. ‘Aqui é o que eu gosto, o que eu acho, o que eu penso.’ A censura acontece através das comissões dos festivais, de uma forma violenta, ditatorial, sem dar nenhuma satisfação pro cineasta. Seu filme não foi escolhido e acabou.”
O hiato terminou graças a um convite do produtor Carlos Alberto de Carvalho, que lhe chamou para fazer um filme baseado num texto do dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “A gente escolheu ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’ pela originalidade de falar de festas em favela”, diz ele. No filme, um grupo de fúteis jovens ricos do Rio de Janeiro aluga uma laje na favela para fazer festas cheias de sexo e drogas pelo fetiche de estar no morro. É um longa bem teatral: poucos personagens, ação que se passa em um único dia, concentrada em pouquíssimos cenários e muitos diálogos carregados de palavrões. Caras menos conhecidas dividem espaço com Bruna Linzmeyer e Chay Suede, em papéis que pouco lembram seus trabalhos em novelas da Globo — ela, uma prostituta que vai às festas atrás de drogas; ele, um cara que troca drogas por boquetes das amigas.
Mesmo sendo convidado para fazer o longa, a jornada de Neville não fácil nem curta. Foram sete anos desde o início do projeto até sua conclusão, “devido a censura dos editais e da Ancine”, segundo o cineasta. Sem financiamento, o filme demorou a sair. “Eles preferem diretores que fazem tudo politicamente correto. É espantoso”, reclama o diretor.
Se tem algo que Neville não é é politicamente correto. Um dos fundadores do cinema marginal, teve vários filmes censurados na época da ditadura militar. “A coisa mais importante pra um artista é um instrumento chamado liberdade. Eu, numa ditadura militar, numa caretice total, fiz um cinema desses a vida inteira. As consequências foram terríveis. Cinco filmes proibidos, jamais exibidos, falta de dinheiro, frustração, sofrimento, ansiedade. Mas valeu a pena. Não vou fazer o que a censura diz”, afirma. “Vou fazer o que não pode. Outros pensaram de forma diferente. Não faço filme pra puxar saco, pra agradar. Faço o que tem que ser feito porque sou um artista. Até no Vaticano tem o Davi pelado com o pau pra fora. O cinema hoje não tem isso.”
[olho]”Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar”[/olho]
A cruzada contra a caretice, usada para garantir público, é uma coisa que ele leva a sério. Quase não vai ao cinema “pra não ficar mal influenciado, pra não ficar vendo essas porcarias”. “Star Wars”? Careta. “Agora reeditaram ‘Star Wars’. ‘Star Wars’ é uma chanchada. Chanchada é o nome daquela porcaria. E os caras voltaram a fazer. A moda continua anos 70 careta. A caretice continua. Hoje é tudo anos 60 e 70: Batman, Superman, Star Wars. Só porcarias. O mundo está perdido”, diz. “Eles levaram a guerra pro espaço. Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar. Isso é lixo total.” Também não poupa críticas a seriados americanos. “Sei de todos, mas acho todos um lixo, um retrato medíocre da sociedade americana. Mais ainda: são todos iguais.” “Breaking Bad”? Porcaria. Em série americana, diz, só se reafirma a cultura da violência, do “quanto mais escroto melhor”. “Todo cara acaba com um revólver na mão e daqui está matando um, ou por causa de dinheiro ou sexo. Quem faz sexo tem que morrer. É um moralismo.”
Para seu jovem elenco, só elogios, justamente pela disponibilidade em sair da zona do conforto. Bruna foi a única convidada pelo diretor, que já tinha visto alguns de seus trabalhos e ficado impressionado com sua força dramática. “Ela tem 23 anos, mas parece que tem 40 em maturidade, em coragem de viver intensamente um personagem marginal”, elogia. Em sua opinião, muitos atores censuram os próprios personagens e só querem saber de fazer propaganda de sandália Havaianas. “É fácil ficar fazendo novela: abre a porta, fecha a porta, atende o telefone, desliga o telefone. Essas coisas medíocres estão em alta. Atrizes medíocres gostam de fazer propaganda de produtos medíocres mais do que de grandes personagens”, opina. Bruna foi chamada à casa de Neville, que lhe perguntou se ela estava disposta a viver o personagem intensamente. Topou. Já Chay Suede chegou ao diretor por meio de testes e foi “brilhante”. “Eu o considero um ator extraordinário. É muito bom trabalhar com ele, nos tornamos amigos. É um homem simples, honrado, sério, honesto, talentoso. Não é mascarado.”
[imagem_full]
[/imagem_full]
Depois de estourar como protagonista da primeira fase da novela “Império” e de interpretar um mocinho em “Babilônia”, Chay Suede realmente mostra outra faceta. “A Frente Fria que a Chuva Traz” mostra, de fato, pouca coisa. Moças de sutiã e olhe lá. Mas os diálogos são bem carregados e os temas, bem diferentes do que se vê na televisão, de onde veio. Liberdade, afirma Neville, é a única coisa que resta ao cinema para se manter relevante frente às outras formas de produção audiovisual. O que não sair da casinha ou a TV ou a internet podem fazer tranquilamente, e fazem. O bom cinema deve ser livre — o que não acontece no momento. “O cinema não é uma arte livre. É uma arte cativa, amarrada em correntes. Isso pode, isso não pode. É cheio de amarras. Não pode ser com a luz acesa, tem que ser com a luz apagada. O cinema do futuro é um cinema de arte”, diz. “Deus não está aqui pra reprimir. Ele quer os artistas livres. ‘Não pode fumar, não pode foder, não pode peidar.’ Deus quer os artistas com liberdade pra expressar sua época. Ele não trabalha na censura.”
Agora, Neville D’Almeida trabalha em dois projetos. Um deles se chama “A Dama da Internet”, sobre a mulher no Brasil de hoje. O segundo, “Bye Bye Amazônia”, é sobre a morte anunciada da floresta, causada por quatro fatores: “o etanol, a soja, o gado e a madeira”. “Você vê, por exemplo, que a Dilma colocou como ministra da agricultura a Katia Abreu, líder do agronegócio, da destruição não só da Amazônia, mas dessas coisas todas.” Espera não ficar mais tanto tempo afastado do cinema. “Acho que vou poder fazer”, diz, otimista.
Sem meias palavras: “Capitão América: Guerra Civil” é um filme ótimo – e não só um “filme de herói” ótimo. Lançado pouco tempo depois de “Batman vs Superman”, fica ainda melhor (desculpe, Ben Affleck, você fez o que pôde). No papel, há bastante coisa em comum entre os dois filmes: uma discussão sobre a destruição nas cidades causadas pelas épicas batalhas entre heróis e vilões, o valor de vidas individuais em comparação com o bem maior, que é conter os tais vilões, super-heróis cujas visões divergem e, por isso, brigam em longas sequências de ação. O ponto de partida é mais ou menos parecido, mas os caminhos tomados por cada filme são muito diferentes.
Enquanto por décadas estudiosos debaterão as motivações de Batman, Superman e, principalmente, Lex Luthor, em “Capitão América” é possível entender o lado de cada personagem, sentir as dúvidas que cada um deles tem sobre suas posições e a dificuldade que é ficar contra um amigo. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois e vamos à premissa: uma batalha dos Vingadores em Lagos, na Nigéria, resulta na destruição de um prédio e na morte de inocentes. Não é a primeira vez que isso acontece, como o filme lembra a seguir, retomando lutas como as de “Vingadores: Era de Ultron”, na fictícia Sokovia, e de “Os Vingadores”, em Nova York. Cada vitória contra um vilão vem com um preço. Até então, os Vingadores agiam por conta própria, e o governo americano quer colocar o fim nessa situação, fazendo um acordo para controlá-los, num esforço entre outros países do mundo. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades e a nova regra é: super-heróis também devem se sujeitar à regulação.
Logo dois lados se formam. Tony Stark, o Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), movido pela culpa, é a favor do acordo. Do seu lado ficam Visão (Paul Bettany), Máquina de Combate (Don Cheadle) e a Viúva Negra (Scarlett Johansson) — e os novos recrutas Homem-Aranha (Tom Holland) e Pantera Negra (Chadwick Boseman). Cada um ali tem uma razão, que não cabe aqui explicar. Capitão América, porém, acha que é fundamental que eles mantenham a liberdade. E se houver uma ameaça e eles não puderem agir? Para ele, o mundo estará mais seguro se os heróis puderem resolver os problemas do jeito que acharem melhor — é um mundo estranho em que o bilionário quer mais regulação do Estado e o ex-militar patriota vai contra o governo – algo que só faz sentido por causa de todos os outros filmes da série, que nos prepararam para esse momento.
Com o Capitão América ficam a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), Falcão (Anthony Mackie) e o Homem-Formiga (Paul Rudd). O clima ali já não era dos melhores e fica ainda pior quando Bucky Barnes (Sebastian Stan), melhor amigo do Capitão América, entra no meio da história: um lado quer capturá-lo, outro quer salvá-lo.
[olho]Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados[/olho]
É uma boa discussão e o roteiro, redondinho, faz com que todos os lados da questão sejam razoáveis, coerentes. Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados. Sabemos quem é o Capitão América, já o vimos em vários filmes diferentes. Também sabemos quem é o Homem de Ferro, sabemos o quanto está em jogo para cada um deles. Quando, na cena do trailer, Capitão América diz para o Homem de Ferro que Bucky é seu amigo e ele responde “eu também era”, há um peso ali. Com tantos personagens em cena (realmente, são muitos), é difícil dar a cada um seu próprio arco, construir pessoas complexas, com motivações compreensíveis e diferenças difíceis de serem resolvidas.
Os novos personagens, aliás, são quase todos introduzidos com perfeição. O Pantera Negra de Chadwick Boseman, que tem um papel importante na trama, anima para seu primeiro filme solo, que estreia em 2018. Como alguém que não tinha embarcado completamente na ideia de um terceiro Homem-Aranha em tão pouco tempo, devo dar o braço a torcer e reconhecer que a participação de Tom Holland é excelente. Seu herói tem personalidade, empolga e é engraçado. Outro ponto a favor de “Capitão América”: o filme não é só (ótimas) lutas e grandes discussões. Ele é divertido — e as melhores piadas não foram reveladas no trailer. O ponto fraco é o vilão, Zemo (Daniel Brühl). Ele não compromete, mas é apenas ok. Em um filme com tantos heróis, era de se esperar um vilão mediano.
Que Robert Downey Jr. seja todo o ano o ator mais bem pago do mundo, à frente de, por exemplo, Jennifer Lawrence com seu conjunto “Jogos Vorazes + X-Men + várias indicações ao Oscar”, não cansa de me surpreender. Mas foi com seu Homem de Ferro que a Marvel inaugurou esse universo, com tantas histórias entrelaçadas. Foi uma estratégia e tanto, do ponto de vista deles (quem acompanha o universo provavelmente vai continuar vendo os filmes) e do espectador, que sabe que em algum ponto do ano vai ter um filme que pode ser incrível, mas no mínimo será reconfortante como uma macarronada de domingo. No caso de “Capitão América: Guerra Civil”, felizmente, o nível está mais próximo do “incrível”.
O ponto de partida da história de Garth Risk Hallberg é razoavelmente comum. Rapaz de 20 e poucos anos pega um ônibus para Nova York, tem uma ideia, resolve transformá-la num livro, que escreve nas horas vagas enquanto ganha a vida com um trabalho mais tradicional. O desfecho, porém, é inusitado. Em vez de parar na gaveta, o livro, um calhamaço de mais de mil páginas (na edição em português — a americana tem ainda impressionantes 900 e muitas páginas), foi disputado por várias editoras num leilão que terminou em 2 milhões de dólares. Para um autor que nunca tinha publicado um romance. E que ainda vendeu os direitos para o cinema. Para Scott Rudin, produtor de filmes como “A Rede Social” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”.
“Cidade em Chamas”, lançado no Brasil neste mês pela Companhia das Letras, apresenta uma coleção variada de personagens, com diferentes capítulos mostrando os pontos de vista de cada um ao longo de vários anos, com pequenos interlúdios (cartas, trechos de revistas, e-mails e escritos dos personagens). No centro da história estão William e Regan Hamilton-Sweeney, irmãos que fazem parte de uma rica família cuja vida muda após o pai se casar com uma mulher ruim que tem um irmão ainda pior — como indica o apelido “irmão demoníaco”, pelo qual ele é chamado em boa parte da história. Em torno deles gira uma lista extensa de personagens, como um professor negro e gay, uma jovem fotógrafa e o amigo apaixonado por ela, um grupo de punks adeptos do “pós-humanismo”, um jornalista, a funcionária de uma galeria e por aí vai.
Com uma grande relação de personagens vem uma grande relação de temas e tramas, passando pela cena da música punk em Nova York no fim dos anos 1970, o ativismo da esquerda, quase todos os tipos de problemas familiares imagináveis e uma história policial que culmina no blecaute que atingiu a cidade americana entre 13 e 14 de julho de 1977. Hallberg mostra que seus interesses são variados assim que atende ao telefone, no escritório da editora Penguin em Barcelona, onde está há alguns meses. “Estava lendo agora sobre o seu país!”, diz, empolgado, dois dias depois de a Câmara brasileira ter autorizado a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Sobre a situação política? “É claro. Fico feliz que você tenha um minuto para conversar sobre cultura”, diz ele (meia hora adiante na entrevista ele fará uma relação inesperada entre a situação do Brasil e seu livro). “Cidade em Chamas” já nasceu assim, conta ele: não como uma ideia simples, e sim com política, cultura e história entrelaçados.
PRÓLOGO
“Por mais estranho que pareça, todas as coisas que você mencionou [uma lista que incluía diversos personagens, o real blecaute em Nova York e os tiros que um dos personagens recebe na primeira parte do livro] chegaram até mim fundidas no verão de 2003 no espaço de três minutos”, conta ele. Mas essa trama tem um prólogo e, como mostra no livro, Hallberg é um contador de histórias que não poupa detalhes em nome da concisão e volta ainda mais no tempo para tentar explicar as ideias por trás da ideia. Tudo começa em Nova York, que (com o perdão do clichê) é quase um personagem da história. Desde os 17, em meados dos anos 90, Hallberg, nascido na Carolina do Norte, sonhava em morar lá. Mas as circunstâncias nunca permitiam. Antes de ir para lá, foi morar em Washington DC, onde sua então namorada, com quem se casou mais tarde, foi estudar, já que não conseguia bancar a universidade em Nova York.
[olho]”Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir”[/olho]
Era lá que eles estavam no 11 de Setembro. “Foi, para tanta gente, um acontecimento muito traumático. A escala daquilo. A visão do assassinato em massa e da destruição da cidade que sempre prometeu tanto pra mim e pra tantas pessoas, por diferentes motivos. Houve um momento naquele dia, quando Washington estava sob ataque, em que você simplesmente não sabia o que estaria de pé no final”, lembra. Embora traumatizantes, os atentados de 2001 também foram esclarecedores para ele. Nos 18 meses seguintes, notou como uma solidariedade tomou conta de Washington e passou, enquanto o sentimento persistiu em Nova York. Logo ele voltou a fazer viagens para a cidade, a poucas horas de onde morava, assim como fazia no colegial. “Era uma época estranha. Tinha uma grande vulnerabilidade e também uma grande sensação de possibilidade, de claridade machucada. No verão de 2003 minha mulher e eu decidimos que tínhamos que nos mudar. Era a hora. Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir.”
Chegando a Nova York de ônibus para procurar um apartamento, reviveu a sensação que tinha quando adolescente ao ver a cidade no horizonte, em que seu coração “meio que se iluminava” — experiência que deu a Mercer, um dos personagens do livro. “Senti que a cidade estava falando comigo e dizendo ‘você conseguiu, está aqui. É a aqui que você pertence, com todas essas pessoas que não encontram uma sensação de pertencimento em nenhum outro lugar’.” Mas algo tinha mudado: as Torres Gêmeas já não estavam ali e a paisagem era diferente. Naquela hora, o iPod em modo aleatório tocou a música ‘Miami 2017’, de Billy Joel, sobre uma Nova York em chamas durante um blecaute, escrita no meio dos anos 70, “época dos discos da Patti Smith, poesia de vanguarda, filmes de Scorsese e milhões de outras coisas”.
“[A música é] sobre uma sensação de uma sociedade na beira do abismo. Imagino que você entenda isso neste momento”, diz ele, na primeira referência ao Brasil. Billy Joel canta do ponto de vista de alguém do futuro, que se mudou para a Flórida para fugir da destruição de Nova York nos anos 1970. “Mas ele canta com uma estranha tristeza, como se algo tivesse se perdido na vontade das pessoas de fugir do risco, da vulnerabilidade, do perigo e do sofrimento invisível. Elas também fugiram de algo que é necessário para uma vida com significado. Eu estava olhando para a cidade no horizonte, ouvindo essa música, e pensei: ‘Aquela época é, de alguma forma, essa época’. A gente também estava num momento de escolha entre, de um lado, segurança e ordem, que são coisas ótimas, e, do outro, liberdade, possibilidade e consciência.”
Esse era o livro, pensou. “Comecei a visualizar os personagens. Tem esse banqueiro andando, ele está com problemas, alguém faz uma oferta que ele não pode recusar. Em outro lugar alguém levou um tiro e está no hospital. Tem esses garotos vindo de Long Island. Metáforas, imagens, acontecimentos. Provavelmente só uns 3% do que virou o livro, mas muitas das coisas essenciais”, afirma. “Foi uma sensação de calor e fusão, como o universo um segundo depois do Big Bang, quando ainda não tinha esfriado e se organizado. Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo.”
[olho]”Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo”[/olho]
Mesmo ambientada nos anos 70, a trama é atual e não tem uma cara de época. “Era muito importante para mim, por uma razão que não consigo especificar, que não fosse um romance histórico”, diz ele. “Claro que você pode ler Hilary Mantel [autora de uma série de livros sobre a era do rei Henrique VIII] e aprender muito sobre os dias de hoje, sobre política, entre outras coisas. Mas, para mim, esse livro era um romance contemporâneo. Eu senti que tudo que era urgente pra mim em 2001, e 2003 e 2007 queria se expressar dessa forma. A crise financeira, os ataques terroristas, o retorno da história ao solo americano, de certa forma, e o que parece ser uma era global de ansiedade.”
Hallberg, nascido em 1978, também sentia que conhecia aquela época, mesmo que não a tenha vivido. Em sua cabeça, os anos 70 em Nova York se misturavam com os sinais apagados de delicatessens e o entretenimento na rua que via quando era adolescente, nos anos 90. “Tinha algo na textura daquele tempo, um quê de um grande cataclisma no passado que capturou minha imaginação. O cérebro de um escritor é uma estranha coisa estranha e danificada que… Você se apega a pedaços de coisas e não sabe o porquê, mas eles ficam flutuando no fundo da sua cabeça. Dirigindo ouvindo Patti Smith… Eu tinha uma sensação poderosa de ‘conheço esse mundo’.” Se fizesse pesquisas e descobrisse que algo que imaginou estava errado, o ímpeto de fazer ficção poderia se perder. Ou ele poderia se sentir obrigado a usar os fatos coletados. “Eu queria espaço para coisas imaginárias ou anacrônicas”, diz.
Como pesquisa mais formal, fez duas coisas. A primeira foi conversar com pessoas que tinham vivido os anos 70 e o blecaute em Nova York, bem informalmente, sem contar que ia usar aquilo num livro. “As pessoas tinham memórias incrivelmente novelescas, detalhadas. Assim eu soube que minha intuição sobre aquele momento estava certa. Ficou preso na cabeça das pessoas. Parte das pessoas não se lembrava de nada dos anos 80, mas sabia onde estava quando as luzes se apagaram.” E durante um verão, para mergulhar de vez no universo do livro, ia à biblioteca ler o jornal daquele mesmo dia em 1976 ou 1977 em vez de ler as notícias atuais. “Queria coisas objetivamente verdadeiras, mas queria que elas estivessem lá a serviço da ficção.”
PRIMEIRO CAPÍTULO
No dia em que teve a ideia do livro, Hallberg escreveu só uma página. Por algum motivo, mesmo que sentisse uma espécie de eletricidade, achou que não conseguiria continuar. “Eu tinha 24 anos, era um ninguém. Não me parecia alguma coisa que as pessoas faziam aos 24. Coloquei a página na gaveta e pensei que talvez voltasse a ela em dez anos”, conta. Voltou em quatro, depois do universo do livro não deixar sua cabeça. Foram mais três anos e meio escrevendo. Boa parte desse tempo foi gasto tentando encontrar as conexões entre as cenas que tinha imaginado lá atrás. “Eu não queria planejar tudo antes, porque achei que ia virar uma máquina em vez de uma árvore. Queria algo anárquico, mas orgânico. Fiquei no escuro, trabalhando com tentativa e erro. A história foi pra muitos lugares que eu não esperava.”
[olho]”O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria”[/olho]
A única certeza era de que o clímax seria o blecaute. De qualquer forma, durante a escrita ele sentia que aquilo tudo era impublicável. “Por causa do tamanho e da loucura toda. Ainda acho que é um livro pouco usual de várias formas. Era um projeto impossível. O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria — sempre tem um leitor imaginário no quarto com você. Eu achava que era um cara de 20 e poucos anos sem o talento pra fazer isso e todo o mundo dizia que a atenção das pessoas está diminuindo. Como isso iria pras livrarias?” Hallberg procurou não dar ouvidos a quem falava que hoje as pessoas só querem saber do que dá pra ler em 140 caracteres. “Pensei que, bom, se eu vou passar a vida fazendo isso, devo tentar fazer algo que eu sempre amei.” No caso: livros que, independente do tamanho e do tema, façam com que você leia rápido, que te arrastem para seu universo. “Como ‘Água Viva’, da Clarice Lispector, que é um tipo de livro bem diferente”, exemplifica.
Entre as criações mais desenvolvidas por Hallberg está o grupo que se autodenomina Pós-Humanistas. São músicos e frequentadores da cena punk que moram juntos numa grande república no oeste de Manhattan e colocam fogo em prédios da cidade como ato político. “Uma coisa que peguei desse período nos Estados Unidos, de modo geral, e em Nova York especificamente, foi essa erupção de violência, que era uma extensão lógica dos sonhos utópicos dos anos 60, com os quais simpatizo profundamente, mas também uma traição desses sonhos. Embora dê pra entender as frustrações das pessoas, suas ações tornaram a política impossível”, diz, citando grupos com o Weather Underground, um grupo militante de esquerda que colocava bombas em prédios do governo e bancos para protestar, entre outras coisas, contra a guerra do Vietnã.
“As pessoas estavam muito frustradas com o ritmo lento do progresso em direção à utopia e começaram a fazer coisas que eram profundamente anti-utópicas. Injustas, maldosas. E justificavam isso para elas mesmas. Mas não pode haver conversas até que todo o mundo concorde em parar de matar. Esse tipo de ação levou aos anos 80, época em que cresci, que afastou as pessoas das demandas justas dos anos 60. Criou-se um tipo de ideologia reacionária”, afirma. Parte da razão pela qual está interessado na situação do Brasil hoje, diz, é seu interesse pelas lutas ideológicas. A esquerda reagindo à direita, que reage à esquerda, que reage à direita, num ciclo sem fim. “Estou digredindo. Há algo no nome pós-humanismo que é importante pra mim, porque promete ir além do humanismo. Mas também implica em dizer que não somos mais humanistas, que não assinamos embaixo das antigas noções de dignidade humana, de direitos humanos, como se víssemos isso como coisas ideológicas.”
PERSONAGENS E EMPATIA
Em meio aos muitos personagens do livro, não há heróis. Hallberg diz que em seu trabalho a empatia é fundamental. “Empatia não é o ato fácil de identificar alguém igual a mim. É o ato mais desafiador de ver a outra pessoa com todas suas falhas e particularidades e ainda ver que, nas mãos de um autor diferente, ela poderia ser eu e eu poderia ser ela. É uma luta diária na vida pra se sentir assim em relação às pessoas que você encontra e é uma luta com os personagens do romance.”
A figura mais próxima do vilão é o “irmão demoníaco”, que aparece menos na história, mas se relaciona com vários dos personagens de alguma forma. “Eu queria que houvesse um antagonista no livro”, diz o autor. “Pra ser totalmente honesto, me inspirei no vice-presidente americano Dick Cheney”, completa, rindo. O personagem não é nebuloso só para os leitores, mas também para o autor. “Ele é um enigma. Quando eu tentava entrar nele, não conseguia. É como tentar abrir uma ostra com a unha”, diz. “Não sei se fico feliz ou não por algo ter escapado do meu controle no livro. É uma coisa bem estranha. Conversei com outros escritores e tem algo sobre escrever ficção: quando você está realmente fazendo isso, quando está no projeto certo, você quer que pareça um pouco impossível. Você sempre quer que seja algo que você seja incapaz de fazer.”
No processo de escrita, Hallberg diz que se sente como todos os personagens, mas ao mesmo tempo não é nenhum deles. “Todos têm partes de mim dentro deles, então todos são, de algum jeito, autobiográficos. Mas também são todos muito diferentes de mim, desconhecidos correndo no escuro”, reflete. “Há momentos em que estamos muito com nós mesmos, mas muito com outras pessoas. Ler poesia é um desses momentos. Olhar para pinturas. Sexo. Usar alguns tipos de drogas. Um longo casamento. Criar os filhos. Hoje meu filho subiu na minha cama, ainda estava escuro, e por um momento eu senti que poderia ver o mundo pelos olhos dele. Lembrei da experiência que eu sabia que ele estava tendo”, diz. O ponto ideal é atingido quando se misturam numa história as experiências pessoais do autor com a dos outros. Uma fusão de John Lennon e suas canções pessoais com Paul McCartney e suas letras sobre personagens imaginários. “Eles nunca foram tão bons sós quanto foram juntos”, opina. “Às vezes John Lennon escreve tão bem porque fala sobre si como se fosse outra pessoa. Às vezes McCartney escreve lindamente sobre outras pessoas porque escreve quase como se elas fossem ele.”
Essa visão de Hallberg sobre a escrita como forma de empatia está enraizada em “Cidade em Chamas”, em que a frase “eu te vejo, você não está só” se repete e funciona como uma espécie de síntese da história toda. Anos atrás, escreveu um artigo para o New York Times no qual tentava entender porque as pessoas escrevem ficção. Para alguns autores, escreveu ele, a ficção mostra que não estamos sozinhos. “Achei que era uma visão ao mesmo tempo bonita e vaga. Escrever pode ser algo muito altruístico ou muito narcisista. Ficção pode ser boa para mim porque faz com que eu me sinta menos sozinho. Ou pode me lembrar de que há outras pessoas no mundo e que tenho que olhar para além de mim. Boa ficção é isso, mas também é mais. É ganhar a sensação de não estar sozinho ao ser forçado a praticar a empatia em vez de demandar empatia dos outros”, diz.
Ele escreve para explorar o mistério que são os outros, uma das grandes oportunidades que viver em cidades grandes te dá. Na maior parte do tempo, diz, passamos pelos outros como se fossem obstáculos, só queremos que eles saiam da nossa frente na escada do metrô. Mas há momentos, principalmente em épocas de crise, em que você percebe o quanto cada vida vale. Quando você vê, por exemplo, alguém chorando falando ao celular. “É uma experiência muito urbana, de se sentir sobrecarregado pela preocupação com o outro a ponto de esquecer de si por um momento. Eu queria que o livro tivesse isso. E no fim percebi que tudo me levava para essa frase [“eu te vejo, você não está sozinho”]. Eu tentei articular isso no texto para o jornal, mas não consegui expressar isso direito fora da ficção”, afirma.
LUZ E SOMBRA
Além de romancista, Hallberg foi poeta (sem muito talento, afirma) e também é crítico literário. Começou escrevendo para o blog de um amigo e chamou a atenção de revistas, que passaram a encomendar textos seus. Ficção sempre foi o sonho, mas acabou esbarrando na crítica e precisava pagar o aluguel. Ler resenhas de outros escritores sobre seu próprio livro, porém, é o caminho pra ficar louco, diz. No final de um livro é preciso se desapegar. “Acho que para conseguir se desprender do seu livro e abrir espaço emocional para outro projeto, e para manter a habilidade de desaparecer no seu trabalho, ajuda mais não ouvir o que as pessoas estão dizendo. Seja bom ou ruim. Quase não importa se falam bem ou mal, no fim o efeito é o mesmo: ajudar você a fingir que não tem que se desapegar da sua obra.”
Também não ajuda estar sob os holofotes como esteve no fim do ano passado, quando revistas como Voguee New York escreveram seu perfil perto da publicação do livro, destacando os 2 milhões de dólares que ele tinha recebido e chamando-o de fenômeno literário. “Acho que nenhum escritor busca isso. E por um bom motivo: nosso trabalho é muito privado, é muito mais sobre as sombras do que sobre os holofotes. O trabalho é jogar a sua luz pra fora. Parece pouco natural ter a luz voltada pra você”, reflete. “Eu tinha uma mesa e um pedaço de papel e passei anos assim. Foi muito difícil, mas foi uma experiência que me deu algo. Meu trabalho continua sendo sentar nessa mesa e me doar à página. Pra fazer isso, me esforço ao máximo para não pensar onde os holofotes estão e no que as pessoas estão dizendo. Sentar num quarto sozinho por anos é uma ótima preparação pra isso.”
Os vídeos que antecederam a estreia de “Ave, César!”, nesta quinta (14), no Brasil, formam um retrato curioso. Em um deles, Channing Tatum, vestido de marinheiro, canta uma música sobre a ausência de damas no período em que estará no mar. Em outro, Ralph Fiennes tenta repetidas vezes ensinar Alden Ehrenreich a pronunciar uma frase simples, sem muito sucesso. Há ainda cenas com George Clooney, Tilda Swinton, Josh Brolin e Scarlett Johansson. Muitos personagens, pouca revelação sobre a trama da história. É um bom prenúncio do que vem pela frente. O filme dos irmãos Joel e Ethan Coen é quase que uma sucessão de esquetes frouxamente ligados — e muitos deles bem engraçados.
O elo comum entre as histórias é Eddie Mannix (Josh Brolin), responsável por resolver qualquer problema no estúdio de cinema em que trabalha: encobrir escândalos, lidar com os colunistas de fofocas, resolver queixas de diretores, antecipar reclamações do público em relação aos filmes, entre outros pepinos que aparecem pela frente. Seu maior desafio é lidar com o desaparecimento do ator Baird Whitlock (George Clooney), galã meio canastrão protagonista de um filme sobre a relação de um romano com Jesus Cristo, também chamado de “Ave, César!”.
Enquanto tenta descobrir o que aconteceu com Whitlock (a suposição inicial é que ele tenha enchido a cara ou sumido com alguma colega), Mannix interage brevemente com diferentes tipos do cinema. Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) é o astro de filmes de faroeste, hábil com um laço e especialista em manobras arriscadas sobre um cavalo, promovido a protagonista de filme de drama artístico para desespero do diretor esnobe (Ralph Fiennes) — e uma das melhores coisas do filme, ainda que seja um dos atores mais desconhecidos do elenco. DeAnna Moran é a desbocada atriz de musicais com números de nado sincronizado com um problema para resolver. Tilda Swinton interpreta Thora e Thessaly Thacker, gêmeas que assinam colunas rivais sobre os bastidores de Hollywood e pressionam Mannix de todos os lados. A maioria entra e sai rapidamente de cena, como se os atores fizessem apenas participações especiais bem ilustres (a lista tem ainda Jonah Hill, Frances McDormand e Alison Pill).
“Ave, César!” é uma grande homenagem ao cinema, principalmente com o de décadas atrás, com números musicais de diferentes tipos, filmes bíblicos grandiosos e produções em branco e preto com diálogos rebuscados. Talvez por isso quem seja muito fã de cinema goste particularmente da história — o filme é muito bem avaliado nos dois maiores sites agregadores de críticas pelo mundo: tem 84% de aprovação no Rotten Tomatoes e 72% no Metacritic.
Mas é curioso observar, nesses dois sites, as avaliações do público: 46% no Rotten Tomatoes e 59% no Metacritic. Muitos dos comentários dizem que nada de fato acontece no filme e que as cenas são avulsas e não resultam em nada somadas (“uma coleção de piadas alinhavadas e vendidas como um longa metragem”, diz um dos usuários). Verdade. Mas se as piadas e cenas avulsas são boas, como é o caso deste filme, isso não é um problema. “Ave, César!” é um daqueles filmes que passam voando.
Em tempos de trailers super revelatórios, que contam a história do começo ao fim, e notícias do set publicadas muito antes de os filmes estrearem, o mistério em torno de “Rua Cloverfield, 10” é espantoso. Só se soube que o longa produzido por J.J. Abrams e gravado com diferentes nomes falsos estava sendo feito poucos meses antes de chegar ao cinema. Seu trailer, lançado em janeiro, também é bem vago e mostra o clima do filme — que estreia hoje (7) no Brasil — sem revelar quase nada da história. É ótimo: esse é um dos casos em que quanto menos se sabe da trama, melhor (por isso, o texto não conta nada que vá estragar a experiência de alguém e fala o mínimo possível sobre a história — apesar de falar um pouco sobre a história).
Nas cenas iniciais, Michelle (Mary Elizabeth Winstead) arruma as malas e pega o carro, fugindo do namorado. Após sofrer um acidente na estrada, acorda numa casa desconhecida, acompanhada de Howard (John Goodman), dono do lugar, e Emmett (John Gallagher Jr.), vizinho dele. Howard diz a Michelle que enquanto ela estava desacordada houve um ataque no local — possivelmente de extraterrestres, talvez de inimigos dos Estados Unidos, químico ou nuclear, ele não sabe bem –, que todo o mundo morreu e que o ar fora daquele lugar, um bunker construído por ele, está tóxico. Em um ou dois anos eles podem sair de lá, mas por enquanto ninguém sai, avisa ele. Michelle fica confusa, e Howard não ajuda muito — se você quer que alguém se sinta seguro acorrentar a pessoa na parede e mostrar o revólver no seu bolso não é a melhor das estratégias.
Como Michelle, o espectador não sabe o que de fato aconteceu e nem quem são aquelas pessoas. Howard pode tanto ser um visionário que salvou sua vida quanto um psicopata mentiroso. E John Goodman, com sua cara bonachona, é 100% assustador mesmo quando Howard tenta ser fofo colocando músicas alegres e oferecendo sorvete aos companheiros. Ainda que haja alguns momentos de paz — como mostra o trailer, em cenas com os três habitantes do bunker jogando jogos de tabuleiro ou vendo filmes –, o roteiro de Josh Campbell, Matthew Stuecken e Damien Chazelle (de “Whiplash”) evolui devagar e mantém a tensão no ar no tempo inteiro — com um trecho de mais ou menos meia hora tensíssimo, de fazer gente mais suscetível a isso pular da cadeira algumas vezes.
Como a lista de personagens que aparecem em cena pode ser contada nos dedos de uma mão e o cenário varia pouquíssimo (“O Quarto de Jack” e “The Wolfpack”, pra ficar em filmes sobre pessoas enclausuradas, têm bem mais diversidade de paisagens que “Rua Cloverfield, 10”), se o elenco não fosse bom e as personalidades de cada um não fossem bem construídas, as chances de o filme dar errado seriam grandes. Felizmente, não é o caso. Michelle, aliás, é uma mocinha de filme de suspense das mais inteligentes e Mary Elizabeth Winstead merece receber mais papéis de destaque por aí. Independente do que ele diz ser verdade ou não, Howard é bem doido e Emmett, o personagem menor da história, é o bonitinho simpático — ter um desses no filme costuma cair bem.
Mais que isso, infelizmente, não dá pra contar. Mas é quase refrescante ir ao cinema sem saber quase nada sobre o filme. A equipe de “Rua Cloverfield, 10” mostra que, às vezes, a melhor campanha de marketing possível é fazer a menor campanha que der.
Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.
O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”
E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.
Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.
Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.
Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.
De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.
Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.
“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.
Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.
A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”
“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.
Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”
Primeiro, a má notícia para os CDs: segundo o último relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, divulgado em abril do ano passado, as vendas de discos físicos caiu 8,1% em 2014. O Brasil não é exceção à regra: se em 2013 a venda de CDs rendeu 185,7 milhões de reais, no no ano seguinte o valor foi 14,4% menor: 159 milhões (no período anterior a queda havia sido semelhante: 15,5%). Mas números não são tudo na vida, e apesar de o CD já ter vivido dias melhores, há uma parcela de fãs que não abre mão do formato, que não tem a aura retrô do vinil, nem a praticidade dos serviços de streaming.
Por influência da família, pelo prazer de ter o encarte na mão, por achar que o som é melhor ou pelo prazer de ver a coleção crescer, os motivos citados para explicar o apego ao formato criado nos 1980 variam. O bancário Emílio Pacheco, 55, é desses que não abandona o barco: desde que começou a comprar CDs, em 1989, nunca mais trocou de formato. “Sou fã de carteirinha do formato compact disc, não vejo nenhuma vantagem nos demais”, conta o dono de uma coleção de cerca de 4.000 CDs. Para ele, o disco é um objeto de coleção, um item de valor, como um selo para um filatelista.
Assim como deixou os vinis de lado, não aderiu às novas formas de escutar música. “Não acredito que o streaming já tenha igualado a qualidade de som de um CD em um bom equipamento. Existe, isso sim, a opção de baixar um arquivo de áudio de alta definição. Mas continuo preferindo o CD original, com um encarte caprichado.” A opinião é compartilhada por Rodrigo Alves, dono de 2.700 CDs e da loja Choke Discos. “A qualidade é bem melhor que qualquer streaming”, diz. Além disso, ter um disco físico em mãos faz com que ele não dependa de celular ou internet pra ouvir música. Mesmo assim, todos os amigos estranham, conta.
Preferência por CD não significa, porém, que serviços de streaming não tenham nenhuma utilidade. Rodrigo até usa e diz que adora, mas não encontra nem em Spotify, Google Play ou Deezer “bandas obscuras e coisas mais independentes”. Pela praticidade, Emílio às vezes recorre ao YouTube. “Se já estou no computador e me dá vontade de ouvir uma música nos fones, é mais rápido procurar no YouTube para rodar na hora”, conta. “Mas jamais deixaria de comprar um CD só porque posso ouvi-lo no YouTube. Acho sensacional poder ouvir álbuns inteiros lá, mas para decidir se compro o CD ou não.”
“Os CDs são caros, sempre foram caros, e não dá pra comprar tudo que desperta seu interesse sem antes ter uma espécie de ‘controle de qualidade’, que só é possível pela audição experimental”, concorda Cesar Sousa, 36. Em reuniões com amigos também é mais prático colocar logo uma playlist no YouTube do que ficar trocando de CD toda hora, concede. “Ideal para momentos em que a gente precisa dar atenção pra muita gente, em casa. Para os momentos mais introspectivos e intimistas, os discos e CDs mandam”, diz. Em sua opinião, CDs são menos supérfluos que downloads. “Você, de fato, tem a obra em mãos, e ela se torna a trilha da sua vida daquele momento. Ela fica na estante, você passa e fica admirando, vez por outra, todos os seus CDs e discos, e eles trazem em si um fragmento da sua vida. É uma relação muito mais profunda, uma relação duradoura com a arte, com o artista.”
NA ESTANTE
A preferência por comprar discos na internet ou em lojas físicas é dividida entre os fãs de CDs. Emílio, por exemplo, prefere comprar seus discos pela internet, mesmo que exista a loja física — nesse caso, vai até o local buscar a encomenda — e recorre também a sites estrangeiros, como a Amazon.
“Achei engraçado quando, há muitos anos, uma pessoa da família me perguntou, bem impressionada: ‘Você compra disco todos os meses?’. Todos os meses? Uma vez por semana, no mínimo! Até hoje é assim”, diz Emílio. “Sempre que vou a lojas como Saraiva e Cultura, dou uma olhada pra ver se não tem nada que me interesse. Raramente saio de mãos vazias.” O cuidado com os CDs é tão grande que para ouvi-los no carro ele faz cópias. “Jamais carrego originais comigo.”
O biólogo Fernando Alvarenga, 43, por outro lado, acha o carro o melhor lugar para ouvir seus CDs — em casa, prefere os vinis. Ouvir discos físicos, diz, é um costume. “Curto pegar o CD, olhar o encarte, ver a arte.” Só no mês passado comprou 30 CDs, e mais 12 vinis. Diz que não tem muitos, “uns mil” CDs. “Por ter sido meio nômade quando mais novo vendi muitos CDs e LPs”, conta. Colecionar CDs é coisa de roqueiro, opina ele. Um público fiel que não para nunca de escutar aquelas músicas. No caso do pop, “em que intérpretes por vezes alcançam sucesso com um hit e depois somem, esse disco fatalmente um pouco e depois some”.
Não é o caso, por exemplo, do DJ Cristiano Pereira, 28, que cita entre seus favoritos CDs de Sandy & Junior, Legião Urbana, Laura Pausini e Silva. Já da geração YouTube e Spotify, Cristiano diz que sempre tem alguém que estranha seu hábito de comprar CDs pelo menos uma vez por mês, de preferência em lojas físicas — sua coleção tem por volta de 400 exemplares. Como os outros fãs de CD, diz que nada substitui o encarte com fotos e letras e o prazer de ter algo físico nas mãos. “Não quero só ouvir a música, quero me relacionar com ela de outra forma.” Mesma resposta que dá Tiago Rolim, 38, dono de aproximadamente 5.000 CDs. Questionado por que ainda compra os discos, diz: “Minha esposa vive me fazendo essa perguntas! Virou um vicio já. Acho chato ouvir musicas em celular, ou no computador. Até escuto, mas não gosto. Gosto de ter o encarte, ler as letras, essas coisas do século passado”. A imensa maioria de amigos, aliás, nem sabe que ainda se vendem CDs. “Sério isso.”
Dimas Marques, 26, vive situação parecida. Seus amigos já abandonaram a mídia, com exceção de uma amiga que já “está mais pra lá do que pra cá”. Ao responder quantos CDs integram sua coleção, dá a resposta precisa: 768, todos catalogados em um arquivo de computador. Ver seus discos elencados na estante lhe dá uma sensação de “real” que o digital não consegue. “Sempre gostei do formato físico, de ir à loja, procurar e achar algo legal, de pegar, olhar o encarte, ter uma estante organizada.” Usa, sim, o YouTube para ouvir música, mas para descobrir coisas novas e acrescentar à sua lista de compras — que inclui fitas cassete, que considera mais difíceis de adquirir. Todo mês ele adquire pelo menos um disco novo. Só lamenta o pouco número de lojas físicas em sua cidade, Maceió, Alagoas.
NA FAMÍLIA
Para a estudante Jéssica Mar, 23, dona da página A Menina que Colecionava Discos, comprar CDs é também algo afetivo: foi uma tradição que começou com seu pai e aumentou depois que ele morreu. “Desde criança eu gostava de ir nas lojas com meu pai e ficava olhando os encartes, mas eu sempre comprava algo mais infantil”, lembra. “Esse foi um dos legados deixados por meu pai: paixão pela música. Cresci vendo ele comprar CDs e discos, aumentando a coleção, cuidando com muito carinho e me ensinando tudo sobre cada artista e música. Quando ele faleceu, não tinha como deixar de lado. Minha paixão aumentou e eu continuo cuidando e aumentando a coleção deixada por ele. Sei que ele está feliz vendo que continuo levando seu legado em frente.”
Jéssica coleciona música em qualquer formato: CD, vinil, fita cassete, DVD. É também eclética na forma de comprá-los: faz pela internet, em sebos, lojas, troca com conhecidos. Toda semana costuma comprar pelo menos um CD de sua lista. “Já me falaram que é estranho eu ficar nas vitrines olhando os CDs, pois geralmente o pessoal já vai na intenção de comprar algo específico. Mas eu adoro ficar olhando, vendo os lançamentos, descobrindo bandas novas, admirando os encartes.”
Ela conta que a maioria de seus amigos adora música, mas nem todos costumam comprar CDs, ressaltando que os preços são elevados. Mas com dois amigos ela costuma levar CDs dos artistas quando vai a shows para que eles autografem. “A maioria leva folha de papel ou alguma foto. Fica nítido que o artista adora ver que compramos algo dele, ou que temos aquele CD em edição especial”, afirma. São os CDs autografados alguns dos xodós de sua coleção. “Mas mais que isso tenho um sentimento muito grande por quase todos que eram do meu pai. Por isso sinto prazer em cuidar e aumentar a coleção.”
NA BALANÇA
O CD tem outro ponto a seu favor: a qualidade do som. Enquanto é consenso que o som de um disco físico é melhor que o de um MP3 baixado na internet (“Eu não tenho um iPod… Eu ainda uso CDs ou discos. Às vezes fitas. Tem um som muito melhor, muito melhor que o digital”, declarou Keith Richards em 2013.), a disputa entre CD e LP é mais acirrada. À reportagem da LA Weekly o ex-engenheiro de som da Philips declarou no ano passado: “Se você medir a diferença, o CD é absolutamente melhor que o vinil. Mas se você disser que a experiência é melhor — como fumar charuto com os amigos –, então faça. Curta fumar charuto com amigos, e beber cerveja e brandy ouvindo a um velho disco. Mas não diga que o som é melhor”.
Segundo o engenheiro de som Bob Clearmountain, quando ele fazia vinis para a Columbia, a gravadora fazia um teste que colocava cada LP em uma vitrola velha e barata, com o objetivo de chegar até o fim sem pular. Caso falhasse, o disco teria que ser mixado de novo. Um som muito baixo ou vocais cheios de som de letra “s”, por exemplo, poderiam fazer com que a agulha pulasse, então seriam menos desejáveis e deveriam ser editados. Uma reportagem de 2014 do site Vox, também investigando qual som é melhor, aponta outras questões e afirma que, se as notas são muito baixas, menos áudio cabe no vinil. Se as notas são muito altas, pode haver distorção. Por isso, na hora da masterização, muitas vezes os extremos eram cortados, deixando a música diferente do que o almejado pelos músicos.
Mas a questão é ainda mais complexa e a LA Weekly acrescenta que todos os engenheiros de som ouvidos pela publicação disseram que não é difícil achar LPs que soem melhor que CDs, já que a qualidade de quem produz cada um pode alterar dramaticamente a posição de cada mídia na balança. Também existe uma questão de preferência pessoal. Muita gente prefere o chiado do vinil e a sensação reconfortante que ele proporciona. Segundo a Vox, isso se deve às mudanças que os engenheiros fazem no som do baixo na hora de produzir o vinil, que acabam agradando esteticamente parte do público, embora o som seja diferente do ao vivo. O fato é que, embora seja comum ouvir por aí que o vinil é superior ao CD, não é bem esse o caso. São experiências diferentes, mas não dá pra dizer que o LP seja melhor em qualidade de som.
NAS LOJAS
Nas paredes da Baratos Afins, a loja de discos mais antiga na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, parte de um acervo de 100 mil CDs dividem espaço com parte de 100 mil discos de vinil, enfileirados por todos os cantos da loja em ordem alfabética — o resto da coleção da loja, presente no local há 37 anos, está em um estoque. O público, conta Carolina — filha do fundador da loja, Luiz Calancas — é variado: tem gente que chega com listas de compras nas mãos e gente que quer buscar algo na coleção — tarefa que pode levar horas. “Dá pra ficar o dia inteiro e não ver tudo.” Alguns, inclusive, são velhos conhecidos.
Como que pra provar a afirmação, entra um cliente fiel, que puxa papo com os vendedores e dá um pitaco na conversa. “MP3 é muito abstrato. É diferente ter o objeto”, diz ele. O papo envereda para o retorno das fitas cassete, mas aí todo o mundo concorda que já é demais. “Eu curtia fazer fitinha, seleção pra dar pras pessoas”, lembra Carolina. “Romântico. Muito romântico”, diz o freguês. Mas ele ressalta, dando mais uma vantagem do CD em relação às mídias concorrentes: com ele ainda dá pra fazer suas próprias coletâneas e dar de presente pros outros. Ele faz até hoje. Romântico. Muito romântico.
Entre os gêneros mais populares, o rock é o maior, responde Carolina sem pestanejar. Principalmente o internacional, mas os nacionais também saem bem. “Nacional a gente tem de tudo. MPB, rock, samba. Mas pra comprar e repor, é menos, porque não tem uma demanda igual de rock”, diz ela. “MPB é muito cíclico. Se você for ver os fãs do Chico [Buarque] de dez anos atrás, talvez metade consome disco. Às vezes o cara já tem tudo. Mas o de rock sempre vem atrás de coisa nova, de coisa que já passou, mas lá atrás ele deu menos importância. Acho que o público do rock é mais fiel ao consumo de disco.”
Não há um tipo específico de cliente em busca de discos físicos na loja — tem gente de todas as idades e todos os gostos. “Desde o moleque que tem a cultura familiar, até aqueles que estão descobrindo esse prazer. Muitos músicos”, conta. Não há som tocando na loja e os funcionários não têm o hábito de dar indicações. “Nem todo o mundo gosta do que eu gosto. É que nem vendedor de sapato, que já traz um monte de opção, mas eu não gosto.”
Quilômetros dali, em Pinheiros, a pequena loja Pops Discos, numa galeria na Teodoro Sampaio, também resiste bravamente — só com CDs, sem discos de vinil. Também rola por ali um clima familiar: enquanto toca a rádio Eldorado, um cliente conversa com o dono da loja sobre o jogo da seleção brasileira da noite anterior enquanto passa os olhos pelos álbuns e escolhe um. Organizados em ordem alfabética, os CDs carregam uma etiqueta com um código. Para os não iniciados, como eu, não faz sentido. Pergunto o preço e me mostram como usar uma tabela que mostra o preço de cada coisa com base nos códigos, “para a próxima vez” que eu for lá. Definitivamente um clima família — e, empolgada, levo uma caixa com cinco CDs do Gil que não fazia parte dos meus planos.
Aberta há 36 anos, a Pops começou como uma loja de vinil — hoje não os vende porque são muito caros. Lá, o que mais sai é música nacional e rock, e a maioria dos clientes já vai à loja com o que quer em mente, depois de olhar na internet, conta Ademir Manzato, fundador da Pops. O público, diz ele, tem faixa etária acima dos 40. Depois concede: 30. Mas não mais novos do que isso. Pelo tamanho do espaço, vender CD é mais fácil que vinil. Além do que, diz Ademir, vinil é muito caro. Se a moda pegar de vez e ficar mais acessível, quem sabe.
Na Barato Afins, Carolina conta que nos últimos anos houve uma queda na venda de CDs, acompanhada de um aumento na venda de vinis. “A gente sentiu uma diferença quando surgiu a internet. Muita loja fechou aqui por causa disso, as pessoas começaram a baixar música. Não precisava mais da fitinha pra trocar música. Não são nem os serviços de streaming [que fizeram a diferença no movimento], quando a internet ficou mais fácil pra todo o mundo deu uma caída, sim. Principalmente nas lojas que só vendiam CD”, diz ela. O disco físico, opina, terá vida longa. “Sempre vai ter mercado. Ninguém deixa de fabricar selo, por exemplo, sempre vai ter comércio pra isso. Colecionador… Quando o movimento começou cair e a gente pensou em abrir outra coisa, a gente pensou que já estava no ramo e sempre vai ter gente nostálgico. Eu sou suspeita. Mas nostalgia mexe com o emocional e sempre vão buscar coisas do passado.”
Enquanto “Spotlight”, vencedor do Oscar de melhor filme neste ano, é o sonho dos jornalistas e um retrato de tudo aquilo que a profissão pode fazer quando tudo dá certo, “Conspiração e Poder” (em inglês, “Truth”, “verdade”) é o lado oposto da moeda. O filme, que estreia nesta quinta (24), conta a história real de uma reportagem danosa ao presidente George W. Bush, exibida num dos principais programas jornalísticos do país, o “60 Minutes”, e contestada por ter usado documentos que teriam sido forjados. Basicamente, o pesadelo de um jornalista.
Era 2004, perto das eleições presidenciais americanas em que George W. Bush enfrentava John Kerry para se manter no carro, quando a equipe comandada por Mary Mapes — cujo livro serviu de base para o filme — se deparou com uma história e tanto. O político Ben Barnes, fonte de Mary, disse a ela que havia dado uma força para que Bush entrasse na concorrida Guarda Nacional do Texas, escapando de ir à Guerra do Vietnã. Investigando o histórico militar de Bush, a equipe de Mapes, papel de Cate Blanchett, encontrou um ex-militar que disse ter provas de que Bush não havia cumprido as regras de seu serviço militar e que havia sumido durante um período em que deveria estar na Guarda.
Primeiro problema: o militar não tinha os originais dos tais documentos, assinados por um superior de Bush já morto, só cópias. Segundo problema: a equipe não conseguia encontrar alguém que atestasse que o conteúdo dos documentos correspondesse à realidade. Terceiro problema: o canal CBS queria que a reportagem fosse ao ar em menos de uma semana para preencher um buraco na grade. Quatro especialistas foram contactados para confirmar a autenticidade dos papéis. Um deles afirmou que sem os originais não dava para concluir nada. Outro levantou dúvidas a respeito de um sobrescrito, que não estaria disponível nas máquinas de escrever da época. Mas um deles disse que era possível dizer que eram verdadeiros, sim. Quando eles confirmaram com um militar que conhecia os envolvidos que o teor dos documentos condizia com a opinião do superior de Bush, resolveram colocar a matéria no ar.
A alegria da equipe dura pouco. Depois de a matéria ser exibida, blogs conservadores começam a questionar a autenticidade dos documentos. Pela fonte e pelos espaçamentos utilizados, eles parecem ter sido feitos com as configurações básicas do Word. Alguém levanta a questão do sobrescrito que o especialista tinha apontado. A fonte volta atrás e diz que os documentos eram falsos. O ex-militar que trouxe os papéis para a equipe confessa que mentiu e que recebeu aqueles documentos de dois desconhecidos, e não de alguém confiável.
“Conspiração e Poder” levanta várias questões sobre o jornalismo, ainda mais importantes no contexto de hoje. Questionam Mary: mas como você sabia que o político te disse a verdade? Só porque uma pessoa disse algo, não quer dizer que tenha acontecido — depoimentos precisam ser acompanhados de provas. Ela não considerou o interesse das fontes? Graças a ela o dono dos documentos tinha entrado em contato com a equipe de Kerry. Ela não se questionou a respeito de onde vieram esses documentos vazados, a respeito do caminho que o papel fez até chegar a ela?
Em certo ponto perguntam a Mary a respeito de sua posição política. Ela diz que não é importante, mas a pressionam: ela recebeu os documentos e assumiu que eles eram verdadeiros, ficando satisfeita com qualquer evidência de que eles realmente eram. Se ela fosse realmente imparcial, e não uma esquerdista anti-Bush, ela teria presumido que o presidente fosse inocente e assumido que os documentos eram falsos até que encontrasse provas substanciais do contrário. Num filme chamado “verdade”, fica clara a dificuldade de saber a realidade sobre qualquer coisa. Mary escolheu acreditar nas suas fontes e, depois de falhar no processo de apuração, teve sua carreira completamente destruída — desde então ela nunca mais trabalhou na televisão, apesar de ser uma jornalista premiada.
[imagem_full]
[/imagem_full]
Outro ponto interessante apontado pelo filme é o tratamento que Mary recebe na internet depois que o escândalo estoura. O apresentador do programa, Dan Rather (Robert Redford), era um jornalista estimado, que havia ancorado o maior número de telejornais nos Estados Unidos. Era ele a cara da reportagem, e além de Mary havia toda uma equipe por trás da reportagem — dos pesquisadores aos chefes da emissora que apressaram a produção. Mas é ela quem é malhada publicamente. Chamada de feminazi, esquerdista, feia, vadia, e ameaçada de morte.
As questões que o filme suscita a respeito do jornalismo e do tratamento dado às mulheres online são, porém, melhores que o filme em si. “Conspiração e Poder” não chega a conclusão nenhuma no fim das contas, e passa superficialmente sobre todos esses assuntos. Um dos jornalistas do time, interpretado por Topher Grace (o Eric de “That 70’s Show”), faz um discurso inflamado acusando a emissora de queimar Mary porque a Viacom, dona da CBS, precisava da ajuda de Bush para um projeto que a favoreceria. Mas fica só nisso.
O filme passa ao lado de assuntos realmente dignos de serem discutidos e prefere apostar em platitudes como “o mundo precisa do jornalismo” e “não devemos parar de questionar nunca”. Sim, é verdade, mas essa mensagem “Spotlight” transmitiu com mais eficiência. “Conspiração e Poder” perde a oportunidade de discutir de verdade de que tipo de jornalismo o mundo precisa.
O nível de satisfação na saída de “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”, que estreia na quinta (24), provavelmente está relacionado com o nível de expectativa depois de ver seus trailers. Quem achava que o filme ia ser horrível pode sair relativamente contente — ele não chega a ser tão ruim assim. Por outro lado, quem se empolgou com a história pode sair decepcionado, afinal o filme é uma versão (bem) mais longa do trailer. No início da exibição do filme para a imprensa, um vídeo do diretor Zack Snyder pede para que ninguém dê spoilers da história, como se o trailer não tivesse revelado quase tudo.
Falar sobre a história, aliás, não é muito fácil. Quando você para e pensa sobre o que aconteceu, vê que a história pode até entreter, mas é cheia de buracos. Tem coisas sem explicação, cenas de sonhos soltas, tramas que não evoluem. Mas, de qualquer forma, aqui vai: depois de presenciar o cenário de destruição da batalha de Superman (Henry Cavill) contra Zod, que aconteceu no filme “O Homem de Aço”, e ver um de seus funcionários perder as duas pernas por causa disso, Batman (Ben Affleck) fica desconfiado do outro herói. Por ser um alienígena capaz de destruir todo o mundo, pensa Batman, ele não seria de confiança. Já o Superman acha que o Batman é um justiceiro que não respeita leis e quer que ele pare de circular por Gotham. Quando Clark Kent e Bruce Wayne se encontram, Bruce aponta que a posição de Clark é um pouco hipócrita, mas enfim. Vamos aceitar a premissa e seguir em frente.
Nem só Batman começa a desconfiar do Superman. Depois de salvar Lois Lane (Amy Adams) de uma entrevista com um terrorista e, no processo, causar a morte de vários africanos, Superman começa a ser considerado um perigo por parte dos americanos e, principalmente, por uma senadora. Nada de muito interessante sai dessa vertente da história — o Superman questiona sua existência durante cinco minutos e o conflito, que poderia ser legal, se resolve. Enquanto isso, Batman investiga um homem chamado Português Branco, por motivos que — além de incluir a Mulher Maravilha (Gal Gadot) na história — não ficam muito claros.
O elo comum entre todas as tramas é Lex Luthor (Jesse Eisenberg), milionário cheio de tiques que lembra muito Mark Zuckerberg em “A Rede Social” (Eisenberg parece interpretar sempre o mesmo papel, sempre meio detestável e, desta vez, bem pouco sutil, para ficar num eufemismo). Luthor quer que Batman e Superman se enfrentem também por razões misteriosas. Talvez quem entenda mais dos quadrinhos tenha alguma pista, mas para os leigos nada do que Lex faz tem pé nem cabeça. A única explicação possível é que ele é completamente louco e, por isso, suas ações não precisam fazer sentido mesmo. É pouco para um vilão.
[imagem_full]
[/imagem_full]
Também não é surpresa pra ninguém que viu o trailer que, a certa altura, Batman, Superman e Mulher Maravilha se unem de uma maneira esquisitíssima para lutar contra o vilão sem personalidade e com ares de ex machina chamado Apocalipse (culpe a tradução dos quadrinhos pela confusão com o vilão de X-Men, já que o nome original do monstro é Doomsday). A aparição da super-heroína fez com que parte da sala de cinema batesse palmas. Ela vai bem na cena de luta e Gal Gadot faz o que pode no resto do filme para que sua personagem seja interessante. Mas depois de cruzar com o caminho de Bruce Wayne nas investigações do Português Branco, ela é escanteada e aparece zanzando por aí durante o resto da história.
Não há nenhuma explicação para quem é ela, nenhum minuto dedicado à sua origem (em compensação, vemos os pais de Batman serem assassinados pelo que parece ser a milésima vez). Se seu nome é mencionado é tão breve que não dá nem para lembrar. O mesmo vale para os outros heróis. Quem esperava ver mais do Flash ou do Aquaman sairá desapontado. Eles aparecem durante um segundo, de forma bem questionável, só para estabelecer uma base para o filme da Liga da Justiça, planejado para o ano que vem. É difícil acreditar em um bom futuro para a franquia enquanto Zack Snyder estiver à frente dos principais títulos.
A Mulher Maravilha, aliás, não é a única personagem feminina mal aproveitada pela trama: uma atriz boa como Amy Adams merecia algo melhor do que a Lois Lane que recebeu, que aparece aqui e ali para apurar uma história sem pé nem cabeça sobre uma projétil, para ser salva pelo Superman e para dizer palavras de conforto para Clark Kent, numa atuação robótica de Henry Cavill. Ele tem a cara do herói, é verdade, mas um pôster com seu rosto teria feito um trabalho quase tão bom quanto. O trabalho de Cavill somado ao roteiro pouco interessante do personagem faz com que ninguém tenha apreço algum ao nome mais famoso da DC.
Mas há a parte boa: Ben Affleck, que declarou recentemente ao “New York Times” que seu trabalho no filme tinha prevalecido sobre aquilo que aconteceu na sua vida pessoal após a separação de Jennifer Garner, está bem no papel — uma ótima surpresa. Há mais Batman na versão Ben Affleck do que no Batman de Christian Bale. Seu Batman é complexo e não hesita em marcar bandidos com uma brasa em formato de morcego. O Batman não é um super-herói clichê, só com bondade no coração e boas intenções.
Também não são clichês algumas questões que o filme propõe: o impacto que essas batalhas de heróis contra vilões têm nas cidades (prédios destruídos, mortes, ferimentos), a ideia de que mesmo os super-heróis mais perfeitos e bondosos também têm falhas e pontos fracos — como Superman, que arrisca a vida de pessoas inocentes para salvar a mulher que ama –, a discussão sobre a necessidade de respeitar a lei mesmo quando é para fazer uma boa ação. “Batman vs Superman” não é ruim. Há uma história boa por trás do filme — ela só não é bem contada.
As crianças dos anos 90 não podem reclamar da falta de desenhos animados para preencher seus dias. Dos clássicos como “Scooby Doo”, de 1969, aos contemporâneos “Doug” e “Pokémon” tinha um pouco de tudo — comédia, ação, fantasia, produções americanas, japonesas. Só faltava uma animação brasileira — ainda mais uma de sucesso. Cenário bem diferente do de hoje, na melhor fase da animação nacional brasileira na televisão, com bastante oferta e retorno de audiência: atualmente, tanto no Discovery Kids quanto no Cartoon Network, os maiores canais infantis da TV paga, animações nacionais estão entre os líderes de popularidade.
A história do primeiro sucesso brasileiro no gênero, “Peixonauta”, começa lá atrás, 20 anos antes de sua estreia, em 2009. Foi quando Celia Catunda e Kiko Mistrorigo resolveram abrir uma produtora de animação quando quase ninguém produzia séries aqui e a animação nacional era mais voltada a publicidade ou vinhetas. A TV Pinguim, uma das produtoras de animação pioneiras no país, começou produzindo programas curtos para a TV Cultura — como “Rita”, em 1990 — e para o canal Futura. Naquele período, com pouco espaço na TV brasileira para produtoras independentes, os dois viajavam pelos mercados de televisão mundo afora com seus projetos debaixo do braço em busca de parceiros para produzir suas animações.
Em uma dessas viagens, fundamentais para o estabelecimento de uma rede de contatos, “Peixonauta” caiu nas graças e, produzido em associação com a Discovery, estreou no Discovery Kids em 2009 — antes da Lei da TV Paga, que estabeleceu cotas para exibição de programação nacional nos diferentes canais da TV fechada e estimulou o mercado de produtores. O programa sobre um peixe detetive em trajes de astronauta logo se tornou um dos campeões de audiência do canal. Na semana de estreia, surpreendeu o canal e foi a atração mais vista por crianças de quatro a 11 anos no horário. No ano seguinte, já era o líder na emissora, ganhou o prêmio de melhor programa infantil de televisão pela Associação Paulista de Críticos de Arte e passava em cerca de 60 países. Hoje, vai ao ar em mais de 80 países e tem um novo longa-metragem em vista para o futuro.
“Peixonauta” colocou a TV Pinguim no mapa do mercado audiovisual internacional. Tanto que a segunda série de sucesso da produtora, “O Show da Luna”, foi ao ar primeiro nos Estados Unidos, alguns meses antes de chegar ao Brasil em 2014. Na série, voltada para crianças em idade pré-escolar, Luna é uma menina curiosa e interessada por ciência que a cada episódio sai com um bloco de notas em busca de respostas para “tudo que é pergunta”, como diz sua canção de abertura. Tanto “Luna” quanto “Peixonauta” foram pensados para poderem ser entendidos e apreciados em qualquer canto do mundo — apesar de um país asiático ter pedido para que Luna não mostrasse as pernas descobertas por uma saia, o que foi negado pela produtora.
Coproduzido pela Discovery, o desenho ultrapassou o britânico “Peppa Pig” em popularidade e terminou o ano passado como líder de audiência no canal, garantindo uma segunda temporada de 26 episódios para este ano. A menina também ganhou as prateleiras e está em roupas, brinquedos, bonecos, artigos de papelaria, ovo de Páscoa, entre outros objetos.
[imagem_full]
[/imagem_full]
DO LADO DE LÁ
No mesmo ano em que “Peixonauta” estreava no Discovery Kids, começava o hit nacional do concorrente Cartoon Network, “O Irmão do Jorel”. Lançada em setembro de 2014, já era a animação mais vista do canal entre crianças 4 a 11 anos já no mês seguinte e teve novos episódios anunciados no fim do ano. O desenho começou a ser esboçado em 2003, época em que o criador Juliano Enrico compartilhava fotos constrangedoras de sua família na internet. “Sem exagero. Existe uma tonelada de fotos lindamente constrangedoras de família na minha casa. Tem foto até da família dos outros”, lembra Juliano.
“Com o tempo fui adaptando memórias e transformando aquelas pessoas das fotos (a maioria da minha família) e aquela atmosfera bizarra brasileira dos anos 70, 80 e 90 em personagens e cenários pra quadrinhos e depois série animada de TV.” O desenho mostra o cotidiano de uma família excêntrica, em que o filho mais novo é conhecido apenas como “o irmão do Jorel”, tamanha a popularidade de seu irmão, Jorel.
Em 2009, o Cartoon Network, que já mapeava o mercado nacional de animação, começou a buscar novos criadores e produtores para fazer novas séries. No Fórum Brasil de Televisão, o canal fez um pitching para que pessoas apresentassem suas ideias, vencido por Juliano. “A ideia do pitching era investir num piloto [primeiro episódio de uma série e espécie de teste], e se ficasse bacana, satisfatório, a gente transformaria em série”, conta Daniela Vieira, diretora de conteúdo do Cartoon Network no Brasil. “Juliano era um criador, não tinha produtora nem é sócio de nenhuma até hoje. A gente demorou anos pra desenvolver o piloto. Porque o que ele fez, com a nossa ajuda, foi literalmente viajar o Brasil procurando produtores ideias de animação, voz original — que é um setor bastante novo no Brasil, o de dublagem já existe há muito tempo, mas o de voz original é bem prematuro ainda.”
Juliano acabou escolhendo o Copa Studio para produzir o piloto. Durante a produção, conheceu Andrei Duarte, ilustrador que criou o conceito visual dos cenários (e que dá a voz para o protagonista, o irmão do Jorel), e Vini Wolf, diretor de animação da primeira temporada. “Esse tempo foi muito valioso pra encontrarmos as equipes certa pra transformar aquelas folhas grampeadas com grampeadores enferrujados em uma série de animação pra TV de humor engraçado.” Quando o piloto ficou pronto, Daniela conta que o canal gostou “muito, muito, muito” e deu sinal verde para a produção da série, que começou em 2011.
Segundo Daniela, ter desenhos nacionais sempre foi muito importante para o canal, mesmo antes da Lei da TV Paga. Mas foi só em 2010 que o canal passou a ter uma equipe responsável por conteúdo no Brasil. Hoje, há uma equipe “robusta”: gente para produzir, promover e divulgar as animações, num cardápio bem variado. “A gente tem um misto de personagens que estão enraizados na cultura brasileira, então o Cartoon Network é a casa de ‘Turma da Mônica’ e ‘Sítio do Picapau Amarelo’, e personagens originais, como ‘O Irmão do Jorel’, que tem total aderência ao DNA do Cartoon, mas que tem um saborzinho nacional”, diz Daniela.
Antes da Lei, de 2011, eram quatro as séries nacionais do canal. Hoje são oito, numa lista que inclui ainda “Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas)”, “Gui e Estopa”, “Tromba Trem” e “Carrapato e Catapultas”. Todas, para Daniela, têm uma temática universal e uma veia cômica — fundamental para o canal –, mas elementos com os quais as crianças brasileiras conseguem se identificar. As séries são todas dubladas em espanhol e exibidas no Cartoon em toda América Latina.
MELHORA EXPONENCIAL
Na avaliação de Daniela, nos últimos anos a qualidade dos desenhos brasileiros teve uma melhora exponencial. “Falta muito ainda. Não vou dizer que a gente tem um nível de produção comparado a Estados Unidos, Europa e Ásia, porque a gente não tem. Mas tem um nível excelente”, afirma. Há oito anos, havia uma oferta grande de programas pré-escolares educativos, mas pouca variedade de gêneros, diz ela. “Não tinha série de humor, de ação, que mistura live action com animação. Era muito um gênero só e um público-alvo só. Hoje você encontra uma gama muito variada de projetos.”
O Cartoon Network recebe projetos de muitos criadores com ideias brilhantes, mas com pouca capacitação técnica para desenvolvê-los. É um problema que tanto Celia Catunda quanto Daniela Vieira apontam: não há escolas de animação no Brasil. “Tem muita ideia que precisa ser polida”, diz Daniela. Hoje, inclusive, conta que há aumento de demanda por animações brasileiras e não há produtores que atendam. “Com capacidade de produção e nível de qualidade excelente tem algumas casas que fazem isso. Muito concentradas no eixo São Paulo e Rio, a gente está tentando descobrir casas em outros Estados do país pra trazê-los pro Cartoon. A gente entra em fila indiana. Muitos projetos não estream quando a gente quer porque não dá tempo de produzir.” Mas em sua opinião, nos últimos dez anos o Brasil “fez um avanço absurdo” e no últimos cinco ainda mais. “Deu pra começar a brincar de animação.”
Brincadeira que, segundo Juliano Enrico, é bem trabalhosa. “As maiores dificuldades de se fazer uma série de animação são as inúmeras etapas que precisam começar e acabar com precisão cirúrgica pra não gerar um engavetamento entre os envolvidos e atrasos e tristeza no coração da equipe e de todo o Brasil. Isso tudo até que é divertido. Quando dá certo. Até agora deu certo. Mas é difícil”, diz ele. “É quase uma maratona com umas 50 pessoas correndo juntas acorrentadas umas as outras durante 18 meses. O equilíbrio entre produção e criação mantém essas 50 pessoas correndo loucamente com um propósito.”
Pelo fato de fazer uma série de animação ser um processo demorado — chegando a 24 meses, segundo Daniela –, não haverá produções novas neste ano no Cartoon. “Uma série que receba uma aprovação agora vai pro ar no fim de 2017, comecinho de 2018”, diz. Neste ano, o canal não abriu oportunidades para novos produtores, mas pediu novas temporadas de tudo o que já está no ar, com exceção de “Carrapato e Catapultas”. “A gente prefere criar uma relação longeva, saudável, com produtores que já estão na casa — o que já é bastante, é um volume expressivo de séries”, diz.
Antes da sessão de “Mundo Cão” para jornalistas começar cada um recebeu um papel que pedia: por favor, não deem spoilers para os leitores. Parece um pedido esquisito. Não contar demais de uma história sem aviso e estragar a experiência de quem quer ver um filme é que nem lavar as mãos depois de ir ao banheiro: tem gente que não faz, mas é senso comum. Na coletiva de imprensa, realizada logo depois da exibição emSão Paulo, percebe-se o porquê do panfleto. Quase nenhuma das respostas dadas pela equipe do filme, que estreia na quinta (17), pode ser usada numa reportagem sem que alguma reviravolta da história seja revelada.
Dirigido por Marcos Jorge, de “Estômago” (2007), o filme mostra as repercussões do encontro entre Santana (Babu Santana), funcionário do centro de zoonoses, e Nenê (Lázaro Ramos), que cria cachorros para aterrorizar quem atrapalhar seu negócio de máquinas de jogo em bares. Quando um de seus cachorros escapa e vai parar em uma escola, Santana e seu parceiro capturam o animal e o levam para o centro. Pela lei, se em três dias o dono não aparecer, o cachorro é sacrificado. Mordido na bunda pelo cachorro, o colega de Santana tem pressa para dar o fim no cão assim que o prazo termina, e o animal acaba por morrer minutos antes de Nenê chegar para buscá-lo.
Até então, Santana levava uma vida sossegada com os filhos, João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), e a mulher, Dilza (Adriana Esteves), uma evangélica que vende calcinhas sexy — mas não de enfiar na bunda — pelo bairro. Depois de conhecer Nenê e entrar num confronto tenso com ele, acaba a paz. Santana chama o dono do cachorro de animal, e, como vingança, Nenê sequestra João, começando um jogo de gato e rato entre os dois no qual tabuleiro vira algumas vezes. Não dá pra contar mais nada. Como diria Marcos Jorge, é um filme cheio de “truquinhos do diretor”.
A história nasceu de uma obsessão de infância do cineasta pelo homem da carrocinha e de sua vontade de falar sobre amor entre pai e filho. Ainda quando fazia “Estômago”, o filme foi ganhando forma. Não à toa Babu Santana interpreta Santana: quando os dois filmavam juntos o longa de 2007, anos atrás, Marcos pensava em seu protagonista como “um cara bonachão, de coração muito bom”, como Babu.
O papel veio a calhar, diz Babu. “Foi um filme que me confortou. Eu tinha acabado de perder minha mãe, foi uma ação que não permitiu minha cabeça de se desmotivar. Segurou muito minha onda e minha autoestima”, diz ele sobre a experiência. “O Santana foi lindo. É a figura mais humana com quem me deparei. Como na nossa vida, alguma atitude que a gente toma ou alguma coisa em que a gente tropeça pode mudar tudo.” Depois de Babu, foi a vez de Lázaro entrar no projeto. “Eu me senti à vontade pra convidar qualquer ator brasileiro que eu sentisse no nível que eu queria. E o Lázaro foi escolha quase que natural. Ele é um dos maiores atores brasileiros”, afirma o diretor, questionado sobre o fato de seus dois personagens principais serem negros.
“Não escolhi esses dois caras por eles serem negros. Escolhi porque eles são dois dos melhores atores brasileiros. Depois eu fui fundo na questão black, porque desde que eu fiz o roteiro a música estava impregnada no personagem do Santana, que é baterista”, continua o cineasta. “A família tem esse tom de pele lindo que representa fundamentalmente o Brasil. Até nas minhas publicidades — sou diretor de publicidade — tenho o costume de colocar muita gente negra. Acho que isso é um valor. Eu procuro a verdade. Como o Brasil é um país com muita gente misturada, eu sou misturado, quase todos nós somos misturados, acho natural que o cinema reflita isso. É curioso que não faça e que esse seja um filme que de certa forma se diferencie dos outros por esse motivo. Esse não deveria ser um motivo.”
[imagem_full]
[/imagem_full]
Para Lázaro, a motivação foi poder abordar um tema em que pensa muito, mas não entende: a vingança pelas próprias mãos. Também diz ter se sentido pronto, pela primeira vez, para interpretar um vilão (com direito a risada maquiavélica e tudo). “Sempre fugi um pouco desse tipo de personagem. E em ‘Mundo Cão’ me senti preparado, achei que era o momento certo pra fazer um personagem muito diferente de mim, muito impulsivo, mais apaixonado por futebol e por cachorro do que por seres humanos. Exatamente o oposto de mim”, diz. “Tentei investigar como o ser humano consegue chegar ao limite por esses dois motivos.”
O amor de Nenê por cachorros e o Palmeiras trouxe duas grandes dificuldades para o diretor. A primeira foi trabalhar com os animais. “Eu me meti numa enrascada nesse filme, porque você começa a escrever o roteiro dizendo ‘cachorro ataca, cachorro é preso, cachorro foge’ e cada uma dessas palavras que você coloca no roteiro dá um trabalho infernal”, lembra. “É muito mais fácil treinar o cachorro pra ser simpático do que pra parecer agressivo sem ser agressivo.” Cada plano tem um truque, diz, como uma corda que manteve o cachorro parado na marca apagada na finalização. Foram 12 diárias com cachorros e 12 noites não dormidas, diz ele. Apesar do trabalho, Marcos é grato aos cães, “verdadeiros atores”, que são citados pelo nome nos créditos finais depois dos atores humanos. “O cachorro é um pouco a metáfora. Eles me permitem passar agressividade sem que gere um filme violento.”
[imagem_full]
[/imagem_full]
Segundo desafio: o futebol. Em uma das cenas — que aparece no trailer, então tudo bem falar dela –, Nenê leva João, filho de corintiano, ao estádio para ver o Palmeiras e um plano sequência mostra a sensação do menino de chegar à arquibancada pela primeira vez. Outra cena daquelas que você coloca no roteiro e depois causam dor de cabeça, lembra Marcos. “É o plano mais difícil do filme, um plano sequência feito com duas câmeras separadas, fundidas na finalização. Ali tem 3D, 2D, drone, steadicam”, conta, acrescentando que a cena levou meses para ficar pronta. “[Foi] essa sensação de ir ao estádio pela primeira vez que eu quis passar e quis fazer com plenitude. Inventei um plano que depois me deu muito trabalho pra fazer, mas acho que passa essa energia do estádio.”
Mas futebol é um penduricalho. O tema principal do filme fica claro logo no início, quando os dois protagonistas se enfrentam no centro de zoonoses. Por que Santana não disse pra Nenê que o principal responsável pela morte do cachorro era seu parceiro? Há, em primeiro lugar, um elemento de lealdade à corporação. “Ele se sente ofendido como profissional. O trabalho dele é caçar cachorro. A carrocinha que a gente usou, que nos foi emprestada pelo centro de zoonoses de São Paulo, tinha furos de bala na traseira. Os caras andavam pela cidade e levavam tiros. Os laçadores de cães são uma categoria profissional vituperada. No entanto, nos anos 70 e 80 eles erradicaram a raiva no Brasil. São pessoas que fazem seu trabalho. Não é culpa deles. Eles têm orgulho do trabalho deles, fazem um trabalho útil para a sociedade”, diz. “O Santana toma essas dores porque é da natureza dele. Ele é o cara que toma a frente, que tem a pegada de defender.”
É também mais que isso. Tanto a cena quanto o filme falam sobre a escalada da violência e a dificuldade em identificar onde ela começa — esse sim o ponto central da história. “Uma hora você não sabe mais por quê, você não entende mais por que começou aquilo tudo. O fato é que aconteceu o que aconteceu, não interessa se eu tive ou não tive culpa”, diz Babu. Marcos concorda: “O que se diz é mais importante do que o que originou a discussão. Ontem, na rua, eu vi um guarda e um ciclista brigando fisicamente, numa discussão que começou com um bate-boca e num momento um dos dois pegou um martelo de uma construção. Me lembrou muito essa discussão. Começa por um motivo meio banal, as pessoas dizem coisas erradas e de repente aquilo é mais importante, a falta de paciência. Isso é a violência que a gente vive hoje”.
Uma ameaça, uns super-heróis capazes de enfrentar a ameaça, os socos, pontapés e explosões que acontecem nesse enfrentamento e uma frase espertinha no final. Poderia ser a descrição do trailer de vários filmes de super-heróis — e é. De acordo com Dana Polan, professor do departamento de cinema da Universidade de Nova York, essa é uma das receitas para as prévias de blockbusters de ação. A semelhança entre trailers lançados numa mesma época não é mera coincidência: cada época tem seu tipo. Muita coisa mudou desde o nascimento dos trailers, por volta de cem anos atrás – com as mudanças tecnológicas e socioculturais, transformou-se não só a forma como eles são produzidos e consumidos, como também sua cara.
Segundo Polan, os trailers parecem ter começado por volta do meio da década de 1910 — é difícil precisar a data e definir qual foi o primeiro filme a usar esse tipo de vídeo curto para promover seu lançamento. No início, eram exibidos depois do filme no cinema, e foi daí que nasceu seu nome, já que um dos significados da palavra “trail”, em inglês, é vir em seguida. Os pequenos filmes mostravam alguns trechos importantes do longa, dando ênfase para cenas de ação ou romance, com um aviso de “em breve no cinema”. No início, os trailers serviam como propaganda não só para o filme como também para a indústria cinematográfica. “Eles diziam: ‘Olhem como é dinâmico o mundo dos filmes! Você realmente quer perder isso?’”, diz Polan, lembrando a presença de grandes letreiros e efeitos ópticos que marcavam os trailers até os anos 1950.
Entre os anos 1930 e 1950, as prévias destacavam o elenco. “Enfatizavam muito o nome da estrela e, em segundo lugar, como seu personagem se encaixava no filme sendo promovido. Em outras palavras, não era a trama que era vendida, e sim como a estrela aparecia no filme”, afirma ele. Para Keith Johnston, autor do livro “Coming Soon: Film Trailers and the Selling of Hollywood Technology”, sem edição em português, até 1930 ainda estavam sendo testadas estruturas e diferentes estéticas para os trailers, resultando em vinhetas mais experimentais. Durante os anos 1920, havia três grandes tipos de trailers: os curtos, com menos de um minuto, o título do filme e algumas fotos; os regulares, de um a dois minutos, com o título, animações e uma ou duas cenas; e os de luxo, com dois a três minutos de duração e cenas do filme.
Alexander S. Davis, doutorando do departamento de cinema da Universidade de Nova York, diz que as tendências nos trailers acompanham a evolução da tecnologia no cinema. “Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos”, diz. “Com o widescreen os filmes passaram a ser um espetáculo de imagem e os trailers poderiam focar nas grandes paisagens em vez de na narrativa ou no filme em si. Quando essa tecnologia envelhece, os trailers voltam a ser propagandas da narrativa.”
[citacao credito=”Alexander S. Davis” ]Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos[/citacao]
Johnston dá outro exemplo. Com a chegada do som ao cinema, começou uma nova tendência, com um mestre de cerimônias apresentando o filme, caso do trailer de “The Jazz Singer”, de 1927. Quando ficou comum ter som no filme e a edição de sons ficou mais sofisticada, aumentou o balanço entre letreiros, cenas, música e narração — o que ficou conhecido como o estilo “clássico” dos trailers.
“Não estou dizendo que a tecnologia ajuda o trailer a evoluir — porque isso não é uma questão de evolução, e sim de tentativa e erro por parte da indústria. Mas há momentos claros em que novas tecnologias forçam ou encorajam produtores de trailers a experimentar”, diz Johnston. Até os anos 1960, o monopólio da produção de trailers estava nas mãos da National Screen Service, que produzia as prévias de modo industrial, com uma fórmula um pouco parecida. Letreiros que contavam um pouco da história e faziam promessas como “se você busca aventura, vai encontrar neste filme”, um narrador, algumas cenas não muito reveladoras do filme e apresentação do elenco e personagens — como o caso de “Casablanca”.
AGILIDADE
Nos anos 1960, começaram a aparecer outras empresas, como a Kaleidoscope, mais dispostas a experimentar. Andrew J. Kuehn, que fundou a companhia em 1968, produziu mais de mil trailers, incluindo os de “Tubarão”, “E.T” e “Star Wars”. Seus trailers eram mais ágeis, ainda com a presença de narração — mas narradores com mais personalidade –, bastante música e que contavam a história por meio de cenas, abrindo mão dos letreiros explicativos. Em uma entrevista citada pela revista Varietyem seu obituário, Kuehn afirmou: “Um trailer tem um objetivo: levar o público das suas casas para uma sala de cinema. Para fazer isso você tem que gerar um senso de urgência. No processo de chegar a esse ritmo avançamos o estilo de edição. Realmente forçamos os limites do que o público poderia aceitar”.
Com o sucesso de franquias e blockbusters como “Star Wars”, os estúdios passaram a querer ter mais controle sobre seus trailers, afirma Polan. O lançamento de um filme passou a significar também a venda de outros produtos: livros, quadrinhos, brinquedos, e depois vídeos. “A partir dos anos 1970 cada vez mais a qualidade e a cara dos trailers passou a ficar nas mãos dos estúdios e seus diretores, para que o trailer fizesse parte do mesmo universo narrativo que o filme”, diz ele.
Populares anos atrás, as narrações viraram tão clichê que hoje são mais usadas por comédias que querem tirar um sarro — ou por vídeos engraçadinhos como os do Honest Trailers, que mostrariam “a realidade” do filme. “Agora estamos num momento em que montagens estão mais populares, com menos coisas escritas e narrações. Mas é provável que isso mude de novo, com trailers como os de ‘Magic Mike XXL’ e ‘Independence Day: Ressurgence’ mostrando que letreiros estão crescendo em popularidade novamente”, palpita Johnston.
ERA DA INTERNET
A internet representou outra grande mudança no universo dos trailers. “Ela definitivamente mudou a forma como consumimos trailers. Agora há múltiplos trailers lançados para construir interesse, teasers lançados muito antes do filme para garantir que ele estará na cabeça das pessoas desde já, e trailers que podem mostrar violência, sexo e palavrões que cinemas não podem, prometendo aos espectadores um reflexo mais preciso do filme”, diz Davis. Para ele, embora a internet não tenha mudado muito a cara dos trailers, agora são produzidos vídeos especificamente para o consumo na internet, perfeitos para serem pausados e analisados.
Quando os trailers só existiam na sala de cinema, eram um aviso de que o lançamento do filme estava próximo. Na internet, divulgar um trailer novo não tem necessariamente como objetivo principal tirar alguém de sua casa para comprar um ingresso. É o caso do sétimo episódio de “Star Wars”: muita gente já queria ver o filme quando ele foi anunciado. O primeiro trailer não convenceu as pessoas a ir ao cinema, só as deixou com mais vontade de ir.
“Muitos blockbusters lançam trailers um ano antes do filme. O trailer não faz com que ninguém fique pronto pra ir no cinema no ano seguinte, mas aumenta o reconhecimento e a antecipação e torna o filme uma parte da conversa cultural que as pessoas têm. Provavelmente os filmes menores, independentes, se beneficiam mais dos trailers [como estratégia para atrair público]”, diz Dana Polan. “Trailers são ferramentas inestimáveis para contar as pessoas que seu filme existe e merece ser visto, mas são de alguma forma supérfluos na era da internet, em que a expectativa é cultivada pela discussão online”, concorda Alexander S. Davis.
Já vemos na internet várias versões de um mesmo trailer — teaser, versão internacional, trailer 1, trailer 2 –, mas segundo o livro “Promotional Screen Industries”, de Paul Grainge e Cathy Johnson, o número é muito maior e mais de 200 versões são feitas para um blockbuster moderno. Os estúdios encomendam diversas opções e as versões que chegamos a ver compilam os trechos favoritos do estúdio. Como blockbusters dependem muito do fim de semana de estreia, a expectativa do público tem que ser a maior possível, e por isso diferentes versões de um trailer, com uma ou outra cena diferente, são lançadas. Cada vídeo novo contribui para os comentários na internet — gerando muita propaganda gratuita, segundo Keith Johnston.
De acordo com uma de suas pesquisas, mais de 60% das pessoas têm a internet como fonte primária de trailers. “O que é interessante é que essas pessoas estavam quase sempre procurando um trailer específico — não apenas vendo o que estava pra estrear — ou respondendo a recomendações que viram nas redes sociais. As pessoas veem os trailers como parte de suas interações sociais, compartilhando e discutindo, querendo estar atualizadas e também mostrando suas preferências”, conta.
SPOILER?
Com tanta quantidade de informações sobre um filme disponível na internet anos antes de seu lançamento, os trailers já não precisam apresentar personagens, atores e elementos básicos da trama como as prévias de antigamente. Uma reclamação comum hoje, aliás, é que os trailers revelam demais da história e estragam as surpresas do filme. Tanto que Zack Snyder, diretor de “Batman v. Superman” teve que garantir aos fãs que seu trailer não contou a trama toda. “É legal que eles achem que é demais e aprecio o fato de que as pessoas não querem saber, mas tem muita coisa que eles não sabem. Muito do filme não está ano trailer”, disse ele à MTV.
Segundo Polan, um produtor de trailers foi a uma aula de sua mulher, professora de publicidade, e disse para um estudante que é “óbvio que trailers revelam muito do enredo”. “Precisamos fazer com que você queira ir ver o filme. Damos muitas informações, mas sabemos que isso vai fazer com que você vá ao cinema. Se você comprar seu ingresso e sair achando que tudo estava no trailer a gente não liga. Nosso objetivo é levar você à sala de cinema, não o que acontece depois que você vê o filme”, disse ele.
Ele vai além e diz que vivemos uma cultura de repetições e que estamos dispostos a ver tudo mais de uma vez. Assim, tanto faz se já sabemos a história toda do filme ou não. Esse seria o “efeito spoiler”, segundo Davis. Segundo uma teoria psicológica, as pessoas tendem a gostar mais de um filme ou de uma série de TV se sabem o que vai acontecer. “Fazendo com que você saiba demais sobre um filme antes de vê-lo, um estúdio pode fazer com que você goste mais dele, o que vai te levar a recomendá-lo para seus amigos. Mas é incrivelmente especulativo, apesar de ser uma teoria que eu adoro”, afirma ele.
[citacao credito=”Keith Johnston” ]O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho[/citacao]
Além disso, ressalta Johnston, não dá para saber se um trailer revelou demais antes de ver o filme pronto. “O clipe dos velociraptors correndo ao lado do Chris Pratt em ‘Jurassic World’ — eu vi aquilo no trailer e em outros vídeos sobre o filme. Estragou a experiência pra mim? Não, porque é legal visualmente, mas o filme não é sobre isso”, opina. “O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho, o que significa que você vai irritar algumas pessoas por mostrar demais e outras por não contar o suficiente.”
Embora exista uma fundação que guarda 60 mil trailers — disponíveis para consulta presencial em Los Angeles, na coleção do Packard Humanities Institute –, Johnston ressalta que eles não estão na maior parte dos arquivos de filme, e que quando estão não são prioridade para restauração. “É uma perda real para a história do cinema. Há lacunas que nunca serão preenchidas, o que reduz a possibilidade de mostrar o verdadeiro escopo dos trailers que existiram nos últimos cem anos”, diz ele. “Há mais pesquisa para se fazer sobre trailers? Com certeza. Só alcançamos a superfície.”