Categorias
Perfil

O crítico

Um painel ocupa a parede mais ampla da sala da casa de Rubens Ewald Filho, quase 71 anos, o crítico de cinema mais conhecido do país, rosto do Oscar na TV brasileira por mais de três décadas. A imagem na parede mostra um set de filmagem, a atriz principal à frente, imponente. Mas não é nenhuma diva de Hollywood. O nome dela é Vanja Orico (1931-2015) e a cena é de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, vencedor do festival de Cannes de 1953, o maior expoente dos filmes de cangaço, gênero conhecido como o faroeste brasileiro. “Vanja era uma pessoa completamente doida”, diverte-se Rubens. Rubricas como essa se repetem na longa conversa com o crítico em sua casa, numa tarde de sábado chuvosa e abafada em dezembro passado.

Na noite anterior, Rubens havia perdido a amiga Nydia Licia, atriz e diretora teatral falecida aos 89 anos, a quem considerava uma espécie de “madrinha” no mundo artístico. “É, tenho um velório para ir hoje.” Ele mal havia se recuperado do choque pela morte de Marília Pêra, ocorrida exatamente uma semana antes. Rubens considerava a atriz mais que uma amiga, uma “cúmplice”. “Ela era uma estrela, uma figura única, cantava, dirigia. Marília foi um mito do teatro brasileiro, a gente nunca achava que Marília fosse morrer. Ela ia estar com 90 anos representando, dirigindo”, diz. Na opinião dele, Pêra foi uma artista até maior que Fernanda Montenegro. “Fernanda é uma senhora atriz, mas nunca dirigiu, não cantava, era outro lance”.

Rubens conta que se aproximou de Marília Pêra quando escreveu um roteiro baseado em um livro de Mario Prata e a convidou para o papel principal. Por algum motivo, os direitos do filme foram parar nas mãos de outro produtor, e a produção acabou nunca saindo. “Marília achou que eu havia dado para outra pessoa, imagina! Mas isso nos uniu”, conta. Ele lembrou a história no Festival de Gramado de 2015, ocasião em que a atriz foi premiada. Marília já estava doente, mas não falou sobre isso para ninguém. “Foi a despedida dela. Ela estava linda”.

Rubens mora sozinho em uma casa confortável, algo rústica, em um condomínio fechado em Cotia, a cerca de 30 quilômetros do Centro de São Paulo. De lá ele só costuma sair para ir ao cinema. Filmes nacionais de grande apelo, como as comédias da Globo Filmes, ele prefere ver junto com o público nas salas de cinema dos shoppings mais próximos (Raposo e Granja Vianna). Ele tenta ir ao máximo possível de cabines (sessões fechadas para a imprensa), que costumam acontecer pela manhã em cinemas mais centrais em São Paulo, mas o trânsito da rodovia Raposo Tavares, ligação entre Cotia e a Capital, está cada vez pior. Quando consegue chegar, aproveita para emendar dois ou três filmes na sequência, geralmente no shopping Frei Caneca.

Além da grande imagem de “O Cangaceiro”, inúmeros quadros de filmes ocupam as paredes da casa, inclusive as do banheiro – em um deles há um pôster com dedicatória do ator John Forsythe. Pilhas de DVDs e revistas se concentram numa espécie de mezanino que faz as vezes de pequeno escritório e sala de projeção (ele vê os filmes em uma TV comum de tela plana, diante de um sofá bastante próximo ao aparelho). Ultimamente tem visto muitos filmes enviados pelas distribuidoras em plataformas digitais. “Adoro Vimeo. Esse filme filipino de quatro horas e quinze eu vi no Vimeo”, diz, em referência a “Norte, O Fim da História”, de Lav Diaz.

Rubens prefere ficar em casa – “eu e meus filminhos”. A ele não interessa aparecer em colunas sociais ou virar nome de prato no restaurante Paris 6. “Você não me vê em boate, em estreia de filme… eu só saio de casa pra ir ao cinema ou ao teatro. Não vou a coquetel, não vou a nada. Não é minha proposta sair na Caras, não tenho o menor problema com eles, me tratam muito bem, mas esse tipo de coisa eu fujo como o diabo da cruz, eu vou cada vez menos”, diz. Na casa, comprada na época em que foi executivo da HBO, Rubens recebe a visita da empregada três vezes por semana (frequência que ele pretende diminuir por conta da crise econômica, que já lhe tirou alguns trabalhos) e eventualmente de um jardineiro. A piscina não parece ter sido utilizada nos últimos meses. Um vendaval havia derrubado duas árvores do terreno recentemente. Pergunto das visitas, que são poucas.

“Mas você tem bastante amigos”, digo.

“Estão morrendo. Um por semana.”

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

[/imagem_full]

O cinema é a única janela para as memórias da infância de Rubens, nascido e criado em Santos. Ele costuma dizer que nunca jogou bola na rua e nunca teve amigos quando era criança. A diversão eram as sessões de cinema e as horas e horas recortando os anúncios dos filmes no jornal e montando sua própria programação de cinema. “Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que eu vi. É uma infância bloqueada, é como seu eu tivesse nascido com nove anos. Eu só tinha os filmes para me segurar, e eu começo a anotar num caderninho, de nove para dez anos. É por isso que eu tenho todos os filmes que vi”, recorda-se.

No final de 2015, essa conta chegava a mais de 35.300 filmes assistidos, uma média que nem vale a pena tentar estabelecer, de tão fora da realidade de uma pessoa comum. Rezava a lenda que Rubens assistia a dois ou mais filmes ao mesmo tempo – o que ele confirma. “O segredo é simples: se você está vendo um filme em português e outro com legenda, é fácil seguir. O jovem hoje faz cinco coisas ao mesmo tempo e isso é absolutamente normal para eles. Eu só estava diante do meu tempo, nada mais”, brinca. Hoje, sem precisar editar guias de filmes, ele parou com esse hábito.

[olho]”Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que vi”[/olho]

Além dos caderninhos, quando criança Rubens fazia um livreto só com filmes do Oscar, outro só com diretores. Como em um romance em que as premissas da trama são lançadas no primeiro capítulo para serem retomadas ao longo da história, décadas depois Rubens lançou um dos mais importantes livros de consulta sobre cinema no Brasil, o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977. “Na verdade tudo já tinha a semente”, observa.

Duas revistas foram fundamentais em sua formação: a “Filmelândia”, adaptação da americana “Screen Stories”, que trazia roteiros de filmes adaptados como uma pequena novela; e a “Cinelândia”, versão brasileira de “Modern Screen”. Ambas eram editadas no Brasil pela Globo, e os editores locais recheavam esta última com informações sobre a vida dos diretores e incluíam filmes de outros países, como França e Argentina. “O que importava não era se o artista ia se separar ou não. Tinha isso, mas tinha também Hitchcock, John Ford, Cecil B. DeMille… quer dizer, ainda garoto eu consegui pegar esses diretores graças a isso. Você tinha uma informação de cinema que te permitia ser autodidata, que foi o que aconteceu, eu fui atrás de livros. Aprendia línguas muito fácil: francês, italiano, inglês. Isso tudo foi o alimento para eu querer correr atrás, porque era impossível sonhar em fazer cinema. Não existia, né? A chanchada terminou e aí veio um nada e só depois o Cinema Novo, que vem com perseguição de governo e tudo mais”, conta.

Rubens não faz questão de esconder como a relação com a família – “extremamente repressiva” – era difícil. Quando criança, os pais o levavam ao cinema – ele lembra que iam todos juntos, mas o hábito de recortar e colar jornais e revistas era motivo de luta constante com a mãe. Ela achava tudo aquilo “uma porcaria”. “Era aquela família, que era muito comum na época, que quem mandava era a avó, sabe? A avó era uma bruxa. Quando eu escrevi a novela ‘Drácula’, eu pus a Cleide Yaconnis fazendo a minha avó. Quando eu fiz ‘Éramos Seis’ também tinha uma avó que era… eu tentei pôr pra fora diversos fantasmas”, diz.

Rubens diz que não tem mais família. Cortou relações com o irmão, a quem acusa de ter se aproveitado financeiramente dele. Consequentemente, não fala mais com os sobrinhos. Cuidou dos pais na velhice e levou a mãe, Elza, para viajar. A infância em Santos foi abastada, a família era dona de fazendas de banana no litoral. O pai, que gostava muito de praticar esportes, foi presidente do tradicional Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 60 anos, porém, Rubens pai quebrou. “Ele era um homem acostumado a mandar, acostumado a ter tudo, também acostumado a trair a minha mãe com vedetes do teatro de revista – não tô julgando nada, se ele era feliz assim não tenho nada com isso… enfim, ele era um conquistador. Mas quando perde tudo ele se senta numa cadeira e nunca faz mais nada. Passa vinte anos assim até morrer com 80”, lembra.

Muitas vezes, Rubens narra suas recordações usando verbos no presente, como se alguns fragmentos do passado voltassem a acontecer no momento em que sua fala é projetada. Uma pergunta objetiva pode dar margem a uma longa digressão em cima de uma lembrança periférica; mesmo em seus e-mails ele emenda uma frase na outra obedecendo somente ao fluxo de seu pensamento. Ele é mais alto e mais corpulento do que aparenta na televisão – muito de sua saúde se deve, segundo ele, à natação que praticava na juventude. Voltou a fazer exercícios regulares nos últimos 15 anos e procura levar uma vida saudável. Parece estranho dizer isso, mas a indefectível barba lhe dá uma aparência de menino.

“Como é curiosa a trajetória de vida”, ele diz. Para um pouco, suspira e retoma o fôlego. “Eu não planejei ficar sozinho, mas fiquei. As pessoas nem sabem porque eu nunca conto isso, mas eu fui casado… e ela faleceu de erro médico. Quer dizer, mais uma coisa desagradável da vida, uma coisa que te marca… aí você não quer nada mais.” Ao final da entrevista, retomo o assunto do casamento, mas Rubens fica muito desconfortável. “É uma coisa triste, não vejo porque falar. Dá raiva, dá tudo, desperta as emoções que você por tanto tempo controlou.” Eu não peço mais detalhes.

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens em Hollywood. Crédito: Rafael Roncato

[/imagem_full]

No domingo, dia 28, quando entrar no ar direto de Los Angeles pelo canal pago TNT para apresentar e comentar a entrega do Oscar, Rubens Ewald Filho terá participado das transmissões de 33 edições do prêmio pela TV brasileira. Embora as sementes estivessem lá na infância nos caderninhos, ele também não planejou ser o “crítico do Oscar”. “Pois é! Por que não me chamam para apresentar o prêmio Davi de Donatello?”, brinca. Depois volta a falar sério: “É o ônus que eu tenho que carregar”, admite. No passado, Rubens não gostava quando ficava sabendo de colegas de crítica e jornalismo que o consideravam “vendido” a Hollywood. “Mas todos eles voltaram atrás. A melhor maneira de conviver com isso é estar com a cabeça sossegada. Nesses dois últimos anos, se você for ver o que eu tenho falado mal do cinema americano, é muito forte. Nunca deixavam antes. Hoje eu critico abertamente… não que eles se incomodem com isso.” E solta uma gargalhada.

O crítico de cinema Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, foi contemporâneo de Rubens no início de ambos no Jornal da Tarde. Para ele, a associação da imagem do colega, hoje amigo, ao Oscar é muito justa e quase obrigatória, por todo o trabalho que ele fez nessas últimas décadas. “Para mim, uma transmissão do Oscar, que é coisa muito chata, diga-se de passagem, ficaria insuportável sem o Rubens”, diz. E conclui: “Tínhamos maneiras bem diferentes de ver o cinema, mas acho que o tempo apagou essa distância. Distância que era muito boa”.

Rubens começou sua carreira de jornalista escrevendo para o jornal A Tribuna de Santos. Cursou a graduação em jornalismo ao mesmo tempo em que fazia faculdade de direito pela manhã – “tenho carteira e tudo” – e história e geografia à tarde. No final dos anos 1960 chegou a São Paulo para trabalhar no Jornal da Tarde. Era copidesque no caderno de Variedades, mas também produzia reportagens e críticas. Foi contemporâneo do crítico e diretor Rubem Biáfora – um de seus grandes inspiradores. Nessa época, começou a conhecer as pessoas que orbitavam a produção de cinema e teatro no Brasil. Uma dessas pessoas foi o diretor Walter Hugo Khoury, que o levou para a frente da tela.

“Eu estava no Jornal da Tarde e passa o Walter Hugo Khoury, olha pra mim e diz: ‘você tem a cara muito boa’. No dia seguinte eu estava filmando”, diz. Rubens chegou a participar de “Amor, Estranho Amor”, o clássico maldito de Khoury em que a jovem Xuxa Meneghel contracena lascivamente com um menino de 12 anos. A experiência de ser requisitado por sua aparência física abriu uma nova perspectiva para Rubens. “Eu era meio gordinho e toda aquela repressão familiar, a avó, não tinham me dado autoestima nenhuma. Eu me achava um horror. Minha autoestima até hoje não é muito alta. Eu não conseguia me gostar”, conta.

Para ajudar a resolver essas questões, até tentou a psicanálise nos primeiros anos em São Paulo – passou por dois analistas, mas a experiência não foi adiante. “A análise me ajudou a raciocinar, a pensar. Isso eu peguei meio rápido, foi útil, mas eu não consigo ficar muito preso. Tem um momento em que o analista passa a te irritar. Eu podia entrar mudo e sair calado e acabou”, lembra. E dá uma banana: “Aham, meu rico dinheirinho!”

Para um jovem no Brasil da década de 1970, o cinema representava uma abertura e trazia algo de resistência ao momento político da ditadura militar. O fato de dominar outras línguas o ajudou muito a entrar a fundo nos filmes da Nouvelle Vague, da Comédia Italiana, na obra de Federico Fellini, até hoje seu diretor preferido, e nos novos cinemas de diversos países. Era um período de efervescência, para usar sua expressão. Inclusive no Brasil. “Para uma pessoa jovem, não há como não gostar do Cinema Novo”, diz.

foto
Rubens, à direita, ao lado de Rubem Biáfora, nos anos 70. Crédito: Arquivo pessoal

“Rubens tem fome de cinema”, diz o professor Máximo Barro, da faculdade de cinema da FAAP. “Aceitando ou não o que ele estava escrevendo no jornal, a gente pelo menos sabia que ele tinha visto o filme.” Na época, não era raro aparecer nos jornais críticas baseadas em publicações estrangeiras ou “de ouvir falar”. Rubens chegou a ser professor de cinema na FAAP na época da criação do curso, mas ficou por pouco tempo. Anos depois, voltaram a trabalhar juntos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que Rubens coordenou. “Ele é uma pessoa que leva muito a sério aquilo a que ele se dedica”, afirma Máximo.

A chegada à Globo, no início dos anos 1980, catapultou a imagem de Rubens como crítico de cinema. Na interpretação dele, a TV o queria para “falar as verdades” nos anos de abertura política. “Eles me usavam – num bom sentido, e eu concordei com isso – em falar coisas que a única pessoa que falava em televisão era eu. Criticar alguém, por exemplo”, diz.

[olho]”Estavam querendo proibir um filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’”[/olho]

Um dos alvos da crítica foi o diretor Neville D’Almeida, diretor de “Os Sete Gatinhos”, adaptação da obra de Nelson Rodrigues. “Fiz uma crítica no Jornal da Globo. Estavam querendo proibir o filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’. Você sabe que tempos depois eu fiquei sabendo que o Nelson Rodrigues estava assistindo ao jornal, passou mal e quase morreu vendo o meu comentário?”, lembra. Segundo Rubens, Neville ficou com ódio dele por muitos anos até que o diretor reconheceu que o filme era ruim mesmo e não fazia sentido ficar brigado.

A transição dos comentários sobre cinema na Globo para a cobertura do Oscar veio com um episódio curioso. Quando a atriz Ingrid Bergman morreu, em 1982, Rubens foi chamado às pressas para fazer uma passagem ao vivo, algo que ele não estava acostumado. Tudo armado, a transmissão começa. “A Leda Nagle fala ‘o cinema perdeu blá blá… Rubens, o que você acha?’ aí eu começo a falar e a câmera tinha se afastado, eu não usava óculos na época e não enxergava nada, então eu fiz assim [olha para baixo em silêncio, lê um papel] e retomei. Na saída estava o chefe do jornalismo dizendo o seguinte: ‘Puxa vida, até que enfim você se emocionou com alguma coisa. Você gostava muito dela, né’. Eu falei: ‘Muito, muito’. Mal sabia o pânico, que eu tinha pensado ‘me fodi’, vou errar aqui. E eles encararam como emoção, olha que bonito! Como as pessoas se enganam!”, ri.

Das transmissões do Oscar, a fase preferida de Rubens é com Marilia Gabriela no SBT, onde fez a cobertura por oito anos. Atualmente, na TNT, ele gosta da parceria com a âncora Domingas Person e com o fato de não precisar nem traduzir nem fazer nenhuma passagem. “Ir a festival é outra coisa que me encheu o saco. Para Cannes eu fui 23 anos seguidos, e para mim era a coisa mais importante que tinha. Para conseguir ir pela primeira vez, eu fui sorteado pela Air France, ganhei a passagem, o resto o jornal pagou com toda dificuldade.” Lá ele entrevistou “quase todo mundo”: Godard, Truffaut, Kurosawa.

Hoje, no entanto, já não sabe mais que caminho Cannes quer seguir. “O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga.” O último vencedor do festival francês, “Dheepan”, ele considera “um filmeco”. Para ele, a entrada das celebridades nos festivais, que ocupam as atenções da imprensa e das redes sociais, tornou-se até mais importante do que os filmes exibidos. “Imagina fazer aqueles tapetes vermelhos, que só falam idiotice. O que eu mais odiaria na vida seria fazer tapete vermelho. Eu sempre me recusei a fazer. Não quero, é uma fria, um horror”, diz.

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Parte do acervo de DVDs e Blu-rays na casa de Rubens. Crédito: Rafael Roncato

[/imagem_full]

Duas impressões são mais evidentes quando Rubens fala de Hollywood. A primeira é que nada mais – o cinema, as premiações – tem muita importância, tudo está meio diluído. A outra é que o jeito de fazer cinema é muito diferente. “Existia uma Hollywood de estúdios, que acaba na década de 1960, que eu ainda consegui ver quando era criança e, por causa das revistas, acompanhar. Que é um outro mundo, não tem nada mais a ver com Hollywood atual ou com a maneira de fazer cinema hoje. Com o digital, as pessoas estão reaprendendo cinema, e eu também estou reaprendendo a lidar”, diz. Ele chega a dizer que em alguns momentos se sente uma espécie de Indiana Jones que vai atrás de um mundo perdido. “São outros valores, outra estética, outra civilização. Não que seja melhor ou pior, mas é outra coisa.”

[olho]“O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga”[/olho]

O cinema digital, diz Rubens, trouxe outros cacoetes. Um deles é o “pseudo” plano-sequência. Sem precisar trocar o rolo de filme a cada intervalo de tempo, o diretor hoje pode criar cenas longas aparentemente sem cortes e “ir na nuca” dos personagens. “Quantos filmes você vê hoje que acompanham a pessoa andando, ou entrando em casa ou saindo de casa? Antes, em Hollywood, a pessoa estava em casa e a situação estava resolvida”, compara.

Naquela semana, Rubens havia assistido à versão mais recente de “Macbeth”, com o ator Michael Fassbender. “Macbeth é filmado com digital. Você não vê porrrra nenhuma, porque não tem iluminação, tem velas! Você vê sombras na cara deles. Como você quer que tenha interpretação – de Shakespeare! – sem a cara da pessoa? É uma escuridão, é o Macbeth das trevas… ou seja, estamos vivendo um momento de mudança e de ajuste. As pessoas acham lindo a escuridão. É insuportável! Kubrick em Barry Lyndon usava velas, mas você conseguia ver a luminosidade, e não as trevas”, observa.

Muito por conta da cobertura do Globo de Ouro, ele se obriga a ver “todas” as séries de TV e do Netflix, plataforma da qual ele gosta muito. “Eu adorei ter acesso hoje a um filme que eles colocaram ontem. A crítica do Hollywood Reporter está no ar hoje e eu já vi o filme”, diz. Das séries, sua preferida é Fargo. “É uma obra-prima, tem humor negro e fiel ao filme dos irmãos Coen. A violência muito bem resolvida, atores ótimos. A minha paixão agora é o Fargo, eu fico esperando os capítulos”, conta.

Falar das séries do Netflix leva o assunto a “Narcos” e a Wagner Moura, a quem considera um amigo. Ele se exalta ao falar das críticas ao sotaque do ator brasileiro na série, em que interpreta o colombiano Pablo Escobar. “Brasileiro não gosta de brasileiro, tem raiva, tem inveja, tem ciúme. Acha que entende de tudo. Ninguém pode fazer sucesso no Brasil que as pessoas querem destruir”. Para ele, Moura é o grande ator brasileiro hoje, alguém que nem precisa ser dirigido porque já “vem pronto”. Ele só acha uma “ideia de jerico” o projeto de Moura dirigir o filme sobre a vida de Marighella no cinema. “O que o Marighella fez? É uma tragédia.”

Além de Wagner Moura, Rubens enxerga um momento único para os atores masculinos no Brasil. “Lázaro Ramos, Caio Blat, Daniel de Oliveira, Mateus Nachtergaele, que é maravilhoso. Temos uns sete ou oito atores (de alto nível), nós nunca tivemos isso. A gente sempre teve mulheres”, diz. Entre as atrizes atuais, ele cita Deborah Secco – “muito interessante, até como pessoa” – e Glória Pires – “uma estrela”. “Se há uma coisa que eu tenho prazer é que os atores gostam de mim. Primeiro que eu os trato com muito respeito – se é muito ruim (a atuação) eu dou um conselho produtivo, eu evito detonar ator. Porque eu sei que no cinema brasileiro a culpa não é do ator. Os diretores não sabem dirigir ator, têm medo de falar com eles”, comenta.

Mesmo com as críticas, ele vê uma safra interessante de novos diretores brasileiros surgindo nos festivais, gente produzindo filmes bons, mas que não conseguem chegar ao público. “Esse filme ‘Ausência’, que ganhou Gramado, é muuuito bom. Agora, você, leigo, iria ao cinema ver um filme chamado ‘Ausência’? Não é verdade? Gente, as pessoas não têm noção, não sabem vender nada. Tem cada título brasileiro que dá terror”.

O cinema brasileiro é um terreno delicado para Rubens. Tanto que ele costuma dizer que seu filme preferido é “Limite”, do Mario Peixoto, filme experimental dos anos 1930 pouco conhecido fora dos círculos cinéfilos. “Eu acho um filme excepcional, e também é uma forma de não brigar com ninguém.” Sua abordagem em relação a filmes brasileiros que ele considera muito ruins também mudou: hoje ele simplesmente não faz mais a crítica. “Eu ligo para a assessoria e falo: ‘Olha, querida, obrigado, mas eu já tenho inimigo o suficiente…’”, explica.

Rubens não se considera um crítico maldoso ou que tem prazer em destruir um filme – o que poderia ser um bom atalho para ganhar audiência nos dias atuais, caso ele se interessasse pelo que rola no Facebook, por exemplo. De fato, a crítica dele não costuma ter esse tom. O problema, segundo o próprio, é ele ser sincero demais. “Por que cazzo eu tenho que falar a verdade? Ninguém fala a verdade nesse país!”

Se a experiência em frente às câmeras foi breve, se resumindo à meia dúzia de pequenas aparições, a carreira de Rubens como roteirista é considerável. Em parceria com o diretor Silvio de Abreu, que conheceu em meados da década de 1970, escreveu pornochanchadas como “A Árvore dos Sexos” e “Elas São do Baralho”, esta última considerada um dos grandes expoentes do gênero. Mas o seu trabalho clássico é a novela “Éramos Seis”, que teve duas versões: a primeira na TV Tupi, em 1977, e a segunda em 1994, no SBT, até hoje lembrada como uma das melhores produções de dramaturgia da TV brasileira.

Coube a Rubens vender para Silvio Santos o projeto da novela no SBT. “Eu, do jeito tímido que eu era, vender para o Silvio, o maior vendedor! E ele comprou e pagou bem pela novela, deu todas as condições para trabalhar. O Silvio (de Abreu) não podia trabalhar porque estava na Globo. Eu pus o elenco que eu queria, acompanhei a novela o tempo inteiro”, conta. Não só pôs o elenco como aproveitou para exorcizar algumas questões. “Eu tinha colocado minha avó, uma série de coisas que eu queria falar para o meu pai, coisas que eu queria falar para a minha mãe. Um diretor geralmente começa com um filme autobiográfico. Então ‘Éramos Seis’ é meu filme autobiográfico”, diz.

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

Mesmo em ritmo mais lento, Rubens ainda tem muito o que fazer. Ele está preparando uma nova versão do “Dicionário de Cineastas”. “Era um absurdo não ter um livro sobre cineastas no Brasil, então durante dois anos eu fui nos arquivos do Estado de S.Paulo, eu trabalhava lá, mexendo, sozinho”, recorda-se. À época, o “Dicionário” era uma obra revolucionária e trazia, dentro de um oceano de informações, o título dos filmes originais em português – algo que o iMDB, a maior base de dados de cinema da internet, só foi fazer recentemente. A ideia agora é que o livro também tenha uma extensão online. Rubens também está preparando uma nova versão de “O Cinema vai à mesa” livro que mistura filmes e culinária.

O interesse em voltar a ser roteirista é quase nenhum, e não parece haver arrependimentos em não ter seguido uma carreira diferente – como ator, talvez. “Eu nunca quis ser ator, minha timidez é muito grande. E as propostas também não eram nenhuma maravilha”, diz. “Eu construí um personagem, que é esse aqui, com essa barbicha, com essa cara aqui, que é muito forte. E é marcado por 40 anos de carreira. Porra, eu não posso fazer outra coisa”.

No ambiente das redes sociais, pautado pelas opiniões definitivas, Rubens Ewald Filho tem pouco a falar. Sua página no Facebook – alimentada por um amigo – reproduz as críticas que ele posta em um blog escondido, e chega a uma audiência mínima. Ele não joga esse jogo, essa não é a praia dele. Mesmo assim, diz que se relaciona bem com as novas gerações que encontra nas cabines de imprensa. “As pessoas têm um pouco de medo de mim. Mas eu vejo toda essa geração nova nas cabines. Respeito a opinião deles, acho interessante. Essa turma de quadrinhos, que gosta de livros ‘young adults’, eu procuro ouvi-los falar”, conta.

A tentação de se sentir um “pastor de almas” em relação às novas gerações pode até ser grande, mas não parece ser o que lhe move. O que o anima é perceber que despertou o interesse sobre cinema em alguém. “Minha maior alegria é ir num festival e o cara que ganhou o prêmio depois chegar para mim e falar: ‘Olha, queria te agradecer, foi você que me fez gostar de cinema, vendo a Globo em tal ano’. Eu penso que não foi tudo em vão”, diz. A impressão é que, enquanto for possível, Rubens Ewald Filho continuará fazendo o papel de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido do país. “Katherine Hepburn dizia: se você sobreviver, você vira um monumento da história. E eu acabei virando um pouquinho isso. Eu não posso me elogiar, mas virei o crítico do Oscar, que tá até hoje aí trabalhando… Enfim…”

Categorias
Cinema

‘O Quarto de Jack’ acha luz no horror

Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.

A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.

A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”

Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”

Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.

[imagem_full]

Jacob Tremblay e Brie Larson
Jacob Tremblay e Brie Larson

[/imagem_full]

Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.

O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”

Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.

Categorias
Cinema Crítica

Alicia Vikander é a garota dinamarquesa

Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.

Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.

Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.

Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.

Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.

Alicia Vikander em 'A Garota Dinamarquesa'
Alicia Vikander em ‘A Garota Dinamarquesa’

A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.

Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.

Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.

Categorias
Cinema

O fim do silêncio na Indonésia

Joshua Oppenheimer foi à Indonésia em 2001 para ajudar a contar uma história difícil. Numa plantação de palma para produção de óleo, propriedade de uma empresa belga, trabalhadoras espirravam pesticidas e herbicidas sem ganharem roupas de proteção. Muitas ficaram doentes e morreram por problemas no fígado perto dos 40 anos de idade. Joshua foi ali ensinar o grupo de trabalhadores a fazer seu próprio documentário sobre as tentativas de formar um sindicato para lutar por melhores condições. O que descobriu por lá foi uma história ainda pior, sobre um massacre que desconhecia.

A empresa respondeu às demandas de seus empregados contratando o grupo paramilitar Pancasila Youth para ameaçá-los. As demandas foram retiradas imediatamente. “Eles me disseram: ‘Apesar de ser uma questão de vida e morte para a gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa em 1965 simplesmente por serem membros do sindicato nacional de trabalhadores de plantações’”, conta Joshua.

Naquele ano, pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a um milhão) foram assassinadas por supostamente serem comunistas. Artistas, ativistas, intelectuais e jornalistas foram mortos em um ataque coordenado pelo exército — que derrubou o presidente Sukarno — e realizado por grupos como o Pancasila Youth. A desculpa foi o assassinato de seis generais, atribuído na época aos comunistas, que cresceram durante o governo Sukarno. Hoje acredita-se que os militares usaram isso como desculpa para dar um golpe no presidente.

Na época, os trabalhadores sindicalizados, considerados ameaça ao regime, foram colocados em campos de concentração ou mortos. “Eles estavam com medo de que isso pudesse acontecer de novo, já que o Pancasila Youth estava mais poderoso que nunca.” Joshua viu ali uma oportunidade de falar sobre o massacre em um filme seu. A história acabou rendendo dois documentários: “The Act of Killing”, indicado ao Oscar em 2014, e “The Look of Silence”, que disputa o prêmio neste ano.

[imagem_full]

Cena de 'The Act of Killing'
Cena de ‘The Act of Killing’

[/imagem_full]

 

“Percebi naquele momento que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, mas também o medo. Encontrei lá o tema dos meus filmes: não o que aconteceu em 1965. Eles não são sobre o passado, nenhum dos dois é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que permanece até hoje. É sobre um estado presente”, afirma.

“The Act of Killing” é o menos convencional da dupla — um documentário não é continuação do outro, são duas metades de um todo. Para o filme, Joshua conversou com todos os assassinos que conseguiu encontrar durante anos, tentando entender o que havia acontecido. Surpreendentemente, seus entrevistados estavam abertos falar. E mais: eles pareciam se gabar do que tinha acontecido. Não só contavam a história como se ofereciam para levar Joshua até os locais onde tinham matado e até encenar os assassinatos.

Assim nasceu “The Act of Killing”. Em vez de mostrar as vítimas, o cineasta joga luz sobre os assassinos e dá a eles meios para fazer seu próprio filme sobre o massacre. Inspirados por Hollywood, os autointitulados gângsteres transformam a história real numa trama surrealista: meio musical, meio western, inteiramente bizarro. A morte vira um espetáculo e o resultado é aterrorizante — ver o filme uma vez é necessário, ver duas é tortura. “É um filme sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos, e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo e possibilitou que eles se safassem com uma corrupção imensa”, diz Joshua.

As primeiras imagens do estranho experimento foram responsáveis por trazer Werner Herzog (“Encontros no Fim do Mundo”) ao projeto, como produtor-executivo. Herzog estava no aeroporto, tomando um café antes de embarcar em seu voo, quando um colega disse que um rapaz queria desesperadamente falar com ele sobre um trabalho. Joshua tinha dez minutos para atrair o cineasta e utilizou-os para mostrar imagens aleatórias que tinha captado. A apresentação foi convincente. Naquela época, Joshua, hoje com 41 anos, tinha um currículo curto: formado em Harvard, tinha só dois documentários no portfólio, um de 1997 e outro de 2003. Foi com “The Act of Killing” que fez seu nome, e em 2014 ganhou uma “bolsa para gênios” da Fundação MacArthur, para qual as pessoas não se candidatam — são escolhidas.

Mas estamos nos adiantando na história, porque embora “The Look of Silence” tenha sido lançado depois, sua origem antecede “The Act of Killing”. Voltemos a 2003, quando Joshua, ainda um documentarista iniciante, viajou novamente à Indonésia após o trabalho inicial. Assim que chegou ao país, o cineasta foi apresentado à família de Ramli Rukun, cuja história era conhecida no país. Capturado e esfaqueado, Ramli havia conseguido voltar para sua casa, até que dois homens bateram à porta e disseram a sua mãe que o levariam ao hospital. Ramli foi amarrado nu, forçado a andar enquanto pedia por piedade e chorava, até ser castrado e jogado num rio.

Um dos irmãos de Ramli, na época com oito anos de idade, ouviu na escola o professor comentando que naquela noite eles matariam o irmão. Quando chegou em casa, contou o que tinha ouvido, mas não houve nada que a família pudesse fazer. Ramli de fato morreu naquele dia e o menino voltou à escola, onde tinha como mestre um dos membros do esquadrão da morte que havia matado o irmão mais velho.

ESCAPISMO E CULPA

Adi Rukun não era vivo quando Ramli, seu irmão, morreu, mas é ele a figura central de “The Look of Silence”. Foi ele quem convocou um grupo de sobreviventes do massacre e seus familiares para ajudar Joshua com o documentário, antes mesmo de “The Act of Killing” ser um projeto. Três semanas depois, militares ameaçaram todos que participassem do filme. Eles desistiram, mas pediram para que Joshua não engavetasse o projeto e que fosse atrás dos assassinos. Foi o que ele fez. Quando terminou as primeiras filmagens, mostrou as imagens ao grupo. “E eles me disseram: ‘Você deve continuar filmando os assassinos. Isso está levando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando vai ser forçado a entender que o genocídio não terminou. Apesar de as mortes terem parado, os assassinos ainda estão no poder. O público vai entender que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos’”, relembra o cineasta.

Depois de dois anos de pesquisa, Joshua encontrou Anwar Congo, seu 41º entrevistado e personagem principal de “The Act of Killing”. Congo é uma figura curiosa: embora se vanglorie de ter matado comunistas, confessa que tem pesadelos à noite e parece ter alguma crise de consciência. “Fiquei com ele porque conseguia ver que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder completamente a dor de suas memórias. Comecei a entender, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse realmente orgulho, e sim o oposto: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que fizeram a coisa certa. Porque eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes explorando essa relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro.”

Em 2012, após dois anos de edição, Joshua voltou a Adi, que havia acompanhado o processo durante todo aquele tempo e ouviu um pedido. “Ele disse para mim: ‘Passei anos vendo suas imagens dos assassinos e algo mudou em mim. Preciso conhecer os homens que mataram meu irmão. Preciso ver se eles assumem a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los’.” Joshua negou. Era perigoso demais que Adi se expusesse daquela forma, ele dizia. “Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontam assassinos que ainda estão no poder”, afirma. Mas Adi o convenceu, mostrando uma imagem que tinha filmado naquele período. Na cena, que faz parte do filme, o pai de Adi, já com mais de cem anos e cego, se arrasta pelo chão, achando que está na casa de um estranho e pedindo ajuda sem que ninguém o acuda. É uma imagem pesada, que parece desconectada do filme.

Aquele foi o primeiro dia, contou Adi, em que o pai não havia reconhecido ninguém da família. Sempre que alguém tentava ajudá-lo o pai se desesperava ainda mais. “Foi insuportável para Adi não poder confortar seu pai. Então ele pegou a câmera e começou a filmar, usando-a como um escudo para se proteger emocionalmente ao ver o pai se arrastando, com medo”, diz Joshua. Naquele momento, Adi viu que era tarde demais para as feridas do pai cicatrizarem. Ele tinha se esquecido da morte de Ramli, mas não do medo. “Depois de me mostrar a cena, Adi me disse: ‘Não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo. Acho que se eu chegar gentilmente nos assassinos, mostrando que os vejo como seres humanos e que estou disposto a perdoá-los caso eles admitam que aquilo foi errado, talvez eles parem de se gabar. Eu devo aos meus filhos essa tentativa de estabelecer a paz com meus vizinhos para que eles não cresçam com medo’. Fiquei muito tocado com isso.”

Joshua Oppenheimer.
Joshua Oppenheimer.

O OLHAR DO SILÊNCIO

“The Look of Silence” é um retrato desses confrontos, cada um com resultados diferentes. Como oculista, Adi chegava à casa dos assassinos sem revelar sua verdadeira identidade e o que estava fazendo ali. Começava uma conversa fazendo um exame de vista, enquanto a câmera de Joshua registrava tudo. Não era uma tarefa simples, mas Joshua se aproveitou do fato de que “The Act of Killing” não tinha sido lançado ainda. A comunidade sabia que ele estava filmando líderes paramilitares nacionais. Como Adi só queria falar com gente da região, acharam que esses peixes menores tivessem medo de agredi-los, pensando que a equipe de Joshua era amiga de seus chefes.

Mesmo assim, tomaram medidas de segurança. Durante cada conversa, a família de Adi o esperava no aeroporto, pronta para fugir. Um carro também estava sempre a postos para levá-lo — todos tinham vistos para a Dinamarca, caso precisassem sair do país. Uma equipe de cinco pessoas acompanhava a família o tempo todo e todos eles se mudaram para uma outra região do país. As crianças foram transferidas para uma escola melhor, Adi ganhou um consultório próprio para não ter que bater de porta em porta vendendo óculos. “Mas desde o lançamento Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia. Ele tem um papel central no movimento por verdade, justiça e reconciliação. Não só ele não foi ameaçado como parece que sua família está segura e muito, muito bem.”

Como pode-se esperar a partir dessa premissa, as conversas de Adi com os responsáveis pela morte de seu irmão não são de fácil digestão. O primeiro entrevistado conta como bebia o sangue das vítimas para “não enlouquecer” após os assassinatos. Ele não reage bem aos questionamentos e acusa Adi de politizar a conversa — que não poderia ser mais política. Adi é estoico e aguenta todos os confrontos com uma calma impressionante mesmo quando é pego de surpresa. Ao aparecer na casa do tio para uma consulta, começa a falar sobre o irmão e descobre que o tio havia sido guarda na prisão de Ramli e que não fez nada para impedir sua morte. “Ele fica bravo, defensivo, e usa a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio que diz que Ramli mereceu a morte e que se Adi continuasse a investigar também mereceria. É um momento horrível em que um relacionamento amoroso se despedaça. A cena revela como essa ferida aberta corta a família toda”, lembra Joshua.

Em outra cena, Adi visita um assassino que está surdo e cuja filha, que cuidava dele, descobre pela primeira vez o que o pai fez. “Ela percebe, de uma forma horrível, que o pai é um estranho para ela e que fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso”, diz o cineasta. “Mas em vez de fazer o que eu teria feito, que é entrar em pânico e botar a equipe para fora para poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede perdão. Ela força Adi a perdoar, algo que ele disse no início que faria e que nunca tinha feito, já que até ali ninguém havia reconhecido o que fez de errado. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi.”

MURO INVISÍVEL

Essa foi a única conversa que não terminou num impasse. Quando a discussão ficava tensa demais, Joshua agia como um mediador. “Eu acalmava a situação dizendo que estava ali para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendia a irritação, era uma história pessoal para os dois, mas eles deviam tentar se escutar. Não fiz isso porque me sentia neutro em relação à situação, mas porque não queria que saíssemos feridos”, afirma. Do lado de fora, muitos dos assassinos tinha capangas prontos para colocar pra fora quem incomodasse seus patrões.

“Em todas as cenas chegávamos a um muro que não conseguíamos ultrapassar. O título ‘The Look of Silence’ [em português, ‘O Peso do Silêncio’] se refere a essa parede. O que ela é? Como é viver com ela?” Os vilarejos da Indonésia, diz o cineasta, podem parecer bucólicos e adoráveis porque a tensão não se vê. Como torná-la visível?

“Percebi que isso podia ser feito pelos confrontos. Disse a Adi que não acreditava que ele teria o pedido de desculpas que queria. Falei: ‘Acho o contrário. Você os vê como seres humanos e eles vão reciprocar seu olhar gentil e te ver como um ser humano também. Eles vão ver Ramli como um ser humano e todas as vítimas como humanas, e nesse momento as mentiras que eles se contaram vão entrar em colapso. Tudo aquilo a que eles se ativeram se baseia em tirar a humanidade das vítimas. Você as está humanizando só pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, bravos, e vamos falhar. Mas acho que se conseguirmos mostrar esse impasse, esse muro, quem assistir ao filme vai sentir a pressão incrível que os sobreviventes sentem’”, lembra.

[imagem_full]

A mãe de Adi em 'The Look of Silence'
A mãe de Adi em ‘The Look of Silence’

[/imagem_full]

 

RESPOSTA

Os filmes, diz Joshua, trouxeram a discussão do passado à tona na Indonésia. “A mídia era silenciosa a respeito e agora fala do que aconteceu como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: fala do regime criminoso que está no poder desde o genocídio”, diz. Quando “The Act of Killing” foi indicado ao Oscar, o presidente também se manifestou e disse que sabia que o que aconteceu em 1965 foi um crime e que em algum momento uma reconciliação seria necessária, mas que eles não precisavam de um filme para forçá-los a isso. “Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo era errado”, diz Joshua.

Dois órgãos governamentais, inclusive, se ofereceram para distribuir o filme. Com a ajuda da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho de Arte de Jacarta, “The Look of Silence” foi exibido no maior cinema do país, com capacidade para mil pessoas. Dois mil espectadores foram à abertura e o cinema teve de fazer duas sessões — depois das quais Adi foi aplaudido de pé. Depois disso, foram feitas mais de 500 exibições públicas e agora o filme está disponível na internet no país.

Mas nem tudo são flores. Gângsteres foram contratados para atacar exibições e 30 sessões tiveram de ser canceladas por questões de segurança. Como o órgão censor de filmes está no guarda-chuva do comitê de defesa do parlamento e é dominado pelo exército (“Parece louco, mas é só autoritário”), o documentário foi proibido de passar nos cinemas. “É uma situação peculiar. ‘The Look of Silence’ é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar — ‘The Act of Killing’ não era uma produção formalmente indonésia — e está banido dos cinemas”, diz.

[imagem_full]

the-look-of-silence-1
Adi vê imagens captadas por Joshua Oppenheimer

[/imagem_full]

DEDO AMERICANO

O filme de Joshua não aponta só o dedo para o governo indonésio, mas também para os Estados Unidos. O diretor inclui um trecho de uma reportagem na TV americana exaltando o ocorrido como a maior batalha vencida contra o comunismo. Tem também imagens de um grupo de trabalhadores num campo de concentração para extrair látex para a empresa americana de pneus Goodyear. A crítica é ainda mais clara: em um momento, um dos assassinos olha para a câmera e diz que merecia um prêmio dos americanos, porque foram eles que os ensinaram a odiar e a matar os comunistas.

“Para os americanos é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para o público. Ele está implicando a gente, dizendo que não é só a história da Indonésia, mas também a nossa. Essa é uma das muitas vezes em que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros lugares”, critica.

“E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam”, continua. “Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa.”

O senador americano Tom Udall levou no ano passado, aos 50 anos do massacre, um projeto ao Senado para que o selo de sigiloso seja tirado de documentos que falam do papel dos Estados Unidos no que aconteceu na Indonésia. “Nosso governo continuou o apoio militar e financeiro à Indonésia naquela época. Ao chegarmos ao aniversário desse período horrível, há apenas 50 anos, os Estados Unidos e a Indonésia devem trabalhar para fechar esse capítulo horrível liberando informações e reconhecendo oficialmente as atrocidades que aconteceram. Muitos dos assassinos ainda estão vivos e soltos, e sua impunidade impede a Indonésia de verdadeiramente realizar seu potencial democrático”, diz o texto de Udall.

Joshua apoia a iniciativa. “Sabemos de ouvir por aí que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento a eles. Também sabemos que eles fizeram uma lista com 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia — jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais — e a entregaram ao Exército pedindo para devolverem os nomes quando tivessem se livrado de todos. Uma lista de morte. Essa é uma mancha grande na afirmação americana de que é uma força para a liberdade e a democracia no mundo pós-guerra”, diz.

Para o documentarista, enquanto esses documentos não forem públicos e os Estados Unidos não reconhecerem sua responsabilidade, tudo o que o país diz sobre direitos humanos é retórica e “será visto, corretamente, pelas pessoas do mundo como um disfarce hipócrita para avançar os interesses estratégicos e corporativos do país”. Circulam agora petições de americanos para que senadores de seus Estados apoiem a proposta de Udall. “Estamos tentando fazer agora com que isso passe pelo Senado e vire lei.” A discussão da história, diz ele, é fundamental. “Não haverá democracia genuína até que se lide com essa questão. Não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando uns têm medo dos outros.”

Categorias
Cinema Crítica

‘Carol’ e a faísca que não vira fogo

Em uma longa entrevista dada à revista New York no ano passado, Quentin Tarantino deu uma declaração polêmica sobre os filmes que disputam o Oscar hoje em dia: “Eles são bons, mas não sei se eles têm a permanência que uns filmes dos anos 90 ou 70 tinham (…). Metade desses filmes da Cate Blanchett — são essas coisas ‘de arte’. Não estou dizendo que são ruins, mas não sei se eles são longevos ”. Concorde-se ou não com a afirmação, é essa a impressão que deixa “Carol”, filme de Todd Haynes com Cate Blanchett que estreia nesta quinta (14) nos cinemas.

Baseado em um livro de Patricia Highsmith, “Carol” é lindo. Para usar o termo de Tarantino, é mesmo um filme “de arte”. Tudo em “Carol” é muito bonito: os figurinos do início dos anos 1950, a trilha sonora, os enquadramentos. Cada cena parece uma fotografia. Dá pra dizer o mesmo da história: é bonita. Carol (Cate Blanchett) está se divorciando do marido, Harge (Kyle Chandler), quando seu olhar cruza com o da vendedora Therese (Rooney Mara) numa loja de departamentos, perto do Natal. Naquele primeiro encontro é possível ver o encantamento de uma pela outra, ainda que Therese não saiba direito o que aquilo significa. É um belo começo para uma história de amor.

 

Apesar de o filme se chamar “Carol”, é bem mais uma história de Therese. Carol é uma mulher segura e já tinha se relacionado com uma amiga de infância, informação que o marido usa ao seu favor no processo de separação para conseguir a guarda da filha. Já Therese é bem mais nova, nunca se apaixonou e não sabe muito bem o que quer. Namora um rapaz apaixonado por ela apesar de não sentir o mesmo, trabalha numa loja sonhando em ser fotógrafa, mas não tem coragem de montar um portfólio com seu trabalho. Therese anda sem rumo, dizendo sim para tudo e sem tomar as rédeas da própria vida, até que Carol aparece.

(Aliás, um pequeno parêntese. Não faz sentido que Rooney Mara esteja na disputa pelo Oscar de atriz coadjuvante, já que ela é no mínimo tão protagonista quanto Cate Blanchett. É até mais, mas vamos dar uma colher de chá para o estúdio, que não quis colocá-la para concorrer diretamente com a colega – sabiamente, o Globo de Ouro não caiu nesse papo e indicou as duas a melhor atriz em filme de drama.)

Como a fotografia, tudo no filme é meticuloso, pensado. A história se desenvolve lentamente (talvez um pouco devagar de mais) e é tudo bastante sutil, quase frio de tão delicado. Depois de conversar brevemente com Therese, Carol deixa um par de luvas sobre o balcão, que a vendedora, com o endereço da cliente em mãos, logo devolve. Carol agradece com um convite para um almoço, que se desdobra em uma visita a sua casa, outra visita e, por fim, uma viagem de carro pelos Estados Unidos.

[imagem_full]

Cate Blanchett e Rooney Mara em 'Carol'
Cate Blanchett e Rooney Mara em ‘Carol’

[/imagem_full]

Demora para que algo aconteça realmente entre elas e o público acompanha o início do relacionamento quase em tempo real, sentindo a tensão crescente entre as duas. Mesmo quando a tensão se concretiza não tem aquele momento épico de filmes românticos, com a declaração às lágrimas, a corrida para impedir que a pessoa entre no avião ou a perseguição de carro. “Carol” é um filme calmo e a faísca entre Therese e Carol nunca chega a virar fogo.

Essa sutileza toda exige boas atuações para que o filme dê certo. “Carol” seria bem chato se a dupla não fosse boa como é. Mara e Blanchett estão perfeitas e conseguem transmitir muito com poucas palavras e gestos contidos. Rooney Mara é uma figura bem peculiar, de fala baixa, sorrisos tímidos, maquiagem escura e roupas com um quê de fantasmagórico. O papel da contida e ingênua Therese é feito sob medida para ela. E Cate Blanchett nasceu para interpretar mulheres ricas e elegantes — parece saída direto da casa de Carol nos anos 1950.

Aí voltamos para a declaração de Tarantino. “Carol” é sim um filme bonito, “de arte”, e também é um filme bom. Mas lembraremos dele em 20 anos? Talvez seja injusto fazer essa pergunta, porque no fim do ano, quando se faz listas dos melhores filmes dos últimos 12 meses, percebe-se que pouca coisa é realmente memorável — é o caso de outro favorito ao Oscar, “Spotlight”, também legal, porém não incrível. Mas, no fim das contas, “Carol” é meio assim: é bom, é lindo de se ver, mas falta aquela sensação de “uau” saindo do cinema que os filmes longevos costumam deixar.