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Flip 2016

Karl Ove e eu

Sinto que Karl Ove Knausgard e eu somos amigos — a recíproca, infelizmente, não é verdadeira. É modo de dizer, claro. Mas sinto como se, de alguma forma, o conhecesse e como se ele fosse me entender também caso tomássemos uma cerveja. Não é um tipo de sensação de todo incomum com celebridades: você vê tantas coisas sobre elas, tantas entrevistas, posts em redes sociais, fotos, vídeos, que sente como se soubesse de fato como elas são na vida real. Com Karl Ove (sinto que somos íntimos, então o chamo pelo nome) a ilusão é ainda mais intensa. Em seus livros ele revela coisas sobre si que não se sabe nem sobre os amigos mais próximos e que provavelmente poucos assumiriam pra alguém, quanto mais pro mundo todo. Um parágrafo de Karl Ove vale mais que mil selfies ou entrevistas para Jimmy Fallon.

Minha história com ele começa três Flips atrás, em 2013, e ganha novos episódios todo mês de junho, quando um novo livro seu é lançado no Brasil. Karl Ove era um dos convidados do evento e lançaria aqui “A Morte do Pai”, o primeiro livro de sua série autobiográfica “Minha Luta”. Chegaram alguns exemplares na redação em que eu trabalhava e uma amiga, com indicações sempre certeiras, me deu um. “Lê esse, é bom.” Abri o livro no metrô, voltando para casa e fui fisgada na primeira frase, devidamente anotada num caderno para referência: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para”.

Que ele também ache esse trecho particularmente bom é mais uma evidência de que estamos na mesma sintonia, digo para mim mesma. Numa conversa com James Wood publicada na Paris Review, Karl Ove diz: “O tempo todo em que escrevi esses seis livros senti que não era uma boa escrita. O que é bom, acho, são as primeiras páginas do primeiro livro, a reflexão sobre a morte. Quando estávamos publicando aquele primeiro livro meu editor me pediu para remover aquelas páginas, porque elas eram muito diferentes do resto e ele estava certo. Ele está certo, seria melhor, mas eu precisava de um trecho do livro em que a escrita fosse boa. Passei semanas e semanas naquele pedaço e acho que é uma prosa modernista, de alta qualidade. O resto do livro não está no meu nível”.

“A Morte do Pai” me acompanhou em bares, pautas, trajetos de metrô e ônibus e desde então aguardo ansiosamente o dia do ano em que o volume seguinte será lançado — algo como esperar o novo “Harry Potter” quando eu era criança. Comprei para mim um exemplar autografado de um dos livros, de um sebo americano. Dei os livros do Karl Ove de presente para um monte de gente. Fiz minha parte para ajudar a espalhar sua palavra pelo mundo. Para cada momento da vida há um trecho do Karl Ove que cai bem – ele tem bons conselhos. Exemplo prático, de uma frase de “Um Outro Amor”, que também integra meu caderno: “(…) que pecar é se colocar numa posição onde o pecado se torna possível. Encher a cara, quando você sabe o que está pensando e conhece o impulso que existe dentro de você, é se colocar nessa posição”. Sábio.

A sinopse de um livro de Karl Ove não faz jus a ele. “Mas… É um livro sobre a vida do cara?”, perguntou meu irmão quando tentei convencê-lo de comprar “A Morte do Pai” para ler durante as férias. Se é pra ser direto e confuso: sim, é — mas não é. A vida dele não tem nada de muito especial, no fim das contas. Mas é como ele disse numa entrevista (vou ter que confiar na minha memória nessa, já li tantas dele que agora não consigo mais achá-las): toda vida merece esse tipo de atenção, mesmo que nada de extraordinário te aconteça. O que faz com que os livros de Karl Ove se destaquem não é o enredo, mas a forma como ele conta as coisas, com uma honestidade brutal sobre si mesmo e todos à sua volta. Ele não pinta um autorretrato favorável. Coloca na página as mesquinharias, os defeitos, as humilhações, passagens vergonhosas que preferiríamos esquecer. Todo o mundo pode achar algo em Karl Ove, porque na escrita dele a vida é como ela é.

Karl Ove Knausgard em Nova Yprk, em novembro de 2015. Crédito: Charles Sykes/Invision/AP
Karl Ove Knausgard em Nova York, em novembro de 2015. Crédito: Charles Sykes/Invision/AP

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Um ano depois, em junho de 2014, perto da Copa do Mundo no Brasil, fiz uma entrevista com ele por telefone. Há quem diga que é melhor não conhecer seus ídolos e por alguns dias, enquanto tentava marcar de falar com ele, temi pelo pior. Temi que ele fosse chato e temi que eu fosse perder a compostura. Mandei um e-mail para ele para acertarmos o horário e escrevi tentando ser ao mesmo tempo formal (ele não podia saber que eu o amava) e simpática (eu queria que ele me amasse). Ele respondeu assim:

Hi Fernanda,

Hope this reach you well! I´m fine, thank you – as everybody else here occupied with football in your country (hopefully, Chile will beat Holland, for Brazil will beat Holland, but Chile, that´s a tough one!) I´m honored that you will interview me. Tomorrow between 11 and 13 is fine!

All my best,
Karl Ove

Pura simpatia. Grande uso de exclamações. Conversamos sobre futebol! Ele estava honrado em ser entrevistado por mim. Marcamos para as 11h no horário dele, na Suécia. Uma escolha estratégica da minha parte: seriam 6 horas da manhã aqui e a redação estaria vazia. Não contei com o fato de que no dia anterior a gente sairia de madrugada do jornal e eu praticamente não dormiria. Mas eu queria privacidade.

Karl Ove é tão bom entrevistado quanto escritor. Seu tom de voz, seu sotaque e sua cadência são reconfortantes e suas respostas são inteligentes e assertivas. Escritores, em geral, são bons de conversa, e Karl Ove não é exceção. Conversamos por pouco menos de uma hora, bem mais do que coube no papel, principalmente sobre a série “Minha Luta” — na época o segundo volume, “Um Outro Amor”, era lançado no Brasil. Enquanto o primeiro se debruça mais sobre sua complicada relação com o pai, o segundo fala de seus filhos e do segundo casamento. Os dois são igualmente bons — depois, o próprio Karl Ove admite que segurou um pouco a mão, soltando-se de novo no último. Consequências do bafafá gerado pelo lançamento dos livros na Noruega — nem todas as pessoas citadas na obra ficaram contentes.

Novamente conversamos sobre futebol e ele revelou que estava escrevendo com um amigo sobre a Copa do Mundo no Brasil. Não me disse, porém, para quem estava torcendo (“Não dá pra falar isso pra uma brasileira!”). Chuto que era para a Argentina — país que ele sonhava em conhecer e que daria nome à série “Minha Luta”. Não polemizamos e terminamos a conversa em bons termos. Pensei em dizer que eu gostava muito do trabalho dele, mas uma das primeiras lições que recebi como trainee de jornalismo foi: “Não bata palmas em um jogo de futebol se você estiver trabalhando”. Transferindo a lição para o jornalismo cultural, achei que não era de bom tom eu me revelar assim para a fonte, mesmo que não tivesse ninguém ali para presenciar e mesmo que provavelmente eu nunca mais fosse falar com ele de novo. Quando minhas previsões no futebol se concretizaram e as dele caíram por terra, pensei em escrever um e-mail. Não o fiz.

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Três anos depois de ter cancelado sua vinda à Flip, Karl Ove veio a Paraty. Cruzei com ele a primeira vez no hotel em que ele estava hospedado com seu filho, John. Eu saía de uma entrevista coletiva com Misha Glenny quando um jornalista à minha frente esbarrou em um homem alto, de camisa de manga comprida, de cor clara como suas calças. “Sorry”, disse ele. Levantei os olhos para ver quem era e fiquei em choque: Karl Ove Knausgard, o próprio. Mais alto do que eu imaginava, bastante imponente. Nos segundos que levei para me recuperar da surpresa e voltar a fazer sinapses, ele já tinha desaparecido. Tudo bem, horas mais tarde seria a vez da coletiva dele.

A sala estava bem mais cheia na entrevista de Karl Ove que na de Misha Glenny. Dessa vez vestido de preto, entrou sorrindo, cumprimentando todos que estavam ali. Durante uma hora, interrompida pela organização do evento, Karl Ove falou sobre literatura, Brexit e, claro, o 7 a 1 que levamos da Alemanha. A bem da verdade, quando você lê todas as entrevistas com Karl Ove que aparecem pela frente as novidades já não são muitas. Todo o mundo quer saber de “Minha Luta”, a obra que provavelmente o definirá para sempre.

Sobre como consegue lembrar de tantos detalhes sobre a sua vida, desde a infância, ele é sincero: “Quando comecei, a premissa era de que tudo devia ser verdade. Tinha que ter vivido tudo que escrevi, não devia inventar nada. Mas, ao mesmo tempo, não fiz pesquisa alguma. Queria escrever um livro sobre memória, sobre o que tinha na minha cabeça. Há coisas nos livros que tem gente que me disse que nunca aconteceu, ou não aconteceu daquele jeito, e estão lá. Queria explorar a memória. Há detalhes romanceados, que inventei”. Em suma, em suas próprias palavras, trata-se de um romance não ficcional. Tudo é verdade, mas uma verdade subjetiva.

Seu principal tema de interesse é a noção de identidade, em todas suas formas: nacional, pessoal, sexual, masculina… Criamos imagens de nós mesmos como se estivéssemos contando uma história. Quando falamos de nós para alguém, há toda uma narrativa por trás. Tudo é organizado por histórias, mas ao mesmo tempo a vida é muito mais complexa que isso. Vida e narrativa: as duas estão em constante batalha em sua obra. Durante anos, aliás, tentou escrever sem êxito, sem conseguir colocar para fora aquilo que tinha dentro de si. Foi quando conseguiu desaparecer na escrita, aos 26 anos, que as coisas começaram a dar certo. “Não sei como aconteceu, mas era como se eu sumisse na escrita. Não percebia a mim mesmo. É a experiência que você tem quando lê um livro muito bom, mergulha nele e desaparece. Você faz isso mesmo quando escreve sobre si.” Ao mesmo tempo em que conta uma história muito pessoal, fala de algo que vai além dele. “É muito estranho, mas é o mais alto que você chega como escritor. É quase budista. A sensação é ótima.”

Quando começou a escrever “Minha Luta”, achou que ninguém — nem seus amigos — teria interesse em ler algo tão narcisista. Era só algo pessoal que ele tinha que escrever. “Mas quando me encontro com leitores eles sempre falam de si, sempre sobre algo que apareceu na leitura que está conectado a eles. Percebi que somos muito mais parecidos do que achamos”, afirma. Seus livros, diz, não são sobre sua vida. “É uma vida bem comum, não fiz nada de muito espetacular. Os livros são uma forma de explorar, de tentar entender, e isso é o que um romance faz. Então os chamo de romances. Posso escrever 20 páginas sobre mascar chiclete, se isso me interessar. Você não leria isso numa autobiografia de um político”, fala. “Por que ler um livro sobre a vida do cara?”, perguntou meu irmão. Karl Ove responde, com mais eloquência que eu: “É o mesmo que ler Marcel Proust. A vida dele é um lugar em que todo o tempo e a cultura acontecem. Ele escreve sobre arte, música, sociedade. Pra mim, a vida dele é chata e pouco interessante. Mas seus livros não são”.

Escrever “bonito” não era uma preocupação, afirma. O que importa é ser livre na escrita, escapar de todas as regras de “isso pode, isso não pode”. A literatura é o único lugar onde se pode experimentar de tudo, desafiar as normas, e a pior coisa que ele conhece é a crítica moralista. Conta que às vezes fica irritado lendo alguma coisa, mas se lembra de que, quando lê, é a voz do autor que ecoa em sua cabeça e é essa voz que ele tem que obedecer. Não cabe a ele julgar.

Mesmo afirmando que boa escrita não é fundamental, repete o que disse à Paris Review sobre as primeiras páginas do primeiro livro da série — foram as mais trabalhosas e as melhores. “Trabalhei tanto tempo naquelas dez primeiras páginas. Meses. Polindo, tornando-as grande literatura. E aí falei ‘foda-se’ e só escrevi. Primeiro cinco páginas por dia, depois dez. Meu editor leu e disse que o começo era tão diferente do resto que eu devia cortar. Eu disse que de jeito nenhum, é a única parte do livro em que dá pra ver que eu sei escrever”, diz, rindo. Se você escreve rápido, tem um material mais bruto, mais direto, mas também mais cheio de clichês. Nos livros três e cinco ele utilizou estruturas mais primitivas. São volumes mais simples. “Mas não é esse o ponto, o ponto é pegar algo do meu coração e levar para o coração dos leitores e é isso.” Se para isso você precisa de clichês, vá com os clichês.

Hoje, Karl Ove vive com a mulher, Linda, e quatro filhos num vilarejo de 200 pessoas. Sua vida, basicamente, consiste em levar e buscar as crianças na escola e escrever. Como hobby, cuida de sua editora (“mas aí é literatura também”, reflete). Jogava futebol, mas onde vive agora só adolescentes jogam e ele não aguenta mais o ritmo e a correria. Então assiste a futebol na TV. Depois de tentar descrever que tipo de homem é em mais de 3 mil páginas, diz que é difícil dar uma definição assim de supetão. “Sou um homem de família. Queria fazer algo diferente, tipo ficar bêbado e fazer coisas. Sou um homem de família e odeio essa ideia. Tenho um jardim e odeio a ideia de ter um jardim. Meu pai tinha um jardim. Queria ser outra coisa, mas não sou. Estou lá e tenho aquela vida. E eu amo cuidar do jardim e ficar com meus filhos.”

Com sua editora, publica de dez a 12 livros por ano, só de coisas de que gosta (como Michel Laub, que tentou publicar, mas perdeu os direitos para outra editora). Por enquanto só gastou dinheiro, mas espera que neste ano finalmente não saia no prejuízo. Termina agora uma série de quatro livros, cada um com o nome de uma estação do ano. Os dois primeiros são de textos curtos, explicando para a filha que ainda não tinha nascido no início do projeto várias coisas, numa espécie de enciclopédia de objetos e sentimentos. O terceiro é um romance, “muito sobre o amor”. O quarto, “Verão”, ele ainda está escrevendo. A ideia era não falar de si nem de sua família, mas não deu muito certo. “Não deu pra evitar, e está sendo sofrido de novo. Mas esta é a última vez.”

Karl Ove menciona o livro sobre a Copa do Mundo, sobre o qual me falou brevemente dois anos atrás. O volume é resultado de uma troca de correspondência entre ele e um amigo. Karl Ove escrevia sobre “os times de que vocês não gostam: Argentina, Itália”, conta, antes de perguntar para que times europeus torcemos no Brasil. Portugal?, chuta. Também ficou traumatizado com o 7 a 1. “Eu não queria assistir, doía. Foi uma tragédia. Era uma grande história: era aqui, tinha o Neymar, tinha um fantasma do passado. E acontece isso. Nunca tinha visto um time desse tamanho colapsar completamente. Minha mulher até saiu da sala. Eu senti quase como se não fosse mais esporte, como se fosse outra coisa. Deve ter sido muito difícil.” Depois dessa, Karl Ove foi embora.

***

Do intervalo entre sua entrevista coletiva, na tarde de quinta, e sua mesa na Flip, na tarde de sexta, só soube de pedaços daquilo que ele fez. Alguém disse que o viu comendo com o filho num restaurante na beira do rio, com o cardápio bem levantado em frente ao rosto, como que para se esconder. Na fila para a mesa de Henry Marsh — neurocirurgião cujas operações Karl Ove viu para escrever um texto — outro amigo o viu passar sozinho e tirou uma selfie com ele. Uma amiga o flagrou de bermuda pela cidade e outra o encontrou a caminho de sua mesa na sexta. Na noite de quinta seu nome estava na lista para uma festa lotada, mas ele não apareceu.

Uma hora antes de sua mesa começar, as cadeiras posicionadas em frente ao telão, nos fundos da tenda dos autores, estavam praticamente todas ocupadas — embora boa parte das pessoas ali não soubesse direito quem ele era. “É um holandês”, disse alguém. “Poxa, não vai dar pra entender nada”, respondeu a mulher ao lado. Assistir às mesas do lado de fora, com as pessoas que não compraram ingresso, é uma experiência engraçada — melhor, em certo sentido, que ver a palestra na área de imprensa, rodeado por outros jornalistas empenhados em registrar o máximo possível de frases ditas no computador. Se a mesa é ruim, as pessoas se distraem, levantam e vão embora, ou falam ao celular. Quando a conversa dá certo, o público bate palmas para o telão, o que não faz muito sentido se você parar pra pensar. Então dá para sentir melhor a recepção da coisa. Karl Ove esteve na segunda categoria.

Entre algumas perguntas originais (Karl Ove não experimentou cachaça, informação nova pra mim), várias questões repetidas, que eu mesma havia feito dois anos atrás: como ele se lembra de tudo o que aconteceu?, o quanto daquilo é ficção?, como foi lidar com a repercussão, principalmente na família?, mas ele não tem vergonha de se expor tanto?, o título “Minha Luta”, dividido com o livro de Adolf Hitler, foi uma provocação? Dá pra ter uma ideia.

Mas se você quiser um resumo do que é Karl Ove Knausgard, se quiser explicar para alguém qual é a dele, por que alguém deveria se dar ao trabalho de ler sobre a vida normal de um norueguês, ouvir o que ele disse na Flip é uma grande oportunidade — aliás, ele revelou dias depois, em São Paulo, que essa é sua última turnê mundial para promover “Minha Luta”, então é bom aproveitar. Como alguém que escreve, sempre me intriga ao conversar com escritores sobre aquilo que os leva a escrever, sobre os temas que os interessam, sobre como ter coragem de se expor assim para o mundo em palavras que ficam para sempre, sobre o que constitui uma boa escrita.

“A motivação por trás da escrita é chegar a algo que você não sabia antes. Se você escreve algo e reconhece o que está na página, provavelmente não é muito bom. Se você chega a alguma coisa que não tinha visto, aí está a escrita, é por isso que você escreve. Isso também é leitura, você não quer ler algo em que já pensou. Como é possível, escrever algo e não reconhecer, dizer ‘não sou eu’? É um presente dos céus? Não. Literatura é isso, linguagem é isso, fora de nós. Se você se joga nisso, muda. Você se vê de uma maneira diferente. Aí você está escrevendo. É estranho, quando você escreve sobre si acha que não há nada que não saiba, mas 90% do que sai é de coisas sobre você que você não sabia”, diz. “No fim, não era eu. Eu estava escrevendo um romance. É por isso que pude ser tão duro comigo mesmo, revelar meus segredos. O objetivo era o livro.”

Contar as coisas como elas são não é o motivo mais nobre do mundo e, como escritor, ele sente uma dificuldade em conciliar a vontade de ser uma boa pessoa com a busca pela verdade. “É o que torna fazer isso tão difícil. Quando o que você sacrifica não é você, e sim pertence a outra pessoa… Você está tomando algo de alguém para si. Literatura é uma das coisas mais importantes que temos, mas não funciona no nível pessoal. Você passa por isso todos os dias quando é escritor. Se você tem um amigo que passa por alguma coisa muito importante e você toma isso pra você e escreve… Não é algo que uma pessoa boa faria.”

Ao escrever “Minha Luta”, não pensou nas consequências. Nem pensou que fosse ser publicado, na verdade. Mas quando o livro saiu e 10% da população norueguesa o comprou, viu que tudo tinha mudado. “Fiquei deprimido porque tinha vendido, tinha vendido minha família, minha alma, tudo que eu tinha. Aí tentei nunca pensar nisso, fingir que nunca tinha acontecido. Venho aqui e penso que ninguém me leu. Fico em negação. E funciona.” Mas o fato é que houve reações, “consequências morais”. Seu tio ficou cheio de raiva e quis processá-lo. “Ele é o irmão do meu pai, era como se ele tivesse voltado. Foi terrível, mas eu fiz algo para ele.” A pressão da mídia foi outra consequência. Sua mulher teve uma crise e foi internada antes do fim da série — fato que entrou no último volume. “Foi incrivelmente triste, e tive que escrever sobre isso de novo. Por quê? Porque sabia que seria bom, foi tão terrível assim.” Por isso, a última frase da série diz que ele deixará de ser escritor, porque a dor era muito grande. Não deu exatamente certo.

Karl Ove sente culpa, mas tenta lidar com ela. Sente culpa por causa dos filhos, que vão crescer estando naqueles livros, apesar de não se arrepender de nada que está escrito. “É, de alguma forma, imoral escrever sobre os outros. Mas se você vai escrever sobre sua vida, não dá pra falar só de você, porque viver é se relacionar com outros. É uma posição difícil de estar. Não posso falar que meu livro é mais importante que a sua vida, mas de algum jeito eu o fiz”, fala. Foi uma experiência autodestrutiva, que começou porque ele se sentia frustrado, bravo, como se não tivesse nada a perder. “Eu podia ter deixado minha família, poderia ter feito várias coisas, mas escrevi um livro. Eu não ligava”, diz.

Linda, sua mulher, também é escritora e só pediu para que ele não a retratasse como uma chata. Quando ele lhe deu um manuscrito, ela estava num trem, e primeiro ligou para dizer que aquilo era terrível, mas que ela poderia viver com isso. Depois, ligou mais brava. Na terceira vez, estava chorando. “Mas o problema não era o livro, era o relacionamento. Então conversamos por dias.” Escrever esses livros foi a pior coisa que poderia ter feito, mas ao mesmo tempo foi libertador. “Foi ok, não foi perigoso. As pessoas ficaram bravas, mas ninguém morreu, ninguém se matou.”

Mais do que expor os outros, Karl Ove expôs muito de si, incluindo coisas de que tem vergonha, como o fato de que não tinha se masturbado até os 19 anos, que não tinha dividido com ninguém. Quando contou a um amigo, ouviu dez minutos de risada e achou que não desse pra ficar pior. “Mas ainda tenho vergonha”, diz, rindo. “Ao escrever você tem que ser completamente livre e dizer as coisas mais estúpidas. Vergonha é um tópico nos meus romances desde o comecinho. Se você se interessa por identidade, tem que se interessar pela vergonha.”

Falhar é importante, parte do processo. “A primeira parte dessa história foi passar dez anos tentando escrever, sem sucesso. Quase todo trabalho envolve falhar, falhar, falhar, falhar. Se você pensa em música, se você quer improvisar você tem que ensaiar todos os dias, até fazer sem pensar. Também é verdade na literatura. Pensar é superestimado. Sei coisas intuitivamente porque o faço há muito tempo.”

“O maior desafio é ser honesto, de verdade, e não se repetir. É muito difícil, especialmente se você é bem-sucedido. É por isso que admiro tanto David Bowie. Ziggy Stardust foi um sucesso, e aí o que ele faz? Algo completamente diferente. Isso é muito corajoso”. O importante é continuar. “Às vezes acredito no hype, que fiz algo bom. Depois abro esse livro e penso que não, que tenho que fazer melhor. É assim que lido com isso.”

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Isenção é importante no jornalismo, mas é impossível pedir para qualquer pessoa que não tenha paixões — por times, ideologias, gêneros de filmes ou autores. Então, desde que a paixão não seja cega e o senso crítico permaneça, não tem problema escrever sobre algo de que você gosta. Eventualmente vai acontecer. Mas desde que liguei para Karl Ove pela primeira vez e decidi por não dizer “ei, gosto muito do seu trabalho” e encerrei com o “obrigada pela entrevista” de praxe me perguntei se teria alguma diferença ou não eu ter falado isso pra ele. Afinal, eu já gostava dele e seria impossível tirar isso de mim pra escrever. Faria alguma diferença ele saber?

Mas sem muito tempo para refletir quando tive a oportunidade de dizer alguma coisa para ele em Paraty, segui um de seus conselhos (“pensar é superestimado”) e disse que, dois anos atrás, a gente tinha conversado e eu tinha me arrependido de não ter dito que eu realmente amava os livros dele. Ele deu uma risadinha e disse algo como “poxa, obrigado, isso é muito legal da sua parte!”. Pensando bem a respeito (agora sim), se há uma coisa que a saga de Karl Ove nos ensina é que escrever de um ponto de vista pessoal, sentindo alguma conexão com o seu tema, é bom. Escrever é transformar aquilo que é extremamente pessoal em uma coisa que já não é mais você. No fim das contas, se pudesse dizer algo mais a ele, o agradeceria por essa lição. Mas sempre teremos junho do próximo ano.

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O homem que sabia norueguês

Essa família comum em todos os aspectos, com pais jovens, como eram quase todos os pais naquela época, e dois filhos, como quase todos os pais tinham naquela época, havia se mudado de Oslo, onde tinha morado na Thereses Gate, perto do Bislett Stadion, durante cinco anos, para Tromøya, onde uma casa fora construída para eles num loteamento. Enquanto aguardavam que a casa ficasse pronta, alugariam uma outra, mais velha, no acampamento Hove. Em Oslo o pai tinha estudado durante o dia, inglês e norueguês, e trabalhado como guarda-noturno durante a noite, enquanto a mãe havia frequentado a escola de enfermagem em Ullevål. Mesmo que ainda não houvesse terminado a formação, o pai tinha procurado e conseguido um emprego como professor no ginásio de Roligheden, enquanto ela trabalharia no hospital psiquiátrico de Kokkeplassen. Os dois haviam se conhecido em Kristiansand quando ela tinha dezessete anos, ela engravidara aos dezenove, e os dois se casaram aos vinte, na pequena fazenda em Vestlandet onde ela havia crescido. Ninguém da família do noivo compareceu ao casamento, e mesmo que aparecesse sorrindo em todas as fotografias, nota-se uma zona de solidão ao redor dele, percebe-se que não está no próprio ambiente em meio aos irmãos e irmãs, aos tios e às tias, aos primos e às primas da noiva.

Hoje os dois têm vinte e cinco anos, e têm a vida inteira pela frente. Trabalho próprio, casa própria, filhos próprios. Os dois estão juntos, e o futuro que almejam pertence a eles.

Será mesmo?

(Trecho de a “Ilha da Infância, Minha Luta 3”, de Karl Ove Knausgard)

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São 3.500 páginas distribuídas em seis volumes carregados de memórias e reflexões sobre a infância em um lugar remoto da Noruega, sobre trocar a fralda dos filhos e sobre faxinar meticulosamente a casa onde o pai alcoólatra acabara de morrer; relatos minuciosos sobre a água esquentando para preparar um chá, que evoluem para ensaios sobre Dostoiévski e Deus, e então a prosa volta a falar sobre papinha de bebê, Talking Heads, a vida de escritor e a história trágica – aos olhos do menino – de uma meia perdida na aula de natação. A série “Minha Luta“, do norueguês Karl Ove Knausgard, leva ao extremo o esforço de lembrança e apaga as linhas entre autobiografia e ficção. Publicada entre 2009 e 2011 na Noruega, onde se tornou um fenômeno de público e despertou intensos debates pela exposição crua de pessoas próximas ao autor, a obra chega aos leitores brasileiros traduzida diretamente do idioma original pelo gaúcho Guilherme da Silva Braga, 34 anos, responsável pela tradução a partir do volume dois – o quarto tomo, “Uma Temporada no Escuro”, foi lançado em junho no Brasil pela Companhia das Letras.

Apenas nas últimas duas décadas, e graças a escolhas bancadas por editoras como a 34 e a própria Companhia das Letras, traduções diretas de línguas “distantes”, como o russo, se tornaram possíveis no Brasil. Antes disso, Dostoiévski e outros russos, por exemplo, só chegavam ao Brasil intermediados pela tradução francesa – o que, de certa maneira, “contaminava” o texto final. Mesmo Franz Kafka só teve suas obras completas traduzidas diretamente do alemão a partir do trabalho de Modesto Carone, que iniciou na década de 1980 a monumental tarefa de traduzir toda a obra do escritor tcheco (que escrevia em alemão).

No caso de Guilherme Braga, doutor em Literaturas Inglesas e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o seu encontro com a língua norueguesa não partiu de um interesse acadêmico, mas pessoal. “Essa é uma história tortuosa que levou quase dez anos para se completar. Meu interesse pelo norueguês surgiu no meio dos anos 1990, junto com o meu interesse por bandas norueguesas de black metal – um dos principais itens de exportação cultural da Noruega”, conta. No início dos anos 2000, resolveu procurar algum professor de norueguês em Porto Alegre. Não encontrou nenhum, mas descobriu a professora Margareta Berg e o Instituto Brasileiro-Escandinavo de Intercâmbio Cultural, onde era possível estudar sueco. “Resolvi entrar no curso, pois eu sabia que o sueco e o norueguês são línguas extremamente parecidas e que, sabendo uma delas, entender a outra seria relativamente fácil”, lembra.

Depois de um ano de estudos, fez uma viagem à Suécia e, de volta ao Brasil, continuou os estudos do idioma enquanto traduzia peças do dramaturgo sueco August Strindberg “como exercício”. Em 2005, passou a trabalhar profissionalmente com tradução literária a partir do inglês, e dois anos mais tarde pediu demissão do emprego de professor de inglês para se dedicar à tradução em tempo integral. As versões engavetadas de Strindberg acabaram saindo em 2010 pela editora Hedra, no volume “Senhorita Júlia e Outras Peças“. Outras traduções literárias do sueco se seguiram, como o romance “A Traidora Honrada“, lançado pela Bolha/Autêntica, e “Doutor Glas“, um dos romances favoritos de Braga, que saiu pela Arte & Letra.

“O pessoal da L&PM – para quem a essa altura eu já havia traduzido dezenas de obras literárias em inglês – me escreveu perguntando se com o meu sueco eu não poderia ler um livro norueguês que a editora estava pensando em lançar e escrever um parecer a respeito. Aceitei o convite e não apenas escrevi o parecer como também me ofereci para fazer a tradução desse excelente romance, chamado ‘Antes que Eu Queime‘, baseado nos meus conhecimentos de sueco e usando vários materiais de apoio que comprei especialmente para a ocasião”, conta Braga.

Enquanto ele traduzia o livro, a NORLA, um importante órgão de divulgação de literatura norueguesa no exterior, concedeu ao tradutor uma bolsa de viagem à Noruega. Ainda sem encontrar professores de norueguês em Porto Alegre, estudou o idioma sozinho em casa por cerca de quarenta dias antes de embarcar para encontrar Gaute Heivoll, o autor do romance. “Logo depois de voltar fui convidado a participar de um evento para tradutores no festival literário de Lillehammer, também na Noruega, e na esteira disso tudo a Companhia das Letras me convidou a traduzir a série de romances ‘Minha Luta’, do Karl Ove Knausgard”, recorda-se.

Vendo que a tradução do norueguês estava começando a se tornar uma coisa séria em sua carreira, Braga voltou à Noruega outras vezes para estudar o idioma e participar de cursos e seminários para tradutores. “No meio disso tudo, li uns quantos romances noruegueses para me familiarizar melhor com a cena literária do país, ao mesmo tempo em que eu traduzia o Knausgard. Foi um ciclo muito estranho, muito inesperado e ao mesmo tempo muito interessante para mim”, diz Braga.

As visitas à Noruega ajudaram Braga a entender melhor o fenômeno Knausgard – foram 500 mil exemplares do primeiro volume vendidos em um país de cinco milhões de habitantes e exaustivas discussões na imprensa sobre os limites de sua obra, que, afinal, se baseia também na vida íntima de outras pessoas. “Na Noruega não existem grandes desigualdades sociais, não existem grandes desigualdades de gênero e assim por diante – e essa igualdade generalizada chega a tal ponto que você nem ao menos vê pessoas com roupas muito diferentes umas das outras quando anda pela rua. Talvez por isso os noruegueses também vivam vidas mais parecidas entre si, o que a meu ver possibilita a praticamente qualquer norueguês se identificar com os aspectos da vida cotidiana e trivial que é narrada nos romances do Knausgard”, analisa. Junto ao inegável talento literário do escritor e às questões morais e éticas que a série pode suscitar, o tradutor também atribui o sucesso de público de “Minha Luta” na Noruega, ao menos em parte, à “histeria dos jornalistas para transformar tudo em polêmica o tempo inteiro”.

***

O processo de tradução de Braga geralmente passa por uma primeira versão mais apressada, ao mesmo tempo em que toma um contato inicial com a obra. Depois, ele relê o material com calma para fazer os acertos necessários e deixar o texto redondo. Durante o trabalho com “Minha Luta”, tradutor e autor nunca se comunicaram para conversar sobre as versões. “Eu vi o Knausgard em dois eventos literários na Noruega. Em um deles, não cheguei nem perto. Costumo ficar meio sem jeito nessas situações, e pelos romances eu sabia que o encontro com o tradutor de um país distante teria o potencial de se transformar em uma situação infinitamente constrangedora e sofrida para o Knausgard, a dizer por outras experiências similares que ele narra nos romances”, observa.

O segundo encontro foi em uma sessão de autógrafos. Braga comentou com ele que estava traduzindo a série e gostaria de fazer uma entrevista a ser publicada no Brasil. Na ocasião, Knausgard pareceu receptivo à ideia e disse que topava, mas o tradutor nunca mais teve resposta da agente dele sobre o pedido. “Não sei se ela não repassou o pedido ou se ele não respondeu, mas o fato é que a entrevista não foi feita porque nunca recebi uma resposta. Em todo caso, eu estaria mentindo se dissesse que estou surpreso, a dizer pela opinião que tenho sobre a personalidade do Knausgard pela maneira como ele se apresenta em suas obras”, diz.

O estilo narrativo de Knausgard, alternando descrições simples e coloquiais com trechos ensaísticos complexos, pode parecer um desafio a mais para o tradutor; é como se no mesmo universo habitassem dois ou mais níveis de prosa diferentes. “Embora essa mudança seja de fato marcante no Knausgard – o contraste entre a simplicidade e a concisão dos diálogos e a complexidade quase barroca das frases intermináveis nos trechos ensaísticos é brutal –, não tive muitas dificuldades com as transições porque eu já tinha experiência com os diálogos simples das histórias em quadrinhos e com a prosa rebuscada do século XIX”, conta Braga.

As dificuldades maiores estão nas sutilezas entre o norueguês e o sueco, que o autor faz questão de enfatizar – às vezes de maneira jocosa. O segundo volume, “Um Outro Amor”, é ambientado em grande parte na Suécia. “Uma parte significativa desse livro é um esforço da parte do Knausgard para convencer o leitor de que, apesar de serem países supostamente parecidos, a Noruega e a Suécia têm na verdade uma cultura muito diferente”, observa. Para Braga, traduzir tudo iria contra a intenção do texto original. Um norueguês consegue ler em sueco do mesmo modo que um falante de português consegue ler trechos em espanhol, mas o resultado final seria incompreensível para o leitor brasileiro. “O jeito foi, na maioria dos casos, manter as partes em sueco no idioma original, para deixar claro que os personagens estavam falando idiomas diferentes e, por meio de acréscimos extremamente breves e discretos, sugerir ou dar a entender ao leitor brasileiro o que estava acontecendo. O mesmo se aplica em menor grau para os trechos em dialeto”, diz.

Uma conversa entre o tradutor e Knausgard, que está em visita a América do Sul pela primeira vez na Flip 2016, não deve acontecer agora. Escaldado pelo fracasso da tentativa anterior, Braga não se animou a procurá-lo novamente. Por enquanto, continua a trabalhar no quinto volume de “Minha Luta”. “Pessoalmente, gosto da série especialmente pelo talento que o Knausgard tem para escrever sobre coisas banais e insignificantes. Também me agrada muito a forma como, mesmo no meio de um grande arroubo filosófico, Knausgard muitas vezes acaba constatando que é apenas mais um cara como qualquer outro e que todas as teorias mirabolantes dele podem ser completamente furadas. Tenho me divertido bastante com esses livros.”

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Neurociência para humanas

Nem o frio nem a garoa fininha diminuíram o entusiasmo do público na segunda noite de Flip, em Paraty, numa conversa sobre um tema que foge da literatura: a neurociência. Durante a mesa do meio-dia, sobre “a dimensão simbólica e a experiência estética de caminhar pela cidade e seus espaços construídos”, segundo descrição do site do festival, sob sol forte, sobravam metade das cadeiras em frente ao telão que exibe as conversas para quem não tem ingressos. Às 19h30, cenário diferente, e o público aplaudia o engraçado neurocirurgião inglês Henry Marsh e a neurocientista sem meias palavras Suzana Herculano-Houzel.

Marsh, 66, que lança na Flip o livro “Sem Causar Mal”, colocou por terra presunções de fãs inverterados de séries médicas como “Grey’s Anatomy” (não há vergonha em admitir, apesar de o próprio Marsh dizer que não vê). “Cirurgia cerebral não depende de mãos firmes. Depende de tomar decisões, e você aprende mais com seus erros”, afirmou. O problema, complementou, é que quando o médico erra quem paga o pato é o paciente, que pode sofrer danos irreversíveis. Outro mito que caiu por terra: que cirurgiões são ególatras sem sentimentos que ficam mais convencidos a cada sucesso. Marsh contou que, depois de uma operação bem-sucedida, o que sente é alívio e não algum tipo de euforia egoísta. “Porque sei que sou falível. Você fica mais modesto com o tempo”, disse.

E mais: cirurgia é uma atividade em equipe, não um lugar para “Michelangelos e Beethovens da medicina”. Amigos conhecem melhor que você as suas limitações. “Quando penso em meus erros, se eu tivesse perguntado para alguém o que fazer não teria errado.” Até hoje o médico diz sentir medo antes de uma cirurgia e essa sensação que, no fim das contas, é responsável pelo prazer da cirurgia. “Você fica eufórico porque, no fundo, está muito preocupado. Dizem que cirurgiões são psicopatas, mas se fossem eles não ligariam pro paciente e, se não ligassem, não sentiriam prazer ao final.”

Mesmo para quem não tem interesse particular em medicina — é um festival de literatura, afinal — ouvir os dois cientistas foi uma agradável surpresa. Boa parte da conversa, afinal, foi filosófica, com referências a literatura e cultura. Por exemplo: qual a posição dos dois sobre inteligência artificial? Marsh é da opinião de que nem chegaremos a um ponto em que as máquinas ficarão mais inteligentes que os humanos e que isso é papo de ficção científica. “Ciência se baseia na experimentação e há um limite nos experimentos que podemos fazer em um cérebro humano. Por mais que saibamos bastante sobre o cérebro, há muito que não sabemos”, afirmou. Computadores, em sua opinião, não são tão inteligentes quando parecem. No plano teórico, entende que você pode ser contra essas máquinas filosoficamente, e há um impacto econômico se elas começam a substituir os homens.

Suzana concordou. “Há um abismo entre um cérebro e um cérebro desenvolvido”, disse. O de laboratório não tem capacidade de auto-organização, de se adaptar à sua existência. As habilidades que cada pessoa tem e que as diferenciam dos outros são resultado dessa capacidade somada à experiência de cada um. Um cérebro de laboratório pode fazer conexões. Ok, mas não é grande coisa.

[olho]“Queremos escapar da morte e dos impostos, mas não conseguimos”[/olho]

E sobre a vida eterna? Lembraram uma mesa do ano passado em que se discutiu a possibilidade de que pessoas naquela tenda conseguissem chegar não à imortalidade, mas pelo menos a uma vida de uns bons 400 anos. “Improvável”, rejeitou Marsh. “Mesmo que seja possível, é uma ideia péssima. Seria muito custoso, é ruim socialmente. Uma ideia terrível. E por que alguém iria querer viver pra sempre?” Quanto mais velha a população, mais caro fica tratar suas doenças. São maiores os riscos de câncer, demência, etc. O Estado simplesmente não teria condições de bancar. “Queremos escapar da morte e dos impostos, mas não conseguimos.”

O argumento de Suzana é um pouco mais poético. “Morrer é consequência de estar vivo. Você pode atrasar um pouco, envelhecer bem, mas o final dessa história é inevitável. A morte é o estado de equilíbrio”, disse. Pessoalmente, também é contra e cita o livro “As Intermitências da Morte”, de José Saramago, em que ninguém mais morre, como sugestão de leitura – “deveria ser obrigatória!”. A morte tem várias funções, como permitir que novas gerações venham e o mundo siga em frente. Temos que fazer as pazes com o fato de que a vida tem prazo de validade e seguir em frente também.

Sobre sua muito discutida saída do Brasil, Suzana, que em fevereiro deste ano recebeu um convite para lecionar e fazer pesquisas na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, disse não só não ter arrependimentos como estar feliz da vida. “Você está falando do fato de que agora eu posso fazer meu trabalho?”, questionou, sob palmas do público. Lá, ela conta, a administração é feita por administradores, a informática é gerida por técnicos de informática e ela não é sua própria agente de viagens. “Essa deveria ser a norma.” Suzana não esperava a repercussão de sua decisão, já que é normal um cientista receber proposta para trabalhar em outra instituição. “Uma brasileira ser convidada e ser motivo de comoção é absurdo. Embora continue achando que não é da conta de ninguém, achei uma boa oportunidade de mostrar como funciona a ciência no Brasil.”

“Fui muito criticada por colegas por desestimular jovens cientistas. O que queriam, que eu mentisse?” Ela contou que sai do trabalho todos os dias se sentindo contente, e acha uma pena que os cientistas que não trabalhem no Brasil não possam viver isso num futuro próximo. Depois veio mais paulada, dessa vez no fato de que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi fundido com o Ministério das Comunicações pelo presidente interino Michel Temer. O orçamento, disse, já era curto e agora é uma fração do que era. “Acho que a população, em geral, não tem noção de como nossa vida depende de ciência e tecnologia. Deixar isso na mão dos outros é uma decisão que eu não tomaria pro meu país.”

[olho]“Fui muito criticada por colegas por desestimular jovens cientistas. O que queriam, que eu mentisse?”[/olho]

Perguntaram se ela acha certo que o Estado invista em pesquisas sem aplicação prática e ela não hesitou. “A pesquisa científica sem aplicação é a ciência.” A única condição necessária para fazer ciência é reconhecer sua ignorância a respeito de algo. “O que se ganha com isso é conhecimento. Quando ele vai ser útil? Só Deus sabe. Se soubesse seria meio para atingir fim e isso é engenharia, não ciência.” Mais aplausos. “E sem ciência não existe engenharia.”

Já para o fim da conversa, o assunto voltou a ser o cérebro e Marsh se derreteu: “O cérebro vivo é lindo, como olhar para a Terra do espaço”. Suzana complementou: os cérebros dos primatas são “uma gracinha”, cérebros de cavalos e zebras são os mais feios e os mais bonitos são os dos guaxininis — “tem três vezes mais neurônios do que deveria. O guaxinim é um primata e não sabe”.

Para quem acha que o povo de biológicas e exatas quer tirar a poesia e a magia da vida, Suzana deu uma resposta, bem, de biológicas e exatas – mas com algum apelo para as humanas, vai. “Pensar que as moléculas se reorganizam para formar um ser, para mim, é poesia suprema. Ver que você é um arranjo de moléculas muito particular…”, diz. “Isso nos dá uma noção mais natural do nosso lugar, da nossa condição. A gente é só mais uma espécie.”

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Misha Glenny e a história pouco contada da Rocinha

Misha Glenny, jornalista britânico que participa da Flip deste ano, recebe um grupo de jornalistas falando português na manhã de quinta (29), numa pousada em Paraty. “Me coloquei duas condições [ao escrever o livro “O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio”, sobre o traficante Nem da Rocinha]. A primeira é que quis tentar aprender português. Isso foi há dois anos e meio, três anos. O início foi bem fácil. É fácil ler português. Mas falar é quase impossível. Foi um choque”, diz, rindo. “ Português não é uma língua muito fonética, é um problema. Mas me empenhei. E quando eu falava com as pessoas na favela elas falavam [o idioma] ‘rocinha’.”

Morar pelo menos dois meses na favela carioca era a segunda condição — e foi o que fez dois anos atrás. “Foi um desafio, a vida na favela é muito difícil. Mas achei que se ia escrever sobre a favela precisava entender as condições de lá. Tinha que entender a condição do Nem.” A ideia de escrever um livro sobre o traficante nasceu em 2011, quando Nem foi preso. Glenny estava no Rio e, ao ver toda a atenção que o acontecimento recebeu por parte da mídia, lembrou-se da prisão de O.J. Simpson, que parou os Estados Unidos. “Todas as redes de televisão foram [atrás]. Foi uma resposta não histérica, mas sensacionalista. Li tudo sobre ele em jornais, vi TV. Metade do Rio achava que o Nem era um demônio e metade achava que era um herói, um tipo de Robin Hood.”

Mas o que chamou particularmente sua atenção foi ver que Nem só tinha entrado no tráfico aos 24 anos, para cuidar da filha, com uma doença rara. Glenny queria ver as condições que o levaram a esse mundo. “Ele, pra mim, era um símbolo da desigualdade da sociedade brasileira e carioca. É uma sociedade bem dividida. Estava procurando um assunto para explicar o Brasil para as pessoas de fora. É um país de quatro ou cinco estereótipos: futebol, samba, Carnaval… Pra mim, é um país muito mais complexo, mas a visão de fora é cronicamente simplista. Buscava um assunto para explicar essa complexidade e Nem me pareceu esse assunto.”

Escreveu para o traficante na penitenciária e ficou surpreso quando, poucas semanas depois, recebeu um convite para ir até lá discutir o projeto. Foram, ao todo, 24 horas de conversas e, logo de cara, Glenny perguntou a Nem sobre sua família. “Ele tinha sido entrevistado dezenas de vezes e nunca tinham perguntado sobre a infância dele. Para mim, essa linha de perguntas rendeu muitos frutos”, conta o jornalista. Os pais de Nem eram alcoólatras e desde cedo ele era testemunha de episódios de violência doméstica. Tinha uma relação particularmente forte com o pai, que trabalhava em um bar em Copacabana. Foi lá que ele levou um tiro no joelho, em meio a um assalto. Saiu do hospital sem conseguir andar e Nem, aos 11 anos, foi o responsável por cuidar dele pelos meses que se seguiram e culminaram em sua morte por infarto.
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No dia 10 de novembro de 2011, Nem foi preso. Crédito: Felipe Dana/AP
No dia 10 de novembro de 2011, Nem foi preso. Crédito: Felipe Dana/AP

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“Sua obsessão é ser um bom pai. E ele tem muitas oportunidades, tem sete filhos, dois adotados”, diz Glenny. Durante a juventude, Nem não trabalhou com drogas, com as quais se envolveu para ajudar a família: entregava revistas da Net na zona sul do Rio, gerenciando uma equipe. “Era visto por todos como uma pessoa do bem. É um diferencial a idade em que entrou pro tráfico. Era muito inteligente e gerenciava uma equipe na zona sul. O Lulu, que era o dono do morro, reconheceu seu talento e ele subiu rápido.” Um entrevistado que não quis ser identificado no livro contou ao jornalista que Nem conseguia olhar para um monte de cocaína e saber de cara quanto aquilo renderia e para onde a droga deveria ser distribuída para otimizar os resultados.

Nem entendia, por exemplo, a importância da informação — fácil de vazar — e a ameaça que celulares e redes sociais representavam para sua organização. Falava pouco ao telefone e tinha um assistente responsável por carregar um monte de celulares para ele, cada um para falar com um membro da organização. A polícia desvendou toda a hierarquia da quadrilha, mas mesmo assim não conseguia fazer a conexão de cada membro com o líder por causa de sua precaução.

O livro, lançado aqui pela Companhia das Letras, não é apenas uma história de Nem, mas também a história da Rocinha. “É parcialmente uma história do desenvolvimento das favelas no Rio e do impacto da cocaína na cidade”, resume o autor. Em 1982, a taxa de homicídios no Rio de Janeiro e em Nova York era igual. Sete anos depois, o número era três vezes maior no Rio. “Isso porque o Brasil se tornou o principal país de trânsito de cocaína da Colômbia para a Europa. Quando um país se torna trânsito principal da droga ele desenvolve o hábito local também. Isso aconteceu aqui, especialmente no Rio”, afirma Glenny. Graças a geografia do Rio, cheia de morros, várias facções rivais se formaram para disputar a hegemonia, situação diferente de São Paulo, controlada pelo PCC.

Essas favelas cariocas não têm a história contada, diz o jornalista. E ele quis contribuir contando aos leitores sobre acontecimentos que pouca gente conhece. Cada morro é diferente: na Maré, há muito medo, medo real. Na Rocinha instaurou-se outro clima, “cool”. “O dono do morro tem três instrumentos para exercer o poder político na favela: o monopólio da violência, o apoio da comunidade e a corrupção da polícia. Nem diz que para ele o mais importante era o apoio.” Ele assumiu o comando da Rocinha em 2005 — em 2004, o Comando Vermelho havia mandado matar o antigo chefe. Sob sua gestão, a taxa de homicídios caiu drasticamente, fato constatado por pesquisadores e confirmado pela polícia.

“Quando morei na Rocinha o que me impressionou é que tem uma atividade econômica feroz”, conta Glenny. “Foi a primeira favela com bancos. Tem todos os tipos de loja, inclusive o primeiro sex shop numa favela. Tem Bobs. Acho que isso parcialmente foi resultado da política do Nem na favela. Ele percebeu que se a taxa de homicídio cai, o lucro dos negócios sobe. Ele nega ter feito isso conscientemente, mas levou parte dos lucros do tráfico para uma espécie de sistema de bem-estar social embrionário na favela.”

Mais segurança na favela impacta o consumo de cocaína, que tem como boa parte do público gente de classe média e classe média alta — fato que Nem logo sacou. “Como era percebido como um lugar seguro, vinha muita gente de fora, que já ficava na boate. A Rocinha virou uma marca na época do Nem, todo o mundo queria ir lá. Artistas faziam shows, políticos tiravam fotos, porque sabiam que não teria problema.” O traficante investiu também na corrupção policial, e assim ficava sabendo com antecedência de batidas na favela. “O tráfico teve um impacto na economia, mas é uma interação muito complexa”, sintetiza Glenny.

Entre os entrevistados do jornalista está José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança do Rio de Janeiro. “Ele me disse que a ausência do Estado nas favelas foi um choque para ele e ele quis mudar. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] foi um experimento muito corajoso e só foi possível porque em 2007, quando Cabral assumiu, as forças políticas em nível federal, estadual e municipal estavam prontas para colaborar.” Para Glenny, Beltrame fez um bom trabalho. “A falha do Estado foi não apoiar a UPP policial com a social. As UPPs diminuíram as taxas de homicídio, mas as taxas de outros crimes, como roubo e estupro, aumentaram”, diz. O sistema, agora, está colapsando, segundo ele, em parte porque Beltrame não tem os recursos para continuar com as UPPs em tempos de crise.

Seu prognóstico para o futuro, porém, é bem pouco otimista, não só para as favelas. “Acho que a situação nas favelas ficará mais ou menos estável até os Jogos Olímpicos. Tenho medo de depois a situação piorar no morro e no asfalto. O morro e o asfalto são intimamente interligados, mesmo que as pessoas não percebam.”