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A anatomia de uma capa

Diz o ditado que não se deve julgar um livro pela capa, mas para Paul Buckley, diretor de arte da editora Penguin, uma boa capa é fundamental. “A capa é com frequência a maior peça publicitária que um livro terá e representa a diferença entre ‘eu quero levar isso pra casa’ e um potencial comprador nem notá-lo”, afirma. Colocar uma foto genérica com um título em cima, por exemplo, é preguiça sem inspiração. “E gente sem inspiração precisa seguir em frente e abrir espaço para gente que curte exercer essa habilidade.”

Produzir uma capa de livro é bem mais do que só escolher uma foto qualquer e uma fonte para o título e o nome do autor. É um processo que pode levar de três horas a três meses, diz Buckley. “Clássicos são uma experiência bem mais agradável do que ficção nova, que pode ser um trabalho bem dramático”, opina. “Todo o mundo envolvido pode amar o seu primeiro instinto e a primeira coisa que você cria, ou podem odiar tudo até que o cara do correio esteja batendo em sua porta.” Na Penguin Random House, um diretor de arte é responsável pela identidade visual de um só selo, enquanto o diretor criativo coordena todos os diretores de arte e designers para supervisionar as capas dos 16 selos, que incluem centenas de autores. “Bem mais do que mil capas únicas passam por esse departamento em um ano”, conta.

Entre o manuscrito e a capa — mesmo aquelas em que há uma foto do filme a que o livro deu origem — há muitas etapas a serem cumpridas. A editora pode envolver, além de seu próprio time, uma equipe externa de ilustradores, designers, responsáveis por fontes feitas à mão e pesquisadores, e outros participantes do ciclo de vida de um livro: autores, agentes e até grandes compradores, que dão opiniões sobre o resultado.

“Nenhum projeto de design é algo completamente individual. Design é essencialmente um diálogo. Numa capa, por exemplo, você precisa dialogar com o conteúdo, com a editora, com o potencial leitor, com o orçamento de impressão, com o autor… É um grupo grande de interlocutores. Algumas capas de livro, contudo, possibilitam discursos gráficos e abordagens bastante subjetivas. E, nesses casos, a individualidade de cada designer pode emergir com força Digamos, portanto, que é um trabalho em grupo que, em certas ocasiões, possibilita também uma expressão individual”, conta Gustavo Piqueira, da Casa Rex, que já fez capas para editoras como a Martins Fontes e a Lote 42. (A Casa Rex também assina a identidade visual do Risca Faca.)

Para o designer, a liberdade na hora de criar uma capa depende muito da editora. “Algumas te dão liberdade criativa completa e outras querem te dizer exatamente qual fonte usar. Só posso falar por mim, mas tenho certeza de que a maioria dos designers prefere pouca ou nenhuma direção a excesso de direção”, diz Catherine Casalino, que trabalhou em editoras como Simon & Schuster, Hachette e Random House.

Seu primeiro passo ao começar um projeto é ler o material que a editora fornece, do plano de marketing ao manuscrito completo — se houver (no caso de livros de não ficção, é menos comum que o texto esteja pronto até o momento de chegar ao capista). “Tem muita informação no texto que pode te ajudar com o design da capa e ler o livro te dá uma ideia melhor do humor do escrito — é sério? Bem humorado? Literário? Tudo isso pode te ajudar a fazer uma capa apropriada.”

James Jones, designer responsável por capas como a de “A Brief History of Seven Killings”, vencedor do prêmio Man Booker no ano passado, diz que é importante também entender por que o editor se interessou pelo livro. “Aí meu trabalho é visualizar isso para o leitor. Eu gosto de ler pelo menos uma parte do livro para sentir o ritmo da escrita. Cada livro tem um ritmo diferente, que eu tento encontrar. Enquanto leio esboço muitas ideias. Tenho sorte de nunca faltar ideia, mas melhorei na seleção de quais levar em frente. Desenvolvo algumas das ideias iniciais, antes de esperar um pouco e deixá-las descansar. Quando volto ao projeto, espero que a direção a seguir esteja mais clara”, diz Jones.

“Eu tento visualizar o design da capa como um problema visual que precisa de solução. O próximo passo é olhar exaustivamente referências visuais. É um tipo de processo aleatório, até que engatilha uma ideia”, conta David Drummond, da Salamander Hill Design. Na hora de achar referências, vale tudo. Justine Anweiler, da editora Pan Macmillan, busca inspiração na Amazon e no Pinterest. “A Amazon é boa para o pensar no marketing, enquanto o Pinterest é bom para expandir as paredes que meu cérebro criativo levantou depois de dar uma primeira olhada no projeto.”

Capa de David Drummond
Capa de David Drummond

Uma vez que a editora dá sua aprovação à capa, é a vez de o projeto ser apresentado ao autor. “Isso às vezes pode fazer o projeto começar de novo”, diz Catherine. O papel do escritor na escolha da capa que seu livro levará varia, segundo Paul Buckley. “Mas é importante lembrar que o livro é do autor, que viveu com ele por anos. Então quer você queira quer não ele terá opiniões, que podem ser muito nervosas e não muito divertidas, ou ele pode ser bem tranquilo e acreditar que você é um profissional naquilo que você faz. E pode ser qualquer coisa no meio disso”, diz Buckley. “O autor tem uma voz, porque o livro é seu bebê e meu trabalho é vesti-lo”, conta Justine.

Com os clássicos é outra história. “Eles foram feitos tantas vezes ao longo de tantos anos que isso às vezes assusta os designers. ‘Meu Deus, isso já foi feito cem vezes, como vou criar algo novo?’ Em vez de entrar pela porta da frente, entre pela de trás, pela chaminé, suba pela janela e ligue essa valsa. Traga nova música, abra as janelas e deixe o ar fresco entrar. Faça uns coquetéis e se divirta. Faça uma festa a fantasia e dê ao protagonista novas roupas. O que as pessoas se esquecem é que a beleza dos clássicos é que já conhecemos o livro. Já entendemos, então sinta-se livre pra abordá-lo de um jeito novo”, diz Buckley. “Divirta-se com ele e destaque para um público novo que os clássicos não estão presos num tempo e num lugar. Seus desafios, esperanças e sonhos são os mesmos de hoje. Só que sem smartphones.”

Ser original não é sinônimo de ser o primeiro, diz James Jones. “Significa ser diferente e melhor”, afirma. Dá como exemplo a coleção de capas vintage dos livros de James Bond na qual trabalhou. “Os livros tinham muitas capas icônicas, mas trabalhamos duro para fazer uma série que se mantivesse próxima aos fãs, mas mudasse um pouco pela abordagem tipográfica. Você tem que ter a confiança de que vai representar o conteúdo de um livro de uma forma original.” Catherine diz que é divertido ter o desafio extra de trabalhar em algo que tantos outros já trabalharam. “Isso te força a se esforçar um pouco mais. Trabalhei num projeto pessoal há cerca de um ano em que fiz cem ilustrações em cem dias para os livros da ‘Alice’, de Lewis Carrol. Amei tentar encontrar uma perspectiva fresca num livro que foi ilustrado tantas vezes.”

Capa de James Jones para o livro "Live and Let Die", da série de James Bond
Capa de James Jones para o livro “Live and Let Die”, da série de James Bond

Faz parte do cardápio da Penguin, de Paul Buckley, uma seleção de clássicos, que a editora tenta embalar em nova roupagem. Há uma linha, por exemplo, de capas com ilustrações de tatuadores, e outra feita em bordado. Algumas delas fazem parte do livro “Classic Penguin: Cover to Cover”, lançado recentemente para comemorar os 70 anos da Penguin Classics. Entre seus maiores orgulhos, aliás, estão dois livros antigos: “Kama Sutra” e “Fear of Flying”, de Erica Jong, de 1973, que trata da sexualidade feminina. “Em geral, acho que os Estados Unidos ainda têm muito de sua velha ética puritana, e muito do que move a sociedade é ridiculamente pudico, então quando consigo fazer algo sexy de bom gosto, me sinto particularmente bem por isso. Você sabia que se eu, ou qualquer um, colocar uma obra-prima da pintura do século 15 que mostre um peito (que todos temos) numa capa de livro, muitas livrarias grandes se recusam a vendê-lo? Em toda grande editora já tiveram várias conversas estilo ‘sim, sim, eu sei que é Rembrandt, mas você tem que cobrir isso com texto ou outro recurso. A gente não pode mostrar isso ou vamos perder X% das vendas em potencial’.”

Ilustrar a obra de outra pessoa imprimindo seu próprio estilo é um dos desafios dos capistas. “Gosto de pensar que meu estilo é ditado pelas palavras do autor. Às vezes não posso fazer isso sozinho, e é aí que chamo ilustradores e designers para trabalhar comigo. Definitivamente muda de livro para livro. É algo a que sou grato. Tipografia é algo importante pra mim. Independente do estilo ou do tamanho, é algo que me deixa obcecado”, comenta James, em linha seguida por Catherine. “Tento muito resistir a um estilo. Trabalho com livros tão variados que acho que é importante ser um camaleão”, diz ela.

Capa com design de Justine Anweiler
Capa com design de Justine Anweiler

Para Justine, todo designer gosta de pensar que não tem um estilo, mas os bem-sucedidos foram espertos o suficiente para entender seu estilo e transformá-lo numa marca. “Embora eu não goste de usar as mesmas fontes na minhas capas, admito que há linhas em comum. Gosto de algo simples, conceitual e arrojado. De vez em quando coloco algo visualmente congestionado por aí e sou obcecada por isso, mas só se o livro pedir. Acho que no coração de cada capa precisa ter uma ideia clara.”

Se um passeio pela livraria revelar capas semelhantes, não é mera coincidência. “Estilos mudam constantemente. Às vezes por coincidência, mas principalmente porque editores querem capitalizar sobre o sucesso de outro livro”, opina James Jones. “As cores da pantone do ano sempre acabam sendo utilizadas, porque as vemos em todos os lugares — então por que não usá-las em livros. Livros que têm sucesso comercial ou são premiados ditam a maior parte das tendências”, diz Justine. “No momento, temos três tendências de design. Capas normalmente são uma das três: fria (sem vida presente), minimalista e gerada no computador (parecem polidas); expressivas, acidentais e cruas (têm algum elemento de desenho à mão); ou uma combinação dos dois estilos — algo estéril justaposto a algo muito humano”, afirma. “Na última década vi uma mudança de capas com fotos para mais capas ilustradas. Mas todas as tendências voltam…”, completa Catherine. “Design gráfico, em essência, é isso: define onde e quando estamos”, resume Gustavo Piqueira.

Se para Paul Buckley a capa é a maior peça publicitária que um livro pode ter, para designers como Gustavo não dá para analisar uma capa como “sucesso” ou “fracasso” com base nas vendas. “Busco, em meu trabalho, evitar tratar a capa como mero paratexto ou instrumento de venda de um produto. Penso que o design gráfico, como linguagem visual que reflete o mundo a nossa volta, tem um valor para além do mercadológico ou do meramente decorativo”, diz.

Livro com capa de Catherine Casalino
Livro com capa de Catherine Casalino

Ao fim do processo, o que se espera é que a capa do livro tenha personalidade. “Não sei como seria a capa ideal, mas ela geralmente me dá aquele momento de ‘ah ha’ quando eu a pego — você sabe que é uma capa boa quando vê uma”, opina Catherine Casalino. “A capa perfeita é diferente de todas as outras na prateleira e fica na sua cabeça. Isso se atinge com um conceito inteligente, brilhantemente executado em cada detalhe do design. A cor, a composição, a escolha da fonte, as imagens — tudo isso deve refletir o conceito e reiterar a voz do autor”, diz Justine Anweiler. “O maior defeito que vejo é quando uma capa de apoia no sucesso de outra. Sempre acho que é uma pena e um desserviço ao autor, que tem uma voz única e individual e merece uma capa igualmente única.”

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‘Missoula’: questões essenciais sobre o estupro

Mesmo depois da circulação de um vídeo em que uma adolescente de 16 anos está nua e desacordada enquanto um grupo de homens no Rio de Janeiro diz que ela foi estuprada por mais de 30, o delegado que comandava as investigações afirmou que a polícia não podia “ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo” quando, na verdade, não se sabia realmente o que tinha acontecido. O caso é ilustrativo de como é difícil acusar alguém de estupro — nem um vídeo é suficiente para que a vítima convença o mundo de que está falando a verdade. O caso é da semana passada, no Brasil, mas encontra paralelo nas várias histórias contadas por Jon Krakauer, autor de “Na Natureza Selvagem”, em “Missoula”, livro americano do ano passado lançado há um mês aqui. O tempo passa, o cenário muda, mas as histórias contadas por Krakauer poderiam muito bem estar acontecendo aqui e agora.

Segundo o autor, o livro nasceu de seu choque com a descoberta de que uma amiga sua havia sido estuprada duas vezes durante a adolescência — uma delas por um amigo da família. Envergonhado por saber tão pouco sobre o trauma provocado por esse tipo de violência, começou a pesquisar. Deparou-se, então, com o caso de Allison Huguet, estuprada pelo amigo de infância Beau Donaldson na cidade americana Missoula, no Estado de Montana. Como no caso de sua amiga, Allison não havia sido atacada por um psicopata escondido nos arbustos numa rua deserta: quem a violentou foi alguém próximo, que ela considerava como da família. As duas não são exceção. Pelo contrário: segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a cada cinco estupros, quatro são cometidos por conhecidos da vítima.

Krakauer comprovou isso empiricamente. Só em Missoula, sede da Universidade de Montana, encontrou vários outros casos de estudantes universitárias estupradas por colegas, amigos próximos ou aqueles caras que você conhece numa festa e que parecem super legais e esclarecidos até não serem mais. Ainda sem saber que aquilo seria um livro, o escritor foi até a cidade acompanhar o julgamento de Beau. “O que foi interessante a respeito de Allison foi que era um caso que era uma barbada e ela teve que lutar tanto. Foi tão traumatizante para ela fazer com que os promotores levassem o caso a sério e não dessem apenas uma palmadinha no cara”, disse ele em uma conversa com blogueiras feministas em Nova York. “Pensei que era uma das partes mais interessantes do livro, ver como era difícil até em um caso desses conseguir prestação de contas, justiça, retribuição, como você quiser chamar. Pareceu óbvio, então, que uma vez que eu fiquei sabendo de Allison eu deveria escrever sobre essa série de ataques.”

missoula capa

Com base em entrevistas com os envolvidos, documentos judiciais e gerados por processos disciplinares universitários, e-mails, boletins de ocorrência e transcrições de audiências, Krakauer faz um retrato bastante representativo das dificuldades enfrentadas por quem denuncia um estupro. A história começa e termina com Allison, que foi a uma festa na casa de um amigo, bebeu e caiu no sono no sofá da sala, pensando estar segura. Acordou com Beau, seu melhor amigo, penetrando sua vagina por trás com o pênis. Com medo de ser mais machucada caso se debatesse — jogador de futebol americano, Beau pesava mais de cem quilos ante os menos de 60 de Allison –, fingiu continuar dormindo. Quando o ataque terminou, ela fugiu correndo, descalça e com a calça aberta (ele havia arrancado o botão e destruído o zíper). A mãe a resgatou e a levou a um hospital coletar um kit de estupro — quando foi “praticamente estuprada de novo”, com todas as áreas íntimas vasculhadas por estranhos durante horas.

As consequências daquela noite foram sentidas por muito tempo. Allison ouviu boatos maldosos a seu respeito, teve dificuldades em retomar os estudos e foi hostilizada pela cidade, que idolatrava o time de futebol, quando decidiu denunciá-lo para a polícia, mais de um ano depois. Até seus amigos a chamaram de puta mentirosa e disseram que ela só queria chamar a atenção, como se ganhar a fama de mulher estuprada fosse algo a ser almejado.

Com a ajuda de um detetive, ela conseguiu gravar uma confissão de Beau, mas mesmo assim o promotor encarregado do caso disse que iria brigar por uma pena branda, que poderia nem ter tempo de prisão. O fato de que ele não tinha antecedentes criminais e de que tinha um futuro promissor pela frente, por exemplo, contariam a favor de Beau — afinal, ele era estuprador arrependido da casa ao lado, não o psicopata com uma faca. O melhor a fazer, segundo o promotor, era não brigar muito e se contentar com a pena que o réu estivesse disposto a aceitar.

Allison representa boa parte das dificuldades encontradas por quem é vítima de estupro: a dificuldade que é passar pela coleta do kit de estupro e fazer a denúncia, as consequências psicológicas não superadas (“a sentença dele é de anos, a minha é para a vida inteira”, diz ela em um ponto do julgamento), a desconfiança de todos — da polícia aos amigos –, a culpabilização pela violência que sofreu, os xingamentos recebidos. É particularmente triste que o seu seja o caso “feliz” do livro: Beau foi preso, mas quase escapou, mesmo que tenha confessado o crime. Outros ataques narrados no livro saíram impunes, em relatos tão pesados quanto importantes.

O autor Jon Krakauer. Crédito: Linda Moore/Divulgação
O autor Jon Krakauer em foto de divulgação de 2003. Crédito: Linda Moore

Outra estudante, por exemplo, foi estuprada por cinco jogadores de futebol americano da universidade depois de beber numa festa, perdendo e recobrando a consciência repetidas vezes enquanto eles se revezavam para fazer sexo com ela durante duas horas. Assim como Allison, ela realizou exames que atestaram seus machucados e fez a denúncia à polícia. Os detetives, porém, duvidaram de seu relato com os motivos clássicos para questionar a vítima. Ela não teria traído o namorado e inventado que tinha sido estuprada por ter se arrependido depois? Será que os homens não tinham achado, por algum motivo, que aquilo era consensual? Será que ela não se enganou sobre o que aconteceu? No fim das contas, o detetive responsável concluiu que não havia “causa provável para oferecer denúncia contra nenhum dos envolvidos no incidente”. Afinal, era a palavra dela contra a de cinco.

Qualquer semelhança com o caso da adolescente estuprada por 30 homens no Rio não é mera coincidência. Segundo “Missoula”, pelo menos 80% dos estupros não são denunciados e uma pequena parcela dessas denúncias resulta em condenação. “Há uma mitologia de que mulheres mentem sobre terem sido estupradas. Algumas mulheres mentem — entre dois e 10% segundo pesquisas. Muitos estudos dizem isso. É um número pequeno, não muito diferente dos outros crimes”, disse Krakauer em entrevista à NPR. “A diferença é que nos outros crimes não se assume que a vítima está mentindo. Você acredita na palavra da vítima. As vítimas de estupro são tratadas de um jeito diferente do que as de outros crimes. O livro é um olhar de perto sobre o que é ser vítima de estupro: a dor e os obstáculos pelos quais você passa para conseguir qualquer tipo de justiça.”

“Missoula” tem o nome de uma pequena cidade americana, mas é sobre muito mais do que ela. Vem à memória, por exemplo, a denúncia de alunas da USP de estupros em festas promovidas na faculdade de medicina e a existência de uma cultura machista nos trotes universitários. Segundo elas, não só as denúncias não eram investigadas pela faculdade como elas ainda eram perseguidas pelos colegas, que as chamavam de mentirosas — como várias personagens do livro.

“É sistêmico pra caramba. Missoula é, infelizmente, um caso típico. Tem bons policiais e promotores, mas até mulheres detetives têm essa sensação de resignação, tipo… Você sabe que os promotores não vão atrás desse cara, por que vamos gastar nosso tempo? Literalmente, se eles não têm uma confissão nem levam à justiça. Temos um longo, longo caminho pela frente”, disse Krakauer no ano passado.

Meticuloso, “Missoula” é uma leitura importante, não só nesta semana, em que houve grande repercussão de um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. É importante porque acontece sempre, uma vez a cada 11 minutos no Brasil — como a maioria dos casos não é registrado, o número deve ser ainda maior. Enquanto 30 homens violentarem uma mulher sem que um só se manifeste, enquanto as pessoas duvidarem das vítimas, enquanto disserem “ninguém merece ser estuprado, mas…”, precisaremos discutir o estupro. Precisamos discutir o estupro. E as questões que “Missoula” levanta são fundamentais.