Essa família comum em todos os aspectos, com pais jovens, como eram quase todos os pais naquela época, e dois filhos, como quase todos os pais tinham naquela época, havia se mudado de Oslo, onde tinha morado na Thereses Gate, perto do Bislett Stadion, durante cinco anos, para Tromøya, onde uma casa fora construída para eles num loteamento. Enquanto aguardavam que a casa ficasse pronta, alugariam uma outra, mais velha, no acampamento Hove. Em Oslo o pai tinha estudado durante o dia, inglês e norueguês, e trabalhado como guarda-noturno durante a noite, enquanto a mãe havia frequentado a escola de enfermagem em Ullevål. Mesmo que ainda não houvesse terminado a formação, o pai tinha procurado e conseguido um emprego como professor no ginásio de Roligheden, enquanto ela trabalharia no hospital psiquiátrico de Kokkeplassen. Os dois haviam se conhecido em Kristiansand quando ela tinha dezessete anos, ela engravidara aos dezenove, e os dois se casaram aos vinte, na pequena fazenda em Vestlandet onde ela havia crescido. Ninguém da família do noivo compareceu ao casamento, e mesmo que aparecesse sorrindo em todas as fotografias, nota-se uma zona de solidão ao redor dele, percebe-se que não está no próprio ambiente em meio aos irmãos e irmãs, aos tios e às tias, aos primos e às primas da noiva.
Hoje os dois têm vinte e cinco anos, e têm a vida inteira pela frente. Trabalho próprio, casa própria, filhos próprios. Os dois estão juntos, e o futuro que almejam pertence a eles.
Será mesmo?
(Trecho de a “Ilha da Infância, Minha Luta 3”, de Karl Ove Knausgard)
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São 3.500 páginas distribuídas em seis volumes carregados de memórias e reflexões sobre a infância em um lugar remoto da Noruega, sobre trocar a fralda dos filhos e sobre faxinar meticulosamente a casa onde o pai alcoólatra acabara de morrer; relatos minuciosos sobre a água esquentando para preparar um chá, que evoluem para ensaios sobre Dostoiévski e Deus, e então a prosa volta a falar sobre papinha de bebê, Talking Heads, a vida de escritor e a história trágica – aos olhos do menino – de uma meia perdida na aula de natação. A série “Minha Luta“, do norueguês Karl Ove Knausgard, leva ao extremo o esforço de lembrança e apaga as linhas entre autobiografia e ficção. Publicada entre 2009 e 2011 na Noruega, onde se tornou um fenômeno de público e despertou intensos debates pela exposição crua de pessoas próximas ao autor, a obra chega aos leitores brasileiros traduzida diretamente do idioma original pelo gaúcho Guilherme da Silva Braga, 34 anos, responsável pela tradução a partir do volume dois – o quarto tomo, “Uma Temporada no Escuro”, foi lançado em junho no Brasil pela Companhia das Letras.
Apenas nas últimas duas décadas, e graças a escolhas bancadas por editoras como a 34 e a própria Companhia das Letras, traduções diretas de línguas “distantes”, como o russo, se tornaram possíveis no Brasil. Antes disso, Dostoiévski e outros russos, por exemplo, só chegavam ao Brasil intermediados pela tradução francesa – o que, de certa maneira, “contaminava” o texto final. Mesmo Franz Kafka só teve suas obras completas traduzidas diretamente do alemão a partir do trabalho de Modesto Carone, que iniciou na década de 1980 a monumental tarefa de traduzir toda a obra do escritor tcheco (que escrevia em alemão).
No caso de Guilherme Braga, doutor em Literaturas Inglesas e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o seu encontro com a língua norueguesa não partiu de um interesse acadêmico, mas pessoal. “Essa é uma história tortuosa que levou quase dez anos para se completar. Meu interesse pelo norueguês surgiu no meio dos anos 1990, junto com o meu interesse por bandas norueguesas de black metal – um dos principais itens de exportação cultural da Noruega”, conta. No início dos anos 2000, resolveu procurar algum professor de norueguês em Porto Alegre. Não encontrou nenhum, mas descobriu a professora Margareta Berg e o Instituto Brasileiro-Escandinavo de Intercâmbio Cultural, onde era possível estudar sueco. “Resolvi entrar no curso, pois eu sabia que o sueco e o norueguês são línguas extremamente parecidas e que, sabendo uma delas, entender a outra seria relativamente fácil”, lembra.
Depois de um ano de estudos, fez uma viagem à Suécia e, de volta ao Brasil, continuou os estudos do idioma enquanto traduzia peças do dramaturgo sueco August Strindberg “como exercício”. Em 2005, passou a trabalhar profissionalmente com tradução literária a partir do inglês, e dois anos mais tarde pediu demissão do emprego de professor de inglês para se dedicar à tradução em tempo integral. As versões engavetadas de Strindberg acabaram saindo em 2010 pela editora Hedra, no volume “Senhorita Júlia e Outras Peças“. Outras traduções literárias do sueco se seguiram, como o romance “A Traidora Honrada“, lançado pela Bolha/Autêntica, e “Doutor Glas“, um dos romances favoritos de Braga, que saiu pela Arte & Letra.
“O pessoal da L&PM – para quem a essa altura eu já havia traduzido dezenas de obras literárias em inglês – me escreveu perguntando se com o meu sueco eu não poderia ler um livro norueguês que a editora estava pensando em lançar e escrever um parecer a respeito. Aceitei o convite e não apenas escrevi o parecer como também me ofereci para fazer a tradução desse excelente romance, chamado ‘Antes que Eu Queime‘, baseado nos meus conhecimentos de sueco e usando vários materiais de apoio que comprei especialmente para a ocasião”, conta Braga.
Enquanto ele traduzia o livro, a NORLA, um importante órgão de divulgação de literatura norueguesa no exterior, concedeu ao tradutor uma bolsa de viagem à Noruega. Ainda sem encontrar professores de norueguês em Porto Alegre, estudou o idioma sozinho em casa por cerca de quarenta dias antes de embarcar para encontrar Gaute Heivoll, o autor do romance. “Logo depois de voltar fui convidado a participar de um evento para tradutores no festival literário de Lillehammer, também na Noruega, e na esteira disso tudo a Companhia das Letras me convidou a traduzir a série de romances ‘Minha Luta’, do Karl Ove Knausgard”, recorda-se.
Vendo que a tradução do norueguês estava começando a se tornar uma coisa séria em sua carreira, Braga voltou à Noruega outras vezes para estudar o idioma e participar de cursos e seminários para tradutores. “No meio disso tudo, li uns quantos romances noruegueses para me familiarizar melhor com a cena literária do país, ao mesmo tempo em que eu traduzia o Knausgard. Foi um ciclo muito estranho, muito inesperado e ao mesmo tempo muito interessante para mim”, diz Braga.
As visitas à Noruega ajudaram Braga a entender melhor o fenômeno Knausgard – foram 500 mil exemplares do primeiro volume vendidos em um país de cinco milhões de habitantes e exaustivas discussões na imprensa sobre os limites de sua obra, que, afinal, se baseia também na vida íntima de outras pessoas. “Na Noruega não existem grandes desigualdades sociais, não existem grandes desigualdades de gênero e assim por diante – e essa igualdade generalizada chega a tal ponto que você nem ao menos vê pessoas com roupas muito diferentes umas das outras quando anda pela rua. Talvez por isso os noruegueses também vivam vidas mais parecidas entre si, o que a meu ver possibilita a praticamente qualquer norueguês se identificar com os aspectos da vida cotidiana e trivial que é narrada nos romances do Knausgard”, analisa. Junto ao inegável talento literário do escritor e às questões morais e éticas que a série pode suscitar, o tradutor também atribui o sucesso de público de “Minha Luta” na Noruega, ao menos em parte, à “histeria dos jornalistas para transformar tudo em polêmica o tempo inteiro”.
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O processo de tradução de Braga geralmente passa por uma primeira versão mais apressada, ao mesmo tempo em que toma um contato inicial com a obra. Depois, ele relê o material com calma para fazer os acertos necessários e deixar o texto redondo. Durante o trabalho com “Minha Luta”, tradutor e autor nunca se comunicaram para conversar sobre as versões. “Eu vi o Knausgard em dois eventos literários na Noruega. Em um deles, não cheguei nem perto. Costumo ficar meio sem jeito nessas situações, e pelos romances eu sabia que o encontro com o tradutor de um país distante teria o potencial de se transformar em uma situação infinitamente constrangedora e sofrida para o Knausgard, a dizer por outras experiências similares que ele narra nos romances”, observa.
O segundo encontro foi em uma sessão de autógrafos. Braga comentou com ele que estava traduzindo a série e gostaria de fazer uma entrevista a ser publicada no Brasil. Na ocasião, Knausgard pareceu receptivo à ideia e disse que topava, mas o tradutor nunca mais teve resposta da agente dele sobre o pedido. “Não sei se ela não repassou o pedido ou se ele não respondeu, mas o fato é que a entrevista não foi feita porque nunca recebi uma resposta. Em todo caso, eu estaria mentindo se dissesse que estou surpreso, a dizer pela opinião que tenho sobre a personalidade do Knausgard pela maneira como ele se apresenta em suas obras”, diz.
O estilo narrativo de Knausgard, alternando descrições simples e coloquiais com trechos ensaísticos complexos, pode parecer um desafio a mais para o tradutor; é como se no mesmo universo habitassem dois ou mais níveis de prosa diferentes. “Embora essa mudança seja de fato marcante no Knausgard – o contraste entre a simplicidade e a concisão dos diálogos e a complexidade quase barroca das frases intermináveis nos trechos ensaísticos é brutal –, não tive muitas dificuldades com as transições porque eu já tinha experiência com os diálogos simples das histórias em quadrinhos e com a prosa rebuscada do século XIX”, conta Braga.
As dificuldades maiores estão nas sutilezas entre o norueguês e o sueco, que o autor faz questão de enfatizar – às vezes de maneira jocosa. O segundo volume, “Um Outro Amor”, é ambientado em grande parte na Suécia. “Uma parte significativa desse livro é um esforço da parte do Knausgard para convencer o leitor de que, apesar de serem países supostamente parecidos, a Noruega e a Suécia têm na verdade uma cultura muito diferente”, observa. Para Braga, traduzir tudo iria contra a intenção do texto original. Um norueguês consegue ler em sueco do mesmo modo que um falante de português consegue ler trechos em espanhol, mas o resultado final seria incompreensível para o leitor brasileiro. “O jeito foi, na maioria dos casos, manter as partes em sueco no idioma original, para deixar claro que os personagens estavam falando idiomas diferentes e, por meio de acréscimos extremamente breves e discretos, sugerir ou dar a entender ao leitor brasileiro o que estava acontecendo. O mesmo se aplica em menor grau para os trechos em dialeto”, diz.
Uma conversa entre o tradutor e Knausgard, que está em visita a América do Sul pela primeira vez na Flip 2016, não deve acontecer agora. Escaldado pelo fracasso da tentativa anterior, Braga não se animou a procurá-lo novamente. Por enquanto, continua a trabalhar no quinto volume de “Minha Luta”. “Pessoalmente, gosto da série especialmente pelo talento que o Knausgard tem para escrever sobre coisas banais e insignificantes. Também me agrada muito a forma como, mesmo no meio de um grande arroubo filosófico, Knausgard muitas vezes acaba constatando que é apenas mais um cara como qualquer outro e que todas as teorias mirabolantes dele podem ser completamente furadas. Tenho me divertido bastante com esses livros.”