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Comportamento

Toda nudez será libertada

Até hoje Emma Holten não sabe como nem por que aconteceu. Quatro anos atrás, alguém entrou em seu e-mail, pegou fotos em que ela aparecia nua e as publicou na internet, com seu endereço, número de telefone e nome de seus familiares. É difícil explicar a sensação que teve, conta. “É como perguntar a um paciente de câncer como ele se sentiu quando ouviu que estava doente. Você não sabe o que vai acontecer, como isso vai afetar sua vida, por quanto tempo, ou o que vai significar.”

Emma, 24, atribuiu então seu próprio significado ao que tinha lhe acontecido. Procurou uma amiga, Cecilie Bødker, com uma ideia: usar a mesma nudez que tinha a transformado em vítima para afirmar ao mundo que aquele corpo era dela e que ela, Emma Holten, era sujeito e não objeto.

Nas imagens de Cecilie, a dinamarquesa Emma aparece sorridente, sem retoques, em situações cotidianas. “São fotos de como uma mulher se vê: um ser humano com uma história e com um corpo que lhe pertence.”

O projeto, intitulado “Consent” (consentimento), não é o único do gênero. Há outras mulheres, vítimas ou não de pornografia não-consensual, publicando seus “nudes” em sites e redes sociais como Tumblr e Instagram para discutir questões de gênero ou simplesmente porque podem e querem fazê-lo, sob suas condições.

Foto do projeto “Consent”, de Emma Holten.
Foto do projeto “Consent”, de Emma Holten.

No caso de Emma, que passou a dar palestras e escrever artigos sobre feminismo, a motivação foi o descontentamento com as discussões sobre pornografia não consensual. “Eram machistas e degradantes às vítimas. Nos chamavam de ingênuas, nunca deixavam que a gente falasse. E faziam parecer como se a gente se arrependesse de ter tirado as fotos.”

Seu objetivo era mostrar que ela era humana, embora estivessem tirando a humanidade de seu corpo. “Pensei que, com todos os privilégios que tenho, apesar do meu sofrimento, eu deveria ser a pessoa de quem eu precisava quando isso me aconteceu. Uma pessoa que mostra respeito às vítimas.”

Quando suas fotos roubadas chegaram à internet, Emma foi alvo de mensagens raivosas. “Homens diziam que eu era tão nojenta que deveria me matar. E alguns pareciam muito fascinados com a vergonha sexual nelas. Perguntavam se minha família sabia, por exemplo.”

A explicação para os porquês desse comportamento não é simples. Para ela, a indústria do entretenimento deixa muitas vezes o espectador decidir o que o corpo da mulher significa, tirando sua agência. A mídia também tem sua parcela de culpa, diz. “Na maior parte das entrevistas me pedem para discutir intimamente minha sexualidade, meu relacionamento com meu corpo e com outras pessoas, mesmo que seja irrelevante para meu ativismo e para as vítimas. Amamos ouvir sobre a vergonha sexual e o sofrimento das mulheres.”

Muitas pessoas lhe disseram que publicar seus próprios “nudes” era se expor ainda mais do que tinha sido exposta quando as fotos vazaram. Emma discorda. “Isso me assustou tanto. Tantas pessoas não viram a diferença entre algo que escolhi e algo que foi feito contra minha vontade. Isso me mostrou que o projeto era importante.”

Posar nua para Cecilie foi tranquilo e emancipador. “Senti que tinha tomado uma decisão para mim pela primeira vez em muito tempo”, lembra. Considera-se otimista, vendo outros projetos como o seu por aí. “Acredito que as coisas estão acontecendo. Mulheres pelo mundo todo estão cansadas de serem desumanizadas. Estamos lutando de volta. Sinto muito orgulho em ser parte disso.”

Outra participante da batalha é a fotógrafa britânica Nadia Lee Cohen, que, diferente de Emma não foi vítima de pornografia não consensual. O discurso por trás de seu projeto “100 Naked Women” (cem mulheres nuas), contudo, é semelhante ao da dinamarquesa. Ao site inglês “Metro” Nadia disse que a ideia de retratar nus femininos veio de sua insatisfação com o retrato “pouco realista” das fotos habituais do gênero. “Fui fotografada nua no passado e descobri que é curiosamente libertador, e quis oferecer a mesma experiência para outras mulheres.”

No Brasil, há um projeto artístico parecido, chamado “A Olho Nu”, mas liderado por um homem, o fotógrafo Pedrinho Fonseca. Em seu site, as imagens são acompanhadas por textos nos quais as fotografadas dividem suas histórias, desejos e aflições.

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Isabela Testi clicada por Pedrinho Fonseca no projeto “A Olho Nu”

Alguns percalços apareceram no caminho. Uma das participantes do ensaio desistiu da sessão de fotos após ser impedida pelo namorado, que escreveu um e-mail a Fonseca lhe perguntando “e se fosse a sua mulher?”. O fotógrafo utilizou outro de seus projetos, o “Do Seu Pai”, no qual escreve cartas para seus filhos lerem no futuro, para explicar seu intuito.

“Estou fazendo um trabalho, filha, fotografando nus femininos. Um registro de mulheres que têm algo relevante a dizer e que através da sua voz e do seu corpo delimitam a fronteira invisível do respeito”, escreveu. “Ao ouvi-las, entendo em que momento da vida estão e – agora sim o intuito final do projeto – que mulher é essa que, em 2015, caminha para o futuro. Saber que lugar é esse que elas querem chegar.”

E completou: “JAMAIS deixe um homem pensar que ele é dono do seu corpo. JAMAIS. Seu corpo, esse presente que o Universo deu, é só seu. Faça com esse corpo o que VOCÊ MESMA quiser”.

OS POLÊMICOS MAMILOS
Embora os “nudes” femininos publicados voluntariamente sejam mais comuns hoje, a nudez ainda é tabu e parte de uma questão política. Diretora do filme “Free the Nipple” (liberte o mamilo) e líder de campanha homônima, a americana Lina Esco tem como principal bandeira fazer com que, como os homens, as mulheres possam andar sem camisa quando quiserem. Isso é permitido pela lei em Nova York, por exemplo, embora na prática um topless ainda leva uma mulher à cadeia.

Os peitos, no caso, são um símbolo de uma questão mais ampla, esclarece. Seu movimento, que tem adeptos como Miley Cyrus e Rihanna, luta pela igualdade e pelo empoderamento feminino mundo afora.

“Muita gente não sabe, mas antes de 1934 era ilegal para homens ficarem sem camisa [nos Estados Unidos]. Mas eles lutaram contra a lei e isso foi normalizado. Agora vemos homens assim e não surtamos”, diz. “Há cem anos os tornozelos eram considerados obscenos. É assim que lembraremos dos mamilos, pode escrever.”

Para ela, acostumar as pessoas a ver seios contribui para tirar a imagem sexual de torno deles. E dá um exemplo prático. “Um cara me disse que se eu quisesse mostrar os peitos ele não poderia deixar de pensar em sexo.” Ela o questionou de volta: e se eles conversassem assim por cinco horas? Ele não iria se acostumar? A resposta foi sim.

Em Nova York mulheres podem, legalmente, ficar de topless. Na prática, porém, não funciona assim. Enquanto Lina filmava, policiais pediram repetidas vezes a ela que colocasse a blusa. As denúncias muitas vezes vinham de mães. “Elas amamentaram os filhos, o peito deu comida a eles. Por que elas fazem mulheres se envergonharem? Não entendo”, diz.

“Você pode sexualizar seus peitos, objetificá-los, mas no momento em que você começa a usá-los como se fossem seus, é condenada. É uma questão de igualdade”, opina. “Quem diria que o mamilo ia ser o cavalo de Troia nessa discussão? Se eu fizesse um movimento chamado apenas igualdade ninguém falaria sobre ele”, ri.

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Falando do Brasil, Joana Novaes, psicoterapeuta e coordenadora do núcleo de doenças da beleza da PUC- Rio, diz que o país é “absolutamente paradoxal”. Enquanto existe uma superexposição dos corpos e biquínis mínimos, a nudez não é encarada com naturalidade. “Há uma falsa liberalidade nos costumes e um extremo conservadorismo na mentalidade, na forma como se encara a sexualidade.”

“Um país em que crescem as cirurgias íntimas é extremamente machista. É uma forma inegável de aprisionamento desse corpo [feminino] ”, continua, “Os adventos feministas em muitos aspectos não alcançaram suas conquistas. A mulher não é dona desse corpo. Ela ainda é o corpo.”

E, falando da pauta de Lina: por que um topless feminino ainda é um escândalo enquanto homens podem circular sem camisa por aí? “O homem não amamenta, para início de conversa. Seu peitoral não é sagrado. Em termos de socialização, ele não é criado para ser pai. Já o papel da mulher ainda está muito associado ao universo doméstico”, opina. “O corpo dela é propriedade de alguém, por isso não deve ser exposto publicamente, enquanto o homem pertence a si mesmo. Então o peito dele não significa absolutamente nada.”

PORNÔ DE VINGANÇA
Os mesmos “nudes” usados hoje como forma de dar poder às mulheres foram utilizados como forma de humilhação se alastraram na internet anos atrás. A disseminação de câmeras em celulares e a popularização do “sexting” — troca de conteúdo erótico via mensagens — tornaram possível que fotos e vídeos íntimos fossem publicados sem consentimento do retratado, caso de Emma Holten.

Segundo dados da ONG Safernet, o número de casos registrados de vazamentos de “nudes” quadruplicou em dois anos no Brasil. No ano passado, 224 pessoas procuraram o serviço da organização de defesa de direitos humanos na internet. Em 2012, o número era de 48. As mulheres representam 81% das denúncias.

Para Emma Holten, o fato de suas fotos terem sido divulgadas sem sua autorização era o principal atrativo para os homens que as compartilhavam. Se fosse uma modelo posando nua para uma campanha, compara, o interesse seria menor.

É o drama que envolve o vazamento de “nudes” que fisga as pessoas, segundo a psicóloga Ana Canosa. “Não é só a foto que conta, mas sua história. Principalmente se ela, no campo amoroso, trata de assuntos delicados como traições, vinganças e práticas sexuais não usuais”, diz. “Além disso, com tanta exposição de intimidade no espaço público, revelar, sem autorização, o que ainda é privado está virando um ‘fetiche’ social.”

“Infelizmente, no Brasil, ser mulher, autônoma e dona de seu desejo e destino é uma grande ameaça.” Ana Canosa, psicóloga

No espaço anônimo da internet, as pessoas ainda se sentem mais à vontade para destilar sua raiva, xingando e ameaçando as vítimas da pornografia não consensual.

“Infelizmente, no Brasil, ser mulher, autônoma e dona de seu desejo e destino é uma grande ameaça. Veja a história: a mulher sempre é culpada por tudo”, afirma Ana. “Se o homem trai, a culpa é da mulher, que não transa, ou está gorda. Ou a culpa é da outra que se ‘jogou’ em cima do cara casado.” Para ela, a exploração da nudez da mulher é uma construção cultural. “É só comparar a quantidade de nu feminino com a de masculino na mídia.”

Nos Estados Unidos, a campanha End Revenge Porn (termine a pornografia de vingança) dá suporte às vítimas de pornografia não consensual. Criada em 2012 com o objetivo de fazer uma petição em prol de leis contra essa prática, acabou crescendo. Hoje permite que vítimas conversem umas com as outras e obtenham orientação legal de como proceder. “Trabalhamos com milhares de vítimas globalmente e somos uma força para inovação tecnológica, social e legislativa na luta contra pornografia não consensual e abuso virtual”, diz a advogada Carrie Goldberg.

Após um escândalo no ano passado, quando imagens de celebridades como Jennifer Lawrence e Kate Upton foram publicadas na internet, o Google anunciou que irá tirar de seu mecanismo de busca imagens de pornografia não consensual se houver pedido das vítimas.

“Imagens de vingança pornô são muito pessoais, emocionalmente traumáticas e só servem para humilhar as vítimas — na maioria das vezes, mulheres”, afirmou em comunicado oficial em junho deste ano Amit Singhal, vice-presidente de busca do Google. “Sabemos que isso não vai resolver o problema do pornô de vingança — nós não conseguimos, por exemplo, remover esses conteúdos dos sites, apenas da busca–, porém, esperamos que ao atender os pedidos de remoção das pessoas nós possamos ajudá-las.”

“Essa decisão é um passo tremendo para todos nós”, diz Emma Holten. “Sempre haverá ex-namorados irados, hackers e misóginos. O que podemos fazer é limitar os danos uma vez que a violação acontecer. É aí que grandes sites podem ajudar.”

Carrie Goldberg concorda. “Um dos danos mais duradouros da pornografia de vingança é o na reputação causado pelo fato de que essas imagens aparecem sempre que alguém procura o nome da vítima no Google. Hoje em dia ninguém namora, contrata ou mesmo fica amiga de alguém sem consultar os mecanismos de busca na internet”, avalia.

Em sua opinião, as empresas tecnológicas deveriam desenvolver práticas que controlem os abusos, caso do Twitter, que pune pessoas que desrespeitem suas regras. “As novas empresas de tecnologia que entram no mercado devem antecipar as formas pelas quais o abuso pode acontecer em seu produto e incorporar soluções para lidar com isso.”

Nos Estados Unidos, 25 Estados aprovaram leis criminais contra a pornografia não consensual. Como Emma e Lina, Carrie é otimista, mas diz que sua luta está longe do fim. “Estamos esperando a introdução de uma lei federal nos Estados Unidos”, diz. “Vamos continuar na cruzada para que a internet respeite os códigos de conduta que são esperados offline, especialmente quando se refere a consentimento, abuso e privacidade.”