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Entrevista

“Nada existe a não ser o agora”

Foram 23 anos afastado da produção cinematográfica. Quando retornou, em 2013, com o comovente “A Dança da Realidade”, Alejandro Jodorowsky mostrou mais uma vez sua sensibilidade criativa. Recentemente em 2016, ele concretizou a segunda e derradeira parte da obra autobiográfica iniciada naquele ano. “Poesía Sin Fin”, lançado no festival de Cannes, fecha o ciclo. “Daqui dois dias faço 86 anos… é muita coisa. Porque, aos 86, eu estou lutando para fazer mais um filme? Porque nada é mais importante para mim. Mas por que alguém que pode morrer um dia ou outro quer tanto fazer um filme? Porque quando se tem 86 anos, você acorda todas as manhãs e diz ‘eu ainda estou vivo’”, declarou em seu vídeo de campanha para arrecadação de fundos no Kickstarter.

Ele já fez muita coisa para as telas, mas é sempre lembrado especialmente pelos longas “El Topo” (1970), clássico western psicotrópico, fenômeno dos “corujões”, e “A Montanha Sagrada” (1973), uma surrealista abordagem do esoterismo ocidental. Chileno filho de imigrantes judeus ucranianos, hoje morando na França, Alejandro sempre foi muito produtivo artisticamente, assim como engajado no estudo da consciência humana. Além de cineasta, ele é um estudioso em religião comparada, dramaturgo, compositor, ator, mímico, roteirista de quadrinhos, escritor, leitor e historiador de tarô e psicoterapeuta – a partir da soma de seus conhecimentos em tarô com a sua experiência teatral e influenciado pela psicanálise e o xamanismo, ele criou a chamada psicomagia.

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Quase foi dele a adaptação da ficção científica épica “Duna”, de Frank Herbert, que terminou nas mãos de David Lynch e foi lançada em 1984. A história do colapso desta produção grandiloquente que contaria com a participação de Salvador Dalí, Orson Welles, Pink Floyd e Moebius está contada no documentário “Jodorowsky’s Dune”. O material criado em parceria com o ilustrador Moebius, no entanto, foi a sua porta de entrada nos quadrinhos, com a série “O Incal”.

Mas nem todas essas histórias e a paixão dedicada a cada uma delas foram capazes de dissuadi-lo da necessidade de contar a sua história, costurada por lúcidas reflexões, num filme, para sentir a alma apaziguada. Outros filmes podem vir. “Poesía Sin Fin” veio só passar a chave do legado cumprido nesta encarnação. Para o público, que busca sabedoria em suas mensagens em qualquer que seja a plataforma, resta a esperança de poder contar com o quanto possível, pelo máximo de tempo que o “todo” permitir, de sua força poética.

Em seu primeiro respiro desde abril, quando finalizou os cortes definitivos de “Poesía Sin Fin”, Alejandro Jodorowsky dedicou alguns minutos de conversa ao Risca Faca.

Risca Faca: Agora que “Poesía Sin Fin” foi concluído e selecionado para o Festival de Cannes deste ano, você se considera um cineasta plenamente realizado? Digo, restam ambições artísticas para concretizar?

Alejandro Jodorowsky: Um artista é um artista até o momento de sua morte. Não faço cinema para ser aplaudido em festivais, nem para ser célebre, nem para ganhar montes de dinheiro. Faço cinema porque é uma arte essencial para mim, faz parte de meu ser autêntico, o amo com intensa paixão. Minha única ambição é conseguir filmar mais coisas até quando conseguir, mesmo numa cadeira de rodas.

No senso comum você geralmente é citado como um autor ou diretor cult. Você acredita que essa definição é prestigiosa ou reducionista? Quem é você?

Ao longo de toda a minha vida tenho lutado para ser espiritualmente livre. No âmago de mim mesmo, não tenho idade, não tenho nacionalidade, não tenho nome, não tenho rótulos que me definem. Se me pergunta quem sou, respondo: “Sou você”.

Olhando em retrospecto para o seu legado, você é capaz de perceber os diferentes estágios de sua produção criativa e associá-los à sua evolução pessoal?

Nasci com um corpo que foi se desenvolvendo até chegar na velhice, contendo uma alma que nunca mudou. Minha alma não tem fases; é o que é, independentemente de seu estágio evolutivo ou da decadência final de meu corpo. Não creio na arte com meu ego (a personalidade artificial criada pela família, a sociedade e a cultura), crio na arte com minha alma. Cada película que já realizei não foi um produto articulado para agradar o máximo de clientes, e, sim, a expressão de meu ser real, tão real como meu coração, meu fígado ou meus testículos. Um artista não evolui, e, sim, avança despojando-se dos limites que lhe são impostos pela decadente realidade.

Sobre a experiência que você teve com a campanha de financiamento coletivo para a realização de “Poesía Sin Fin”: que lições você aprendeu com o tipo de relação empreendido com seus apoiadores e detratores?


Eu confio no valor da raça humana. Não creio que os jovens são idiotas consumidores de merda industrial. Creio que há uma multidão de jovens entediados com a futilidade de Hollywood, esperando pacientemente pelo advento de uma arte que lhes proporcione uma visão sana do mundo, que lhes revele seus valores essenciais, que lhes mostre o amor pela vida. Confiando nisto, recorri à mendicância sagrada. Os 10 mil colaboradores do crowdfunding me deram razão.

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Cena de "A Montanha Sagrada", de Jodorowsky
Cena de “A Montanha Sagrada”, de Jodorowsky

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Muitas pessoas o consideram um mestre. Mas quem são os seus mestres?

Como não me considero um Maestro, não existem Maestros do Maestro. Creio que um ser chega ao seu máximo desenvolvimento espiritual quando aprende a admirar os valores dos outros. Admiro uma infinidade de artistas, de campeões, de heróis, de gênios e de santos.

Enquanto muitos artistas geralmente decaem após um pico criativo durante certo período, você continua fazendo coisas inovadoras, como fez em cada fase anterior de sua vida. A razão disso é por que você sempre tem algo a dizer, então fica mais natural colocar a alma em suas expressões?

No século 20 você usava um aparelho que servia para só uma coisa, que se chamava telefone. Agora, no século 21, usa um aparelho móvel, que não serve apenas para conversar com seus semelhantes, mas também escutar música, assistir filmes, programas, jogar etc… Este é o segredo do múltiplo. Antes se respeitava aqueles que faziam uma só coisa, era artista, engenheiro, médico, comerciante etc… Agora o ser humano está aprendendo a ser múltiplo, não se encerrar num só ofício, ou uma só classe de expressão… Cocteau, Pasolini, Leonardo da Vinci, Gurdjieff e muitos outros mais, entre eles eu, não temos o complexo de ser uma coisa só. Livres dos rótulos praticamos aquilo que nos dá vontade.

Com todos os ataques terroristas recentes pelo mundo, você acredita que a humanidade será capaz de alcançar a consciência antes do fim da Terra?

A Terra é o planeta onde vive a humanidade. É natural que devoremos este planeta. Logo emigraremos a outro planeta que chamaremos de Terra. E isso não tem fim. O dever dos humanos que libertam sua consciência é despertar nos medíocres o desejo de libertarem as suas consciências. Se você, eu e outros seres com cérebro livre nos dedicarmos a libertar as multidões, ao invés de convertê-las em consumidores infantilóides, poderemos viver em um mundo movido por energias saudáveis, sem fronteiras, porém respeitando as diferenças, todos distintos e não competitivos, trabalhando por um objetivo em comum, o desenvolvimento feliz de um quarto cérebro com faculdades parapsicológicas.

Considerando que os continentes andam doentes, com toda a violência, guerras e mazelas políticas, que tipo de psicomagia social seria capaz de curar uma ferida tão profunda?


O problema atual é imenso, começa lá na pré-história: fazem muito poucos anos, não mais que 200 mil, quando éramos parecidos com os macacos. Somos animais em desenvolvimento genético. Por meio de guerras cada vez mais mortíferas, estamos aprendendo a desenvolver as capacidades dos milhões de neurônios que temos em nosso cérebro. Haverá uma mutação na raça humana. Os insetos, diante de suas dificuldades vitais, se defendem mudando. Por que nós não seríamos capazes de mudar, como fazem todos os demais seres viventes? Mudaremos! Aqueles que já demos um passo mais adiante, na impossibilidade de mudar o mundo, devemos começar a mudarmos a nós mesmos, para ir comunicando uma visão sana da realidade a todos os que nos rodeiam.

O que é a vida?

É isso. A vida passada já passou. A vida futura aqui não existe. Existe só o agora, o presente, um todo que está sempre em mutação.

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Comportamento

A confraria do pinball

A primeira coisa que Iure Gomes fez ao abrir as portas do Pinball Clube de São Paulo, no bairro do Cambuci, foi dar as boas-vindas e, antes que eu formulasse qualquer pergunta, disparou escada acima. Fazendo um gesto de “vem comigo”, bradou: “É aqui que acontece a mágica”, e novamente desembestou a andar entre as fileiras de máquinas de pinball alinhadas pelo espaço. A cada dois ou três metros, sempre falante, ele parava, ligava uma ou outra máquina, fazia demonstrações e até removia o tampão de vidro para revelar detalhes de cada peça. Em poucos minutos percorremos todo o imóvel enquanto Gomes se empenhava na meta de transmitir o máximo de informações possível a respeito daquela cultura. Aos 44 anos, o diretor comercial de uma empresa de TI é um dos sócios fundadores do clube, inaugurado em 2003. Atualmente, a agremiação conta com 25 sócios e 120 máquinas.

“O clube é fechado para os sócios”, explica. “Nós nos encontramos todas as terças, quintas e sábados, e isso aqui é como se fosse a nossa confraria. O nosso refúgio.” O acesso restrito ilustra o fato de que a prática do pinball, no passado hábito corriqueiro dos bairros populares, com seus fliperamas disputados por office boys e estudantes a matarem aula, nos últimos anos virou uma espécie de hobby de luxo. A maioria dos sócios do Pinball Clube de São Paulo, na faixa dos 40 anos, é um pessoal tão empolgado quanto Iure. Colecionadores de notável poder aquisitivo, já que essas máquinas, bem como sua manutenção, demandam um belo investimento. Para se ter ideia, uma máquina nova custa em torno de R$ 35 mil, e pode chegar até mais de R$ 50 mil, dependendo do modelo. Já uma máquina restaurada, antiga, custa em torno de R$ 22 mil. Cada integrante do clube tem, no mínimo, uma dezena delas.

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Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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Quando chega alguém novo querendo ser sócio, espera-se que o aspirante coloque pelo menos duas máquinas lá dentro. Fora isso, todos devem colaborar com os gastos de manutenção do lugar, do aluguel ao IPTU. O uso dos equipamentos é compartilhado livremente entre eles. Gomes, por exemplo, disponibiliza nove máquinas no clube. Segundo ele, a obrigação de cada membro é manter as suas funcionando e em bom estado, “para não virar depósito”. “Não existe intenção de ganhar dinheiro com o clube. Não queremos que o lugar fique lotado, e sim reunir um grupo de pessoas com um interesse em comum para bater papo. No final das contas, vira uma família”, observa o nosso cicerone. E complementa: “O perfil do pessoal é bem heterogêneo. Aqui você vai encontrar piloto de avião, assessor de imprensa, advogado, executivo, empreendedor, engenheiro. Todos unidos por essa paixão em comum que é o pinball.”

O modelo do Pinball Clube de São Paulo é replicado em outras cidades. Atualmente, funcionam outras duas células no estado do Rio de Janeiro – uma na capital e outra em Petrópolis – e mais duas no estado de São Paulo, em Boituva e no ABC paulista. Gomes revela que há iniciativas de expandir para Belo Horizonte, Porto Alegre e Caruaru, e explica: “Quando falamos em filial, não significa que o sócio tem a chave de acesso aos outros clubes, mas existe uma política muito legal de boa vizinhança. Só se paga para entrar quando temos as etapas do Campeonato Brasileiro, que passa por Petrópolis, ABC e São Paulo, onde rola a final. Ou, duas vezes por ano, sem data certa, quando abrimos para o público”. Os eventos open house aos quais ele se refere são anunciados nas redes sociais.

São recorrentes entre os membros do clube as declarações de que a nostalgia funciona como o maior atrativo da retomada do pinball. O próprio Iure Gomes teve contato com o pinball aos quatro anos de idade e nunca mais parou. “Meus pais me colocavam numa cadeirinha, eu botava o queixo naquela barra de metal do vidro da máquina, estendia os braços, e jogava completamente esticado. Eu também pirava naqueles pequenos arcades: Space Invaders, Asteróide, Bazuca, e por aí afora. Tem foto minha, bem pequeno, jogando”, relembra. O advogado Cid Rudis, de 41 anos, foi tragado por este universo aos sete anos. “Eu sou carioca. Morava em Copacabana e lá tinha um fliperama. Eu me lembro até hoje da primeira máquina que chegou com voz. Quando eles tiraram da caixa e ela emitiu o som de fala, foi um negócio inacreditável”, conta. Isso foi em 1981.

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Crédito: Guilherme Santana
Uma das máquinas de ‘Star Wars’. Crédito: Guilherme Santana

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Rudis é da geração das máquinas Taito, que dominaram o mercado nacional entre 1972-85 com franquias como Cavaleiro Negro, Fire Action e Oba Oba. “A Oba Oba eu jogava com meu pai, ele era amigo do [Osvaldo] Sargentelli, dono da casa de shows Oba Oba, no Rio. Meu pai já morreu. Me lembro até hoje do dia que reencontrei uma Oba Oba depois de 30 anos. Chorei. Veio aquele mar de recordações”, comenta sem conseguir esconder a emoção. “Foi quando senti que precisava trazer o pinball de volta para a minha vida.” Treze das máquinas mantidas no clube paulistano são dele. Fora isso, Rudis é dono de mais cinco arcades (máquinas multijogos) e outras duas máquinas de pinball, que estão em sua casa.

Das 220 máquinas que ocupam os dois andares do clube carioca, 70 pertencem ao seu fundador, o gerente de TI Mário Sérgio da Rocha, 40 anos. “Tudo no pinball me fascina”, discorre ele sobre os maiores atrativos da prática. “Mas a nostalgia tem um peso maior. Faz eu me recordar da época de infância e adolescência, quando as preocupações da minha vida eram ganhar uma bola extra ou um novo crédito com aquela fichinha comprada com o dinheiro suado. As economias do lanche da escola ou do ônibus.” Ele também chama a atenção para a jogabilidade física das máquinas. “A bola nunca traça o mesmo caminho. Por isso, cada partida é uma partida. Duas máquinas iguais, lado a lado, vão te oferecer um jogo totalmente diferente. Isso tem a ver com a elevação do playfield, o estado das borrachas, entre outros fatores.” Na ativa desde 2003, o clube do Rio hoje conta com 20 sócios.

A história de Ricardo Kobe é menos emoção e mais fissura. Aos 52 anos, ele é dono de uma loja voltada ao público geek. Como todo nerd, Kobe curte colecionar uma variedade de artigos que remetem à cultura pop. E o pinball, para ele, é parte desse barato. Hoje, ele é dono de onze máquinas, mas conta que já chegou a ter 56 – vendeu para investir na abertura da loja. A primeira aquisição foi em 1989, uma Fire Action da Taito. “O que eu mais gosto no pinball são os temas das máquinas. Tipo a Tommy, do The Who. Essa máquina é fantástica”, comenta. “Às vezes você acha algo muito raro e sabe que, se não fizer a doideira de comprar, vai perder a oportunidade.” Uma dessas “doideiras” ele cometeu na feirinha da 13 de maio. “A certo ponto da caminhada olhei para o lado e vi uma máquina de 1957. Sem minha mulher perceber, dei meu cartão para o cara e falei: ‘Amigo, essa máquina é minha. Cubra ela e me ligue amanhã. Só não levo para casa agora porque minha mulher não pode saber’.” Por muitos anos, a mulher de Kobe achou que ele possuía apenas três máquinas, enquanto ele já tinha investido em mais de trinta.

O analista de sistemas Marcelo Pereira Batista, 48 anos, é o fundador do clube de Petrópolis (Imperial Pinball Clube) e acaba de faturar o título de Campeão Brasileiro de Pinball. Em abril, ele vai para os Estados Unidos disputar o mundial. Segundo MPBola, como é chamado no âmbito do pinball competitivo, “existe uma cena mundial forte no mundo atualmente, porém restrita a colecionadores, já que não temos mais fliperamas por aí como nos anos 80”. Inaugurado em 2013, o clube de Petrópolis já conta com 40 máquinas, em sua maioria adquiridas em sites de compra na internet. “Algumas nós tivemos que mandar restaurar. Outras, ainda estão em seu estado original, mas em perfeitas condições de uso”, informa. Diferente do clube de Petrópolis, a coleção de máquinas que deu vida às unidades do Rio e de São Paulo guarda um aventureiro histórico de caça ao tesouro.

Muitos exemplares raros funcionando em perfeito estado, como a Ace High, criação da Gottlieb de 1957, as eletromecânicas Drakor, lançadas pela Taito em 79, a clássica máquina Tommy, inspirada na ópera rock do The Who, lançada pela Data East em 90, correram o risco de virar entulho. “Na hora de se desfazer delas, a única opção que o cara tinha era desmontar ou destruir. Então a gente começou a fazer um resgate”, explica MPBola. Nesse sentido, o conceito que deu vida aos clubes pode ser entendido como o de um museu, mesmo não se tratando de uma organização formal. “É a gente que salva as máquinas”, frisa Iure Gomes. “Pegamos aquelas que estão para ser destruídas e conseguimos recuperá-las. Tem muita história de resgate de máquina que estava para ser queimada. Em alguns casos, vimos lugares onde as máquinas já estavam queimadas, restando apenas os metais”, lamenta.

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Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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O Brasil já teve diversos fabricantes de pinball. Um dos últimos fabricantes foi a Taito, a marca mais bem-sucedida e dona de uma produção gigantesca no período de atuação. As atividades da empresa se encerraram no azul, sem dívidas. Ela simplesmente saiu do país e não recolheu o ativo. Então, quem tinha um fliperama com máquinas da Taito, passou a ser dono. E foi isso que tornou as coisas interessantes para os colecionadores. As máquinas permaneciam nesses lugares, mas os técnicos que geralmente faziam as visitas de manutenção, deixaram de ir. “Os caras começaram a dar um jeito de consertá-las diretamente com os técnicos que foram dispensados. Mas depois de um tempo, pararam também, porque deixou de ser interessante”, detalha Gomes. “Sumiram as peças de reposição, coisas do tipo. O interessante disso tudo é exatamente a possibilidade que foi aberta no mercado de uma hora para a outra. Alguns profissionais que existem hoje são oriundos justamente desse buraco que se abriu no mercado. Há casos antigos de máquinas que nos foram doadas. O cara falava: ‘Tira esse negócio daqui, porque isso é um trambolho que está tomando meu espaço’. Era pura verdade. No fim das contas, aquilo num bar ocupa o espaço de duas mesas”, reflete.

Na missão de resgatar máquinas antigas da destruição ou do ostracismo, os integrantes do clube do Rio conseguiram recuperar todas as máquinas um dia pertencentes a um antigo e gigantesco fliperama em Nova Friburgo. Mário Sérgio não mede esforços. Ele teve a ousadia de alugar um caminhão e passar em todos os depósitos recolhendo máquinas. Dessa vez, retornou com cerca de 20 exemplares e isso virou história na cidade. Mas ele tem uma extensa lista de outras histórias para contar: “Já desci máquina usando cordas, roldadas e a força de um caminhão, do segundo andar de um depósito que não tinha escadas. Já passei um carnaval em Búzios acompanhando o leilão de um exemplar raro pela internet, sem ir à praia. Quando ainda era solteiro e morava com minha mãe e avó, povoei a sala de estar com cinco máquinas. E já fiquei um dia inteiro sem comer para poder receber um lote de raridades”.

Em outra ocasião, eles subiram os morros das favelas correndo atrás de máquinas. Assim, conseguiram salvar duas e toparam com os destroços de mais três ou quatro. “O sujeito disse que ateou fogo porque não aguentava mais. Vimos somente os metais retorcidos e alguns vidros. O caixote de madeira e o playfield tinham virado estatística”, conta Gomes. “Uma das máquinas foi encontrada pelo pessoal do Rio num sítio do interior, no meio de um galinheiro, sendo usada como poleiro. Uma Shock, que hoje é raríssima”, comenta Cid Rudis. E prossegue: “Aqui, em São Paulo, já rolou de fazer comboio pelo interior, correndo atrás dos sítios e chácaras. E aí você encontrava máquina até na chuva. Infelizmente a maioria dos exemplares dos anos 80 veio nesse estado”.

A mania do pinball no mundo teve duas fases de ouro. A primeira foi no final da Segunda Guerra, entre 1945-55, quando dispararam as vendas e o número de fabricantes. A segunda, foi entre os anos 1980-90. Atualmente, até encontra-se gente que atua na restauração de equipamentos de ambos os períodos no Brasil, como a JSW, mas fabricante mesmo, não. Nessa nova fase em que o pinball virou culto, a fabricante norte-americana Stern dominou o mercado. Apostando na temática classic rock, a marca tem investido em máquinas licenciadas por bandas como AC/DC, Kiss, Rolling Stones e Metallica, além de séries, como The Walking Dead, Game of Thrones, Star Trek, e filmes, tipo Indiana Jones e Thron. Recentemente, eles fizeram uma edição comemorativa aos 50 anos do carro Mustang.

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Um típico encontro da confraria. Crédito: Guilherme Santana
Um típico encontro da confraria em São Paulo. Crédito: Guilherme Santana

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A concorrente direta da Stern é a Jersey Jack Pinball, que lançou as máquinas do Mágico de Oz e de O Hobbit. “Eles deram uma sacudida no mercado”, comemora Iure Gomes. “A Stern estava com uma qualidade muito baixa nos produtos, e isso fez com que ela arrumasse mais investidores para melhorar as máquinas. Aumentou muito a qualidade, para bater de frente com a Jack Jersey. E isso foi, sinceramente, maravilhoso para o pinball no mundo. Abriu portas para outros fabricantes, muito pequenos, que estão buscando investimento para tentar entrar no mercado”, avalia.

O fetiche dos sócios do clube, no entanto, continua sendo pelas máquinas vintage. Por isso, vários colecionadores acabam aprendendo os macetes de manutenção e restauração. “Basicamente a manutenção das máquinas é simples”, explica o engenheiro eletrônico e sócio do clube de São Paulo, Nikolaos Mbakirtzis, 50 anos. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no local, ele não jogou nem ficou de bobeira papeando, bebendo ou comendo churrasco, como os seus colegas da “confraria”. Naquela noite, zanzava de um ambiente anexo à garagem até o piso superior, onde ficam as máquinas. Ia e voltava repetindo o trajeto com ferramentas e peças na mão. Fez isso diversas vezes.

De perto, foi possível notar que, naquele ambiente, o clube acolhe uma impressionante oficina de restauração improvisada. “Em vários momentos você tem que trocar peças. Todas as máquinas têm conserto”, diz Nikolaos, empenhado em fazer funcionar uma delas. “Você tem que botar peças novas. É como se fosse um carro: quebrou uma peça, tem que trocar. Não adianta você tentar ficar só consertando.” Observando de esguelha, Gomes continua animado. Conversa com todos ao mesmo tempo e ainda joga. Ele não se contém. Interrompe a fala do colega e crava, no bom humor: “Tirando os exageros é tudo verdade! Temos aqui pessoas que pegam uma máquina caindo aos pedaços e a deixam zero bala. Tipo os Mestres da Restauração”. Já é tarde da noite, a maioria dos presentes começa a se despedir. Semana que vem tem mais.