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A obsessão de ‘Making a Murderer’

A série do Netflix sobre o caso de Steven Avery é o novo “Serial”.

Não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A série documental do Netflix é viciante, do tipo que te faz ler comentários em sites, frequentar fóruns atrás de mais informações, elaborar teorias da conspiração e comentar com qualquer um que passe ao seu lado sobre a história de Steven Avery, inocentado após 18 anos na cadeia e preso dois anos depois, acusado de assassinato. Mas não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A cada um de seus dez episódios o programa deixa o espectador mais perturbado. Como aquilo pode estar acontecendo? De vez em quando você se esquece de que aquilo é real e toda vez que você se lembra é uma paulada na cabeça.

Como de praxe quando se trata do Netflix, não há informações sobre audiência, o que torna impossível saber quantas pessoas viram a série (o primeiro episódio, postado pelo serviço no YouTube, tem quase 500 mil visualizações). Em repercussão, porém, o programa é um fenômeno. Desde que estreou, perto do Natal (melhor época para se ver televisão, aliás, quando as pessoas estão cheias de tempo livre e estufadas de comida), o nome Steven Avery não para de pipocar em sites noticiosos, fóruns, redes sociais. Para um programa pouco anunciado pelo Netflix, sem grandes estrelas, foi surpreendente. Mas vendo “Making a Murderer” é fácil de entender por que as pessoas se envolveram tanto.

A história de Steven Avery parece saída da cabeça de Agatha Christie. Se estivesse em uma série de tribunal, como “The Good Wife”, já seria maluca e o fato de ser real torna tudo mais doido ainda. Steven Avery tinha acabado de ser pai quando foi acusado de ter tentado estuprar uma mulher no interior do Estado de Wisconsin, onde vivia. Steven tinha álibi — mais de um, inclusive. Com passagens anteriores pela polícia (por causas variadas, como ter queimado um gato), não havia nada que o ligasse àquele crime. Mas com base no retrato falado feito pela vítima, a polícia o prendeu. Um detalhe importante (todo detalhe é importante nesse caso): Steven havia jogado, pouco tempo antes, o carro para cima de uma prima, casada com um policial do condado. Ele não era exatamente querido.

Dezoito anos depois, um teste de DNA provou que ele era inocente e que o verdadeiro culpado estava preso havia alguns anos e, inclusive, já tinha confessado o crime à polícia, que mesmo assim não liberou Steven. Já solto, ele pediu uma indenização de US$ 36 milhões pelo tempo que passou injustamente na cadeia. Poucas semanas depois que os principais policiais envolvidos no caso deram seus depoimentos, uma fotógrafa, Teresa Halbach, desapareceu após tirar algumas fotos na propriedade de Steven. Mais tarde, seus ossos foram encontrados queimados em seu terreno. Acusado de novo e sem dinheiro no bolso, Steven aceitou um acordo em seu processo e ganhou uma indenização de apenas US$ 400 mil, longe do que havia pedido.

Inocentado após passar 18 anos na cadeia, homem mata mulher e vai preso de novo. Já seria uma história e tanto, digna de filme, e foi isso que levou as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos a fazer as malas para Wisconsin. Durante dez anos elas trabalharam na história de Steven, conversando com ele e sua família, acompanhando o julgamento, coletando documentos e gravações. Nesse tempo, o projeto ganhou outra dimensão. Já não era só uma história curiosa, e sim um retrato chocante do funcionamento do sistema penal. Por isso, não dá pra parar de assistir. Como diz um dos advogados de Steven, você pode ter certeza de que nunca vai cometer um crime, mas não pode ter certeza de que nunca vai ser acusado de um crime. Caso você seja, é isso que pode te acontecer. E é aterrorizante. (Pare aqui caso você não queira saber os detalhes da história.)

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Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação

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No fim de “Making a Murderer” não se sabe o que realmente aconteceu com Teresa Halbach. Não é esse o objetivo. O foco é menos o assassinato em si e mais o funcionamento da justiça e o drama humano que vivem o acusado e sua família, o que tem apelo para todo o mundo. Sabe-se que Steven Avery e seu sobrinho adolescente, Brendan Dassey, foram condenados à prisão perpétua pelo crime sem que a promotoria conseguisse montar um caso consistente. Talvez Steven seja mesmo o assassino, mas o fato é que não dá para ter certeza. E como todos são inocentes até que se prove o contrário, a conclusão inevitável é que eles não deveriam estar presos. É por isso que já existem duas petições, que somam mais de 300 mil assinaturas, para que Barack Obama solte os dois.

Primeiro ponto estranho: os mesmos policiais envolvidos no processo milionário movido por Steven Avery estiveram em sua propriedade após a morte de Teresa procurando por evidências, apesar de não haver motivo para eles estarem ali (a polícia de outro condado investigava o caso). Pra dizer o mínimo, havia um conflito de interesses. Segundo ponto estranho: algumas das evidências contra Steven, como a chave do carro de Teresa, foram encontradas depois de dias de busca, em lugares óbvios. Durante dias ninguém tinha visto a chave do lado do criado-mudo. Certo. A mesma chave não tinha o DNA de Teresa, sua dona, mas tinha o DNA de Steven. Ok.

Terceiro ponto: segundo a acusação, Steven estuprou Teresa no quarto e cortou sua garganta, mas não havia vestígios de sangue ou de seu DNA por lá. Quarto ponto: no carro de Teresa, encontrado do lado da casa de Steven (que tinha um compactador de veículos e por algum motivo não o usou para destruir a evidência), havia sangue de Steven. Mas uma amostra de seu sangue que fazia parte de sua primeira prisão havia sido violada. E por que Steven teria matado Teresa na casa, colocado seu corpo no carro, mantido o carro do lado da casa, tirado o corpo do carro e o queimado no próprio terreno? Nada faz sentido. O estranhamento só cresce.

Segundo a tese de seus advogados, a polícia plantou as evidências para incriminá-lo. Isso não é comprovado, mas há margem para dúvida e, se essa margem existe, Steven não deveria ter sido condenado. Por isso “Making a Murderer” é tão perturbador. Se o espectador consegue ver a injustiça cometida, como o júri e o juiz não conseguem? É a vida de alguém que está em jogo e não conseguimos fazer nada a não ser assistir de mãos atadas. Ninguém é punido por ter deixado Steven 18 anos preso injustamente. Ninguém questiona as lacunas na tese da acusação. “A presunção de inocência só vale pra quem é inocente”, diz o promotor. A sentença de Steven tinha sido dada antes do julgamento começar. Como ele poderia lutar contra polícia e o sistema?

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Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação

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Histórias de crime exercem um fascínio especial sobre as pessoas. Há criminosos famosos, cujos julgamentos são acompanhados como novela, em diversos capítulos nos jornais e televisão. Novas séries ambientadas em tribunais ou delegacias estreiam a cada temporada, várias com sucesso. Sherlock Holmes teve mil encarnações até chegar a Benedict Cumberbatch. Acompanhar essas tramas atiça a curiosidade das pessoas em vários níveis: como alguém pode fazer algo assim? Como foi que isso aconteceu de verdade? Por isso, essa onda de séries documentais sobre crimes reais, como “The Jinx”, exibida no ano passado pela HBO, ou o podcast “Serial”, também de 2015, não espanta. Crimes geram interesse. Mas “Making a Murderer” é diferente de “The Jinx” em algo: não tem fim.

Só dá para especular, mas provavelmente a série teria causado um impacto menor caso houvesse um final feliz. Em “The Jinx”, o protagonista Robert Durst confessa sua culpa e será julgado neste ano. Quando o crime é desvendado, você pode respirar aliviado e deixar a história pra lá porque a justiça foi feita. Não dá pra esquecer “Making a Murderer”. É um soco no estômago ver como o sistema funciona contra Steven Avery, que nasceu com cartas ruins na mão, uma vez e depois outra.

Você termina a série e quer compartilhar sua indignação com o mundo. Por isso as pessoas vão à internet: para discutir teorias, conversar sobre fatos não mencionados pelo programa, para detonar o promotor nas redes sociais, para pedir que Steven seja libertado ou julgado novamente. É como um dos advogados de Steven diz no fim: você quase torce pra que ele seja mesmo culpado. A ideia de ele estar preso de novo por um crime que ele não cometeu é insuportável.

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