Quinze anos depois de entrar pela última vez em uma loja de card games, me vejo novamente rumo a um desses oásis perdidos de jogos analógicos, ainda tão escondidos do grande público. A mochila nas costas, dessa vez, não abriga uma imensa pasta cheia de cards e decks, mas a mente já se encontra tentando emular os mesmos sentimentos daquela época. Magic: The Gathering esteve na minha vida entre 1995 e 2000 – joguei, colecionei, troquei cards, participei de torneios e até mesmo tive alguns cards roubados. Tanto tempo depois o jogo continua firme e forte, mas algo mudou.
Magic: The Gathering é um Trading Card Game (TCG), ou jogo de cartas colecionáveis, no qual cada jogador tem um baralho de cartas, chamado “deck”, que ele próprio constrói a partir de uma coleção imensa de cartas já lançadas. As cartas fazem o papel de mágicas de diversos tipos (criaturas, encantamentos, feitiços), que juntas em um deck formam uma estratégia, com o objetivo de reduzir os pontos de vida do adversário a zero. Pelo menos era assim há quinze anos, e provável que regras assim, tão essenciais, não tenham mudado tanto. Mas os cabelos…
É essa a missão que me fez ir até a Bazar de Bagdá, loja de card games na Zona Norte de São Paulo. A intenção era a de acompanhar um torneio chamado PPTQ – Preliminary Pro Tour Qualifier, que qualifica jogadores (ou “duelistas”, bem mais legal) para os Pro Tour Qualifiers, que por sua vez dão vaga para os Pro Tour, torneios profissionais de nível mundial, que acontecem quatro vezes ao ano. Claro que tudo isso me foi explicado bem depois – tudo o que eu conhecia de torneios até então era o sistema suíço, “fantasmas” (quando o número de jogadores é ímpar alguém sempre tem a sorte de ficar de bobeira em uma rodada).
Assim que abri a porta da loja, revivi uma cena bastante comum na minha adolescência: jovens com pastas, mochilas nas costas, todos escorados no balcão da loja, esperando o início do torneio, conversando e trocando cards – pelo menos essa última eu imaginei que estivessem fazendo, o que se provou errado logo depois. “Vai jogar o torneio?”, alguém sacou na minha direção, como um Raio (um mana vermelho, três de dano em qualquer alvo). “Não, vou só acompanhar”, respondi já sem nenhuma atenção voltada para mim, como se esperassem pela resposta.
Um novo mundo de Magic
Posso dizer com segurança que, na época em que joguei, não havia um décimo da quantidade e variedade de produtos ligados a Magic que vi naquela loja. Lembro-me bem de pastas decoradas e deck shields, “plastiquinhos” individuais para proteger os cards, itens que não eram fáceis de serem adquiridos com o dinheiro do lanche da escola convertido em nerdices. O que eu vi na Bazar foi uma miríade de pastas, cases, protetores, dados marcadores de pontos de vida, “playmats” (um “tapetinho” que se usa para cobrir um dos lados da mesa onde se joga), e várias outras coisas coloridas que chamam muita atenção.
E não foi só no vasto universo dos acessórios que Magic se transformou num mundo estranho e terra de novas maravilhas. A gama de produtos oficiais aumentou muito de quinze anos para cá, e pobre de nós que comprávamos apenas “boosters” e “decks”. O duelista hoje tem acesso a baralhos pré-montados (bons e ruins, segundo relatos), caixas promocionais com brindes, edições especiais, de colecionadores, além de cards avulsos vendidos pelas lojas, chamados de “singles”.
Magic: The Gathering foi lançado em 1993 pela Wizards of the Coast, então uma empresa de garagem com poucos jogos no portfólio. Uma simples e rápida pesquisa mostra que hoje a WotC tem hoje em suas prateleiras os dois maiores bastiões quando se fala em jogos analógicos: Dungeons & Dragons, o mais famoso e jogado dos RPGs (Role-Playing Games), e Magic – além de ser uma subsidiária da gigante dos brinquedos Hasbro. “Bala na agulha” é a palavra que eu buscava e que representa bem o momento da empresa, que nos últimos anos investiu pesado em marketing e desenvolvimento de novos produtos e estratégias para os jogos.
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“Atenção, duelistas do segundo PPTQ da Bazar de Bagdá! A lista de jogos da primeira rodada já está disponível! Tomem seus lugares e aguardem o sinal dos juízes para dar início ao duelo!” – soou nos auto-falantes da loja Leonardo “Estranho” Martins, o juiz principal de um time de três árbitros responsáveis pelo torneio, todos eles vestidos a rigor – sapato, calça social e uma camisa com o bordado oficial, indicando que eram, afinal, juízes oficiais. Isso eu realmente nunca tinha visto: um nível de profissionalismo, excelência e seriedade que não era comum naquele Magic que eu jogava entre amigos, “na zoeira”. Nítida também era a questão da idade dos duelistas – todos certamente na fase dos “vinte e poucos”, a maioria nos “vinte e muitos”. Com vinte, ninguém mais da minha antiga turma ainda tinha um card sequer.
Informação é a chave
O que melhor explica as mudanças em muitos (quase todos, aliás) setores da sociedade é a universalização da o acesso à informação. Claro que o Magic se beneficiou disso e abraçou a causa. “A disseminação da informação foi o que mais mudou no Magic de quinze ou vinte anos para cá, e com a internet, o jogo e suas estratégias foram se difundindo muito mais”, explica Estranho. Faz sentido: sem a internet, pouca ou nenhuma informação chegava até nós, sempre por meio de informativos ou revistas que cobriam eventos e torneios internacionais, com meses de atraso. “Hoje, dá para acompanhar torneios de alta competitividade e em nível mundial, como o Pro Tour, em tempo real, via streaming”, comenta.
Eduardo Beraldo, o “Dudão”, um dos sócios da Bazar de Bagdá, lembra um período no qual a internet engatinhava e, para o Magic, as revistas eram o principal baluarte de dados para trocas. “No começo, nossa referência para cartas e informações de forma geral era a Duelist, revista que só conseguíamos em bancas de importados”, conta. A grande referência para trocas e eventuais vendas de cards veio depois: a InQuest, com quase metade das páginas dedicadas a imensas listas de preços de referências de cards. “Ninguém vendia ou trocava cards de uma coleção nova sem antes conferir seus valores na InQuest.”
A informação de qualidade estratégica também foi um dos grandes diferenciais que a disseminação digital trouxe ao jogo, melhorando a experiência dos duelistas. “Foi na época da InQuest que começaram a sair os artigos sobre arquétipos (tipos de estratégias de deck e de jogo), e ao mesmo tempo torneios internacionais como os Pro Tour, Mundial e Latino-Americanos começaram a ter grande importância”, revela Dudão. A internet, ainda segundo o lojista e jogador (Dudão venceu o PPTQ mencionado acima), fomentou essa busca dos jogadores por informações a respeito de arquétipos e estratégias. “Dias atrás tivemos um torneio aqui na loja e, ao mesmo tempo, passava no telão o streaming do primeiro torneio oficial da nova coleção, “Battle for Zendikar”. Todo mundo colado na tela, vendo as novas cartas, novas estratégias e os novos decks que ela trouxe”, completa.
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Embora o Magic seja um jogo de alta complexidade (a comparação com o xadrez é recorrente no meio), ele hoje se mostra simples e de fácil acesso para o iniciante, diminuindo o fator de intimidação que a complexidade traz e, por consequência, afasta o jogador novato. Para completar, Magic já virou jogo para computador, tablet e celular, indo além das mesas e angariando mais e mais jogadores – que, pelas versões de software e aplicativos, têm mais facilidade em entender as regras. “Hoje, é fácil entrar no Magic, mas dominá-lo é outra história”, emenda Estranho.
A profissionalização
Torneios oficiais, mundiais, estabelecimento de estratégias e um mercado (oficial e paralelo) sólido são elementos cruciais para a germinação de um ambiente profissional e de duelistas profissionais. E foi o que aconteceu. Magic: The Gathering completou 20 anos em 2013 contando com uma massa fiel de duelistas “federados” de todos os níveis, uma ampla rede de lojas onde se realiza torneios oficiais e não-oficiais, e torneios de nível mundial nos quais se paga (muito) bem. O último Pro Tour, que aconteceu em Milwaukee, EUA, premiou seus vencedores com a soma de 250 mil dólares. Dá para viver.
Um dos melhores representantes brasileiros da atualidade nesse mundo é Willy Edel, carioca eleito para a turma de 2015 do Hall of Fame do Magic, segundo brasileiro a conquistar o feito (o primeiro foi Paulo Vitor Damo da Rosa, em 2012). Willy foi campeão do Pro Tour de Toronto, em 2012, e campeão brasileiro no ano seguinte, tendo ainda se classificado “Top-8” em diversos outros Pro Tour e Grand Prix. Toda essa trajetória fez com que Willy fosse indicado e conquistasse o cobiçado anel do Hall of Fame – sim, é como no Super Bowl.
Para Willy, o Magic está bem diferente hoje em comparação com os primeiros anos, e acabou se tornando referência para muitos outros jogos que foram surgindo ao longo do tempo. “Mudou completamente. Antigamente, 99% do público era casual, havia pouquíssimas lojas, poucos torneios, basicamente nada que favorecia a vertente competitiva. Hoje há vários incentivos, e para muitos o Magic virou profissão”, explica.
Se o jogo se profissionalizou, podemos comprovar também que os ambientes seguiram o mesmo caminho? Em toda a minha trajetória no Magic, tive como “base de atuação” uma locadora de games que vendia decks e boosters como alternativa para os jogos eletrônicos – e lá jogávamos de maneira bem casual, trocávamos cartas e muito raramente comprávamos um do outro. Isso também mudou? Para Willy, sim. “A troca de cartas ainda existe, mas é bastante rara nas lojas, e não sem motivo: por que limitar seus ‘parceiros de troca’ se hoje todas as lojas têm um estoque bastante amplo de cards avulsos para vender? A vida hoje é mais simples e fácil”, esclarece.
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Apesar do contexto profissional no qual o jogo se encontra hoje, trilhar o caminho “sério” não é nada fácil. Praticamente todos os torneios grandes são fora do Brasil, e a rotina de treinos, viagens e hospedagem pode ser assustadora para a maioria dos duelistas que iniciam nessa vida. Para ajudar esses duelistas profissionais de primeira viagem, Willy presta auxílio com relação a todos os fatores envolvidos nessas jornadas rumo aos grandes torneios. “Quando sou procurado, ensino os primeiros passos, desde marcar a passagem a reservar hotel. Se a pessoa está disposta a treinar sério para o evento, eu tento incluí-la no meu grupo de treinos. É muito difícil entrar no circuito profissional, então esta pode ser a única oportunidade desta pessoa, por isso tento ajudar no que posso e mostrar que tem que ser algo levado a sério”, revela Willy, conhecido no meio por essa atitude como “Godfather” do Magic.
Magic é um jogo de muitas possibilidades, inclusive de carreira. Leo “Estranho” Martins é um árbitro de nível 2, credenciado e graduado pela própria Wizards of the Coast. Se ele “apita” por hobby? “Somente em 2015, já viajei quase dez vezes para o exterior para ser juiz em grandes eventos”, conta. Estranho abandonou a graduação em Filosofia na Unifesp e um cargo público na Secretaria Estadual da Educação para se dedicar apenas ao ofício de árbitro de Magic.
O papel das lojas
Desde seu início, a cultura do Magic esteve ligada de forma íntima às lojas que comercializam os cards e outros produtos relacionados. A loja está para o Magic assim como o campinho de bairro está para o futebol, nas devidas proporções. E se nos primeiros anos esses ambientes eram simples pontos de encontro e espaço para duelos (além da venda de produtos), hoje as lojas de Magic são verdadeiras “células” que agregam jogadores em um ambiente profissionalizado.
É nas lojas que o jogador conhece pessoas e tem contato físico, real e presencial com cartas, decks e o principal: joga Magic com diferentes pessoas. Willy emenda: “Em lojas o jogador faz amigos, joga torneios, compra suas cartas e tem chance de começar ali uma carreira profissional”.
Em uma busca no site LigaMagic, um agregador de torneios e lojas, encontrei mais de 50 lojas na cidade de São Paulo e um total de 230 estabelecimentos no estado. No site é possível também fazer busca por torneios a serem realizados – localizei 49 torneios durante todo o mês de novembro de 2015, só na cidade de São Paulo. No próprio site da Wizards of the Coast o duelista pode usar o localizador de lojas e torneios, que também retorna dezenas de resultados para a cidade de São Paulo. Ou seja: opções não faltam para o duelista iniciante, intermediário e experiente. “O jogo se chama Magic: The Gathering, e para mim o “Gathering” (“reunião”) é a grande razão do seu sucesso”, completa Willy.
Fora do circuito
Apesar da força e relativa importância da rede de lojas e da comunidade de jogo que as envolve, alguns duelistas de longa data preferem se manter à parte de todo o esquema. É o caso do também carioca radicado em São Paulo Rodrigo Esper – seu ambiente de jogo, na verdade, é a sala do apartamento que divide com amigos também duelistas na região central de São Paulo.
A experiência de Esper com o jogo – começou nos primórdios, com a jurássica Quarta Edição, que saiu no Brasil em 1995 – sem dúvida o credenciaria para estar entre alguns dos mais proeminentes duelistas da comunidade. Mas, por opção, se manteve em círculos restritos de jogo, bem no estilo “entre amigos”. “Comecei como todo mundo, na lojinha de bairro que era meio locadora, meio loja de coisas nerds, mas logo me mantive em grupinhos mais restritos, sem me envolver muito em comunidades”, conta. Esper considera que o clima de intensa disputa que permeia o ambiente do Magic de forma geral tem conotação negativa. “Não queria competir, só jogar entre amigos mesmo. Todo mundo se conhecia e sabia das cartas e dos decks de cada um”, revela.
Entendi bem o que ele quis dizer, e compartilho de certas aflições que vivi quando adolescente em ambientes assim. Há uma certa insegurança em se lidar com alguns tipos de nerds, em epecial os mais “hardcore”. “Tem um tipo de nerd que é bem difícil de se lidar, são arrogantes, chatos, não compartilham conhecimento, te desprezam. Isso faz perder totalmente o prazer na coisa”, confessa.
Esper chegou a parar de jogar em determinado momento, quando viveu uma experiência traumática: “Roubaram meu deck, o principal deck. Desanimei”. Um bom deck de Magic, com 60 cartas, diversas raras, pode ser vendido de forma avulsa por boas centenas de reais (dependendo do deck, pode chegar na casa dos quatro dígitos). Ao mesmo tempo, segundo ele, muitos dos seus amigos duelistas também paravam de jogar e vendiam as cartas. Fiz a mesma coisa em 2000, quando parei e vendi minhas cartas (e recuperei quase tudo que investi), acompanhando a tendência de todos os outros da turma. Estávamos crescendo, indo para a faculdade e “virando adultos”.
Claro, adultos não jogam Magic – ou pelo menos não gostam muito de admitir isso. Jogam futebol, sinuca e tomam cerveja, mas não jogam Magic. Como bem postulou Esper, “jogar magic não é maneiro”. Eu mesmo, na época em que jogava, mantinha minhas atividades em segredo dos amigos de escola, que preferiam andar na rua e jogar futebol. Duelos, trocas e papos de Magic só com quem também jogava e via aquilo como uma coisa legal demais, mas entendia que a maioria das pessoas não absorvia facilmente.
O hiato de Esper com o Magic durou bons anos, pontuados por uma ou outra aquisição esporádica. “Não contava para ninguém, não era uma coisa bem vista, estava velho.” Estamos velhos. A vida, também conhecida como “convenções sociais absurdas”, travestida de consciência/responsabilidade, nos cobra se aparecermos em casa com um deck turbinado para torneio, ou com aquele combo imbatível que inventamos. Não há espaço e não é maneiro. Mas a verdade é que o mundo mudou nas duas últimas décadas: o que era tido como estranho, nerd e esquisito virou cultura popular — a tal cultura pop — e jogar esse tipo de jogo, e também jogos de tabuleiro, se transformou em uma forma de entender que podemos gostar daquilo que nos agrada sem preocupações. E isso, por consequência, transformou o ato de gostar de Magic em algo cool.
A história do Esper ajuda a comprovar isso. Fotógrafo profissional e sócio de uma agência, Esper cobria eventos, festas e shows no Rio. “Foi quando descobri uma galera que jogava escondido. Cara de banda, advogado – e a gente ficava de cara, porque aquele cara era muito maneiro para jogar Magic!”. Que “a vida” me perdoe, mas se um cara de banda joga Magic e tudo bem, não sei o que eu estou fazendo da minha vida. Jogar Pokémon, quem sabe? Já joguei e foi maneiraço.
Jogo Magic e sou maneiro, sim
A imersão no mundo do Magic a que me submeti nas últimas semanas foi altamente revigorante, mesmo descobrindo o quanto o jogo mudou desde que o abandonei – principalmente porque as mudanças parecem mesmo ter sido feitas de forma consciente, planejada e visando a oferecer ao duelista diferentes formas de abordagem e de encarar o jogo como um todo.
Em 2015, Magic The Gathering completa 22 anos de existência, gozando de boa popularidade (a quantidade de lojas e torneios disponíveis não deixa mentir), mas ainda permanece oculto de boa parte do público, sendo para a maioria das pessoas que o conhece uma vaga lembrança da adolescência – ou apenas “aquele joguinho de cartas estranho que fulano brincava na escola”. Essa lembrança distante ajuda a manter o jogo no “submundo” e em níveis de popularidade bem inferiores aos que o videogame, por exemplo, alcançou nos últimos anos.
Por outro lado, Magic parece estar em um patamar bem consolidado, com sinais claros de que não vai definhar e cair no limbo dos jogos ultra alternativos – pelo menos não em um futuro próximo. Bora, então, montar um deck e jogar uns torneios?