Categorias
Perfil

As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

mutarelli_foto_rafael_roncato_revista_da_cultura
Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

[imagem_full]

mutarelli_foto2_rafael_roncato_revista_da_cultura
Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

[/imagem_full]

 

HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”