É difícil fazer um retrato do cineasta francês Vincent Moon. Em mais de cinco horas distribuídas em dois encontros com o público em São Paulo, ele solta fragmentos de informação fora de ordem, sem planejamento, sem ensaios, num grande fluxo de consciência. De certa forma, Vincent se parece com seus filmes. Feitos em um take só, sem pesquisa prévia, com uma única câmera, eles privilegiam a imaginação à informação. O espectador não sabe exatamente a que está assistindo, mas fica imerso na experiência. Seu trabalho, sintetiza, junta os meios do cinema e da música para formar algo “acima disso”. Totalmente experimental.
As duas conversas seguiram o mesmo padrão. Vincent atrasa um pouco – “vamos começar em uns 15, 20 minutos, ok? Vocês têm tempo, não?” – e deixa o público ouvindo músicas de gravações suas pelo mundo. Depois, diz querer uma conversa solta, sem roteiro. Vai passar um de seus filmes, escolhidos um pouco ao acaso, falar um pouco sobre ele e abrir para perguntas. Depois outro filme e mais perguntas. E por aí vai.
Vincent ficou conhecido pelos vídeos musicais. No site La Blogothèque, criado dez anos atrás, postava pequenos filmes de bandas de rock tocando em lugares inusitados, com a câmera bem perto, sem ensaio prévio, em uma tomada só. Seus vídeos não lembram em nada videoclipes, feitos para vender a música. Um dos filmes que mostrou ao público em um dos encontros é um exemplo claro de sua obra: dá a sensação ao espectador de estar dentro de um show. A câmera treme, vê-se apenas pedaços de cada músico e às vezes você não sabe para o que exatamente está olhando. “Quando você vai para um show, você não vai ver tudo. Você não vai ver nada. Você vai estar no meio de uma coisa que é muito mais que só música. Essa sensação de estar no meio das pessoas, fazendo parte de uma comunidade, tem muito a ver com um ritual”, ele explica.
“Minha ideia era ir pra rua. Iniciei esse projeto muito mais com intuição do que pensamento. O desejo foi de quebrar hierarquias e colocar anarquia. Nunca tive o desejo de filmar algo em seu lugar oficial. Ir num show e fazer um filme… É chato. Não quero dar muitas informações para o espectador, quero ir para o lado experimental”, diz. Vincent nunca gostou de ouvir discos em casa. Teve a sorte de nascer em Paris, ele conta, onde podia ir a um show por noite e “participar” da música. A câmera é uma extensão de seu corpo. Quando caminha, quer que o espectador caminhe junto e sinta que faz parte daquela experiência.
Hoje, ainda trabalha com a união de cinema e música, mas mudou seu foco. Em vez de documentar o rock, Vincent investiga o papel da música em rituais pelo mundo todo. O sucesso da Blogothèque, curiosamente, foi o que o levou a largar o projeto. “Dez anos atrás não tinha nada na internet. O sucesso foi rápido, a gente mostrava música de um jeito diferente. Mas você entra numa relação muito estranha com a quantidade. ‘Opa, tive 50 mil visualizações na semana passada, agora preciso de mais.’ É muito ruim. Uma relação muito perigosa. Depois de quatro, cinco anos, entrei nessa e ai ai ai. Precisei sair.”
RODANDO O MUNDO
Decidiu então rodar o mundo buscando trabalhos de qualidade, independente de quantas pessoas fosse atingir. “Não vou tocar 50 mil pessoas, mas vou tocar de um jeito diferente. Isso é muito mais legal”, diz. “Tinha um desejo de encontrar outras pessoas e outras músicas. De fazer uma grande pesquisa sobre a origem da música.” Nessa busca, encontrou uma ligação entre a arte e o sagrado e resolveu ir atrás de cerimônias e rituais.
Os filmes que mostra passam por Peru, Geórgia, Rússia, Ucrânia, Etiópia, Egito e Brasil. Viaja sem planos, sem saber quanto tempo vai ficar em cada lugar, para onde vai depois ou o que vai filmar ali. Nem pensa em fazer a conta de quantos países já visitou. “Vivemos numa sociedade da quantificação e isso atrapalha”, diz, voltando à questão que o motivou a deixar a França. “Nunca tenho o desejo de saber o que vai acontecer. Filmei muitos grupos sem saber o que eles iam tocar. Rapidamente você pode sentir pra onde vai a música. Você entra num momento de conexão tão lindo”, diz, servindo-se de vinho. “Não sou profissional e nem quero ser. Sou amador.”
Uma vez que chega ao lugar, vai conhecendo pessoas. Dividindo uma garrafa de vinho ou um baseado com um desconhecido, recebe dicas de onde ir. Foi assim, por exemplo, que chegou a uma casinha no centro do Cairo onde encontrou duas mulheres tocando tambor enquanto outra entrava em transe. Outro homem com quem cruzou deu a dica de um grupo tradicional da Ucrânia e salvou sua viagem: ele ia embora no dia seguinte e não tinha filmado nada.
Assim como não gosta de pesquisa diz não gostar de dar muitas informações ao público. “Na internet há informações extra embaixo do vídeo. É fantástico trabalhar um cinema em que você pode ir pra poesia total. Se você tem curiosidade, vai procurar. O desejo inicial é deixar vocês trabalharem.” Também só atrapalha, em sua opinião, a ideia de que um filme precisa de um começo e um fim ou recursos como narração para facilitar a vida do espectador. Vincent é categórico ao afirmar que não tem relações com escolas de cinema. “Fui para a universidade e me falaram de John Ford. Pfffff. Não me encontrei lá”, fala. E vai além: “Não sou diretor, sou só o rapaz com a câmera”.
SEM PROJETOS, SEM DINHEIRO
Alguém pergunta como ele faz para se sustentar na estrada e Vincent desconversa. “Não preciso de muitas coisas pra viver. Viajei por cinco anos e não aluguei nada, não paguei por uma casa. Não tenho nada. Só uma mochila”, diz. “Quando você entra nessa maneira de existência é fácil. É uma coisa estranha, entender como é possível viver com muito pouco. Mas fazer esse tipo de conversa me dá um pouco de dinheiro.” Tampouco conta com patrocínio ou editais para financiar seus filmes. Como não faz planos, não faz projetos. E, sem projetos, resta pagar tudo do seu bolso.
Com esse estilo, é difícil as coisas darem errado. “Gosto muito de trabalhar com qualquer coisa. Pode virar muito experimental.” Uma vez, conta, foi ao Peru acompanhar um ritual inca. Depois de caminhar duas horas no frio, achou que as condições estavam muito ruins para filmar. Mas registrou o som. Na volta, encontrou um vendedor de DVDs que tinha imagens da cerimônia do ano anterior. “Eu tinha o som, filmei o ritual do ano passado. Inventei um pouco uma história e juntei os dois. É!”, lembra, animado. “Deu um filme legal, experimental. É interessante trabalhar com qualquer material, sem ter o desejo de chegar num lugar seguro.”
Nas duas noites, o público faz a mesma pergunta: como filmar um ritual, uma cerimônia religiosa, sem interferir no que está acontecendo? Vincent responde: “Qualquer coisa que você faça vai interferir. Mesmo sem a câmera. Objetividade não existe. Tudo é um intercâmbio de energias. O movimento de ir até lá já muda o lugar”. O que é necessário, continua, é estabelecer uma relação com as pessoas que não atrapalhe a energia do local. “Muito rapidamente você se conecta. Meu trabalho não é o de um antropológo acadêmico, que passa muito tempo no lugar. Gosto da aproximação rápida, sem saber muito antes.”
Paris, diz Vincent, é o lugar menos espiritual do mundo (“muito racional, muito”), mas viajar o fez abrir seu entendimento de mundo. Ao tentar definir sua fé, faz uma pausa longa. “Eu acredito. Em tudo. Gosto muito de ser um camaleão”, afirma. “Esse desejo de encontrar o invisível vem de filmes que fiz anteriormente. Esse é o desejo original da Blogothèque. Busco a interconexão em tudo, sem gênero, sem fechamento.”
Seu projeto mais recente, intitulado “Híbridos”, nasceu dessa descoberta espiritual. Na sua volta ao mundo, passou pelo Brasil e foi tocado pelo candomblé. “Tem uma coisa bem especial nele, que é a ligação com a realidade. Vai além do livro. Voltei pra cá no ano passado pra fazer um grande projeto da espiritualidade. O Brasil é um grande país pra falar disso.”
Ao longo de um ano, Vincent e sua mulher, Priscilla Telmon, viajaram pelo país registrando rituais. Como resultado, lançarão na internet mais de 60 curtas — um para cada cerimônia — e um longa que costure tudo, com estreia prevista para o ano que vem. “O que estamos fazendo no Brasil tem a ver com celebração, com mostrar a beleza. Desmistificar, de uma maneira, sem desmistificar. Sem dar informações demais, mas mostrar que precisamos de tudo isso.”