“Como você ouviu falar do esperanto?”, questiona meu entrevistado, antes que qualquer pergunta sobre o idioma seja feita. Responsável pelo curso Estudo da Língua Internacional Esperanto e sua Cultura na Unicamp, o professor de física José Joaquín Lunazzi continua: “Vim da Argentina e lá, quando se fala [do esperanto] na mídia, se fala com muito respeito. É positivo. Aqui no Brasil, se aparece o tema, é pra falar contra. A língua que não deu certo, língua artificial, coisas assim”.
Criado pelo médico polonês Lázaro Zamenhof em 1887 para ser um segundo idioma para todos, o esperanto é uma língua misteriosa. Quem escolheria aprender um idioma que não é de nenhum país? Quantas oportunidades você teria de usá-lo? Mas ao contrário do que se pensa, o esperanto não é uma língua morta nem inútil. Cerca de 2 milhões de pessoas no mundo falam o idioma, formando uma comunidade tão próxima quanto entusiasmada.
“A maioria das pessoas não sabe o que é o esperanto, ou, se sabe, sabe tudo errado. Ouviu falar que o esperanto é uma língua morta, que o esperanto é a língua que Jesus falava. Um monte de maluquice. Que o esperanto quer acabar com todas as línguas do mundo e que todo o mundo só fale esperanto. Coisas absurdas. É o contrário disso, aliás”, diz, rindo, Emilio Cid, primeiro secretário da Liga Brasileira de Esperanto, que divulga a língua no Brasil.
Zamenhof, o criador, cresceu numa Polônia dominada pela Rússia, onde falava-se diferentes línguas e havia dificuldades de comunicação. Achava que esse problema poderia ser diminuído e as distâncias entre pessoas encurtadas se houvesse um idioma simples que todos pudessem falar. “Aí ele criou uma língua usando elementos comuns das línguas que existem e regularizou as regras. Também procurou sons fáceis de pronunciar, bem definidos”, diz Lunazzi. “O esperanto tem muito do latim, os radicais são bem parecidos. A gramática parece mais com a do chinês — por incrível que pareça é uma gramática muito simples, as palavras são muito derivadas. Quando você conhece um radical, como a palavra amor, transforma isso em 30, 40 palavras. Ele é feito de uma maneira que é fácil pra todo o mundo”, completa Emilio.
Facilidade de aprendizado e neutralidade linguística são dois dos principais argumentos utilizados pelos esperantistas para explicar por que resolveram estudar a língua — escolha que seus conhecidos estranhavam no começo (“não seria mais prático aprender logo o inglês?”). “Aprendi em quatro meses, estudando apenas uma vez por semana. Em comparação, fiquei minha infância inteira aprendendo inglês, com a ajuda da escola e de um cursinho particular, e meu inglês só ficou perfeito mesmo porque fui morar nos Estados Unidos. Isso é normal de acontecer”, conta a escritora Renata Ventura.
“O inglês é uma língua linda, sensacional, mas, como todas as línguas nacionais, possui várias exceções gramaticais, além de diversas complexidades de pronúncia e escrita, de modo que, se você não morar por alguns anos em um país que fale inglês, seu inglês dificilmente será tão bom quanto o de um nativo da língua”, diz. “E isso deixa as relações internacionais muito desiguais. Sempre americanos e ingleses vão ter mais vantagem, por terem aprendido o inglês desde bebês.”
No caso do esperanto, há poucas regras gramaticais e não há exceções. Se a palavra termina em “as”, por exemplo, é um verbo no presente. Se termina em “o”, é substantivo. Em “a”, é adjetivo. E por aí vai. Aprender a pronunciar é simples também, já que cada letra é sempre dita da mesma forma e cada som corresponde a apenas uma letra.
“Desde a primeira aula, o aluno já consegue pronunciar qualquer palavra que lê, e consegue escrever corretamente qualquer palavra que escuta. Os tempos verbais também são aprendidos todos em um dia só: presente, passado, futuro, infinitivo e imperativo. Em cinco minutos se aprende”, diz Renata. Também é uma língua bastante estável, sem termos que existem num país e não no outro. “No inglês todo dia eu encontro uma palavra nova, e nunca vai acabar. No esperanto não tem isso. Se alguém em um canto do mundo cria uma palavra nova, o resto vai reagir. Não pode. Todas as línguas evoluem, se transformam. Mas o esperanto não se transforma, ou se transforma minimamente, porque tem uma comunidade ciente disso, de que é uma língua para todos”, conta Lunazzi.
Saber falar esperanto pode, inclusive, ajudar a aprender outras línguas — algo como a flauta doce no aprendizado de música: uma vez que você sabe tocá-la, passar para outro instrumento é mais simples. “A grande dificuldade de falar inglês, francês, ou mesmo espanhol, é conseguir pensar fora da língua materna. Com o esperanto é muito mais rápido”, diz Cid. “É rápido de conseguir fluência, de conseguir pensar fora do português. Uma vez que você domina essa técnica, consegue adaptar pra outra língua. Se você dominou o inglês facilmente você aprende francês. O problema é que começar com o inglês dá mais trabalho que com o esperanto.”
Segundo Rafael Zerbetto, que trabalha na China no site de notícias em esperanto “El Popola Ĉinio”, no país algumas escolas usam o esperanto como língua para ajudar a aprender o inglês com bons resultados. Na Inglaterra há um projeto parecido, o Springboard to Languages, que ensina esperanto em escolas para que as crianças entendam como a linguagem funciona. “O pedagogo alemão Helmar Frank fez estudos sobre experimentos realizados em dezenas de países com o uso do esperanto como língua propedêutica: estudantes foram separados em dois grupos, um que estudava esperanto e depois outra língua estrangeira e outro que estudava somente a língua estrangeira ao longo de todo esse tempo e percebeu-se, em todos os experimentos, que o grupo que aprendia primeiro o esperanto dominava melhor a outra língua, mesmo tendo-a estudado por menos tempo”, diz Rafael.
LÍNGUA SEM ESTADO
Aprender esperanto não significa deixar de lado outras línguas, como o inglês — o esperanto não foi criado para ser o único idioma do mundo todo, e sim um segundo (ou terceiro, quarto…) que todos soubessem falar. “Pra quem está interessado, tento mostrar como o esperanto pode ser útil em viagens, por exemplo, mas nunca desmereço a importância de aprender inglês também, é claro. Por estar no meio acadêmico, sei que o conhecimento do inglês é essencial, mas o problema é parar o aprendizado de línguas por aí. Aqui no Brasil a gente tem muito pouco conhecimento linguístico sobre a diversidade, e, como linguista, eu valorizo o aprendizado da maior quantidade de línguas possível”, opina Karina Oliveira, mestranda na USP sobre esperanto e pós-graduanda em Interliguística na Universidade Adam Mickiewicz, na Polônia, que dá aulas em esperanto.
“Hoje, aprender inglês é certamente muito importante, especialmente do ponto de vista profissional, e seu aprendizado não deveria ser exatamente desestimulado, pois aprender qualquer língua é extremamente enriquecedor. Por isso mesmo, a atual realidade do inglês não precisa ser vista como uma barreira ou um desestímulo à realidade do esperanto”, concorda Fernando Maia Jr., diretor financeiro da Liga Brasileira de Esperanto, para quem é necessário, porém, que se faça alguns questionamentos. “Evidentemente, há um interesse político e econômico para o domínio da língua inglesa, que foi alavancado por um pequeno número de países interessados nisso, uma vez que há poucas décadas a língua francesa já funcionava como língua franca internacional.”
Para os esperantistas, a língua é também uma forma de dominação e o inglês é uma mercadoria, cuja disseminação favorece os países que o têm como idioma. “É a neutralidade do esperanto a maior qualidade do idioma. É uma língua que não tem dono. O esperanto não é dos norte-americanos, nem dos espanhóis, nem dos franceses, nem dos russos. O esperanto é de quem o aprende. Não dá vantagem a nenhuma cultura sobre as outras, nem coloca as pessoas de uma nação acima das pessoas de outras nações. Nenhuma língua nacional pode ser verdadeiramente internacional, porque sempre vai oferecer vantagens para um lado, favorecer um lado, em detrimento do resto do mundo”, opina Renata.
O domínio do inglês faz, por exemplo, com que exista uma desigualdade entre falantes nativos e não nativos, ou mesmo nativos de fora dos Estados Unidos — segundo Rafael Zerbetto, na China professores de inglês das Filipinas, onde o inglês é uma das línguas oficiais, ganham metade do que um americano. Também faz com que os outros países do mundo estejam mais propensos a receber a cultura anglófona, aumentando seu consumo de filmes, programas de televisão e música em inglês — mais lucro para países em que se fala a língua.
[olho]”Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto?”[/olho]
“Em 2005, a Universidade de Genebra liderou uma pesquisa sobre qual seria o impacto da adoção de uma língua neutra, como o esperanto, na União Europeia. A conclusão é de que a UE poderia economizar cerca de 25 bilhões de euros por ano”, diz Fernando Maia Jr. sobre o “Relatório Grin”, elaborado pelo professor suíço François Grin. Se todos falassem esperanto, por exemplo, não se gastaria nada com tradução. Ainda segundo o estudo, a Inglaterra ganha 17 milhões de euros ao ano com o inglês — graças a pessoas que vão lá estudar, venda de livros e economia nas escolas por não terem que ensinar uma língua estrangeira. “O que poderia explicar o lobby tão forte pela manutenção da língua inglesa como atual língua franca e, de algum modo, um lobby contra a ideia do esperanto”, afirma Fernando.
Para Karina, por outro lado, o esperanto é e não é uma língua completamente justa — já que isso talvez seja impossível. “Ao longo dos últimos anos, estudando um pouco mais sobre ciências sociais, fico me perguntando se, de fato, o esperanto seria neutro… Digo, a língua em si e a ideia como um todo são ótimas, mas se ela conquistasse sucesso, quem controlaria sua evolução? Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto, por exemplo? Em resumo, concordo que o esperanto é uma solução linguística melhor do que o inglês para a comunicação, mas não vejo como poderia haver uma língua internacional sem dominação político-ideológica…”
VOLTA AO MUNDO EM UMA LÍNGUA
Por ser uma comunidade pequena, os esperantistas são bastante próximos — vários entrevistados se conheciam, embora tenham sido localizados por meios diferentes. “É meio inadmissível eu ir pra algum lugar, por exemplo, e não levar o contato de pessoas que falem esperanto lá. Se você vai pra Munique — fui recentemente –, chegando lá você tem uma recepção, um sujeito que mora lá e vai ter satisfação em te encontrar, vai te levar pra passear”, conta Emílio. Existe um site, chamado Pasporta Servo que é como um couchsurfing para esperantistas — se você vai a algum lugar do mundo, consegue encontrar alguém que fale esperanto para sair com você ou mesmo te hospedar. “Isso é extraordinário porque, desse jeito, os esperantistas acabam conhecendo pessoalmente a vida cultural e familiar das pessoas do país que está visitando”, diz Renata. Há inclusive casos em que organizações esperantistas pagam passagens, providenciam itinerários e hospedagens para os visitantes.
Karina, por exemplo, conta que tudo que aconteceu em sua vida nos últimos cinco anos foi por causa do esperanto. “Parece história hollywoodiana, mas eu sou literalmente uma menina do interior que teve a sorte grande de viajar de graça pra outro país. Minha família não tem muito dinheiro, e por mais que eu tenha conseguido passar no vestibular e estudar numa universidade pública, não tinha muitas perspectivas de fazer viagens internacionais”, diz, sobre seu curso na Polônia. “Minhas viagens são todas subsidiadas por doações financeiras de outros falantes de esperanto, e o curso em si (que custa cerca de 800 reais por semestre), é pago por uma instituição dos EUA, chamada Esperantics Studies Foundation.”
Na faculdade de Letras da USP, onde faz o mestrado, Karina diz que o esperanto não é visto com bons olhos. “Eu ouvi muitas vezes, ao longo da graduação, que não valia a pena estudar uma língua planejada — e morta, porque muita gente põe a mão no fogo pra afirmar que ninguém fala esperanto hoje em dia… Tive alguns obstáculos pra conseguir ser levada a sério como pesquisadora”, conta. Hoje, diz que a aceitação é maior que em 2014, quando começou o mestrado, mas que ainda vê olhares descrentes em suas apresentações em congressos na universidade. “Apresentei meu trabalho algumas vezes em outras universidades e a recepção foi boa, o que fez com que eu ficasse com a impressão que na USP os linguistas são mais avessos ao assunto do que em outros lugares, mas não tenho dados suficientes pra afirmar isso com certeza absoluta.”
Embora a língua ainda seja pouco conhecida no Brasil, os esperantistas são otimistas. “Cada vez mais os jovens estão se empolgando com a ideia de mudar o mundo, e o esperanto aparece cada vez mais como uma iniciativa moderna e entusiasmante, que eles querem muito aprender. Eu costumo postar sobre o esperanto uma vez por semestre em meus perfis no Facebook, por exemplo, e sempre que posto, consigo pelo menos 500 e-mails de jovens interessados no curso. Já mandei o curso por e-mail para mais de 4 mil jovens e adultos, em poucos anos”, conta Renata, que usou o esperanto em seu livro “A Arma Escarlate”.
No site Duolingo, que dá cursos de línguas, o esperanto para inglês tem mais de 470 mil adeptos (ainda não há versão para português). Para falantes de línguas latinas, o curso online é realmente bem simples — em alguns dias já se tem boas noções de como o esperanto funciona.
Na opinião de Renata, toda mudança importante leva tempo para ser implementada — as pessoas demoraram anos para começar a colocar cinto de segurança no banco de trás dos carros, ela diz como analogia. “A humanidade é assim. Demora para reconhecer boas ideias, que facilitariam a vida de todos. É normal. Isso atrasa um pouco o avanço da humanidade, mas fazer o quê?”, afirma. “Aqui no Brasil mesmo há um projeto de lei a respeito de incentivar que o esperanto seja ensinado, para quem quiser, nas escolas… Enfim, está mudando. Aos poucos está mudando.”