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‘Mundo Cão’: violência e um pouco de futebol

Lázaro Ramos é vilão com risada maquiavélica em filme cheio de reviravoltas.

Antes da sessão de “Mundo Cão” para jornalistas começar cada um recebeu um papel que pedia: por favor, não deem spoilers para os leitores. Parece um pedido esquisito. Não contar demais de uma história sem aviso e estragar a experiência de quem quer ver um filme é que nem lavar as mãos depois de ir ao banheiro: tem gente que não faz, mas é senso comum. Na coletiva de imprensa, realizada logo depois da exibição emSão Paulo, percebe-se o porquê do panfleto. Quase nenhuma das respostas dadas pela equipe do filme, que estreia na quinta (17), pode ser usada numa reportagem sem que alguma reviravolta da história seja revelada.

Dirigido por Marcos Jorge, de “Estômago” (2007), o filme mostra as repercussões do encontro entre Santana (Babu Santana), funcionário do centro de zoonoses, e Nenê (Lázaro Ramos), que cria cachorros para aterrorizar quem atrapalhar seu negócio de máquinas de jogo em bares. Quando um de seus cachorros escapa e vai parar em uma escola, Santana e seu parceiro capturam o animal e o levam para o centro. Pela lei, se em três dias o dono não aparecer, o cachorro é sacrificado. Mordido na bunda pelo cachorro, o colega de Santana tem pressa para dar o fim no cão assim que o prazo termina, e o animal acaba por morrer minutos antes de Nenê chegar para buscá-lo.

Até então, Santana levava uma vida sossegada com os filhos, João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), e a mulher, Dilza (Adriana Esteves), uma evangélica que vende calcinhas sexy — mas não de enfiar na bunda — pelo bairro. Depois de conhecer Nenê e entrar num confronto tenso com ele, acaba a paz. Santana chama o dono do cachorro de animal, e, como vingança, Nenê sequestra João, começando um jogo de gato e rato entre os dois no qual tabuleiro vira algumas vezes. Não dá pra contar mais nada. Como diria Marcos Jorge, é um filme cheio de “truquinhos do diretor”.

A história nasceu de uma obsessão de infância do cineasta pelo homem da carrocinha e de sua vontade de falar sobre amor entre pai e filho. Ainda quando fazia “Estômago”, o filme foi ganhando forma. Não à toa Babu Santana interpreta Santana: quando os dois filmavam juntos o longa de 2007, anos atrás, Marcos pensava em seu protagonista como “um cara bonachão, de coração muito bom”, como Babu.

O papel veio a calhar, diz Babu. “Foi um filme que me confortou. Eu tinha acabado de perder minha mãe, foi uma ação que não permitiu minha cabeça de se desmotivar. Segurou muito minha onda e minha autoestima”, diz ele sobre a experiência. “O Santana foi lindo. É a figura mais humana com quem me deparei. Como na nossa vida, alguma atitude que a gente toma ou alguma coisa em que a gente tropeça pode mudar tudo.” Depois de Babu, foi a vez de Lázaro entrar no projeto. “Eu me senti à vontade pra convidar qualquer ator brasileiro que eu sentisse no nível que eu queria. E o Lázaro foi escolha quase que natural. Ele é um dos maiores atores brasileiros”, afirma o diretor, questionado sobre o fato de seus dois personagens principais serem negros.

“Não escolhi esses dois caras por eles serem negros. Escolhi porque eles são dois dos melhores atores brasileiros. Depois eu fui fundo na questão black, porque desde que eu fiz o roteiro a música estava impregnada no personagem do Santana, que é baterista”, continua o cineasta. “A família tem esse tom de pele lindo que representa fundamentalmente o Brasil. Até nas minhas publicidades — sou diretor de publicidade — tenho o costume de colocar muita gente negra. Acho que isso é um valor. Eu procuro a verdade. Como o Brasil é um país com muita gente misturada, eu sou misturado, quase todos nós somos misturados, acho natural que o cinema reflita isso. É curioso que não faça e que esse seja um filme que de certa forma se diferencie dos outros por esse motivo. Esse não deveria ser um motivo.”

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Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação
Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação

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Para Lázaro, a motivação foi poder abordar um tema em que pensa muito, mas não entende: a vingança pelas próprias mãos. Também diz ter se sentido pronto, pela primeira vez, para interpretar um vilão (com direito a risada maquiavélica e tudo). “Sempre fugi um pouco desse tipo de personagem. E em ‘Mundo Cão’ me senti preparado, achei que era o momento certo pra fazer um personagem muito diferente de mim, muito impulsivo, mais apaixonado por futebol e por cachorro do que por seres humanos. Exatamente o oposto de mim”, diz. “Tentei investigar como o ser humano consegue chegar ao limite por esses dois motivos.”

O amor de Nenê por cachorros e o Palmeiras trouxe duas grandes dificuldades para o diretor. A primeira foi trabalhar com os animais. “Eu me meti numa enrascada nesse filme, porque você começa a escrever o roteiro dizendo ‘cachorro ataca, cachorro é preso, cachorro foge’ e cada uma dessas palavras que você coloca no roteiro dá um trabalho infernal”, lembra. “É muito mais fácil treinar o cachorro pra ser simpático do que pra parecer agressivo sem ser agressivo.” Cada plano tem um truque, diz, como uma corda que manteve o cachorro parado na marca apagada na finalização. Foram 12 diárias com cachorros e 12 noites não dormidas, diz ele. Apesar do trabalho, Marcos é grato aos cães, “verdadeiros atores”, que são citados pelo nome nos créditos finais depois dos atores humanos. “O cachorro é um pouco a metáfora. Eles me permitem passar agressividade sem que gere um filme violento.”

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Babu Santana em 'Mundo Cão'. Crédito: Divulgação
Babu Santana em ‘Mundo Cão’. Crédito: Divulgação

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Segundo desafio: o futebol. Em uma das cenas — que aparece no trailer, então tudo bem falar dela –, Nenê leva João, filho de corintiano, ao estádio para ver o Palmeiras e um plano sequência mostra a sensação do menino de chegar à arquibancada pela primeira vez. Outra cena daquelas que você coloca no roteiro e depois causam dor de cabeça, lembra Marcos. “É o plano mais difícil do filme, um plano sequência feito com duas câmeras separadas, fundidas na finalização. Ali tem 3D, 2D, drone, steadicam”, conta, acrescentando que a cena levou meses para ficar pronta. “[Foi] essa sensação de ir ao estádio pela primeira vez que eu quis passar e quis fazer com plenitude. Inventei um plano que depois me deu muito trabalho pra fazer, mas acho que passa essa energia do estádio.”

Mas futebol é um penduricalho. O tema principal do filme fica claro logo no início, quando os dois protagonistas se enfrentam no centro de zoonoses. Por que Santana não disse pra Nenê que o principal responsável pela morte do cachorro era seu parceiro? Há, em primeiro lugar, um elemento de lealdade à corporação. “Ele se sente ofendido como profissional. O trabalho dele é caçar cachorro. A carrocinha que a gente usou, que nos foi emprestada pelo centro de zoonoses de São Paulo, tinha furos de bala na traseira. Os caras andavam pela cidade e levavam tiros. Os laçadores de cães são uma categoria profissional vituperada. No entanto, nos anos 70 e 80 eles erradicaram a raiva no Brasil. São pessoas que fazem seu trabalho. Não é culpa deles. Eles têm orgulho do trabalho deles, fazem um trabalho útil para a sociedade”, diz. “O Santana toma essas dores porque é da natureza dele. Ele é o cara que toma a frente, que tem a pegada de defender.”

É também mais que isso. Tanto a cena quanto o filme falam sobre a escalada da violência e a dificuldade em identificar onde ela começa — esse sim o ponto central da história. “Uma hora você não sabe mais por quê, você não entende mais por que começou aquilo tudo. O fato é que aconteceu o que aconteceu, não interessa se eu tive ou não tive culpa”, diz Babu. Marcos concorda: “O que se diz é mais importante do que o que originou a discussão. Ontem, na rua, eu vi um guarda e um ciclista brigando fisicamente, numa discussão que começou com um bate-boca e num momento um dos dois pegou um martelo de uma construção. Me lembrou muito essa discussão. Começa por um motivo meio banal, as pessoas dizem coisas erradas e de repente aquilo é mais importante, a falta de paciência. Isso é a violência que a gente vive hoje”.

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