Logo no primeiro episódio de “Mr. Robot”, a serie deu uma mostra de que estaria um passo à frente da realidade: o hacker Elliot, interpretado por Rami Malek, força o namorado de sua psicóloga, que é casado, a terminar com ela. A ameaça: mostrar para a mulher seu perfil no site de traição Ashley Madison. Meses depois a chantagem não valeria nada, já que um grupo real de hackers liberou os dados de milhões de usuários do serviço.
Em tempos em que fotos de celebridades nuas são roubadas de seus celulares e computadores e da divulgação de dados do Ashley Madison, faltava uma série sobre a fragilidade da privacidade na internet. Como a criação de Sam Esmail, outras séries recentes têm colocado em primeiro plano algo importante na vida, mas secundário até então na televisão: a tecnologia. E não de um jeito completamente fora da realidade, como total ficção científica, e sim trazendo o tema para a atualidade. Falam de como a tecnologia influi no dia a dia, de seus prós e riscos.
O tema central é o mesmo, mas são séries bem diferentes. Tem uma sobre o desenvolvimento dos computadores nos anos 1980 (“Halt & Catch Fire”); outra mais futurista, sobre o que aconteceria se máquinas super modernas substituíssem humanos em quase tudo (“Humans”); uma comédia sobre uma start-up no Vale do Silício (“Silicon Valley”); tem até o “Além da Imaginação” da era das redes sociais, que mostra o lado assustador da internet (“Black Mirror”). E “Mr. Robot”, a mais atual de todas, sobre um grupo de hackers idealistas.
Pergunte a alguém a razão do sucesso de seu livro/filme/programa de TV e a resposta, via de regra, vai seguir o mesmo roteiro. O primeiro instinto é dizer algo como “não sei” ou “se soubesse a fórmula, estaria rico”. Depois vêm alguns chutes. Teve química no elenco, o roteiro era in-crí-vel, o público se identificou e por aí vai. Não tem diagnóstico certeiro. Mas a conclusão quase sempre gira em torno de uma observação singela: produzimos a coisa certa na hora certa. Lançada no momento errado, uma série maravilhosa pode se perder no meio da massa — só em 2014 foram exibidas mais de 370 séries nos Estados Unidos (constatação óbvia de hoje: é mais de uma por dia no ano).
O que o sucesso dessas séries tem em comum é justamente o timing. A britânica “Black Mirror”, de 2011, é um bom exemplo. Um pouco mais antiga que as outras, era elogiada pela crítica, mas pouco conhecida pelo público. No Brasil, era exibida pelo pequeno canal I-Sat, fora dos principais pacotes da televisão a cabo. Na TV americana, idem. Quando o Netflix começou a exibir os episódios iniciais da série, virou um sucesso (ainda que meio cult) nos Estados Unidos. Os resultados foram tão bons que o próprio Netflix vai produzir novos capítulos da série.
A cada episódio — todos são independentes uns dos outros — a série mostra o lado negro de uma tecnologia. No primeiro episódio, por exemplo, uma popular figura da nobreza britânica é sequestrada e, como resgate, os bandidos pedem para que o primeiro-ministro faça sexo com um porco ao vivo na TV. Com a pressão das redes sociais o político se vê numa encruzilhada: ou não obedece, ela morre e a reputação dele acaba ou… é melhor ver para crer.
Charlie Brooker, criador da série, diz ter tirado inspiração da “loucura” da vida real. Hoje, pensou, fazemos coisas que há poucos anos seriam consideradas malucas, como conversar com o seu celular e ter seu desempenho como dançarino avaliado por um videogame. “Se a tecnologia é uma droga, quais são os efeitos colaterais?”, disse ao jornal inglês “The Guardian”. Sua série fala tanto do conforto quanto do desconforto que a tecnologia traz. “O ‘black mirror’ [espelho preto] do título é aquele que você acha em toda parede, em toda mesa, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, de uma tela, de um telefone.”
Na televisão tradicional, “Black Mirror” não deslanchou. Foram feitos menos de dez episódios, exibidos até 2013. No ano passado, quando a série já estava no Netflix americano, houve um especial de Natal com Jon Hamm, o Don Draper, de “Mad Men”. Agora ela pode voltar, acompanhada por outras séries sobre tecnologia. E num serviço de vídeo sob demanda, conectado à internet, um dos temas da série. O sucesso foi uma questão de timing.
BOOM
No ano passado estreou talvez a mais popular das séries de tecnologia, “Silicon Valley”, indicada a dois Emmy de melhor série de comédia — o prêmio deste ano será entregue no domingo (20) — e a um Globo de Ouro. Nela, Richard é um programador em uma grande empresa da internet e desenvolvedor um aplicativo de música que envolve um super algoritmo, disputado por dois empresários poderosos. Diferente das outras, fala de tecnologia com humor, brincando com os milionários do Vale do Silício.
Também do ano passado é “Halt & Catch Fire”, uma “ode à tecnologia” segundo Melissa Bernstein, coprodutora-executiva da série. Ambientada nos anos 1980, acompanha um ex-executivo da IBM que monta uma equipe para descobrir como foi produzido o principal computador da empresa e disputar uma fatia no mercado. A época foi escolhida, segundo Bernstein, porque é o ponto de partida para tudo aquilo que temos. E embora não se passe nos dias de hoje, fala de questões ainda atuais, como a dificuldade de ser mulher e trabalhar no ramo.
Em abril, a produtora afirmou que como a ciência não é bem representada na televisão, é um bom tema para seriado. Era verdade, mas neste ano vieram mais duas produções sobre tecnologia. Enquanto “Halt & Catch Fire” fala do passado, “Humans” olha para o futuro. Na trama, que estreou no fim de junho na TV americana, robôs super sofisticados de aparência humana passam a substituir as pessoas em todo o tipo de tarefa. A história começa quando Joe compra uma dessas robôs para ajudá-lo a cuidar da casa na ausência da mulher, Laura, que viajava a trabalho.
Quando ela volta, percebe que a máquina é bem mais eficiente que ela para as tarefas domésticas — e que o marido está contente demais com a nova funcionária. Seu medo é que o robô, que dá mostras de ter sentimentos, tome seu lugar na família. Primeiro problema. Uma das filhas de Laura, Mattie, também não é das mais empolgadas com a novidade. Se os robôs fazem tudo melhor do que um humano, por um valor bem menor, como ela vai arrumar um emprego? Seu medo é ser substituída não na família, mas no mercado de trabalho.
Falar de robôs vivendo entre humanos não é novidade, mas “Humans” trata da questão de um jeito com o qual podemos nos identificar mais do que vendo “Os Jetsons”, por exemplo. Não é um futuro em que as pessoas vestem roupas prateadas, carros voam e pílulas substituem comida. É um mundo como o em que vivemos, mas no qual a tecnologia é tão desenvolvida que o homem fica obsoleto. Segundo estudo da Universidade de Oxford do ano passado, 47% dos empregos dos Estados Unidos correm risco de serem automatizados nas próximas duas décadas. “Humans” fala de temores reais.
HACKERS, 20 ANOS DEPOIS
De todas as séries do gênero, a mais impactante é “Mr. Robot”, dona da impressionante nota de 98% no site agregador de críticas Rotten Tomatoes. À tecnologia a série ainda soma questões sociais contemporâneas. O protagonista Elliot não é só um hacker, é um hacker com consciência social, anticapitalista, que quer causar uma reviravolta no sistema financeiro, apagando os registros de dívidas de milhões de pessoas – o que lembra, de certa forma, o clássico filme “Hackers”, que foi lançado há 20 anos.
Ajuda o fato de que a série é, de forma geral, diferente. Não é uma novelona, como “Grey’s Anatomy”. Não tem vampiros, políticos, médicos ou policiais. É uma série inusitada, começando pelos títulos de seus episódios com nomes de arquivos típicos de quem baixa muita coisa por aí, como “eps1.1_ones-and-zer0es.mpeg”. É também bonita de ver. A clássica abertura e a música tema dão lugar a um letreiro retrô com o nome da série. Nem os enquadramentos são padrão: os personagens ficam bastante no canto da tela, às vezes até em segundo plano, enquanto a câmera mostra uma Nova York cinza, bem distante do glamour de “Sex and the City”.
Mas o principal fator do sucesso da série é seu tema. O criador Sam Esmail assumidamente buscou sua trama no noticiário. Para construir seu protagonista, por exemplo, olhou para seu país natal, o Egito, durante a Primavera Árabe. “Fui ao Egito logo depois que tudo aquilo aconteceu e achei muito legal ver todos aqueles jovens bravos com como o país estava, bravos com a sociedade. E a maior arma que eles tinham era o fato de que eram jovens e bravos”, disse à revista “The Hollywood Reporter”. Gostou de ver como eles usavam nessa luta a tecnologia e as redes sociais, mesmos artefatos de “Mr. Robot”.
Para a primeira temporada, deu certo. Sobre a segunda, é muito cedo para dizer. Mas o fato é que Esmail pretende repetir a estratégia e já está conversando com economistas para tentar antecipar o que aconteceria na realidade se os desdobramentos da série fossem verdadeiros. “Espero que deixemos a economia sexy e divertida.”
A televisão é feita de ciclos, alguns mais longos, outros mais curtos. No ano passado, por exemplo, foi declarada a era da comédia romântica — meses depois, quase todas as séries do gênero foram canceladas. Mas, por enquanto, é a hora e a vez das séries de tecnologia. E, dure ou não, é bom reconhecer na televisão um pouco do que se passa do lado de fora.