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Revisitando ‘Gilmore Girls’

Rever a série dez anos depois revela que mocinhas não são tão mocinhas

“Gilmore Girls” não era um sucesso de audiência. Tampouco ganhou muitos prêmios — tem apenas um Emmy, numa categoria secundária (maquiagem), e uma indicação ao Globo de Ouro para Lauren Graham, a Lorelai. Depois de seu fim, em 2007, os principais envolvidos na série não tiveram lá trajetórias de muito destaque — Graham fez a série “Parenthood”, Alexis Bledel, a Rory, fez alguns episódios de “Mad Men” (e pouco mais do que isso), e a criadora Amy Sherman-Palladino não emplacou nenhuma outra série de sucesso. Como o casal Ryan Gosling e Rachel McAdams, “Gilmore Girls” parecia mais uma coisa do início dos anos 2000: foi bom, pena que acabou, as lembranças são carinhosas, mas parece ter acontecido em outra vida.

E então, em janeiro, o Netflix deu uma nova vida à série. Em 25 de novembro, em pleno dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando as famílias se reúnem em casa, serão lançados quatro episódios de uma hora e meia de duração cada sobre a relação entre Lorelai Gilmore, sua filha, Rory, e sua mãe, Emily — o intérprete de Richard, seu pai, o ator Edward Herrmann, morreu em 2014. A estreia dos novos episódios, quase dez anos após o fim da sétima temporada, foi recebida com a festa na internet que faltou a “Fuller House”, revelando uma demanda surpreendente por “Gilmore Girls”.

Não só “Gilmore Girls” não ficou datada — surpreendente para uma série com um número tão alto de referências pop por capítulo — como rever a série dez anos depois é uma experiência quase nova, em que as percepções a respeito dos personagens mudam dramaticamente e de repente você se pega se identificando com os avós da trama. Na série, Lorelai é uma mulher que nasceu em uma família riquíssima e que fugiu de casa aos 16 anos, depois de ter um bebê e se recusar a satisfazer a vontade dos pais casando com o pai da criança. A relação com os pais é praticamente inexistente até que Rory, que sonha em estudar em Harvard e leu Proust quando criança, é aceita numa escola excelente, mas que custa os olhos da cara. Lorelai se vê obrigada a pedir um empréstimo para os pais, que impõem uma condição: para receber o dinheiro ela e Rory devem jantar com eles todas as sextas.

Lorelai e Rory são, como a série desenha pra você entender em vários momentos, mais que mãe e filha: são melhores amigas. “Gilmore Girls” pinta as duas como pessoas maravilhosas. Rory é uma gênia, leu mais livros do que é humanamente possível em seu período de vida, é paciente, educada, amada por todos os garotos que colocam os olhos nela. Melhor aluna na escola, aceita em todas as faculdades, editora do jornal universitário, contratada para cobrir as eleições presidenciais assim que ganha seu diploma. Lorelai faz monólogos como ninguém, dispara piadas e referências para todo lado, sabe costurar como uma profissional, é excelente no trabalho e querida por todos na cidadezinha em que vive. As duas comem quantidades impressionantes de hambúrguer, pizza e doces e nunca viram um vegetal na vida, mas continuam magérrimas.

Era, pelo menos, a impressão que a série me causou aos 13, 14 anos, quando comecei a assistir à série, e compartilhada pelas amigas na época – “Gilmore Girls” nunca fez muito sucesso com o público masculino. Rory, que começa a série com 16 anos de idade, representava um futuro perfeito no plano teórico: aquele em que você consegue as melhores notas, entra na melhor faculdade, mantém uma ótima vida social, tem tempo para ler e ver todos os filmes do mundo e parece destinada ao sucesso (como Rory, eu queria fazer ciência política e virar jornalista — plano que virou realidade). Lorelai, por outro lado, representava tudo o que era mais divertido naquela época. Era o futuro perfeito no plano prático, ela podia não ter a trajetória mais convencional, mas tinha personalidade e se saía de qualquer encrenca na base do humor e do carisma.

Sob esse ponto de vista, Emily e Richard são o outro lado da moeda: caretas, intransigentes, difíceis de lidar, incapazes de entender o espírito livre que é Lorelai. Julgam todas as escolhas da filha, desaprovam os namorados menos abastados de Rory, querem controlar a vida das duas a todo custo. Na adolescência, Lorelai é a mãe dos sonhos, aquela que tenta te convencer a faltar na escola e dar festas quando ela viaja. Emily é a mãe cheia de expectativas e cobranças, que não entende quem você é. Numa disputa entre Emily e Lorelai como mãe do ano não havia nem competição — Lorelai era a mocinha e Emily, a vilã.

Rever “Gilmore Girls” como uma pessoa adulta é uma experiência bem diferente e é um choque descobrir que nem Lorelai nem Rory são tão legais assim. Lorelai é o sonho dos adolescentes porque se comporta praticamente como uma. Nas suas próprias palavras, ela é flexível, mas só quando as coisas funcionam do seu jeito. Seus problemas de relacionamento com os pais são bem mais culpa dela do que deles: quando eles se oferecem para pagar a faculdade de Rory, ela se ofende; quando Rory se diverte ao passar uma tarde com o avô, ela sente ciúmes. O fato de ela passar anos tratando a hipótese de Rory estudar em Yale, onde os avós estudaram, como se fosse o pior cenário do mundo é irracional para dizer o mínimo. O mesmo vale para sua relação com o pai de Rory: ela passa a série inteira dizendo que ele é ausente, mas quando ele pede sua autorização para que a filha vá visitá-lo nas férias ela nem repassa o convite porque as férias da filha são prioridade dela.

Emily, Lorelai e Rory em novo episódio de "Gilmore Girls"
Emily, Lorelai e Rory em novo episódio de “Gilmore Girls”

Falemos de Rory, então: em vez de ser a criatura mais perfeita a pisar na Terra, como todos os personagens da série fazem questão de afirmar e reafirmar constantemente, ela é uma das adolescentes mais mimadas da televisão. Quando o dono do jornal em que ela faz um estágio lhe diz que ela não tem o que é preciso para ser uma grande repórter, qual sua atitude? Roubar um barco e largar a faculdade. Quando ela não consegue um emprego no New York Times logo após a formatura, ela não consegue ficar feliz pela amiga que conseguiu as vagas dos sonhos. Quando vê Jess, de quem ela gosta, com outra pessoa, ela joga ovos no seu carro mesmo que ela mesma tenha namorado. Quando ela transa com um ex-namorado que agora é casado e a mãe critica, o que ela diz? “Mas ele era meu primeiro.” Com o passar dos anos, inclusive, a voz de Rory vai ficando cada vez mais infantil e cada vez mais você pensa que, nossa, ainda bem que seu futuro não era esse.

Vendo a série numa outra idade, é mais fácil se identificar com Emily. Ela tenta criar Lorelai da maneira que acha melhor e, apesar de não entender que a filha não é como ela, tenta se aproximar o tempo todo e é constantemente recebida com quatro pedras na mão. Emily está longe de ser perfeita, mas, do jeito dela, ela tenta — é mais do que se pode dizer de Lorelai em boa parte da série.

“Gilmore Girls” envelhece bem porque é uma série sobre relacionamentos, principalmente entre mulheres (Richard, apesar de ser um dos protagonistas, é menos central que Emily). Em diferentes épocas da vida, é possível encontrar ali diversas camadas, interpretar as coisas de outra forma. Também por isso novos episódios são bem-vindos: dá vontade de saber que rumo a carreira de Rory tomou (segundo relatos iniciais, não está sendo fácil pra ela arrumar emprego como jornalista), a quantas anda sua vida amorosa, como está o relacionamento de Lorelai e Luke, o dono da lanchonete da cidade, como Emily se adaptou à vida sem Richard. É diferente de “Friends”, por exemplo, que é uma série sobre uma fase da vida — não faria sentido fazer episódios agora, com os personagens beirando os 50 anos. “Gilmore Girls” tem algo bem mais difícil de conseguir do que um prêmio no Emmy (afinal, vivemos em um mundo em que Jon Cryer ganhou um troféu por “Two and a Half Men”): longevidade.

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