A nova temporada de Black Mirror chegou na última sexta-feira no Netflix. Para discutir de forma mais detalhada — com spoilers! — cada um dos episódios do seriado distópico, decidimos fazer uma conversa dedicada a cada um deles. Um episódio por dia, seis dias seguidos.
Leo Martins: Estamos de volta! Depois de um breve intervalo (fiquei doente, faz parte), voltamos para discutir mais um capítulo de “Black Mirror”, o quarto, “San Junipero”. O capítulo conta a história de duas personagens, Kelly e Yorkie, que se conhecem numa festa, se divertem, sentem um clima rolando… Acompanhamos o desenrolar dessa relação até descobrirmos que, na realidade, as personagens são apenas avatares virtuais de duas pessoas vivas, duas senhoras de idade próximas da morte. O capítulo é cheio de nostalgia, referências e consegue discutir diversos assuntos em uma hora. Por esses motivos, eu já posso dizer que ele foi meu favorito da temporada – enfim, um capítulo realmente marcante. E você, Fê? Gostou também? Podemos entregar a coroa?
Fernanda Reis: Sim, também foi meu favorito. Achei a história bem bonita e, talvez pela primeira vez vendo “Black Mirror”, terminei o episódio contente. A história também é bem bolada, não me lembrou nenhum episódio antigo (tem uma temática parecida com “Be Right Back”, falando de como prolongar a vida ou como a tecnologia pode mudar nossa relação com a morte) e foi me surpreendendo. Demorei para entender onde a história queria chegar, apesar de que o episódio dá várias dicas, como a escolha da música “Heaven Is a Place on Earth” (a Salon fez um guia legal de referências assim que não dá pra pegar na primeira vez assistindo). Do que você gostou mais no episódio?
Leo: A lista de motivos para gostar é longa, mas meus detalhes preferidos: você só começa a desvendar de verdade o mistério do capítulo na metade do capítulo, apesar de um ou outro sinal. A construção da primeira meia hora, fazendo o espectador se importar com a relação, é muito bem feita, e quando o elemento futurista/distópico entra em cena, é tudo bem natural e funciona muito bem. O apelo nostálgico funciona muito bem e achei todas as escolhas – trilha sonora, roupas, cores, detalhes de cultura pop – muito acertadas. E esse apelo também funciona como uma forma de metalinguagem ou até mesmo crítica à nostalgia: Kelly, no mundo real, chega a falar com desdém sobre isso. E é uma história de uma hora que consegue discutir sexualidade, imortalidade, futuro, legado e várias outras questões de forma inteligente e bonita. A atuação das duas atrizes, Mackenzie Davis e Gugu Mbatha-Raw, também merece destaque. Sobre o final contente, quero voltar ao assunto já já, porque não sei se ele é tão bondoso quanto parece…
Fernanda: Quando comecei a assistir fiquei com um pouco de medo de que o episódio fosse ser algum tipo de versão de “A Casa do Lago”, aquele filme com a Sandra Bullock e o Keanu Reeves em que eles dividem a mesma casa em tempos diferentes, sabe? Tenho um pouco de pé atrás com viagem no tempo em histórias, acho que muitas vezes é um recurso mal utilizado. Mas achei a ideia muito boa, é um pouco da tecnologia do especial de Natal, em que você consegue clonar a consciência da pessoa e colocar num outro lugar, mas usada para o bem. O dilema da Kelly é muito bem construído: será que ela deveria seguir o marido e a filha, apesar de achar que não existe nada após a morte, ou quebrar essa promessa antiga e viver esse novo amor? Mas queria voltar logo à questão do final, porque estou curiosa pra saber o que você achou. Li umas teorias por aí e quero saber se é disso que você está falando…
Leo: Bom, a gente já avisou que tem spoilers, né, mas não custa avisar de novo. A partir daqui, muitos spoilers sobre o final.
Minha impressão sobre as cenas finais: apesar de parecer um final feliz em que as duas estão juntas e felizes em San Junipero, fiquei com a sensação de que a Kelly não foi. O jeito que ela pede a eutanásia é misterioso, mas dá a entender que ela quer descobrir o que há do outro lado — San Junipero ela já conhece bem. Em nenhum momento entre a briga feia entre as duas e o retorno inesperado há um sinal de que ela mudou de ideia. E quando a Yorkie vai buscá-la na versão virtual, tudo me pareceu estranho: ela não fala nada, elas saem para curtir, fim. Mas e se o sistema não criou uma Kelly para a Yorkie ser feliz na sua versão de “eternidade”? Não seria bom para a empresa que cuida da cidade virtual ter uma pessoa infeliz depois de uma briga feia daquelas do outro lado, imagino. Tô viajando demais ou faz algum sentido?
Fernanda: Era mais ou menos essa a interpretação que eu tinha visto. Mas eu interpretei o final da maneira mais óbvia mesmo. Eu acho que Kelly não acredita que haja alguma coisa depois da morte, mas ela tinha se preparado para não ir para San Junipero com o marido dela porque ele tinha feito essa escolha acreditando que ia se encontrar com a filha deles. Ela não achava isso, mas fez essa escolha por uma questão de lealdade, talvez. Então não achei que ela queria descobrir o que tem do outro lado. Também não sei se o sistema tem essa capacidade de criar pessoas. Porque se fosse assim você ia poder criar sua própria cidade, trazer seus amigos (a Kelly poderia trazer o marido e a filha, por exemplo). Acho que você vai pra San Junipero e convive só com quem está lá, por isso a Yorkie insistiu pra Kelly ficar. E bem no fim aparece aquela máquina colocando duas luzinhas uma do lado da outra, ou algo assim, dando a entender que tem duas pessoas novas ali juntas em San Junipero. Talvez tenha sido uma pegadinha dos roteiristas… Mas depois do terceiro episódio e seu final horrível, acho que prefiro acreditar no final feliz também hahaha.
Leo: É, talvez seja melhor mesmo acreditar que o final foi assim, apesar de achar que nos dois casos o episódio continua bonito, cada uma com sua crença e seus motivos para ir ou não para San Junipero. Uma frase da Kelly, em tom irônico, me marcou bastante: “uploaded to the cloud… sounds like Heaven”. Agora, eu gostei bastante dos detalhes de ambientação de cada ano: o começo, em 1987, mostra o Max Headroom na televisão, e essa é uma das histórias mais bizarras que eu já vi; a Alanis marcando os anos 90; a melhor música da Kylie Minogue marcando 2002 – e os fliperamas evoluindo junto. Esses detalhes junto com as cores, os neons, as roupas, a fonte mudando em cada “uma semana depois”, tudo isso ajuda na hora de acreditarmos e discutirmos se, bem, se tivéssemos essa opção, será que iríamos querer viver nessa vasta eternidade? É possível não querer ir para San Junipero depois de testá-la por cinco horas, todo sábado?
Fernanda: Achei legal que você reparou nas fontes, porque só fui reparar nisso depois que um texto me chamou a atenção. Mas gostei muito de todo o cenário mesmo, eles conseguiram marcar a mudança de tempo sem obviedade — e essas músicas todas que você apontou têm tanto relação com o ano quanto com a temática do episódio (“não consigo tirar você da cabeça”, por exemplo). Eu acho possível, sim, não querer ir para San Junipero, tanto que aquelas pessoas que vão no Quagmire piram pra conseguir sentir alguma coisa. Depois de um tempo deve ser bem tedioso viver aquela vida, frequentando aquela mesma boate, encontrando as mesmas pessoas, morando sempre naquela cidade festeira. Também acho válido o dilema da Kelly, porque essa vida eterna que prometem pra ela não tem as pessoas que ela mais amava. Vale a pena encarar uma eternidade dessas? Vivendo uma vida que não é aquela que você passou sua existência toda construindo? Eu acho que não iria pra San Junipero, na verdade. Você ia querer viver essa eternidade?
Leo: De jeito nenhum! No fim, há uma discussão quase religiosa sobre eternidade. É importante lembrar que o Eterno é, na verdade, aquele que não só existe para sempre, como sempre existiu, sem início ou fim. A eternidade oferecida em San Junipero é um fragmento de realidade, um punhado de doses nostálgicas para que você não se sinta sozinho, nem eliminado no mundo – o medo de desaparecer que muitos sentem, sendo que no fim todos viemos ao mundo para morrer e, quem sabe, descobrir que essa eternidade sem início ou fim realmente existe. Viver em pedaços esparsos de felicidade não me parece uma boa eternidade.