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Vida longa ao CD

Primeiro, a má notícia para os CDs: segundo o último relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, divulgado em abril do ano passado, as vendas de discos físicos caiu 8,1% em 2014. O Brasil não é exceção à regra: se em 2013 a venda de CDs rendeu 185,7 milhões de reais, no no ano seguinte o valor foi 14,4% menor: 159 milhões (no período anterior a queda havia sido semelhante: 15,5%). Mas números não são tudo na vida, e apesar de o CD já ter vivido dias melhores, há uma parcela de fãs que não abre mão do formato, que não tem a aura retrô do vinil, nem a praticidade dos serviços de streaming.

Por influência da família, pelo prazer de ter o encarte na mão, por achar que o som é melhor ou pelo prazer de ver a coleção crescer, os motivos citados para explicar o apego ao formato criado nos 1980 variam. O bancário Emílio Pacheco, 55, é desses que não abandona o barco: desde que começou a comprar CDs, em 1989, nunca mais trocou de formato. “Sou fã de carteirinha do formato compact disc, não vejo nenhuma vantagem nos demais”, conta o dono de uma coleção de cerca de 4.000 CDs. Para ele, o disco é um objeto de coleção, um item de valor, como um selo para um filatelista.

Assim como deixou os vinis de lado, não aderiu às novas formas de escutar música. “Não acredito que o streaming já tenha igualado a qualidade de som de um CD em um bom equipamento. Existe, isso sim, a opção de baixar um arquivo de áudio de alta definição. Mas continuo preferindo o CD original, com um encarte caprichado.” A opinião é compartilhada por Rodrigo Alves, dono de 2.700 CDs e da loja Choke Discos. “A qualidade é bem melhor que qualquer streaming”, diz. Além disso, ter um disco físico em mãos faz com que ele não dependa de celular ou internet pra ouvir música. Mesmo assim, todos os amigos estranham, conta.

Preferência por CD não significa, porém, que serviços de streaming não tenham nenhuma utilidade. Rodrigo até usa e diz que adora, mas não encontra nem em Spotify, Google Play ou Deezer “bandas obscuras e coisas mais independentes”. Pela praticidade, Emílio às vezes recorre ao YouTube. “Se já estou no computador e me dá vontade de ouvir uma música nos fones, é mais rápido procurar no YouTube para rodar na hora”, conta. “Mas jamais deixaria de comprar um CD só porque posso ouvi-lo no YouTube. Acho sensacional poder ouvir álbuns inteiros lá, mas para decidir se compro o CD ou não.”

“Os CDs são caros, sempre foram caros, e não dá pra comprar tudo que desperta seu interesse sem antes ter uma espécie de ‘controle de qualidade’, que só é possível pela audição experimental”, concorda Cesar Sousa, 36. Em reuniões com amigos também é mais prático colocar logo uma playlist no YouTube do que ficar trocando de CD toda hora, concede. “Ideal para momentos em que a gente precisa dar atenção pra muita gente, em casa. Para os momentos mais introspectivos e intimistas, os discos e CDs mandam”, diz. Em sua opinião, CDs são menos supérfluos que downloads. “Você, de fato, tem a obra em mãos, e ela se torna a trilha da sua vida daquele momento. Ela fica na estante, você passa e fica admirando, vez por outra, todos os seus CDs e discos, e eles trazem em si um fragmento da sua vida. É uma relação muito mais profunda, uma relação duradoura com a arte, com o artista.”

NA ESTANTE

A preferência por comprar discos na internet ou em lojas físicas é dividida entre os fãs de CDs. Emílio, por exemplo, prefere comprar seus discos pela internet, mesmo que exista a loja física — nesse caso, vai até o local buscar a encomenda — e recorre também a sites estrangeiros, como a Amazon.

“Achei engraçado quando, há muitos anos, uma pessoa da família me perguntou, bem impressionada: ‘Você compra disco todos os meses?’. Todos os meses? Uma vez por semana, no mínimo! Até hoje é assim”, diz Emílio. “Sempre que vou a lojas como Saraiva e Cultura, dou uma olhada pra ver se não tem nada que me interesse. Raramente saio de mãos vazias.” O cuidado com os CDs é tão grande que para ouvi-los no carro ele faz cópias. “Jamais carrego originais comigo.”

O biólogo Fernando Alvarenga, 43, por outro lado, acha o carro o melhor lugar para ouvir seus CDs — em casa, prefere os vinis. Ouvir discos físicos, diz, é um costume. “Curto pegar o CD, olhar o encarte, ver a arte.” Só no mês passado comprou 30 CDs, e mais 12 vinis. Diz que não tem muitos, “uns mil” CDs. “Por ter sido meio nômade quando mais novo vendi muitos CDs e LPs”, conta. Colecionar CDs é coisa de roqueiro, opina ele. Um público fiel que não para nunca de escutar aquelas músicas. No caso do pop, “em que intérpretes por vezes alcançam sucesso com um hit e depois somem, esse disco fatalmente um pouco e depois some”.

Não é o caso, por exemplo, do DJ Cristiano Pereira, 28, que cita entre seus favoritos CDs de Sandy & Junior, Legião Urbana, Laura Pausini e Silva. Já da geração YouTube e Spotify, Cristiano diz que sempre tem alguém que estranha seu hábito de comprar CDs pelo menos uma vez por mês, de preferência em lojas físicas — sua coleção tem por volta de 400 exemplares. Como os outros fãs de CD, diz que nada substitui o encarte com fotos e letras e o prazer de ter algo físico nas mãos. “Não quero só ouvir a música, quero me relacionar com ela de outra forma.” Mesma resposta que dá Tiago Rolim, 38, dono de aproximadamente 5.000 CDs. Questionado por que ainda compra os discos, diz: “Minha esposa vive me fazendo essa perguntas! Virou um vicio já. Acho chato ouvir musicas em celular, ou no computador. Até escuto, mas não gosto. Gosto de ter o encarte, ler as letras, essas coisas do século passado”. A imensa maioria de amigos, aliás, nem sabe que ainda se vendem CDs. “Sério isso.”

Dimas Marques, 26, vive situação parecida. Seus amigos já abandonaram a mídia, com exceção de uma amiga que já “está mais pra lá do que pra cá”. Ao responder quantos CDs integram sua coleção, dá a resposta precisa: 768, todos catalogados em um arquivo de computador. Ver seus discos elencados na estante lhe dá uma sensação de “real” que o digital não consegue. “Sempre gostei do formato físico, de ir à loja, procurar e achar algo legal, de pegar, olhar o encarte, ter uma estante organizada.” Usa, sim, o YouTube para ouvir música, mas para descobrir coisas novas e acrescentar à sua lista de compras — que inclui fitas cassete, que considera mais difíceis de adquirir. Todo mês ele adquire pelo menos um disco novo. Só lamenta o pouco número de lojas físicas em sua cidade, Maceió, Alagoas.

NA FAMÍLIA

Para a estudante Jéssica Mar, 23, dona da página A Menina que Colecionava Discos, comprar CDs é também algo afetivo: foi uma tradição que começou com seu pai e aumentou depois que ele morreu. “Desde criança eu gostava de ir nas lojas com meu pai e ficava olhando os encartes, mas eu sempre comprava algo mais infantil”, lembra. “Esse foi um dos legados deixados por meu pai: paixão pela música. Cresci vendo ele comprar CDs e discos, aumentando a coleção, cuidando com muito carinho e me ensinando tudo sobre cada artista e música. Quando ele faleceu, não tinha como deixar de lado. Minha paixão aumentou e eu continuo cuidando e aumentando a coleção deixada por ele. Sei que ele está feliz vendo que continuo levando seu legado em frente.”

Jéssica coleciona música em qualquer formato: CD, vinil, fita cassete, DVD. É também eclética na forma de comprá-los: faz pela internet, em sebos, lojas, troca com conhecidos. Toda semana costuma comprar pelo menos um CD de sua lista. “Já me falaram que é estranho eu ficar nas vitrines olhando os CDs, pois geralmente o pessoal já vai na intenção de comprar algo específico. Mas eu adoro ficar olhando, vendo os lançamentos, descobrindo bandas novas, admirando os encartes.”

Ela conta que a maioria de seus amigos adora música, mas nem todos costumam comprar CDs, ressaltando que os preços são elevados. Mas com dois amigos ela costuma levar CDs dos artistas quando vai a shows para que eles autografem. “A maioria leva folha de papel ou alguma foto. Fica nítido que o artista adora ver que compramos algo dele, ou que temos aquele CD em edição especial”, afirma. São os CDs autografados alguns dos xodós de sua coleção. “Mas mais que isso tenho um sentimento muito grande por quase todos que eram do meu pai. Por isso sinto prazer em cuidar e aumentar a coleção.”

NA BALANÇA

O CD tem outro ponto a seu favor: a qualidade do som. Enquanto é consenso que o som de um disco físico é melhor que o de um MP3 baixado na internet (“Eu não tenho um iPod… Eu ainda uso CDs ou discos. Às vezes fitas. Tem um som muito melhor, muito melhor que o digital”, declarou Keith Richards em 2013.), a disputa entre CD e LP é mais acirrada. À reportagem da LA Weekly o ex-engenheiro de som da Philips declarou no ano passado: “Se você medir a diferença, o CD é absolutamente melhor que o vinil. Mas se você disser que a experiência é melhor — como fumar charuto com os amigos –, então faça. Curta fumar charuto com amigos, e beber cerveja e brandy ouvindo a um velho disco. Mas não diga que o som é melhor”.

Segundo o engenheiro de som Bob Clearmountain, quando ele fazia vinis para a Columbia, a gravadora fazia um teste que colocava cada LP em uma vitrola velha e barata, com o objetivo de chegar até o fim sem pular. Caso falhasse, o disco teria que ser mixado de novo. Um som muito baixo ou vocais cheios de som de letra “s”, por exemplo, poderiam fazer com que a agulha pulasse, então seriam menos desejáveis e deveriam ser editados. Uma reportagem de 2014 do site Vox, também investigando qual som é melhor, aponta outras questões e afirma que, se as notas são muito baixas, menos áudio cabe no vinil. Se as notas são muito altas, pode haver distorção. Por isso, na hora da masterização, muitas vezes os extremos eram cortados, deixando a música diferente do que o almejado pelos músicos.

Mas a questão é ainda mais complexa e a LA Weekly acrescenta que todos os engenheiros de som ouvidos pela publicação disseram que não é difícil achar LPs que soem melhor que CDs, já que a qualidade de quem produz cada um pode alterar dramaticamente a posição de cada mídia na balança. Também existe uma questão de preferência pessoal. Muita gente prefere o chiado do vinil e a sensação reconfortante que ele proporciona. Segundo a Vox, isso se deve às mudanças que os engenheiros fazem no som do baixo na hora de produzir o vinil, que acabam agradando esteticamente parte do público, embora o som seja diferente do ao vivo. O fato é que, embora seja comum ouvir por aí que o vinil é superior ao CD, não é bem esse o caso. São experiências diferentes, mas não dá pra dizer que o LP seja melhor em qualidade de som.

NAS LOJAS

Nas paredes da Baratos Afins, a loja de discos mais antiga na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, parte de um acervo de 100 mil CDs dividem espaço com parte de 100 mil discos de vinil, enfileirados por todos os cantos da loja em ordem alfabética — o resto da coleção da loja, presente no local há 37 anos, está em um estoque. O público, conta Carolina — filha do fundador da loja, Luiz Calancas — é variado: tem gente que chega com listas de compras nas mãos e gente que quer buscar algo na coleção — tarefa que pode levar horas. “Dá pra ficar o dia inteiro e não ver tudo.” Alguns, inclusive, são velhos conhecidos.

Como que pra provar a afirmação, entra um cliente fiel, que puxa papo com os vendedores e dá um pitaco na conversa. “MP3 é muito abstrato. É diferente ter o objeto”, diz ele. O papo envereda para o retorno das fitas cassete, mas aí todo o mundo concorda que já é demais. “Eu curtia fazer fitinha, seleção pra dar pras pessoas”, lembra Carolina. “Romântico. Muito romântico”, diz o freguês. Mas ele ressalta, dando mais uma vantagem do CD em relação às mídias concorrentes: com ele ainda dá pra fazer suas próprias coletâneas e dar de presente pros outros. Ele faz até hoje. Romântico. Muito romântico.

Entre os gêneros mais populares, o rock é o maior, responde Carolina sem pestanejar. Principalmente o internacional, mas os nacionais também saem bem. “Nacional a gente tem de tudo. MPB, rock, samba. Mas pra comprar e repor, é menos, porque não tem uma demanda igual de rock”, diz ela. “MPB é muito cíclico. Se você for ver os fãs do Chico [Buarque] de dez anos atrás, talvez metade consome disco. Às vezes o cara já tem tudo. Mas o de rock sempre vem atrás de coisa nova, de coisa que já passou, mas lá atrás ele deu menos importância. Acho que o público do rock é mais fiel ao consumo de disco.”

Não há um tipo específico de cliente em busca de discos físicos na loja — tem gente de todas as idades e todos os gostos. “Desde o moleque que tem a cultura familiar, até aqueles que estão descobrindo esse prazer. Muitos músicos”, conta. Não há som tocando na loja e os funcionários não têm o hábito de dar indicações. “Nem todo o mundo gosta do que eu gosto. É que nem vendedor de sapato, que já traz um monte de opção, mas eu não gosto.”

Quilômetros dali, em Pinheiros, a pequena loja Pops Discos, numa galeria na Teodoro Sampaio, também resiste bravamente — só com CDs, sem discos de vinil. Também rola por ali um clima familiar: enquanto toca a rádio Eldorado, um cliente conversa com o dono da loja sobre o jogo da seleção brasileira da noite anterior enquanto passa os olhos pelos álbuns e escolhe um. Organizados em ordem alfabética, os CDs carregam uma etiqueta com um código. Para os não iniciados, como eu, não faz sentido. Pergunto o preço e me mostram como usar uma tabela que mostra o preço de cada coisa com base nos códigos, “para a próxima vez” que eu for lá. Definitivamente um clima família — e, empolgada, levo uma caixa com cinco CDs do Gil que não fazia parte dos meus planos.

Aberta há 36 anos, a Pops começou como uma loja de vinil — hoje não os vende porque são muito caros. Lá, o que mais sai é música nacional e rock, e a maioria dos clientes já vai à loja com o que quer em mente, depois de olhar na internet, conta Ademir Manzato, fundador da Pops. O público, diz ele, tem faixa etária acima dos 40. Depois concede: 30. Mas não mais novos do que isso. Pelo tamanho do espaço, vender CD é mais fácil que vinil. Além do que, diz Ademir, vinil é muito caro. Se a moda pegar de vez e ficar mais acessível, quem sabe.

Na Barato Afins, Carolina conta que nos últimos anos houve uma queda na venda de CDs, acompanhada de um aumento na venda de vinis. “A gente sentiu uma diferença quando surgiu a internet. Muita loja fechou aqui por causa disso, as pessoas começaram a baixar música. Não precisava mais da fitinha pra trocar música. Não são nem os serviços de streaming [que fizeram a diferença no movimento], quando a internet ficou mais fácil pra todo o mundo deu uma caída, sim. Principalmente nas lojas que só vendiam CD”, diz ela. O disco físico, opina, terá vida longa. “Sempre vai ter mercado. Ninguém deixa de fabricar selo, por exemplo, sempre vai ter comércio pra isso. Colecionador… Quando o movimento começou cair e a gente pensou em abrir outra coisa, a gente pensou que já estava no ramo e sempre vai ter gente nostálgico. Eu sou suspeita. Mas nostalgia mexe com o emocional e sempre vão buscar coisas do passado.”

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Uma década a 45rpm

Em uma manhã chuvosa, fim do verão de 2004, eu assinava o certificado de reservista na junta militar do Viaduto Jacareí, no centro de São Paulo, e entrava oficialmente na idade adulta, embora sem muita convicção. Longe dos estudos, sem trabalhar e tensionado pela imaturidade, eu sentia no alto dos meus dezoito anos o peso do rito de passagem. Mas essa não era a única metamorfose latente. O rock, especialmente punk e hardcore, que ditara meu comportamento desde a adolescência, influenciando a forma com que eu percebia o mundo e me via perante ele, já não me bastava. Uma necessidade quase física me empurrava a novos ritmos e melodias.

Naquele dia, enquanto aguardava o burocrático processo, rodava no meu discman um CD que eu baixara na internet por influência de um primo, com clássicos do reggae. Gênero que, até então, eu praticamente desconhecia e que há um par de meses absorvia completamente minhas atenções. Ainda que eu não fosse muito afeito à natureza e viagens místicas. Coisas que, pensava eu, faziam, obrigatoriamente, parte da vida de quem curtia Bob Marley. Apesar do meu próprio preconceito e autocensura, não podia disfarçar que a febre jamaicana tinha me acometido.

Descobri, na velocidade de um modem 56K, mais informações sobre aquele ritmo hipnótico e sua cultura. Bob Marley não era o único mito da pequena ilha caribenha; o reggae era apenas uma das possibilidades dentre as vertentes da música jamaicana; sua origem era urbana, nada tinha a ver com som de cachoeira ou trampos de Durepoxi; e o melhor de tudo: em São Paulo, havia uma festa, bem na Boca-do-Lixo, quando o centro ainda não estava na moda, a Susi in Dub. De quebra, ela era comandada por um DJ japonês, que tocava reggae de verdade, com discos de vinil e caixas potentes. Melhor rolê da cidade, diziam.

O disco dá voltas

Lá, ouvi e vi, pela primeira vez, a destreza de Fabio Murakami, ou melhor, Yellow-P, nas pick-ups. Era uma sexta-feira. Logo ao entrar no local, um forte grave irrompeu no meu tórax. Combinado às intermitentes guitarras, o som formava uma espécie de colchão sonoro que dava um toque inebriante ao ambiente. O DJ de olhos puxados, envolto a uma fumaça branca e densa, soltava pedradas musicais, uma atrás da outra. O chiado dos vinis reverberava nas paredes sem reboco, fuzilando de ricochete os ouvidos de no máximo 100 pessoas, apertadas e em transe, dançando ao sabor daquela que, para mim, era a maior novidade do ano.

Passados onze anos, reencontro o paulistano descendente de orientais em outra situação, dessa vez em sua casa, na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, com o reggae emancipado e atraindo cada vez mais público. A cultura sound system, na forma de coletivos e festas, já não é novidade e se multiplica por todos os cantos. Hoje, é possível curtir música jamaicana, seja qual for a vertente, quase que diariamente, sem exageros. Os discos ficaram mais acessíveis por conta da internet e a capital paulista entrou na rota de grandes nomes da cena, com a vinda de cantores, produtores e DJs, jamaicanos ou não, a exemplo de Lee Perry, U-Roy, Skatalites, Mad Professor, Roy Ellis, Tommy Far East, entre outros. Mas nem sempre foi assim, digamos, fácil. Principalmente para os primeiros que se aventuraram a fazer das vitrolas suas vidas.

Apesar de a cultura sound system e a cena reggae serem populares no Maranhão há algumas décadas, sob o nome de “radiolas”, aqui em São Paulo a coisa se desenrolou apenas na virada do século. Lutar contra a escassez de discos e recursos, a estigmatização do ritmo, além da desinformação do público sobre em que consistiam as festas, eram algumas das missões mais árduas para os iniciantes do negócio. Foi necessário muito empenho para que o status do ritmo fosse aos poucos se alterando.

Influenciado por uma tia que frequentava shows de reggae no início dos anos 90 e que chegou a namorar o baixista do Shabba Ranks, Fabio Murakami, 35 anos, começou sua coleção com CDs, ainda adolescente, e comprou seus primeiros discos de vinil por telefone, de uma loja britânica descoberta através do livro “Rough Guide”. “Aqui não havia discos de vinil de reggae, era mais pop e rock. Em Londres, sim, a loja se chamava Dub Vendor. Liguei e tive a sorte de ser atendido por uma portuguesa. Fiz uma seleção dos produtores que eu mais gostava e deu certo”, recorda-se sobre o início da saga. “Aproveitei que minha tia estava na casa da melhor amiga, na Inglaterra, ela que me trouxe os discos. Ainda me lembro: foram 15 vinis de sete polegadas; Lloyd Parks, King Tubby, Johnny Clark… Coisas que toco até hoje.”

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Yellow P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: Divulgação
Yellow-P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: André Freitas

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Com os discos em mãos e algumas parcerias firmadas, não levou muito tempo para que pintassem as primeiras festas e o pseudônimo, Yellow-P, trocadilho com a ascendência japonesa (Yellow Power). Afinal, “DJ Fabinho” lembrava uma coisa meio rádio FM e festa de praia, tudo o que à época ele queria evitar. O primeiro evento com organização própria, oficialmente, aconteceu no fim de 2001, na Green Express, pico tradicional da comunidade maranhense em São Paulo. Falantes ruins, mais de dois mil cartazes colados à mão, trabalho braçal de divulgação. Ali nascia o coletivo de sound system Dubversão, que alcançaria, anos mais tarde, grande projeção devido às famigeradas noites no Susi, culminando na festa mensal Java, que rola desde 2006, e influenciando as novas gerações de DJs que surgiriam ao longo da década.

Aqueles foram anos de militância. Onde quer que abrisse um espaço para o reggae, lá estaria Yellow-P e o Dubversão. A casa de show KVA — conhecida pelo forró –, uma praça na Lapa e até um acampamento do MST abrigaram suas caixas de som e seus vinis. A convite de uma amiga, para um dia cultural na ocupação, ele foi parar em um acampamento do movimento, perto de Mairiporã, debaixo de uma chuva torrencial. “Essa festa no MST foi inesquecível, legal pra caralho. Fomos muito bem recebidos. No dia, caiu um temporal absurdo e, na cabana onde estávamos, entrava água por todos os lados, o equipamento ficou encharcado. Foi a primeira vez que tomei uma chuvarada na cabeça”, diverte-se ele.

Se o pessoal do MST recebeu a festa de braços abertos, não se pode dizer o mesmo do público clássico do reggae, acostumado às tradicionais versões tupiniquins do roots internacional, feitas por bandas como Tribo de Jah e Planta & Raiz. “Cadê os músicos?”, indagavam. É só um DJ? É instrumental e não tem vocal? O que é isso? A estranheza era tamanha que, no início, nos versos dos flyers das festas, a equipe se prontificava a explicar, como numa cartilha, que dub é um recurso de mixagem das bases do reggae em estúdio, com efeitos eletrônicos, criado nos anos 70. Para Yellow-P, o público do reggae não só não entendeu o que era como virou as costas. E os leigos nem frequentavam, porque existia uma imagem estereotipada do gênero. Algo que o Dubversão em muito ajudou a desconstruir.

De lá para cá, tudo mudou. Se no início, Fabio discotecava com apenas 100 discos, ou menos, hoje ele possui aproximadamente dois mil. Não sabe nem dizer. Além disso, tocou em eventos como a Virada Cultural, e recepcionou a vinda de muitos artistas estrangeiros ligados à cena ao Brasil. “Realmente, os gringos descobriram São Paulo. A cena hoje é grande e completamente diferente. Não tínhamos pretensão alguma naqueles primeiros anos, mas sonhávamos com isso. Quem pensou que um dia teríamos dois artistas jamaicanos tocando na mesma semana?”, questiona, fazendo referência a junho deste ano, quando apenas alguns dias separaram as apresentações de Johnny Osbourne e Danny Red.

As facilidades, de certa forma, impuseram uma realidade não programada à ideia de crescimento. Atualmente, é possível encontrar discos de reggae até na feirinha da Teodoro Sampaio. Vendedores na internet disputam compradores ávidos por montarem seus próprios sistemas de som. Há lojinhas espalhadas por todos os lugares, mas este fácil acesso, diz ele, diminuiu a pesquisa e a profundidade necessárias. Tudo está mais superficial. “Há 10 anos, ninguém sabia o que era dub, hoje muitos pensam que conhecem tudo”, comenta o DJ, que enxerga o panorama com certa desconfiança: “Tá bizarro. Claro que o crescimento, a popularização, isso tudo é bom, mas existem poréns. Todo mundo, agora, quer ter um sound system, mas ser DJ, seletor, não é apenas colocar o vinil pra rodar; há um conceito por trás, e, para atingir este nível, exige estudo e dedicação”, sentencia Yellow.

Do outro lado do atlântico

Em 2005, Yellow-P já fazia sucesso tocando dub em São Paulo, mas foi na cidade portuária de Santos que um grupo de skinheads – adeptos da tradicional cultura nascida no fim dos anos 60, mescla da troca entre jovens ingleses e imigrantes jamaicanos, que nada tem a ver com a cena neonazista inventada a partir da década de 80 –, inaugurava uma nova fase na cena sound system regional. Nada de dub ou reggae dos anos 70: o que fazia a cabeça dessa rapaziada eram os antigos sons da ilha, chamados de “oldies”, a música jamaicana produzida até 1969. Ou seja, o ska, o rocksteady e o early reggae. “Entrei em contato com a cultura sound system através das subculturas skinhead e punk. Já frequentávamos festas de reggae em São Paulo, mas nada do que a gente gostava era tocado. A gente curtia as músicas dos anos 60 e foi por isso que as coisas começaram a acontecer”, conta o DJ e produtor musical Felix Barreira, um dos fundadores do que viria a ser o coletivo Reggay 420, um dos mais atuantes do sound system paulista na atualidade.

O Gordão, como é conhecido, fala pausadamente e quase que de maneira enciclopédica. Lembra-se da primeira festa, a Bomboclat, ocorrida no clube Atlético, no canal 3. Um ônibus inteiro de skinheads paulistanos descendo a serra, sentido à Baixada Santista, para curtir a velharia jamaicana, que, naquele momento, ainda era tocada em stereos domiciliares e através de CDs. As informações e os vinis foram chegando aos poucos, as festas cresceram, o reconhecimento do público, também. Ele, que é designer, mas segue na luta tentando viver dos eventos e de música, chegou a ser colunista da revista Sexy por sua pesquisa em relação aos ritmos jamaicanos.

Convidado para tocar fora do país, mostrou a força do sound system brasileiro nos vizinhos Argentina, Paraguai, Colômbia, e também na Europa, quando esteve na Espanha e na Holanda. Deve tudo o que tem conquistado à música jamaicana, que considera como a sua escola. O sucesso e os frutos colhidos, no entanto, não chegam nem aos pés do que lhe aconteceu em 2010, quando atravessou o atlântico para materializar algo experimentado só nos mais loucos devaneios.

Com quase dois mil discos na coleção, decidiu ir buscar na fonte a matéria-prima de seu trabalho. Foi na Jamaica, em dez dias de viagem, acompanhado por outros parceiros de cena, que Felix conseguiu seus discos mais importantes e vivenciou situações impagáveis. Experimentou a sensação de estar perto de seus ídolos jamaicanos, de aprender com eles, e, sobretudo, entender que, por maior e mais significativo que seja o trabalho do seletor e DJ, nada pode superar o que os verdadeiros artistas fizeram, e o que a música jamaicana representa.

[citacao credito=”Felix Barreira” ]Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae[/citacao]

“Teve época de eu ser mais marrudo, entrar na dança, falar e me achar demais. Isso aconteceu, sim. Mas hoje, especialmente depois do rolê que fiz em 2010, só agradeço o reggae por ter entrado na minha vida. Foi uma felicidade conhecer tudo isso. Uma graça. Fizemos as primeiras festas, mas perto dos caras, do que eles construíram, a gente não é nada. Só devemos a eles. Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae. Os amigos que eu fiz, aqui e lá fora, são por causa da música. A cultura sound system, acima de tudo, é amizade e amor pelo som, não status”, confessa, com voz embargada, a lição aprendida.

Na capital Kingston, além de acrescentar algumas dezenas de discos ao seu repertório, Felix conheceu ícones como Derrick Harriot, Stranger Cole e King Stitt. Presenciou, inclusive, os caras na ativa, ali, na sua frente, soltando a voz. Visitou lojas e estúdios, a exemplo da mítica Randys, na North Parade 17, onde Peter Tosh gravou “Whistling Jane”, o Gaylads, “I Love The Reggay”, e onde muitos outros clássicos do early reggae foram registrados. Caminhou por ruas e lugares que até então conhecia somente através de canções.

Lá, notou logo que as principais raridades não se encontravam em lojas oficiais, mas na mão do cidadão corriqueiro. Muitas vezes são parentes que estão se desfazendo da coleção de um ente já falecido; uma viúva vendendo os discos de um marido ou um filho se livrando das velharias do pai. Eles descobrem, de boca em boca, que grupos de turistas estão à procura de discos antigos e vão até os hotéis com caixas de vinis. Sem cerimônia, batem à porta e os oferecem. Para eles, é apenas um disco senil de ska ou rocksteady. Para colecionadores, como o Gordão, a chance de adquirir uma joia rara, um tune para o baile. E foi numa visita assim, de um vendedor comum, que Felix fez valer a visita.

Felix Barreira. Crédito: Divulgação
Felix Barreira. Crédito: Divulgação

Era logo cedo quando um deles apareceu no hotel para oferecer sua mercadoria. E a rapaziada toda acordou para garimpar as preciosidades entre caixas e mais caixas. Menos Felix, que dormiu até mais tarde, e chegou atrasado ao leilão. “Fiquei até puto que os caras não me acordaram.” Esbaforido, foi metendo a mão no primeiro arquivo que viu e, no terceiro disco zapeado, encontrou uma raridade. “Tea House From Emperor Rosko”, do Dice The Boss, de selo amarelo, prensagem original de 1970, alcançava a bagatela de 300 libras esterlinas na internet e, ainda por cima, era a música que representava a Moonstompers Crew, a turma skinhead de Santos. Sem titubear, falou: “Eu quero esse”. “Não, não, eu disse para ninguém mexer nessa caixa”, retrucou o vendedor, visivelmente irritado. “Eu acabei de chegar, você não falou nada pra mim.” Argumentação vai, conversa vem, e o acordo foi selado.

Se a sorte bateu à porta de Felix, ela o brindou por mais de uma vez na mesma viagem. Voltando para o hotel depois de um dia de andanças, os brasileiros, por insistência de um deles e a despeito do cansaço que sentiam, resolveram entrar em uma praça onde parecia acontecer um show. Era O show. Ainda que apenas poucas pessoas o assistissem. Ali, viram monstros da música jamaicana, ao vivo e de graça: Ken Boothe, U-Roy e Dennis Alcapone, este último após oito anos sem se apresentar em sua própria terra natal. “A gente parecia louco, os dez brasileiros mais animados que todo mundo. A gente tava tipo chorando. Os caras olhavam aquilo como um evento na praça, não era uma virada cultural ou algo do tipo, era um show na praça. E foi uma coincidência termos entrado ali”, conta, surpreso como no dia.

Conseguiu, inclusive, tomar umas cervejas com os ídolos – para falar de música, das origens da cultura, trocar experiências e até ser agradecido por um gesto de solidariedade. Enquanto bebia com Stranger Cole, Felix deu um trocado para uma moça, uma pedinte de rua que o abordou de repente. “Não foi muito que eu dei, talvez alguns poucos centavos de dólares.” Mas a ocasião tornou-se especial segundos mais tarde. “O Stranger me pegou pelo braço e disse: ‘Isso o que você fez é lindo, filho, e Deus vai te dar em dobro’. Porra, eu fico arrepiado até de contar.” A cena de humildade lhe arrebatou. Felix teve a plena consciência da dádiva de estar ali. Compreender que os caras são os protagonistas da história e o resto, apenas meros expectadores. Sem eles, nada haveria. Ainda bem.

A novidade de meio século atrás

Ao mesmo tempo em que a internet auxiliou na difusão dos ritmos jamaicanos em São Paulo, impulsionando o colecionismo e habilitando novos ouvintes, houve um período em que o Youtube, e suas sugestões de artistas similares, não reinava soberano. A música por streaming ainda estava a galáxias de distância do panorama atual e o garimpo musical era feito através de programas pouco intuitivos, como o Soulseek, e divulgado por canais hoje tidos como obsoletos. Quem não se lembra das comunidades do Orkut e os infindáveis blogs repletos de mp3 à disposição? A época de ouro dos Ipods Classic e da máxima “quanto mais espaço, melhor”. Foi justamente nesse contexto, da era arqueozóica da digitalização musical, no qual veio à luz uma das mais importantes contribuições da internet para a cena sound system e a música jamaicana em geral: o blog You And Me On A Jamboree.

No ar desde o dia 31 de março de 2006, o blog surgiu da interação entre alguns usuários da comunidade “Skinhead Reggae”, até então a mais efervescente do gênero no Orkut, e não demorou muito para que se tornasse referencial da música caribenha na rede. Aqui e lá fora. Todos os dias por volta de 40 e 50 mil visitantes, metade eram brasileiros e a outra metade formada por estrangeiros – principalmente vizinhos latinoamericanos –, baixavam freneticamente as coletâneas compartilhadas em mp3 e liam as resenhas que contavam um pouco sobre a história das canções, dos ritmos e da cultura sound system.

“Até o surgimento da comunidade ‘Skinhead Reggae’ do Orkut, o público era disperso. Existia quem gostasse de música jamaicana, os ‘oldies’, ska e rocksteady, por exemplo, mas essas pessoas não se conheciam. Eu mesmo passei muito tempo isolado, e minha vontade era interagir mais, conhecer gente, falar sobre o assunto. Foram anos reprimidos”, conta o jornalista Greg Fernandes, 28 anos, um dos primeiros colaboradores do You And Me, como era carinhosamente chamado o blog. Sobre o início, ele recorda: “Lembro quando o Sono, ele fez o blog, postou a página na comunidade. O primeiro post se chamava ‘Skinhead Generation’ e tinha uma coletânea para baixar. Eu achei sensacional e mandei uma mensagem para ele, dando sugestões de conteúdo, porque eu queria participar. De tanto que eu enchi o saco, virei colaborador, no segundo dia de existência do blog”, gargalha.

A diligência foi tanta que resultou em sucesso. Com a disponibilização das músicas para download – agora era possível escutar o que antes apenas se lia sobre – e a organização e concentração da informação em somente um único espaço, sedimentou-se um nicho de público voltado, exclusivamente, para os “oldies”. E foram necessários 21 meses para que o You And Me extrapolasse os limites virtuais da internet e se convertesse em festa.

“A galera começou a se questionar por que não havia festas de som jamaicano dos anos 60 em São Paulo e os pedidos para fazermos uma viraram constantes”, relata Greg. Os primeiros encontros ainda eram rústicos, sem vinis, e tinham a finalidade de divulgar o som, ocupar a lacuna de carência entre os assíduos visitantes do blog e o mundo real. Até que o Alex Jurássico, da Jurassic Sound System, entrou em cena. “Eu e o Sono fomos a um baile em Osasco, em 2007, e lá conhecemos um seletor, com vários discos que curtíamos no case, no meio daquele monte de dub e roots. Convidamos ele, que já conhecia o blog, para fazer uma festa só de ‘oldies’, ele topou na hora. Aprendemos muito com ele, e aí entramos de cabeça no lance de comprar discos, de se aprimorar.” A eles somaram-se Luiz e Neggo. A trupe estava completa.

Pouco mais de dois anos depois das primeiras postagens, um convite vindo da MTV levaria o blog a se hospedar no site da emissora e ingressar na onda dos podcasts. “A MTV, no fim das contas, culminou mais em desaprovação do que resultado. Uma galera, que também havia conhecido a música jamaicana recentemente, começou a nos criticar, porque existe um orgulho de o negócio ser alternativo. Mas, pra mim, sempre vai ser um nicho. Se é moda, para alguém, vai durar um ano. Se alguém se identificar com a coisa, mesmo que sejam 10 pessoas entre 100, é o mais importante”, salienta.

“Para nós, da Jamboree, nunca foi trampo. Eu sempre tive meu trabalho, os caras também. Achar que as festas dão lucro é ingenuidade. Nessa época, comprávamos tunes, como ‘This Life Makes Me Wonder’, do Delroy Wilson, por dois mil reais. A festa apenas sustenta o hobby”, conclui Greg, sem antes acrescentar o significado de todo essa devoção: “Meu sonho sempre foi divulgar ao máximo a música jamaicana. Que todo mundo saiba, pelo menos, o que é rocksteady, o que é ska. Não precisam virar fãs. O mais importante, para mim, é que a música seja conhecida”.

Com o surgimento dos novos modos de se consumir música, o blog, que sofreu o primeiro baque em 2011, depois de seu conteúdo ser apagado da rede por completo, definhou. Já os bailes, não. Após mais dois anos sem atividades e para comemorar o aniversário de oito anos da primeira festa, a You And Me terá uma edição especial, em dezembro. Uma nova oportunidade para que Greg transforme seus anseios em realidade.

Lugar dela é na vitrola

Na cena reggae, como em todos os outros segmentos sociais, não é diferente: as mulheres ainda lutam para ter voz. Elas colam aos grupos nos bailes, dão coro à cultura e, da mesma forma que eles, ajudam a construir a cena. Mas admitir o protagonismo delas, ah, isso é outra coisa. Quando o assunto, por exemplo, é comandar as vitrolas, é inegável perceber que elas não são tantas.

Renata Aguiar Fernandes, 32 anos, é uma das representantes de um movimento em ascensão. Chef de cozinha em um restaurante em São Paulo, ela se desdobra para dar conta de uma rotina atarefada, que, além da gastronomia, envolve criar um filho. Ela é DJ e seletora de música jamaicana, considerada a primeira entre as mulheres paulistanas. Seu som é o dancehall, um ritmo dançante e acelerado, o mais popular entre os jovens da ilha. E o gênero, controverso mesmo lá – existem acusações de homofobia nas letras –, se confunde com o pseudônimo Rude Sistah, adotado por ela em 2008, quando começou a colecionar seus primeiros exemplares.

Renata. Crédito: Divulgação
Renata Aguiar. Crédito: Groovin Mood/Divulgação

Atualmente, ela comanda as picapes de uma das festas mais cultuadas da cidade, Dance Hall Fever, que rola uma vez por mês em uma casa do Centro. O sucesso de suas seleções é inquestionável, mas ainda assim alguns pontos a incomodam. Numa conversa por telefone, ela me explicou, laconicamente, o motivo de não haver tantas garotas discotecando: “Tem muito cara machista na cena.” Contou que, apesar de ter mais amigos homens que mulheres, poucos foram os que lhe deram uma oportunidade. Ainda hoje, escuta que não sabe tocar, e sente seu trampo ser menosprezado. Chegou a ser convidada para se apresentar em um baile e, na hora de acertar o cachê pela noite, veio à tona a frustração. Só os DJs homens foram pagos. Ela, a única mulher, foi ignorada.

“Não é só colocar disco para tocar, eu pesquiso, estudo, crio meu conceito. Cheguei a ouvir que estavam me fazendo um favor, e eu cobrei a pessoa, que no fim acabou me pagando”, disse. Ter de chegar a este limite é péssimo, mas nem de longe isso a desanima. “Dá mais força para continuar. Você não tem ideia o tanto de mensagens que eu recebo no Facebook, de mulheres e de homens. Me elogiam na cena, que eu sou guerreira, mãe, mulher, DJ. Tiram dúvidas sobre como começar a coleção. Para mim, esse reconhecimento vale muito”, confessou, antes de lembrar um causo recente, enquanto ria: “Fui tocar em Brasília faz uns 3 meses. No aeroporto, do nada, uma mina me gritou: ‘Hey, Rude Sistah!’. Eu nem sabia quem era. Mas eu curto muito isso, troco ideia com todo mundo, sou povão”.

Questionei também Andrea Soriano, 29 anos, seletora e DJ brasiliense radicada em São Paulo, sobre a força das mulheres dentro da cultura sound system. Atenta, ela, que é da safra influenciada pelo trabalho seminal da Rude Sistah, desabafou: “O machismo existe no rolê e no mundo. Cada dia mais temos sentido nossa força e temos batalhado pelo nosso espaço. Muitas seletoras estão produzindo suas próprias festas e eventos, com isso estamos fomentando uma cena mais feminina e incentivando as próximas gerações, abrindo caminhos.”

Pensando na abertura de caminhos citada por ela, me vi sentado na fila do serviço militar, com o offbeat invadindo meus fones de ouvido e revolucionando minha breve vida de 18 anos. Depois de uma década, tudo já se modificou ao redor, até que rápido demais. O gosto pela música jamaicana continua. O resto é questão de fase.