Com o celular desligado na bolsa, é impossível precisar quanto tempo dura a primeira cena de “O Silêncio do Céu”, escolhido como o melhor filme do Festival de Gramado pelo júri da crítica e vencedor do prêmio especial do júri neste mês. Mas a sensação é de que, logo na abertura, Diana, personagem de Carolina Dieckmann, é estuprada por uma eternidade. Não há nenhum tipo de introdução. Se há trilha sonora, não se ouve. O filme de Marco Dutra, que estreia na próxima quinta, dia 22, começa com Diana imobilizada por dois homens, que se alternam na hora de estuprá-la, enquanto uma faca é apertada contra seu pescoço. Ela grita e chora enquanto a câmera fica bem perto de seu rosto, alternando entre mostrar sua reação e aquilo que ela está vendo. A sensação de assistir àquilo é horrível.
Como o espectador, seu marido, Mario (Leonardo Sbaraglia, de “Relatos Selvagens”), também vê a cena, como aprendemos logo na sequência. Novamente o público é obrigado a assistir a Diana sendo estuprada, dessa vez do lado de fora do quarto, acompanhando o ponto de vista de Mario, que chegou em casa mais cedo e, ao ver a cena, não faz nada para interromper. “Pra mim, a questão do ponto de vista era essencial. Por isso eu tratei a primeira cena com duas formas de encenação”, disse Marco Dutra a jornalistas depois da exibição do filme. “Isso teria que contaminar o filme todo, essas variações de ponto de vista. Pra incomunicabilidade dos dois pontos de vista ficar palpável, ficar forte”, continua. “Os dois estão vivendo uma situação de trauma, mas não é o mesmo trauma, apesar de ser o mesmo evento. A consequência não é a mesma pros dois personagens e era muito importante ter acesso a ambos. Por isso era importante cada um ter seu espaço, seu momento, e pegar as rédeas de seu ponto de vista.”
Depois que Diana é estuprada, ela toma um banho, prepara o jantar, e não conta a Mario o que aconteceu durante o dia. Ele também não conta a ela que viu o que aconteceu, e tenta arrancar dela uma confissão ao mesmo tempo em que vai atrás dos culpados. Apesar de o diretor afirmar que era uma preocupação retratar o ponto de vista dos dois, é mais uma história sobre como o estupro afeta Mario do que sobre as consequências para a Diana, um defeito comum em produções em que há violência contra a mulher, muitas vezes um acontecimento para dar o pontapé na história de um homem. “O Silêncio do Céu” começa e termina com a perspectiva de Diana, mas o verdadeiro narrador da trama é Mario, um homem cheio de medos e fobias tentando enterrar o que aconteceu e salvar o relacionamento, que já andava em crise. Até os 45 do segundo tempo só vemos Diana sob seu olhar — sempre de longe, no chuveiro, pela janela da loja onde trabalha. No terceiro ato, lá para o final do filme, ela assume a narração.
Segundo o produtor, Rodrigo Teixeira, o estupro é um assunto que “tem que ser discutido, todo o mundo é contra a violência doméstica”. Mas o que o atraiu no projeto foi a questão do silêncio entre o casal e a reação de Mario vendo a mulher sendo violada por dois homens e não fazendo nada. “Aquilo era uma premissa, independente da violência da cena, que eu não tinha visto em nenhum lugar. É tão forte que a gente tem um agente de vendas que comercializou o filme fora que fala pra mim que se esse filme feito em língua inglesa, ele teria um impacto muito grande”, afirma. Quando o filme foi feito, as conversas no Brasil sobre violência contra a mulher estavam bem mais fortes, e aí os produtores perceberam que o filme geraria ainda mais discussão por isso. “Não gosto de me aprofundar muito pra não entrar num lado político da história, mas eu sou contra a atitude feita pelo personagem da Carolina. Acho que foi extremamente bem retratado no roteiro, pelo diretor, pelos dois atores. Foi um mega desafio pra Carolina, que se entregou pra fazer essa cena.”
O SILÊNCIO
Sbaraglia conta que retratar o porquê de Mario não ter entrado no quarto quando vê Diana sendo violentada foi uma de suas maiores dificuldades. No livro “Era el Cielo”, de Sergio Bizzio, no qual o filme é baseado, está explicado que Mario tem tantas fobias que não conseguia reagir. “No romance está muito bem descrito. Contar isso no cinema, através de imagens, é muito difícil. Isso foi o mais complicado, que me preocupava. Ele queria se meter, mas não podia, afirma. Também foi complicado entender por que Mario não conversou abertamente com Diana sobre o que aconteceu. “Creio que o filme fala disso, como esse drama, essa tragédia que vivem esses personagens, é uma metáfora desse silêncio que termina sepultando uma relação. Terminei encontrando o personagem por aí, tratando de entender isso que não podia ser dito”, diz. “Encontrei o personagem de momento em momento, cena em cena. É um personagem de detalhe. Foi um trabalho muito bonito.”
Sobre filmar a cena do estupro, Carolina diz que quando vê que terá uma cena forte, a primeira coisa que sente é alegria. “Adoro uma cena difícil pra fazer, adoro um desafio.” Só queria fazê-la mais para o fim das filmagens, para se sentir confortável com a equipe — o filme foi gravado no Uruguai e é praticamente todo falado em espanhol. “[Eu queria] que eu tivesse com eles um pouco mais de intimidade pra lidar com aquilo, porque sei que é uma cena difícil, que é um desafio, que apesar de eu ser a única pelada tá todo o mundo um pouco exposto”, conta. Seu desejo não se realizou e ela gravou a cena na primeira semana de filmagem, mas diz que todos foram muito delicados com ela. “Emocionalmente a gente se conectou.”
Quando Carolina entrou no projeto, a ideia era que o filme fosse gravado no Brasil — o personagem de Sbaraglia seria um estrangeiro morando aqui. Por questões de produção a história migrou para o Uruguai e Carolina se tornou a estrangeira da produção, falando em espanhol a maior parte do tempo. “Foi um trabalho muito duro pra mim, porque eu sou uma atriz muito natural. Eu gosto de ir ficando cada vez mais natural. E você ficar natural numa língua que você não conhece exige um trabalho de mesa muito duro mesmo. Eu tive que dissecar o texto e criar uma margem praquele texto pra chegar na filmagem e não me sentir amedrontada diante do texto. Precisei criar uma intimidade maior com o que estava sendo dito”, diz.
Ela não tem muito diálogo, é verdade. Sua personagem fala pouco durante praticamente todo o filme, mas Carolina consegue transmitir bastante mesmo em seu silêncio. Sbaraglia, que tem mais tempo em cena (além dos dois, há poucos personagens de destaque), também é bom e o clima de suspense e tensão dura o filme inteiro. A última cena, como a primeira, é bem silenciosa e a sala de cinema permaneceu assim por bastante tempo — enquanto os créditos passavam, quase todo o mundo presente na sessão ficou sentado em silêncio, sem levantar ou dizer nada.
Mas mesmo que Marco Dutra reconheça que os protagonistas tiveram traumas diferentes após o estupro de Diana e que era importante ter o ponto de vista dos dois, quando o filme finalmente apresenta o lado dela é muito pouco e muito tarde. A situação foi difícil para Mario, mas foi muito mais para Diana, e no fim das contas saímos sem saber muito sobre sua experiência, não importa quão expressivo seja o olhar de Carolina Dieckmann — o silêncio dele é tratado no filme como mais importante que o silêncio dela, mais significativo. Teria sido melhor se fosse realmente uma história sobre o casal, e não só outro filme sobre um homem em crise.