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O retorno de Neville D’Almeida

Neville D’Almeida começa o papo perguntando quanto tempo a entrevista vai demorar. Sugere duas conversas, de 15 minutos cada uma, para não cansar. Sabe como é, não é lá muito confortável falar tanto tempo seguido no celular. Mas logo de cara dá pra perceber que é impossível conversar por apenas 15 minutos com Neville. A conversa vai crescendo, crescendo, indo por caminhos improváveis — passando pelos dois únicos estadistas do mundo, em sua opinião, pela fase pornográfica de Picasso e pela série “Breaking Bad” — até que, quando você vê, já se passou uma hora. Neville também é daqueles que pergunta, como se estivesse numa conversa mesmo, não numa entrevista. Pergunta minha idade, minha opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e não fica satisfeito com uma resposta evasiva. “Quando você vier pro Rio a gente faz um vídeo”, promete.

Diretor de “A Dama do Lotação”, uma das cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, Neville volta ao cinema depois de 18 anos sem lançar um longa, com “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que estreou no dia 28 de abril. O cineasta não mede as palavras para explicar a ausência de quase duas décadas das salas de cinema. “A resposta é: [por causa da] mediocridade e hipocrisia dos produtores brasileiros. Falta de visão, burrice, incapacidade diante dos verdadeiros talentos, que é o meu caso”, diz. Fazer cinema hoje sem fazer parte de panelinhas é praticamente impossível, em sua opinião. “Dá pra fazer, sim, mas os produtores não vão querer produzir e os exibidores não vão querer exibir.”

Segundo Neville, o Brasil é uma “república de filhos”. Só quem é parente de alguém bem relacionado consegue fazer cinema. “Os filhos estão sempre fazendo, fazendo. É uma coisa… Como chama isso? Essa coisa de família, dentro da política?” Nepotismo? “Isso, total. O cinema também é vítima disso.” Sem ter contatos em festivais, por exemplo, é dificílimo de emplacar um filme. “O Festival do Rio é um exemplo de nepotismo total e absoluto. Mais do que isso. Da falta de alternância de poder”, diz. Como dois casos positivos, cita os festivais de Brasília e Gramado, em que há uma rotatividade maior de curadores (“déspotas medíocres”, diz Neville). “Isso é muito saudável pra democracia. Mas aqui no Rio não é assim que se faz. Está há 20 anos a mesma turma. E é a ditadura do gosto. ‘Aqui é o que eu gosto, o que eu acho, o que eu penso.’ A censura acontece através das comissões dos festivais, de uma forma violenta, ditatorial, sem dar nenhuma satisfação pro cineasta. Seu filme não foi escolhido e acabou.”

O hiato terminou graças a um convite do produtor Carlos Alberto de Carvalho, que lhe chamou para fazer um filme baseado num texto do dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “A gente escolheu ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’ pela originalidade de falar de festas em favela”, diz ele. No filme, um grupo de fúteis jovens ricos do Rio de Janeiro aluga uma laje na favela para fazer festas cheias de sexo e drogas pelo fetiche de estar no morro. É um longa bem teatral: poucos personagens, ação que se passa em um único dia, concentrada em pouquíssimos cenários e muitos diálogos carregados de palavrões. Caras menos conhecidas dividem espaço com Bruna Linzmeyer e Chay Suede, em papéis que pouco lembram seus trabalhos em novelas da Globo — ela, uma prostituta que vai às festas atrás de drogas; ele, um cara que troca drogas por boquetes das amigas.

O cineasta Neville D'Almeida. Crédito: Acervo pessoal
O cineasta Neville D’Almeida. Crédito: Acervo pessoal

Mesmo sendo convidado para fazer o longa, a jornada de Neville não fácil nem curta. Foram sete anos desde o início do projeto até sua conclusão, “devido a censura dos editais e da Ancine”, segundo o cineasta. Sem financiamento, o filme demorou a sair. “Eles preferem diretores que fazem tudo politicamente correto. É espantoso”, reclama o diretor.

Se tem algo que Neville não é é politicamente correto. Um dos fundadores do cinema marginal, teve vários filmes censurados na época da ditadura militar. “A coisa mais importante pra um artista é um instrumento chamado liberdade. Eu, numa ditadura militar, numa caretice total, fiz um cinema desses a vida inteira. As consequências foram terríveis. Cinco filmes proibidos, jamais exibidos, falta de dinheiro, frustração, sofrimento, ansiedade. Mas valeu a pena. Não vou fazer o que a censura diz”, afirma. “Vou fazer o que não pode. Outros pensaram de forma diferente. Não faço filme pra puxar saco, pra agradar. Faço o que tem que ser feito porque sou um artista. Até no Vaticano tem o Davi pelado com o pau pra fora. O cinema hoje não tem isso.”

[olho]”Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar”[/olho]

A cruzada contra a caretice, usada para garantir público, é uma coisa que ele leva a sério. Quase não vai ao cinema “pra não ficar mal influenciado, pra não ficar vendo essas porcarias”. “Star Wars”? Careta. “Agora reeditaram ‘Star Wars’. ‘Star Wars’ é uma chanchada. Chanchada é o nome daquela porcaria. E os caras voltaram a fazer. A moda continua anos 70 careta. A caretice continua. Hoje é tudo anos 60 e 70: Batman, Superman, Star Wars. Só porcarias. O mundo está perdido”, diz. “Eles levaram a guerra pro espaço. Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar. Isso é lixo total.” Também não poupa críticas a seriados americanos. “Sei de todos, mas acho todos um lixo, um retrato medíocre da sociedade americana. Mais ainda: são todos iguais.” “Breaking Bad”? Porcaria. Em série americana, diz, só se reafirma a cultura da violência, do “quanto mais escroto melhor”. “Todo cara acaba com um revólver na mão e daqui está matando um, ou por causa de dinheiro ou sexo. Quem faz sexo tem que morrer. É um moralismo.”

Para seu jovem elenco, só elogios, justamente pela disponibilidade em sair da zona do conforto. Bruna foi a única convidada pelo diretor, que já tinha visto alguns de seus trabalhos e ficado impressionado com sua força dramática. “Ela tem 23 anos, mas parece que tem 40 em maturidade, em coragem de viver intensamente um personagem marginal”, elogia. Em sua opinião, muitos atores censuram os próprios personagens e só querem saber de fazer propaganda de sandália Havaianas. “É fácil ficar fazendo novela: abre a porta, fecha a porta, atende o telefone, desliga o telefone. Essas coisas medíocres estão em alta. Atrizes medíocres gostam de fazer propaganda de produtos medíocres mais do que de grandes personagens”, opina. Bruna foi chamada à casa de Neville, que lhe perguntou se ela estava disposta a viver o personagem intensamente. Topou. Já Chay Suede chegou ao diretor por meio de testes e foi “brilhante”. “Eu o considero um ator extraordinário. É muito bom trabalhar com ele, nos tornamos amigos. É um homem simples, honrado, sério, honesto, talentoso. Não é mascarado.”

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Chay Suede em 'A Frente Fria que a Chuva Traz'. Crédito: Divulgação
Chay Suede em ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’. Crédito: Divulgação

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Depois de estourar como protagonista da primeira fase da novela “Império” e de interpretar um mocinho em “Babilônia”, Chay Suede realmente mostra outra faceta. “A Frente Fria que a Chuva Traz” mostra, de fato, pouca coisa. Moças de sutiã e olhe lá. Mas os diálogos são bem carregados e os temas, bem diferentes do que se vê na televisão, de onde veio. Liberdade, afirma Neville, é a única coisa que resta ao cinema para se manter relevante frente às outras formas de produção audiovisual. O que não sair da casinha ou a TV ou a internet podem fazer tranquilamente, e fazem. O bom cinema deve ser livre — o que não acontece no momento. “O cinema não é uma arte livre. É uma arte cativa, amarrada em correntes. Isso pode, isso não pode. É cheio de amarras. Não pode ser com a luz acesa, tem que ser com a luz apagada. O cinema do futuro é um cinema de arte”, diz. “Deus não está aqui pra reprimir. Ele quer os artistas livres. ‘Não pode fumar, não pode foder, não pode peidar.’ Deus quer os artistas com liberdade pra expressar sua época. Ele não trabalha na censura.”

Agora, Neville D’Almeida trabalha em dois projetos. Um deles se chama “A Dama da Internet”, sobre a mulher no Brasil de hoje. O segundo, “Bye Bye Amazônia”, é sobre a morte anunciada da floresta, causada por quatro fatores: “o etanol, a soja, o gado e a madeira”. “Você vê, por exemplo, que a Dilma colocou como ministra da agricultura a Katia Abreu, líder do agronegócio, da destruição não só da Amazônia, mas dessas coisas todas.” Espera não ficar mais tanto tempo afastado do cinema. “Acho que vou poder fazer”, diz, otimista.