Marcus Alberto Elias entrou na ampla sala de reuniões como se tivesse acabado de sair de um yacht club: camisa polo e calças azuis, tênis baixo sem meia, boné de cotelê tapando a cabeça calva e óculos de armação leve — tudo de boa marca. Preparo o gravador enquanto ele se acomoda tirando o boné e passando uma das mãos sobre a careca bronzeada. A conversa duraria quase três horas.
Mas ele não está aqui para me dar uma entrevista.
Sentado na cabeceira de uma longa mesa, Elias, 56 anos, é observado por uma foto do papa Francisco, emoldurada sobre o aparador às suas costas. Seu advogado e dono do escritório, Sérgio Bermudes, aparece na imagem, ajoelhado, beijando a mão do santo padre. Na conversa, gravada em um notebook e assistida por dois advogados e uma assessora de Elias, o principal executivo da Latin America Equity Partners, a LAEP, empresa que arrematou a Parmalat brasileira em 2006, se debruçaria para frente e para trás, amaciando ou levantado o tom de voz conforme a narrativa, por vezes ficando a poucos centímetros do meu rosto enquanto seus defensores manuseavam papéis e fuçavam em computadores. Ele me recebeu com a condição de que nenhuma palavra sua poderia ser usada nesta reportagem.
Para o Ministério Público Federal, o homem à minha frente é “o grande protagonista de toda a fraude”, acusado de ser a mente criativa por trás de um minhocário de túneis financeiros por onde teriam escapado 2,5 bilhões de reais, captados de fundos de investimentos e de milhares de pequenos investidores que se consideram vítimas de uma arapuca. Os advogados de Marcus Elias discordam da tese: o controlador da LAEP não só seria inocente, como também vítima de uma armação engendrada por um “fundo abutre” interessado em destruir a empresa e se apropriar de suas fábricas.
Os fatos narrados a seguir foram obtidos a partir de relatos de fontes da cúpula da LAEP, confirmados por documentos privados — e-mails trocados entre advogados, executivos e acionistas minoritários —, além de entrevistas, materiais produzidos pela imprensa, arquivos pessoais e documentos públicos. A maioria das pessoas com que conversei preferiu o anonimato.
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Marcus Alberto Elias não era um personagem da mídia quando fez seu primeiro milhão. Pouco mais de 15 anos haviam passado desde a promessa que tinha feito a si mesmo após a falência do pai, Mário, um contador que pilotava uma empresa de ônibus em São Paulo na década de 70. Elias jurou que iria ganhar dinheiro para nunca mais caminhar na penúria.
Foi com empregos no mercado financeiro que ele começou a levantar fortuna nos anos posteriores à expulsão do colégio por rebeldia, efeito psicológico da derrocada financeira da família.
Aos 30 anos, o segundo dos cinco filhos de um casal de imigrantes libaneses trocara a inquietação juvenil por uma vida de magnata.
Seu currículo sugeria o estereótipo do homem médio do mercado financeiro: graduado em Economia pela Universidade Mackenzie, Elias se apresentava como um dos fundadores de um grupo que gerenciava 225 milhões de dólares para investimentos na América Latina. A montanha de dinheiro em suas mãos se devia à experiência que o financista teria em cargos de gerência e direção de bancos como Credibanco, Pactual e SRL, com ênfase, como garantia seu currículo oficial, “na condução de reestruturações empresariais”.
Terno e gravata não eram, no entanto, suas roupas prediletas. O traje sport com o qual me recebeu no escritório de seu advogado nas imediações da Av. Paulista, em São Paulo, é seu estilo habitual, complementado costumeiramente por uma japamala, espécie de rosário budista de 108 contas que servem para marcar cada etapa de uma oração. Ao completar o percurso meditativo, reza a lenda, o discípulo alcança um estágio superior de consciência.
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Elias não é adepto das japamalas por moda ou capricho. Em 2006, depois de vagar por religiões de diversos santos em busca de paz de espírito, o empresário conheceu o lama tibetano Gangchen Rimpoche, e não desgrudou mais da divindade: viajou com o líder espiritual por Tibete, Índia e Nepal, ouvindo seus conselhos e iluminações. A partir daquele momento, Marcus Elias passou a consultar o monge — uma reencarnação de um grande médico, segundo o budismo — antes de tomar qualquer decisão importante. “Ele é muito espiritualizado”, garante Fernanda Barbosa, amiga íntima de Elias.
[olho]Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares[/olho]
O empresário fez da religião parte fundamental de sua rotina. Em abril de 2008, um perfil de Elias publicado na Folha de S. Paulo dava ideia da vida que ele levava: meditação por volta das 6 horas da manhã, seguida da prática do tai chi chuan. Depois, atividades físicas corriqueiras: natação – 2.000 metros diários na piscina de casa –, esteira e musculação, acompanhado por seus três personal trainers.
As excentricidades conviviam bem com atividades mais mundanas. Diz a Folha:
“Marcus Elias pode ser visto quase todos os dias nos melhores restaurantes de São Paulo apreciando um dos mais de mil vinhos de sua adega — ele leva suas próprias garrafas — e está sempre vestindo grifes internacionais como Armani, Prada, Gucci e Ermenegildo Zegna. Fora do trabalho, não gosta de falar de negócios.
O som ambiente está sempre ligado em música popular brasileira. às vezes, promove festas em casa para os amigos. No seu aniversário, sempre contrata o MPB 4 para tocar. Entre obras de arte de pintores como Mário Gruber e enormes esculturas que trouxe da Tanzânia, é lá que ele pratica seu lado esotérico.”
O texto retratava um personagem já distante do anonimato comum às pessoas do mercado financeiro. Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares, seu rosto começava a ser exposto em sites de fofocas em meio à elite paulistana, ladeado quase sempre por jovens mulheres do mundo do entretenimento e das passarelas. A porta para a fama se abriu em meados de 2006, quando Elias comprou a operação brasileira da Parmalat, a maior e mais famosa marca de leite do país.
Fincada em dívidas, a Parmalat definhava em um escândalo financeiro bilionário envolvendo a matriz italiana. A operação no Brasil caminhava para o precipício levando junto milhares de credores quando Elias apareceu e arrematou o laticínio apresentando um plano de recuperação agressivo. Suas ideias para reerguer a Parmalat animaram o mercado. Em pouco tempo, a companhia voltaria aos intervalos comerciais mais caros da TV — e frequentaria as manchetes da imprensa nacional com uma série de acontecimentos inimagináveis.
Sentindo-se enganada pelo empresário, uma das fontes ouvidas para esta reportagem aponta Marcus Elias como a versão brasileira de Jordan Belfort, empresário americano autor de uma autobiografia que virou filme. “Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”
O salvador da pátria
A principal anedota que circulou pelos corredores da Procuradoria de Milão sobre a quebra do laticínio italiano Parmalat seria contada pelos investigadores que tomaram a sede da empresa em dezembro de 2003: de paletó, gravata e sapatos lustrosos, os principais executivos da multinacional destruíam a golpes de marreta os teclados e monitores dos computadores da tesouraria, na esperança de eliminar provas.
São milhares as páginas da investigação que contam a história contábil da maior empresa leiteira do mundo para além do anedotário policial.
Com um plano de expansão planetário, no final dos anos 1990, sem o mercado desconfiar, o endividamento da Parmalat ameaçou explodir. Desesperados com a possibilidade de publicar um balanço negativo e sem ter de onde tirar recursos, os diretores partiram para uma saída engenhosa: resolveram fabricar dinheiro.
Diversos italianos compraram ações e títulos da empresa baseados em balancetes falsos emitidos pela companhia, muitos deles grosseiramente fabricados com tesoura, papel, cola e caneta nos salões da sede da empresa em Parma. O laticínio sangrou por dentro sem que ninguém notasse até que, no dia 17 de dezembro de 2003, um banco italiano descobriu que uma conta com 500 milhões de dólares depositados em Nova York – usados como garantia pela Parmalat para emitir novos papéis na Itália – não existia. Foi como apertar o botão do fim do mundo.
Pelos cálculos finais, o buraco nos cofres chegava a 3 bilhões de euros, capital que deveria estar no caixa da Parmalat, mas só existia nos documentos falsificados. Dinheiro inventado.
A catástrofe da Parmalat na Itália estremeceu o Brasil. Mais de 10 mil credores — muitos deles pequenos fornecedores de leite — esperavam receber 2,5 bilhões de reais da empresa, que começou a claudicar no mercado. Inerte, a fábrica brasileira operava em marcha lenta enquanto esperava nos tribunais de recuperação judicial por um salvador. Era a última instância antes do fim. A recém aprovada Lei de Falências, que pretendia evitar que empresas sumissem deixando dívidas impagáveis, teria na Parmalat do Brasil sua primeira grande cobaia.
Em maio de 2006, a LAEP, sediada nas ilhas Bermudas, se apresentou ao leilão do laticínio italiano como uma empresa de private equity altamente vencedora — seu currículo declarado incluía recuperação de companhias de diversos setores, de pescados a aluguel de carros. Era sua especialidade: comprar firmas em dificuldade, dar um rumo aos negócios e encontrar novos compradores quando as coisas endireitassem. Após analisada pela assembleia de credores, a proposta da LAEP venceria os concorrentes. A Parmalat do Brasil seria salva.
No comando do laticínio, Marcus Elias conseguiu um feito inédito: negociou um desconto de 83% com bancos credores, pagando o saldo à vista, em vez do parcelamento em 12 anos negociado antes da LAEP entrar na jogada. A dívida foi quitada quase integralmente com recursos da própria Parmalat, levantados com a venda da Batavo para a Perdigão, e de plantas usadas por uma unidade de tomates e vegetais, alguns centros de distribuição e fábricas de menor porte. Com a fome dos bancos saciada, ainda restavam os fornecedores de matéria-prima, mas Elias teria um plano para eles em um futuro não muito distante.
[olho]“Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”[/olho]
Apesar do volume de dinheiro divulgado nas várias negociações passar da casa do bilhão, na prática a LAEP tirou do próprio bolso 20 milhões de reais para arrematar uma empresa que, mesmo em crise, havia lucrado 25 milhões nos seis primeiros meses daquele ano. Manobra de mestre.
O primeiro ano de Marcus Elias no comando da Parmalat foi, a julgar pelas notícias publicadas na imprensa, de lua de mel. Logo após arrematar o laticínio, Elias deu declarações públicas garantindo que novos investimentos seriam feitos, e que o objetivo da empresa era crescer 60%. A imagem da LAEP no mercado, passada por seus controladores em comunicados e entrevistas, era poderosa: o fundo teria à disposição 300 milhões de dólares, dinheiro que viria de investidores estrangeiros. Em poucos meses, Elias começou a mostrar resultados.
A participação da Parmalat no mercado de leites longa vida, antes na casa dos 6%, saltara para 12,7%, fazendo com que a empresa reassumisse a liderança perdida para a Elegê em meio à crise de confiança. A captação de leite aumentara, o número de clientes subia a cada mês, e o endividamento havia sido rebaixado a níveis mundanos, compatíveis com o tamanho da companhia. O custo de mão de obra caíra drasticamente por causa do enxugamento do número de funcionários a menos da metade em relação aos anos antes da crise. Com as medidas, o lucro da Parmalat reapareceu nos balanços, e a empresa finalmente via uma saída para a insolvência. Seus executivos acreditavam que o valor estimado da controlada LAEP, que até pouco tempo atrás era um atoleiro de dívidas, beirava os 600 milhões de dólares em 2007. Caso encontrasse um comprador, Marcus Elias teria feito o maior negócio de sua vida.
Mas Elias não queria encontrar um comprador. Seu objetivo era duplicar o número de fábricas, que eram sete, e transformar a companhia em uma superpotência do leite. A estratégia previa uma série de aquisições de indústrias menores e investimento pesado em genética animal, para melhorar a produtividade das vacas brasileiras. O grande salto seria dado naquele mesmo ano de 2007. Em vez de gastar os dólares que o fundo LAEP declarava ter em caixa, no entanto, a empresa recorreu ao mercado.
Em 26 de abril de 2007, a Parmalat Brasil emitiu papéis no valor de 180 milhões de reais para, segundo documentos da própria companhia, “capital de giro, realização de investimentos (incluindo a manutenção do parque fabril), pagamento antecipado de credores no âmbito do Plano de Recuperação Judicial e aquisição de maquinário e tecnologia”. O comprador desses debêntures — títulos de dívida que seriam pagos em 36 parcelas, com juros — foi um fundo de investimentos do grupo Morgan Stanley. Caso não pagasse, a Parmalat cedia ao Morgan Stanley o direito a receber dívidas dos clientes do laticínio, no valor de 270 milhões de reais.
Com dinheiro em caixa, Marcus Elias foi às compras. Dois meses após a emissão dos debêntures, em julho, ele assinou um contrato de arrendamento da Cooperativa de Frutal, em Minas Gerais. O acordo valia por dez anos e incluía os bens utilizados na industrialização e envase de leite, além de imóveis e benfeitorias. Três semanas depois, o executivo assinaria mais dois contratos: compra de 52,3% da In Vitro, sociedade que produzia e comercializava embriões bovinos, e compra da Integralat Agro — 28 mil hectares de propriedade rural localizados na cidade de Bonito de Minas, também em Minas Gerais.
In Vitro e Integralat Agro eram controladas por uma firma fundada pela LAEP no final de junho daquele ano, a Integralat. O objetivo da empresa era investir em tecnologia para melhorar a bacia leiteira no Brasil, inclusive por meio de clones bovinos. À época, a LAEP divulgou que sua controlada Integralat tinha “cerca de 66 mil produtores espalhados pelas principais bacias leiteiras do Brasil”.
O apetite da LAEP gerou números grandiosos em manchetes, comunicados à imprensa e notícias positivas sobre o futuro da empresa. O arrendamento e as aquisições eram parte fundamental da preparação de terreno que Marcus Elias planejava para a segunda fase de sua administração. Ele recorreria novamente ao mercado em busca de dinheiro. Só que desta vez, o caminho seria a bolsa de valores.
Em outubro daquele ano, a LAEP abriria capital e atrairia milhares de investidores. Nada indicava que a chegada da companhia na bolsa seria o começo do fim.