Categorias
História

O jornaleiro mais
resistente da cidade

Ciro já vendeu revistas em bondes aos gritos e hoje tenta sobreviver no ramo.

Aos 78 anos, Ciro de Oliveira Gonçalves continua levantando todos os dias antes das três horas da manhã para labutar até as duas da tarde. Para chegar ao local de trabalho, percorre 27 quilômetros, indo da Parada Inglesa, onde reside atualmente, até o bairro nobre da zona oeste de São Paulo onde atende clientes famosos como Celso Lafer, Eduardo Suplicy, Paulo Maluf e Ricardo Boechat.  Todos os dias ele levanta os portões da Banca Jardins, ou a “Banca do Ciro”, como se referem os frequentadores mais assíduos, onde está desde os anos 1980.

Ciro, o jornaleiro mais antigo em atividade em São Paulo, foi educado lendo jornais e revistas. Tinha 11 anos quando deixou Botucatu, no interior do Estado, após a morte precoce da mãe, para morar na capital com a tia. Chegou em 1947, época em que a cidade somava cerca de 2 milhões de habitantes e a maior parte das bancas se concentrava nos arredores da Estação Júlio Prestes, na região central. De olho no movimento de passageiros da Estrada de Ferro Sorocabana, Ciro arrumou um jeito de vender jornais durante as viagens de trem. Nasceu ali, entre um vagão e outro, a sua vocação.

Hoje, ele é dono de um dos pontos mais tradicionais da capital paulista, a Banca Jardins, na Avenida Cidade Jardim, mas não demonstra o entusiasmo de quando começou no ramo, há mais de 65 anos, nem enxerga à frente um futuro muito promissor. “Nossa profissão está acabando, acredito que não dure mais do que dez anos. Se a gente não vender água, refrigerante em lata, salgadinho e docinho não dá para sobreviver”, diz em tom de lamento. “Aquela fome de ler não existe mais.”

Na sua banca, assim como ocorre nas outras 3.500 espalhadas por São Paulo, chocolates, balas, chicletes, cadeados, baralhos, canetas e até bolas de tênis ocupam prateleiras e dividem espaço com revistas, jornais, gibis e outras publicações. “É preciso ampliar o rol de produtos e entender o local como um ponto comercial, não restrito apenas aos periódicos”. É o que pensa e defende José Antônio Mantovani, presidente do Sindicato dos Vendedores de Jornais e Revistas de São Paulo.

Diante de um cenário pessimista, que sofre com a concorrência dos meios digitais e com a mudança nos hábitos de consumo de informação das novas gerações, José Antônio destaca um dado favorável: desde 2014, o número de bancas na cidade estabilizou, o que interrompeu um intenso fluxo de queda que teve início nos anos 2000. Esse fôlego extra pode ser explicado pela lei aprovada pelo prefeito Fernando Haddad, no final de 2013, que legalizou a venda de bebidas não alcoólicas e alimentos industrializados nesses locais.

“O jornaleiro deve estar atento às demandas dos moradores. Muitas vezes, a banca é o único ponto comercial de um bairro”, diz o presidente do sindicato. Basta passar algumas horas acompanhando o trabalho do Ciro para constatar que boa parte dos clientes que entram no seu negócio está ali atrás de itens como água, recarga de celular, docinhos. Nos anos 1950, no entanto, não era bem assim.

Até 1958, Ciro ia e voltava de São Paulo, a bordo do trem Sorocabana, vendendo revistas como a semanal O Cruzeiro, A Cigarra, mais voltada ao público feminino, e a especializada em fotonovelas Grande Hotel. Circulava pelos vagões na linha cujo destino era a cidade de Presidente Epitácio, no extremo oeste de São Paulo. Chegava a ficar dias confinado no trem, sem retornar para a casa, saindo apenas para tirar um cochilo na estação e tomar banho. “Todo mundo comprava O Cruzeiro para ver as charges do Amigo da Onça”, lembra o jornaleiro. Ele se refere a um personagem criado pelo desenhista pernambucano Péricles que, ao colocar conhecidos em situações embaraçosas, deu nome à expressão popular.

O início de sua vida na cidade grande não foi fácil. Antes de se tornar jornaleiro, vendia amendoins na rua. Por generosidade do dono do hotel Las Vegas, até hoje em funcionamento nas esquinas da Avenida Rio Branco com a Rua Vitória, no centro, Ciro morou, ainda menor de idade, num cantinho improvisado ao lado da caixa d´água do estabelecimento.

Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal
Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal

Próximo dali, montou a sua primeira banca de madeira, nos anos 1950, sem deixar de trabalhar nos trens em alguns dias da semana. “Ralei muito para fazer meu nome aqui em São Paulo”, diz. O expediente não parava por aí: ele ainda fazia um corre nos bondes, na Avenida São João e na Praça da Sé, onde oferecia de mão em mão, aos gritos, o jornal A Gazeta Esportiva, fundado por Cásper Líbero em 1947, um campeão de audiência, e o lendário Correio Paulistano, de 1847.

[olho]“Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país”[/olho]

Comprar jornais e revistas nessa época significava ter notícias em primeira mão. Leitores se juntavam ao redor das bancas para espiar as primeiras páginas, capas de revistas, e todo assunto virava discussão ali mesmo. “Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país. Antigamente o clima era mais descontraído, a banca era um ponto de encontro aos sábados e domingos”, recorda Ciro.

Entre memórias das décadas passadas, Ciro de Oliveira Gonçalves lembra-se de uma das edições de jornal com maior repercussão no país: a polêmica morte do ex-presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Sentado em sua banca de jornal, em São Paulo, ele recorda dos detalhes. “Vendeu jornal pra caramba. Getúlio era um ídolo do povo, um cara honesto, que nunca roubou. Falaram que ele havia se suicidado, mas todo mundo sabia que era um assassinato.”

No dia em questão, jornal “O Globo” deu a seguinte manchete na primeira página: “Suicidou-se o Sr. Getúlio Vargas”. Em seguida, a reportagem afirmava que o chefe de Estado havia morrido nos seus aposentos e estava com uma “fisionomia serena, esboçando um leve sorriso”. No mesmo dia, a “Folha da Noite” circulava com o título “Final dramático da crise política”, com a última frase de Vargas em destaque: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte”.

Fatos marcantes como esse aumentavam em muitos dígitos as vendas. Com a inauguração do Terminal Rodoviário da Luz, em 1961, o negócio de Ciro decolou de vez, sendo que ele se aproveitava do movimento de passageiros pela região. O sucesso do ponto garantiu uma expansão para outras regiões. Ciro apostou em novas bancas em Higienópolis, na Vilaboim, e na Avenida Paulista, entre outras regiões. Tornou-se um especialista do ramo e uma figura folclórica na cidade. Depois de passar o bastão ao filho, que cumpre o turno da noite até as dez horas, Ciro se exercita numa academia para manter a forma e “disfarçar a idade”.

Sobre a evolução tecnológica, Ciro é direto e não dá o braço a torcer. “Minha educação foi ler jornal. Não sei nem quero aprender a mexer no computador. Hoje em dia ninguém lê mais nada, você pergunta uma coisa para o cara, e ele entra no computador para responder. É como comer a comida sem mastigar, não dá para saber se é boa ou ruim. Nossa juventude está perdida.” No final da entrevista, encerra dizendo que está cansado de enfrentar a má vontade da administração pública com os jornaleiros e a falta de interesse da população por uma profissão que lhe garantiu ao longo da vida o conhecimento, a sabedoria e o sustento. Ciro é uma figura em extinção.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *