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O outro lado de ‘Spotlight’

‘Conspiração e Poder’ mostra o que acontece quando uma grande história é errada.

Enquanto “Spotlight”, vencedor do Oscar de melhor filme neste ano, é o sonho dos jornalistas e um retrato de tudo aquilo que a profissão pode fazer quando tudo dá certo, “Conspiração e Poder” (em inglês, “Truth”, “verdade”) é o lado oposto da moeda. O filme, que estreia nesta quinta (24), conta a história real de uma reportagem danosa ao presidente George W. Bush, exibida num dos principais programas jornalísticos do país, o “60 Minutes”, e contestada por ter usado documentos que teriam sido forjados. Basicamente, o pesadelo de um jornalista.

Era 2004, perto das eleições presidenciais americanas em que George W. Bush enfrentava John Kerry para se manter no carro, quando a equipe comandada por Mary Mapes — cujo livro serviu de base para o filme — se deparou com uma história e tanto. O político Ben Barnes, fonte de Mary, disse a ela que havia dado uma força para que Bush entrasse na concorrida Guarda Nacional do Texas, escapando de ir à Guerra do Vietnã. Investigando o histórico militar de Bush, a equipe de Mapes, papel de Cate Blanchett, encontrou um ex-militar que disse ter provas de que Bush não havia cumprido as regras de seu serviço militar e que havia sumido durante um período em que deveria estar na Guarda.

Primeiro problema: o militar não tinha os originais dos tais documentos, assinados por um superior de Bush já morto, só cópias. Segundo problema: a equipe não conseguia encontrar alguém que atestasse que o conteúdo dos documentos correspondesse à realidade. Terceiro problema: o canal CBS queria que a reportagem fosse ao ar em menos de uma semana para preencher um buraco na grade. Quatro especialistas foram contactados para confirmar a autenticidade dos papéis. Um deles afirmou que sem os originais não dava para concluir nada. Outro levantou dúvidas a respeito de um sobrescrito, que não estaria disponível nas máquinas de escrever da época. Mas um deles disse que era possível dizer que eram verdadeiros, sim. Quando eles confirmaram com um militar que conhecia os envolvidos que o teor dos documentos condizia com a opinião do superior de Bush, resolveram colocar a matéria no ar.

A alegria da equipe dura pouco. Depois de a matéria ser exibida, blogs conservadores começam a questionar a autenticidade dos documentos. Pela fonte e pelos espaçamentos utilizados, eles parecem ter sido feitos com as configurações básicas do Word. Alguém levanta a questão do sobrescrito que o especialista tinha apontado. A fonte volta atrás e diz que os documentos eram falsos. O ex-militar que trouxe os papéis para a equipe confessa que mentiu e que recebeu aqueles documentos de dois desconhecidos, e não de alguém confiável.

“Conspiração e Poder” levanta várias questões sobre o jornalismo, ainda mais importantes no contexto de hoje. Questionam Mary: mas como você sabia que o político te disse a verdade? Só porque uma pessoa disse algo, não quer dizer que tenha acontecido — depoimentos precisam ser acompanhados de provas. Ela não considerou o interesse das fontes? Graças a ela o dono dos documentos tinha entrado em contato com a equipe de Kerry. Ela não se questionou a respeito de onde vieram esses documentos vazados, a respeito do caminho que o papel fez até chegar a ela?

Em certo ponto perguntam a Mary a respeito de sua posição política. Ela diz que não é importante, mas a pressionam: ela recebeu os documentos e assumiu que eles eram verdadeiros, ficando satisfeita com qualquer evidência de que eles realmente eram. Se ela fosse realmente imparcial, e não uma esquerdista anti-Bush, ela teria presumido que o presidente fosse inocente e assumido que os documentos eram falsos até que encontrasse provas substanciais do contrário. Num filme chamado “verdade”, fica clara a dificuldade de saber a realidade sobre qualquer coisa. Mary escolheu acreditar nas suas fontes e, depois de falhar no processo de apuração, teve sua carreira completamente destruída — desde então ela nunca mais trabalhou na televisão, apesar de ser uma jornalista premiada.

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Cena de "Conspiração e Poder". Crédito: Divulgação
Cena de “Conspiração e Poder”. Crédito: Divulgação

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Outro ponto interessante apontado pelo filme é o tratamento que Mary recebe na internet depois que o escândalo estoura. O apresentador do programa, Dan Rather (Robert Redford), era um jornalista estimado, que havia ancorado o maior número de telejornais nos Estados Unidos. Era ele a cara da reportagem, e além de Mary havia toda uma equipe por trás da reportagem — dos pesquisadores aos chefes da emissora que apressaram a produção. Mas é ela quem é malhada publicamente. Chamada de feminazi, esquerdista, feia, vadia, e ameaçada de morte.

As questões que o filme suscita a respeito do jornalismo e do tratamento dado às mulheres online são, porém, melhores que o filme em si. “Conspiração e Poder” não chega a conclusão nenhuma no fim das contas, e passa superficialmente sobre todos esses assuntos. Um dos jornalistas do time, interpretado por Topher Grace (o Eric de “That 70’s Show”), faz um discurso inflamado acusando a emissora de queimar Mary porque a Viacom, dona da CBS, precisava da ajuda de Bush para um projeto que a favoreceria. Mas fica só nisso.

O filme passa ao lado de assuntos realmente dignos de serem discutidos e prefere apostar em platitudes como “o mundo precisa do jornalismo” e “não devemos parar de questionar nunca”. Sim, é verdade, mas essa mensagem “Spotlight” transmitiu com mais eficiência. “Conspiração e Poder” perde a oportunidade de discutir de verdade de que tipo de jornalismo o mundo precisa.

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