No início era somente uma mensagem curta, um tanto enigmática, que parecia ter saído de um arquivo do século 19 e parado ali por engano. Em 15 de fevereiro de 2014, a Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre dois bolivianos que, recém-chegados à maioridade, seriam vendidos como escravos numa feira livre de São Paulo na tarde de segunda. De acordo com testemunhas, os dois rapazes foram oferecidos pelo dono de uma oficina de costura aos transeuntes. Durante o processo as negociações esquentaram por divergências sobre o preço, já que o proprietário da oficina, também boliviano, insistia no valor de US$ 500 por cabeça. A situação ficou ainda mais tensa, pois moradores da região indignados tentaram libertar os dois jovens.
Ao lado da matéria havia ainda uma série de informações, da qual se extraíam alguns números. As autoridades estimam que somente na região de São Paulo vivem em torno de 300 mil bolivianos, sendo provável que a maioria, assim como os dois jovens, trabalha ilegalmente em pequenas oficinas de costura. As informações são de que nos últimos anos investigadores de uma unidade especial resgataram da condição análoga à escravidão várias centenas destes trabalhadores, empregados de fornecedores de grandes marcas da moda como Zara e Gap.
Era como se, naquela tarde, uma cortina tivesse se aberto por um breve período de tempo. Algo que acontece apenas às escondidas, em garagens cheias de mofo ou em oficinas de fundo de quintal, inesperadamente ocorreu diante de todos, no meio da rua.
Em seguida, a cortina se fechou novamente.
Uma semana após o incidente, os dois bolivianos mergulharam no anonimato do qual tinham saído. O que permaneceu foram perguntas. Como é possível que, hoje, 127 anos depois da escravidão ser proibida no Brasil, no meio de um centro econômico-financeiro como São Paulo, dois jovens rapazes serem negociados como se fossem cabeças de gado? O que se passa com este mundo bruto, medieval, que aparentemente reside no ponto cego da modernidade? Funciona de acordo com que regras?
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 20 milhões de pessoas em todo o mundo estão submetidas a condições análogas à escravidão. Elas trabalham em fábricas de tijolos indianas, em minas chinesas e em bordéis tailandeses. Costuram, cuidam dos campos ou constroem estádios para a Copa do Mundo de futebol no Catar. A fundação australiana Walk Free, que anualmente publica um índice de escravidão global, propôs em seu relatório de 2013 a cifra de 36 milhões de escravos modernos – além do trabalho forçado eles também contabilizaram casos de casamentos forçados e de escravidão por dívida. “Os grilhões da escravidão moderna”, escrevem os autores, “raramente são de natureza física”. Hoje existem maneiras mais sutis de submeter as pessoas – dívidas, isolamento e ameaças. Da mesma forma, dificilmente se herda essa condição pelo nascimento, como era no passado. Hoje é principalmente por meio de falsas promessas que elas são atraídas a lugares indignos e é por isso também que a escravidão moderna é um crime difícil de compreender – com frequência parece que as pessoas agiram por vontade própria.
Além disso, embora em quase todos os países as leis proíbam a escravidão contemporânea, somente os casos menores chegam ao judiciário. A comprovação é difícil não só em razão da frequente escassez de evidências. Muitas vezes são as próprias vítimas que permanecem em silêncio, seja por um sentimento de culpa ou por receio de vingança do contratante. Em outros casos, os governos travam as investigações, pois atrair muita atenção poderia ter um efeito dissuasivo para a economia do país.
É bem possível que essa tenha sido uma das razões pelas quais o consulado boliviano em São Paulo, que na semana seguinte à da venda mal-sucedida providenciou uma silenciosa viagem de volta à terra natal para os jovens, deixou de responder vários questionamentos. Uma equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho, que na sequência procurou elucidar os acontecimentos, solicitou, em vão, a cooperação do consulado. Como alguns meses depois a fiscalização obteve uma compensação financeira para os rapazes no valor de US$ 6 mil a ser paga pelo ex-empregador, foi necessária a ajuda de um padre para enviar-lhes o dinheiro. O padre, que recebeu ambos em seu abrigo para refugiados até que viajassem, era o único que ainda mantinha contato com eles.
Esta é a primeira coisa que se nota nesta história estranha e cheia de reviravoltas inesperadas: qualquer pessoa que estiver à procura de Ismael e Juan Carlos precisa ter paciência.
Ismael
Era uma tarde do mês de julho. Ismael havia proposto a Praça 25 de Maio no centro de Sucre como ponto de encontro, em um banco próximo à fonte. “Dane-se o recrutador”, disse ele no primeiro telefonema, “eu não tenho medo”. Mas de repente ele cancelou, alegando que seu novo chefe o havia mandado para um ônibus noturno rumo ao sul. Ismael subitamente sugeriu pegar uma carona com ele, porém acabou voltando ao plano original. Praça 25 de Maio então, no banco perto da fonte.
Prédios coloniais brancos contornavam a praça. Meninas gordinhas com tranças grossas no cabelo, talvez com 8 ou 9 anos de idade, corriam de banco em banco. Jornaleiros, de uns 12 anos no máximo, bradavam as manchetes de seus jornais através do rarefeito ar andino, enquanto outros simplesmente mantinham as mãos estiradas, a fim de angariar algumas moedas.
Ismael aparentava estar um pouco sem fôlego quando finalmente apareceu na praça; um adolescente pequeno, magro, com o rosto marcado pelas cicatrizes de alguém que viveu muito tempo na rua desde muito cedo. Ele se senta no banco e me encara com olhos cerrados e desconfiados.
Está vestindo uma camiseta nova com o escudo da Ferrari; seus tênis são da Nike. Tem o mesmo corte de cabelo do Neymar e os braços cobertos por longas e apertadas luvas que se parecem com tatuagens – ele diz que são para proteger a pele contra o sol. Em sua mão esquerda ele tatuou um coração contendo as palavras “eu e você”, sendo o “você”, conforme explicou, sua namorada Belinda, de 17 anos, mãe de seu filho Adán, que completara 4 anos na última semana.
Ismael, nota-se logo, não é uma pessoa muito falante. Ele tem esse jeito monossilábico, meio apreensivo, peculiar a muitos jovens, quando sentem que podem estar sendo imprudentes ou fazendo alguma coisa errada.
“Desculpa”, diz Ismael, “mas eu realmente não tenho muito tempo. Faz pouco tempo que sou ajudante no ônibus noturno e meu novo chefe pressiona bastante. Se você quiser, venha comigo e conversamos pelo caminho. Caso contrário, volto em dois dias”.
E o Juan Carlos? Ele está pela cidade?
“Ele já foi embora. Está na Argentina com o pai dele. Trabalham em construções em Buenos Aires.”
Ismael contou que Juan Carlos ficou sumido durante semanas e que depois de tudo por que tinham passado no Brasil, ele fica muito preocupado com seu “irmãozinho gordo”, como ele o chama. Os dois cresceram no mesmo bairro, nas ásperas encostas acima de Sucre. Eles jogaram futebol nos mesmos descampados e frequentaram a mesma escola, a qual abandonaram mais ou menos na mesma época, Ismael com 13 anos e Juan Carlos com 11.
Seus pais, disse ele, queriam que eles ganhassem dinheiro para aliviar as finanças familiares. Não tinha como ser diferente. Seu pai frequentou a escola por tão pouco tempo que mal aprendeu a ler corretamente. Ainda quando criança fora trabalhar carregando pedras nos canteiros de obras de Sucre. Quando suas costas não aguentavam mais o peso, ele pegou um empréstimo e comprou uma pilha de tapetes e cobertores. Há sete anos, seu pai senta-se todos os dias numa pequena cabana no Mercado Campesino. Nos dias bons, diz Ismael, ele vende dois cobertores.
Ismael trilhou os passos de seu pai. Ao amanhecer ele e Juan Carlos saíam e visitavam os canteiros de obras de Sucre. Quando precisavam, ele carregava pedras pelos andaimes ou misturava cimento. Quando Juan Carlos, um ano mais tarde, foi enviado por sua mãe ao Chile por alguns meses para ajudar na oficina de costura de uns conhecidos, Ismael partiu para Santa Cruz. Fatiou frangos na cozinha de um restaurante chinês e, em seguida, mudou-se para La Paz, onde costurou roupas tradicionais numa alfaiataria. Então, novamente Sucre, canteiros de obras, dias sem dinheiro, uma infância sem propósito. Uma vida cujo horizonte era o dia seguinte.
A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. Mais da metade da população vive com menos de um dólar por dia. O próprio presidente Evo Morales trabalhou nas plantações de coca quando jovem. Mais tarde, foi cortador de cana na Argentina. Ismael conhece a história. Ele aprendeu com ela que, ao fim de um longo caminho, com alguma sorte as portas de um palácio podem se abrir.
Como seria ir para o Brasil?, perguntavam-se às vezes Ismael e Juan Carlos, enquanto estavam sentados no meio-fio por aí. Um lugar onde se ganhava em um mês o que na Bolívia levaria um ano inteiro. Imagina só: trabalhar um pouco e guardar dinheiro para ter um táxi. Construir uma casa para Belinda e Adán. “Sonhávamos acordados”, conta Ismael. “Nós não tínhamos dinheiro nem mesmo para sair daqui.” Então chega a hora dele ir. “Às seis”, ele diz. “No terminal. A linha em que eu trabalho se chama 6 de Octubre.”
Como a maioria dos ônibus que ali aguardam seus passageiros na madrugada, o de Ismael também é uma geringonça velha e enferrujada. Colado no para-brisa, um adesivo da Virgem Maria ao lado de uma foto de uma mulher nua. Enquanto Ismael desinfeta os assentos com um spray, os passageiros se reúnem no portão. Crianças perambulam no entorno vendendo cobertores. Quando todos já embarcaram, Ismael coloca um filme de Kung Fu no aparelho de DVD e se coloca ao lado do banco do motorista.
“Você viu a garota na fileira 26?”, diz o motorista, que ainda estala a língua. O rosto de Ismael esboça um breve sorriso.
O ônibus passa por uma estrada local em direção à paisagem lunar sem vegetação dos Andes. Ele roda por vilas escuras, iluminadas somente pelos monitores dos cibercafés. Novamente escuridão e muitas curvas. Os faróis dianteiros iluminam as barreiras de segurança da estrada, atrás dos quais se abrem profundos vales nos quais durante o dia se pode ver os destroços queimados de ônibus que caíram. Ismael gosta de trabalhar no ônibus. É mais seguro do que qualquer coisa já fez até então, diz ele. O itinerário lhe dá paz. A sensação de não estar parado.
Ele já não precisa implorar para que alguém lhe dê um trabalho, como no dia em que o recrutador falou com ele, em janeiro de 2014. Ismael conta que ele estava frustrado, pois ninguém mais precisava dele nas obras. Ele foi até seu pai no mercado e emprestou algumas moedas para comer alguma coisa em um restaurante popular quando de repente uma mulher se aproximou. Ela perguntou se poderia se sentar ao lado dele.
Ismael assentiu com a cabeça. Era meio-dia, as outras mesas estavam cheias. “Ela era alta e tinha por volta de 40 anos”, falou. “Ela mexeu em seu caldo de galinha e me mediu de canto de olho por algum tempo. Então perguntou: você já se imaginou trabalhando no Brasil?”
Ismael olhou diretamente para ela.
“O que eu ganho com isso?”, respondeu.
“Quinhentos por mês”, replicou a mulher. “Em dólares.”
“Quinhentos! No duro?”
Era mais do que ele jamais havia imaginado.
A oficina, disse ela, pertencia a um tio em São Paulo. O negócio estava indo tão bem que estavam em busca de mão-de-obra. O turno iniciaria às 8 horas da manhã e terminaria às 5 horas da tarde. “Pense nisso”, disse ela. “Um ônibus com um futuro colega seu sai hoje à noite.”
Estrelas cadentes caíam no céu. Ismael alcança as folhas de coca do motorista, que previnem a fadiga. Vez ou outra ele salta do ônibus para pagar o pedágio.
[olho]“A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael[/olho]
“Eu sei que isso soa ingênuo”, diz. “Mas eu não duvidei nem por um segundo.” Ainda do mercado ele telefonou para Juan Carlos, que assim como ele só pensava no dinheiro. A seguir, foi para casa pegar algumas coisas. Ismael entrou em seu quarto, que não tinha portas ou janelas, e enfiou algumas roupas na mochila. Aproximou-se da cama e levantou o travesseiro, sob o qual mantinha tudo que tinha algum valor num saco plástico. Sua identidade, um pente, uma foto dele com Belinda em frente a um canteiro de flores no parque.
“Não precisa chorar”, disse Ismael enquanto abraçava em despedida sua irmã Sandra, a única que estava em casa. “Esta é a minha grande chance”.
Então ele partiu para a rodoviária, onde Juan Carlos já o esperava. A mulher do mercado apareceu e comprou-lhes passagens para o Paraguai. O terceiro trabalhador, um homem chamado René, deveria subir em Santa Cruz.
Assim, eles se foram. Um país que eles nem sequer imaginavam que se falava outra língua. Nenhum de seus professores havia mencionado que no Brasil se usava outra moeda, ou talvez até tenham dito, mas eles não prestaram atenção. “A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael empolgadamente. Ambos riram. O sentimento era de aventura.
Bignami
Agora eles faziam parte de um grande movimento migratório, um sobre o qual não se sabe muito. Pessoas da Bolívia, do Peru e do Paraguai espalham-se por toda a América do Sul. Circulam num zigue-zague pelos Andes, sempre atraídas por empresas no Brasil, onde se tornou mais complicado devido ao milagre econômico do início do milênio encontrar mão-de-obra local disposta a fazer o “trabalho sujo” por uma ninharia, especialmente no setor têxtil. Desde que o Brasil, em meados da década de 90, sob pressão do Fundo Monetário Internacional, abriu seus mercados para mercadorias estrangeiras, os produtores nacionais concorrem com produtores de baixo custo como os de Bangladesh e da China. A fim de reduzir custos, muitas empresas terceirizaram sua produção para pequenos fornecedores. A grave recessão que o Brasil enfrenta no momento fez com que a pressão se tornasse ainda maior.
Somente em São Paulo existem hoje cerca de 8 mil oficinas, mas “se apertarmos o cerco”, diz Renato Bignami, “aparecerá o dobro em outro lugar”.
Bignami, um inteligente advogado de 43 anos, lidera a pequena unidade especial que investiga os casos de escravidão contemporânea para o Ministério do Trabalho em São Paulo. Seu escritório localiza-se no oitavo andar de um edifício comercial. Pisos de linóleo, luzes de neon. Bignami diz escolher casos que terão grande impacto, como no caso da grife de roupas Zara: em 2011 foram resgatados 56 bolivianos de dois fornecedores que produziam blusas para a coleção de primavera da marca.
A Zara foi o maior êxito de Bignami. Os trabalhadores eram forçados a cumprir turnos de até 14 horas. Vários quartos sem ventilação. O local trancado o tempo todo. Dos US$ 65 que a Zara cobrava em suas boutiques por uma blusa, US$ 4 iam para o fornecedor e US$ 1 para cada trabalhador. “Espetacular, mas nada incomum”, diz Bignami, que manteve algumas peças no armário.
Em 2011 o controlador da Zara, o grupo Inditex, foi condenado a pagar uma multa no valor de US$ 1,4 milhão. Ao mesmo tempo, o grupo assinou um termo de ajustamento de conduta se obrigando a garantir melhores condições de trabalho entre seus fornecedores. Pelo descumprimento do acordo, o Ministério do Trabalho brasileiro aplicou uma nova multa em 2015 no montante aproximado de US$ 300 mil. A Inditex entrou com recurso.
Dezenas de milhares de pessoas por todo o país têm se unido e cooperado com a polícia nos últimos anos, que resgatou de condições desumanas, de oficinas e frigoríficos, de canteiros de obras e plantações de cana – africanos, haitianos, paraguaios, e especialmente bolivianos, frisa Bignami.
“O caso do Ismael e do Juan Carlos”, continua, “apenas nos abriu os olhos para a ponta de um enorme iceberg. Um exemplo fantástico que reúne muitas coisas: tráfico de pessoas, trabalho forçado e escravidão por dívida. E por trás de tudo isso uma potência do mercado da moda!”.
Bignami abre uma pasta e retira um relatório que ele teve acesso após a conclusão das investigações do Ministério Público. Ele acredita que o fato do ônibus em Sucre ter partido na mesma noite não é coincidência. Ismael e Juan Carlos não deveriam ter tempo hábil para desconfiar. Além disso, diz ele, faz parte da estratégia do recrutador abordar propositalmente pessoas que não têm como bancar a viagem até o local de trabalho.
Numa caderneta que chegou às mão de Bignami durante uma operação policial, o dono da pequena oficina, um homem chamado Serapio Maigua, detalha com uma caligrafia simples todos os custos de viagem em que incorreu. A soma total chega aos mil dólares. Isso incluía as passagens de ônibus, dois refrigerantes, duas refeições e uma “ajuda de custo” de US$ 800 a uma mulher que deveria assegurar que a polícia na fronteira não fizesse muitas perguntas. Segundo Bignami, em seu interrogatório Maigua esclareceu como tudo era feito.
Ele se inclina para trás.
“Mil dólares”, diz ele. “Não é muita coisa.”
Foi o dinheiro que Maigua adiantou. Ismael e Juan Carlos aceitaram, pois acreditavam que não levaria muito tempo até que pudessem quitar a dívida. Mal sabiam que tinham caído numa armadilha. “Com estas dívidas, correntes invisíveis os prenderam a Maigua”, explica Bignami.
A ideia é simples: quem deve para o empregador não pode simplesmente ir embora quando se cumpre turnos de 14 horas diárias. Quem tem dívidas dificilmente reage mal quando lhe dizem que o pagamento será menor do que o combinado. De acordo com Bignami, a dívida é o padrão que se repete em praticamente todos os casos. Sem isso, tudo o que se segue seria inconcebível.
A escravidão por dívida é um dos critérios para classificar um caso específico como escravidão contemporânea. O trabalho forçado é outro, sendo que o constrangimento pode ser praticado de diversas formas. Diferentemente do caso de Ismael e Juan Carlos, que prescindia de portões trancados. A oficina em que se encontravam ficava em Cabreúva, um buraco no interior de São Paulo.
Um lugar do qual é difícil fugir com uma mão na frente e outra atrás.
De acordo com Bignami, fala-se em condições análogas à de escravo quando as condições materiais no local de trabalho atentam contra a dignidade humana; quando, por exemplo, falta água potável, não há banheiro e cabos elétricos ficam expostos podendo causar um curto-circuito. Vale ressaltar ainda que a legislação brasileira prevê uma jornada de trabalho máxima de 44 horas semanais e um salário mínimo mensal de R$ 880. Teoricamente, ele acrescenta, o empregador já se torna passível de punição se violar qualquer um dos critérios. O caso de Maigua era tão grave que violava todos.
Ismael
“Desde o início ele foi um cara estranhamente desagradável”, afirma Ismael. “Ele nos buscou com seu carro em São Paulo, mas durante todo o caminho para Cabreúva não nos dirigiu uma só palavra.”
Ismael está sentado num banco não muito longe da rodoviária, na cidade de Tarija, no sul da Bolívia. Depois da chegada, ele lavou as cortinas do ônibus em um rio e agora aguardava pela volta à cidade de Sucre. “Eu acho que ele poderia pelo menos ter perguntado como foi a viagem”, diz Ismael.
Eles viajaram por quase uma semana. Maigua escolheu fazer um desvio pelo Paraguai, porque, atualmente, a fronteira entre o Brasil e a Bolívia está sendo monitorada com mais rigor.
“Quanto nós vamos ganhar?”, perguntou Ismael no carro.
“Sobre isso nós falamos depois”, disse Maigua.
A viagem durou cerca de uma hora e meia, até que, em Cabreúva, eles entraram em uma rua secundária. Maigua estacionou o carro em frente a um sobrado de esquina, cujos muros estavam cobertos por graffitis. Atrás das persianas azuis abaixadas, encontrava-se, no andar térreo, a oficina. De suas máquinas de costura, uma dúzia de jovens rostos bolivianos olharam para eles.
[olho]“Eu sei, tudo cheirava a armação. Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”[/olho]
Maigua conduziu ambos, assim conta Ismael, para o seu quarto no primeiro andar, onde eles colocaram suas mochilas. Depois ele ordenou que eles fossem para uma mesa na oficina, onde começaram logo a cortar com uma tesoura as linhas em excesso dos uniformes prontos, que Maigua produzia para uma empresa chamada Atmosfera. Em seu site, a própria Atmosfera se identifica como líder em locação, higienização e conserto de uniformes. A empresa atua nos segmentos hospitalar, industrial e de hotelaria. Desde 2011 faz parte do grupo multinacional Elis, cujos 180 mil funcionários no mundo todo, incluindo Alemanha e na Suíça, produziram US$ 1,3 bilhão.
Nada disso tinha importância para Ismael. Tudo o que lhe interessava era o salário. “E os US$ 500 prometidos?”, perguntou ele novamente em uma noite. Maigua, porém, esquivou-se. “Vocês precisam entender”, disse ele. “Eu tive despesas por causa de vocês, a viagem, a passagem da fronteira. Primeiro vocês me pagam com trabalho e depois a gente vê o resto.” Para que pudessem comprar algo para comer, Maigua lhes arranjava R$ 50. Isso ele também anotava meticulosamente em sua caderneta.
“Eu sei, tudo cheirava a armação”, diz Ismael. “Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”
De certa maneira, eles estavam presos. Ismael pedia emprestado um telefone para ligar para sua irmã Sandra. Não precisa se preocupar, dizia ele, está tudo bem. Todas as manhãs, às 7 horas, eles iam para a oficina, depois cortavam linhas, dobravam uniformes, e os empilhavam no porta-malas do carro de Maigua. Fixada no teto da oficina, diz Ismael, havia uma câmera de vigilância. Quando Maigua achava que eles estavam muito lentos, gritava com eles. Suspendia o horário de almoço. Parecia que, nesses dias, ele estava sob forte pressão. A caderneta de Maigua estava repleta de anotações. “Só Deus está conosco”, rabiscou ele certa vez na margem de uma folha.
À noite, depois de um turno de 12 ou 14 horas de trabalho, Ismael e Juan Carlos se sentavam na cozinha com seus colegas. Eles bebiam cachaça barata e descobriram que ninguém ganhava mais do que US$ 200. Só uma pessoa, um gordão, chegou a US$ 500, diz Ismael, mas ele era sobrinho de Maigua.
Numa dessas noites o celular do sobrinho de Maigua desapareceu e reapareceu apenas na manhã seguinte quando o encontraram na mochila de Ismael. Ele diz não fazer a menor ideia de como o celular foi parar lá e que o devolveu imediatamente, mas o sobrinho de Maigua o ameaçou. A partir desse dia todos passaram a evitá-lo. Durante o dia, na oficina, ninguém mais trocou uma palavra com ele. Maigua, que logo ficou sabendo do acontecido, fazia ainda mais pressão. Alguns dias depois, quando o adiantamento que tinham recebido acabou, eles pediram um adicional. Maigua simplesmente disse que eles deveriam ter planejado melhor as despesas. Eles também passavam fome, pois os outros se negavam a dividir a comida com eles.
“Certo dia”, diz Ismael, “nós simplesmente decidimos ir embora”.
Numa segunda-feira pela manhã, depois de quase três semanas em Cabreúva, eles não apareceram na oficina. Arrumaram suas mochilas e foram em direção à rua principal, onde, num ponto, esperavam que algum ônibus passasse. Pouco tempo depois, subitamente, Maigua apareceu diante deles.
“Aonde vocês vão?”, perguntou ele.
Ismael e Juan Carlos disseram que queriam voltar para São Paulo, e lá iriam procurar por algo diferente. De repente, descreve Ismael, Maigua se tornou gentil. Tudo bem, falou. Ele disse conhecer um bairro lá, onde existiam muitos bolivianos, que ficava a poucas horas dali. Ele disse que poderia levá-los até lá.
O Brás, uma região ao norte do centro de São Paulo, sempre foi um local de imigrantes. Em meados do século passado as famílias vindas da Itália negociavam seu café. Mais tarde chegaram comerciantes de tecidos vindos do Líbano – em suas oficinas de costura, os coreanos se encarregavam dos trabalhos mais fáceis. Quando os libaneses se mudaram para bairros melhores, os coreanos assumiram essas lojas. Eles contrataram, então, bolivianos, que hoje, após duas gerações, ascenderam a proprietários.
No centro do Brás existe a rua Coimbra, uma estreita rua, na qual os comerciantes ambulantes oferecem suas mercadorias em espanhol. Nos postes de luz é possível ver um emaranhado de fios, parecendo ninhos, que levam energia às oficinas instaladas nos pisos superiores. No comércio local, no piso térreo, pode-se comprar máquinas de costura. Existem filiais da Western Union e restaurantes bolivianos, que trazem até mesmo viagens de ônibus em seus cardápios. A rua Coimbra se assemelha um pouco ao Mercado Campesino, onde tudo começou.
Maigua estacionou seu carro próximo à calçada. Segundo Ismael, suas mochilas com seus passaportes foram colocadas no porta-malas do carro. Alguns minutos depois eles estavam em frente a um salão de beleza. Viram como Maigua se afastou alguns metros deles para conversar com outros homens. Às vezes eles olhavam para os dois, como se os examinassem. Palavras soltas no ar, que nesse momento eles ainda não sabiam o que significavam.
“Quinhentos”, gritou um dos homens.
“Muito pouco”, gritou Maigua.
“Setecentos!”
O que está havendo aqui? perguntava-se Ismael. Eles ficaram lá parados cerca de meia hora, sem que nada se passasse. Então, veio até eles uma mulher que estava passando pela rua. “Tenham cuidado”, murmurou ela, “eles estão negociando o preço de vocês!” A todo momento, ela disse, a gente fica sabendo sobre trabalhadores que ficaram doentes e que foram levados para a floresta, em vez de um médico. Sempre saem notícias nos jornais sobre homens cujos cadáveres são encontrados em valetas, sem os rins, que são vendidos no mercado ilegal de órgãos. Ismael e Juan Carlos se olharam. Seu irmão menor estremeceu.
“Tenha calma”, sussurrou Ismael, que nunca em sua vida tinha sentido tanto medo. Até aquele momento ele pensava que eles podiam vender cobertores de algodão. Mas uma pessoa? Alguém como ele?
Antonio Andrade
Eram quase cinco e meia quando o celular de Antonio Andrade tocou. Na linha, estava Jorge Merúvia, amigo de Andrade, que há muito tempo comandava um restaurante na rua Coimbra. “Você não vai acreditar, Andrade”, falou Merúvia. “Tem um cara rondando por aqui e perguntando para as pessoas se elas não precisam de dois trabalhadores. Eu chamei a polícia. Vem pra cá!”
Não existem muitas pessoas em São Paulo que conhecem o dia a dia da comunidade boliviana melhor do que Antonio Andrade, que há mais de 20 anos veio de Sucre para o Brasil por meio de uma bolsa de estudos. Andrade, um tipo de muitos amigos, cabelos escuros compridos, estudou design de comunicação. Hoje administra um site que informa sobre a comunidade dos bolivianos em São Paulo. Andrade mesmo se define como um híbrido, meio jornalista, meio ativista. Ele quer informar, mas ao mesmo tempo trata-se de ultrapassar as barreiras que separam os bolivianos da sociedade brasileira.
Foi Andrade quem providenciou uma cama para Ismael e Juan Carlos em um abrigo para imigrantes de uma igreja. “Eles estavam totalmente acabados”, conta, numa manhã de agosto do ano passado em seu pequeno escritório. Na delegacia, trancaram os dois numa cela, enquanto Maigua tentava negociar algo com os policiais. “Como se fossem eles os criminosos!”, conta Andrade.
Ele diz que pensou por um momento em trazê-los consigo para casa, mas depois pensou que não seria conveniente. Andrade tem três filhas, a mais nova acabara de fazer 9 anos e a mais velha tem 15. Segundo ele, “eles não são meninos fáceis”. Nos dias que se seguiram, ele fez uma espécie de pequena entrevista com eles. Foi aí que ele notou as cicatrizes no antebraço de Ismael.
“Eu perguntei: ‘o que você tem aí?’ Ele respondeu: ‘nada, por quê?’ Então, eu insisti: ‘não tente me esconder nada, eu mesmo usei droga. E as suas tatuagens? Malfeitas assim, as pessoas só fazem na prisão.’”
Andrade sorriu ironicamente quando ele soube que Ismael usava luvas de couro em Sucre.
“Ah, claro”, disse ele. “Por causa do sol.”
Como Andrade preferia se informar por si mesmo sobre Ismael e Juan Carlos, por volta do meio-dia ele resolveu ir à Cabreúva. Ele queria ver se Maigua falaria com ele.
O problema, afirma ele, é a falta de conhecimento das pessoas. Elas não fazem ideia que os trabalhadores escravos que se dirigem às autoridades recebem do Estado uma autorização de residência. Que lhes cabe como forma de compensação pela injustiça sofrida, direito a cuidados médicos, subsídio para aluguel e um salário mínimo. Ninguém diz isso a eles. Quando um patrão ouve que alguém quer fugir da ilegalidade, eles começam a ameaçar a pessoa. Pense nas suas dívidas! Na sua família. Andrade relata que quase todos se conformam. Talvez por medo ou por ignorância ou até mesmo porque o seu salário miserável ainda é melhor do que o que eles ganhariam em seu país.
Maigua
Depois de duas horas, Andrade estacionou seu carro em frente à oficina de costura. Ele desceu do carro e olhou pela porta entreaberta. Um homem veio até ele, talvez 30 anos, pequeno e robusto, de bermuda e chinelos.
“Señor Maigua”, perguntou Andrade.
“O que você quer?”
“Queria saber se podemos conversar um pouco? Sobre a questão dos dois trabalhadores.”
Maigua veio para fora hesitante.
“Mas eu já disse tudo”, respondeu ele. Andrade, porém, insistiu. Por fim, Maigua consentiu.
Lá dentro da oficina, ouve-se o zumbido das máquinas. Uma dúzia de trabalhadores com máscaras do tipo cirúrgicas fogem ao olhar do estranho. Maigua sobe a escada estreita. No primeiro andar ele fecha a porta da cozinha. Em um canto, sobre o fogão, estão panelas que parecem que não são lavadas há semanas. “Às vezes eu tenho a impressão que eu tenho 15 crianças pequenas, que só me dão preocupação”, disse ele.
[olho]“É como no futebol: um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim”[/olho]
“Como Ismael e Juan Carlos”, comenta Andrade.
Maigua balançou a cabeça.
“O dinheiro que eu dei pra eles”, contou, “eles gastaram tudo com bebida. Eles afanaram o celular de um dos empregados. Quando eu os apanhei naquela manhã no ponto de ônibus, eu perguntei: ‘onde vocês querem ir?’ Eles falaram: ‘a um lugar onde a gente seja respeitado’. O que eu poderia ter feito? Simplesmente abandoná-los ali?” Maigua olhou pela janela. “É um pouco como no futebol”, continuou. “Um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim. Meu erro foi fazer isso no meio da rua”.
“Isso é que foi o erro?”, perguntou Andrade.
“O transporte deles me custou um mês de aluguel!”
É uma lógica estranha, mas Maigua afirma que queria ajudar Ismael e Juan Carlos. Ao mesmo tempo, ele queria transferir as dívidas que eles tinham com ele a outra pessoa, a fim de não ter perdas. Seus olhos se enchem de lágrimas.
“Há 30 anos”, disse ele, “eu lutei, e agora sou alvo das pessoas”.
Trinta anos. A voz embargada de Maigua ao recordar-se. O vilarejo não muito distante da cidade boliviana de Potosí, onde ele ajudava seus pais nos campos secos durante a colheita de trigo. Aos 11 anos, o primeiro trabalho em Santa Cruz, como ajudante na produção de tijolos. O segundo trabalho, em uma loja de material de construção. A pergunta era: sua vida seria assim para sempre?
Maigua tinha 18 anos quando comprou uma passagem de ônibus para o Brasil, após juntar as economias de um ano inteiro. Ainda durante a viagem, disse ele, um boliviano ofereceu a ele uma vaga em uma oficina de costura. Maigua aguentava turnos de 14 ou 16 horas de trabalho, sete dias por semana. Às vezes, conta, ele levantava às 3 horas da manhã, porque assim as melhores máquinas estavam livres. Por ser econômico e não beber ele conseguiu comprar sua própria máquina de costura. Assim ele costurava por conta própria bermudas de surf, “para Adidas e Nike”, ressalta.
Depois, em 2006, sua primeira oficina com seis empregados. Em 2009, sua primeira máquina eletrônica. Em 2012, a primeira casa, pequena, para ele e sua esposa.
A história de Maigua, da maneira como ele contou, é a história de uma autoexploração de anos, que ao final, quase desemboca em um pouco de liberdade. Não é nenhum acaso que tenha muitos pontos de convergência com a história de Ismael e Juan Carlos. São histórias de vida que se repetem, biografias em que conceitos como direito, lei ou moral não têm nenhum significado. Tudo o que importa é a perseverança da vontade, força pura do próprio corpo. Se a pessoa não suporta isso, assim pensa Maigua, ele volta como um homem derrotado ao seu lar.
[olho]Maigua, no fundo, também é uma vítima[/olho]
Maigua não esperava de Ismael e Juan Carlos nada além do que esperava de si mesmo. No momento em que eles não serviram mais para ele, foram trocados como uma máquina defeituosa.
Ele não entende por que está sendo investigado por tráfico de pessoas pelo Ministério Público. Conforme ele afirmou, tudo custou dinheiro, seu advogado e a multa, que agora ele precisa pagar. Há semanas os pagamentos estão atrasados, também porque a Atmosfera, depois do incidente, cancelou todos os pedidos. A empresa era o único cliente que Maigua tinha na época.
Para o advogado Renato Bignami este é um ponto crucial. Maigua, segundo ele, no fundo também é uma vítima.
Em seu relatório, ele explica em várias páginas porque Maigua não tinha um negócio independente. A empresa Atmosfera comandava tudo: a produção, os prazos de entrega, o preço por mercadoria e o molde das peças. Nos uniformes eram costuradas etiquetas que identificavam a Atmosfera como proprietária. Se as peças fossem reprovadas no controle de qualidade, bem como se Maigua não respeitasse os prazos de entrega, multas eram aplicadas.
O problema, segundo Bignami, é a terceirização, através da qual a empresa reduz os custos de produção. As demandas exigidas de Maigua eram tão drásticas, que ele só poderia cumprir explorando, de forma ilegal, seus trabalhadores. “A responsabilidade por isso”, afirma Bignami, “recai somente sobre a empresa Atmosfera”.
Quando, depois do término de suas pesquisas, ele confrontou o diretor da empresa com os resultados encontrados, este procurou minimizá-los. Ele explicou que fornecedores como Maigua trabalham por conta própria, por isso não existe nenhum controle interno. A empresa não sabia de nada, não podiam ser responsabilizados. É isso o que todos dizem. Entretanto, a empresa concordou em pagar a compensação exigida por Bignami, talvez porque a quantia de US$ 6 mil seja um valor irrisório comparada às perdas que um escândalo na imprensa poderia gerar.
Atualmente, a Atmosfera não quer mais se pronunciar publicamente sobre o caso. Bignami espera que o diretor seja responsabilizado judicialmente. Além disso, ele quer que a empresa seja incluída numa lista que apresenta nomes de empresas que têm, em sua cadeia de produção, ligação com casos de trabalho escravo. Para Bignami, esta lista é um instrumento muito útil. “Se quisermos mudar algo”, ele afirma, “precisamos ir atrás dos peixes grandes. Eles só são vulneráveis quando sua reputação está em risco”.
Juan Carlos
Para Serapio Maigua parece uma piada de mau gosto, que justo os dois jovens que mais lhe causaram problemas, saiam no fim das contas com US$ 6 mil, enquanto ele, após tantos anos, provavelmente tenha de encerrar suas operações. Antonio Andrade parecia pensativo ao entrar em seu carro depois de mais uma visita. É engraçado, disse ele, como às vezes os limites se tornam confusos. Como às vezes é difícil distinguir quem são os autores e quem são as vítimas. A partir de que ponto termina a exploração? Onde, exatamente, começa a escravidão?
Durante sua volta de Tarija, quando pegou sua mochila na rodoviária de Sucre, Ismael disse nunca mais querer sair do país. Ele tem planos de tirar a carteira de habilitação para depois trabalhar como motorista de ônibus. “Continuamos a conversa amanhã”, disse ele ao se despedir. “Mantenha contato.”
Um telefonema ao meio-dia. Novamente, surge uma melodia e o verso “eu desejaria nunca ter te conhecido” [uma música alemã]. Então, de repente, uma voz estranha diz: “Aqui é o Juan Carlos!” Ele queria saber se era o jornalista e se a gente não poderia se encontrar. Ele disse que era urgente.
Você não está na Argentina com seu pai?
“Na Argentina? Eu nunca estive na Argentina, muito menos com meu pai. Meu pai era um bêbado, que apanhou tanto, que de algum modo desenvolveu um tumor no peito. Ele morreu quando eu tinha dois anos.”
Pouco depois Juan Carlos apareceu em uma cafeteria na Praça 25 de Maio, um jovem de 18 anos com cabelo partido de lado e um casaco azul da Adidas. Ele tinha ideogramas chineses tatuados no pescoço. Segundo Juan Carlos, os caracteres significam Mariella, o nome da sua nova namorada, que assim como ele é pouco gorda, mas muito simpática. Juan Carlos não contou a ela sobre o pesadelo que vivera há alguns meses. Ele chora toda vez que toca no assunto: como a aventura no Brasil se transformou em puro terror.
A história, da maneira como ele contou, assemelha-se em muitos pontos com aquela contada por Ismael. Apenas algumas coisas foram omitidas por seu amigo.
“Ismael”, disse Juan Carlos, “é um trapaceiro. Pouco me admira que tenha dito que eu estava na Argentina”.
Conforme ele relatou, quando o padre enviou a indenização para Sucre por meio da Western Union, a quantia foi transferida em nome de Ismael. Na época, ele era o único dentre os dois que tinha um número. Ele disse que Ismael prometera-lhe pagar a sua parte cabia e ele confiou no amigo.
Ismael trouxe-lhe US$ 1.500. Isso era a metade do que ele esperava, mas Ismael explicou que mandaram menos do que tinham informado.
Juan Carlos não acreditou nele.
“Ele deve”, supõe, “ter embolsado US$ 4.500. De onde teriam condições de construir um novo andar para sua casa?”
Ele mesmo ficou apenas com uma pequena parte, com o que comprou algumas calças e casacos. Todo o restante ele entregou para sua mãe, que compra roupas para revender em sua barraca no Mercado Campesino.
Os dois não conversam há meses. Segundo Juan Carlos, corre pelo bairro o boato de que Ismael recebeu a visita de um jornalista. Teria se aproximado sob o pretexto de entregar um celular, para que ele pudesse interceptar a próxima ligação. Ele acha que o visitante deve ser Antonio Andrade, já que ele não conhece outro jornalista. Juan Carlos contou que Andrade disse a eles uma vez que Dilma Rousseff, a presidente afastada do Brasil, se encarregaria pessoalmente de enviar a eles alguma ajuda todo mês. Gostaria apenas de lembrá-lo disso.
“No Brasil a experiência foi ruim, porém as coisas com o Ismael foram bem piores.” Juan Carlos perdeu seu melhor amigo.
Publicado originalmente em Abril de 2016 pela Zeit Magazin. Republicado com permissão. Tradução por Danilo Freire e Yasmim Nimbu.