Entrevistas em que celebridades fogem do roteiro pré-aprovado por seus assessores de imprensa são cada vez mais raras. Quando acontecem, costumam viralizar e resultar em um monte de pedidos de desculpas. Para ficar num caso da semana passada, com um ator pouco conhecido: Noah Galvin, da série “The Real O’Neals”, deu uma entrevista ao site Vulture, em que contou de suas dificuldades em conseguir papéis por ser gay, fez críticas a como personagens gays são representados — citando o personagem de Eric Stonestreet em “Modern Family”, “uma caricatura de um estereótipo” — e mencionou um boato tão grave envolvendo o diretor Bryan Singer que foi até excluído do texto do site depois. Batata: em poucas horas as declarações já haviam se espalhado e ele fez uma longa retratação nas redes sociais, pedindo desculpas a quem tinha e não tinha ofendido.
Lembrar de algumas das conversas de atores, cantores e políticos com a equipe do Pasquim, jornal que circulou entre 1969 e 1991, encenadas por atores no programa “As Grandes Entrevistas do Pasquim”, que estreou na segunda (13), às 20h, no Canal Brasil, é especialmente impactante nesse contexto. Difícil ver alguém falar com tanta sinceridade. Leila Diniz, por exemplo, declarou (em meio a muitos palavrões e revelações sobre seus relacionamentos com outras celebridades) que não gostava de teatro — Caio Castro fez o mesmo anos depois e, sob uma avalanche de críticas de outros atores, recuou um pouco na afirmação (“não é que eu não goste, só não gosto muito”). Já Agnaldo Timóteo falou mal de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e de Tom Jobim (exemplo: “Caetano é uma merda!”).
Dirigido pelo documentarista André Weller, o programa do Canal Brasil apresenta a cada episódio uma entrevista publicada no Pasquim encenada por um grupo de atores e gravada em uma só tomada, incluindo os trechos em que o elenco sai do roteiro para fazer alguma interjeição pessoal. As cenas de conversa, feitas pelo jornal regadas a álcool e cigarro, são intercaladas por depoimentos de pessoas que participaram da história do Pasquim, num misto de documentário e ficção.
André Weller conta que sempre foi fã do jornal, que o pai comprava e ele folheava por causa dos desenhos. “Nasci em 1971, peguei criança o auge do jornal”, lembra. “A parte gráfica era muito forte, me interessava bastante. Depois descobri as entrevistas do Pasquim, foi uma coisa que li e reli muito na minha vida.” Anos atrás, relia a polêmica entrevista de Agnaldo Timóteo quando percebeu que existia ali uma dramaticidade grande. Quando a primeira edição saiu, o cartunista Jaguar foi o responsável por transcrevê-la e editá-la. Sem ter feito aquilo antes, escreveu tudo exatamente como ouvia, sem editar ou tirar marcas de coloquialidade. Não havia tempo para corrigir o erro antes de mandar o jornal para a gráfica e foi daquele jeito mesmo. Um sucesso.
As entrevistas, que tinham até rubricas (estilo “Agnaldo fala irritado”), viraram marca registrada do Pasquim e tinham toda cara de teatro mesmo. “Cada personagem tinha uma certa função dentro do texto. O Sérgio Cabral era mais apaziguador, o Tarso de Castro é mais ácido, o Millôr com aquelas tiradas dele, o Ziraldo falando muito”, diz Weller. “Eles deixavam muito o entrevistado à vontade. Eles embebedavam o entrevistado, ele falava coisas que nunca tinha falado. Deu um estalo e eu pensei que dava pra transformar num texto dramático e colocar atores pra ler esses textos.”
Das 1.072 entrevistas publicadas pelo Pasquim, a equipe de André escolheu 13 para a primeira temporada, buscando diversidade de personagens — musas, como Leila Diniz, Dina Sfat e Elke Maravilha, políticos, como Lula e Jânio Quadros, músicos, como Chico Buarque, Agnaldo Timóteo e Cazuza. Para interpretar cada um desses entrevistados foi escolhido um ator por afinidade. Leila e Dina, por exemplo, são vividas por suas filhas, Janaína Diniz e Ana Kutner. Chico Buarque, que canta na entrevista, é interpretado pelo cantor Marcos Sacramento. Já Elke Maravilha é papel de Michel Melamed, que a escolheu. “A entrevista mais forte de todas é do Gabeira no exílio, ele fala de tortura, do sequestro do embaixador americano, e essa intensidade coube muito bem no Matheus Nachtergaele”, exemplifica.
Não houve ensaio com os atores, que gravaram tudo em uma só tacada. “Veio meu lado documentarista, não encarei aquilo como ficção. Não gravei como ficção. Era uma mesa redonda, dois carrinhos circulares com câmera e a partir do momento que eu falava ação eles faziam a entrevista inteira”, conta Weller. “Documentei essa leitura. Você percebe que tem um momento em que a Janaína está falando o texto da mãe, como Leila Diniz, falando que o pai não falava palavrão. Aí ela fala: ‘Posso fazer um parênteses? Meu avô passou a falar muito palavrão’. Aquilo ficou. Falo muito que o cinema é a arte do diretor e o teatro, do ator. No programa os atores ganharam a batalha. Eles comandaram ali, vestiram a camisa do Pasquim e levaram a entrevista.”
Ver as conversas encenadas como aconteceram (Janaína Diniz, por exemplo, fica o tempo todo com uma toalha enrolada na cabeça, como a mãe) causa uma impressão diferente do que lê-las. Para Weller, a entrevista mais impactante no palco foi a de Dina Sfat. “Ela tinha acabado de se separar do Paulo José e fala da separação. Chamei a Ana Kutner, filha dela. A Ana reencarnou a mãe. A gente ficava muito surpreso. Ela passava a não ler mais a entrevista, como se soubesse aquilo, as palavras saíam. Tem muita emoção”, diz. “Essa entrevista foi a única póstuma do Pasquim, ela morreu logo depois. Demorou um pouquinho pra publicar e ela morreu.”
Depoimentos dos jornalistas envolvidos nas entrevistas são entremeados com as cenas de conversa, para ajudar o espectador o que estava acontecendo naquela época, no que a equipe do jornal estava pensando. “No do Lula, eu queria saber o que era ter um operário do ABC lá em Ipanema. O Jaguar fala no programa que nunca gostou do Lula, desde que ele entrou na sala. Eu queria misturar essa parte documental com a ficção”, diz o diretor, que foi auxiliado nisso por Ricky Goodwin, que editou as entrevistas do Pasquim por 14 anos e foi roteirista da série.
A princípio o programa iria ao ar depois da Copa do Mundo, em 2014, mas atrasou dois anos. Weller diz, porém, que a demora foi oportuna. “Porque a gente está falando do maior jornal subversivo que a gente teve, que se posicionava contra o governo que estava instaurado. A gente vai ver essas entrevistas num tempo em que as pessoas estão se posicionando de alguma forma, seja de que lado for”, afirma. “Acho que esse atraso foi bom, na verdade. Ele vai ser lançado num momento político efervescente, como era. Costumo falar que o Pasquim não era um jornal, era um espírito.”