Entre o governo colombiano e os traficantes de cocaína há uma importante parcela da população do país que fica no meio do fogo cruzado. Essas pessoas cujas histórias são menos contadas — não estão em séries como “Narcos” ou outras produções do gênero, por exemplo –, são agora centro de um documentário da HBO, “Guerras Alheias”, que estreia na segunda (13), às 22h. O filme analisa os resultados de uma parceria entre Estados Unidos e Colômbia — o Plano Colômbia — para combater o tráfico de cocaína, que envolveu a pulverização de glifosato, um herbicida, nas plantações de coca colombianas com aviões. A teoria: o herbicida acabaria com os pés de coca, diminuindo a produção de cocaína, a oferta da droga e o tráfico. Já o uso de aviões tornaria o processo todo mais seguro — tentar matar um pé de coca manualmente poderia resultar em violência e morte de humanos. Todo o mundo sairia ganhando, certo?
Na prática, o que acontece é bem diferente. Primeiro, o glifosato foi apontado pela Organização Mundial de Saúde no ano passado como um agente potencialmente cancerígeno — a Colômbia, aliás, foi durante anos o único país que disseminava a substância pelo ar. Muitos camponeses atingidos pelo herbicida passaram a sofrer com problemas de saúde: machucados na pele, nos olhos, abortos, defeitos congênitos em crianças. Nenhuma dessas pessoas foi indenizada e o governo colombiano contesta que essas doenças sejam causadas pelo glifosato — embora estudos de pesquisadores franceses mostrem que a substância destrói as células humanas.
Tanto autoridades colombianas quanto americanas, envolvidas na pulverização, afirmam que têm um estudo que mostra que nada disso é verdade. Importante ressaltar: um estudo financiado pela Monsanto, líder mundial na produção do herbicida glifosato. Apesar disso, a Colômbia indenizou o Equador, que reclamou que o glifosato estava chegando lá durante as pulverizações. É um reconhecimento de que o glifosato é ruim — para os equatorianos, não os colombianos.
Há também outros impactos, já que a pulverização de herbicida não atinge só as plantações de coca, mas tudo o que os camponeses plantam. Sem conseguir produzir, muitos ficam em situações de muita pobreza e devem migrar para cidades, onde encontram um cenário igualmente precário — a Colômbia é um dos países do mundo com maior número de pessoas deslocadas de suas casas, à frente de países em guerra. É não só uma questão de saúde como uma questão social. Uma massa de camponeses e de populações indígenas é atingida por uma guerra alheia. E segundo dados do documentário pouca coisa mudou no tráfico de drogas desde o início do Plano Colômbia.
Segundo Paul Drago, produtor da HBO, uma das grandes dificuldades na produção do documentário foi não ficar enviesado e dar para todos os lados a oportunidade de falar, permitindo que todos dessem sua opinião, contra ou a favor do uso dos herbicidas. Foram entrevistadas mais de 30 pessoas para o filme, entre políticos, camponeses, sociólogos, historiadores, entre outros. As afirmações das entrevistas, dos dois lados da questão, são contestadas ou apoiadas por pesquisas e estatísticas, exibidos em forma de infográfico ao longo da produção. “Um dos grandes desafios virou uma das grandes qualidades do documentário, que foi separar aquilo que pudemos verificar do que não pudemos”, diz Drago.
Quando o documentário estava em fase de edição, prestes a ser concluído, a OMS declarou que o glifosato é potencialmente cancerígeno e a pulverização aérea do herbicida foi proibida na Colômbia. O próprio presidente do país, Juan Manuel Santos, declara no filme que o combate às drogas deve ser pensado como uma questão de saúde pública e social, e não como uma guerra, que tem afetado a vida de tanta gente. Esses desdobramentos tiveram tempo de serem incluídos às pressas no filme. “O projeto meio que se dividiu em duas partes. Quando começamos, dois anos e meio atrás, filmamos as entrevistas, juntamos os materiais. E quando estávamos acabando, editando, várias coisas importantes aconteceram. Uma delas foi a declaração da OMS de que é o glifosato é perigoso e o fato de que o governo colombiano suspendeu a pulverização área”, diz o produtor.
No entanto, a pulverização terrestre ainda é permitida, então a história ainda continua. De acordo com reportagem do El País, o governador de uma das regiões afetadas pelo glifosato é contra, dizendo que o herbicida não é efetivo para combater a cocaína, além de gerar efeitos colaterais. O Ministério de Saúde do país, por outro lado, afirma que as fumigações seguirão protocolos e não prejudicarão ninguém.
Os resultados da pulverização aérea também são debatidos. Segundo dados das Nações Unidas, o cultivo de coca cresceu entre 15% e 20% desde que aviões pararam de jogar herbicida nas plantações. O Ministro da Defesa concluiu, com isso, que a pulverização aérea é eficaz. Estudiosos, por outro lado, afirmaram que o aumento das plantações se deu porque o cultivo de outras plantações não deu os resultados esperados e, com o aumento do preço da coca, os camponeses não viram outra opção a não ser plantar mais coca.
É uma discussão ainda em andamento, mas “Guerras Alheias” é uma boa lembrança do impacto que as políticas antidrogas têm nas vidas de milhares de pessoas que não estão envolvidas no tráfico, e sim presas no meio de uma guerra que não é sua. O filme dá voz a essas pessoas que costumam estar de fora das conversas, inclusive na própria Colômbia. Lançado agora, o filme faz parte de uma conversa que continuará atual por tempo indefinido. “A gente poderia fazer uma segunda versão do filme em julho, depois outra em agosto”, diz Drago. E é uma história em andamento, para se seguir de perto.