Na televisão, hoje, a realeza do tráfico de drogas é brasileira. O rei é Wagner Moura, o Pablo Escobar de “Narcos”, série do Netflix. A rainha agora é Alice Braga, que protagoniza “A Rainha do Sul”, que estreia neste mês nos Estados Unidos e em 7 de julho aqui, no canal Space. “Eu falei pro Wagner: ‘É nóis na cocaína!’. Ele é um irmão pra mim, foi muito engraçado ele ser o rei e eu, a rainha do tráfico”, diz Alice para um grupo de jornalistas em São Paulo. Na série americana ela é Teresa, que se envolve com as drogas após a morte do namorado traficante. A trama é baseada em livro de Arturo Pérez-Reverte, que também deu origem à novela mexicana “La Reina del Sur”, com Kate del Castillo — aquela que colocou Sean Penn em contato com El Chapo.
A história de Alice com a série começou oito anos atrás, quando ganhou o livro de presente de uma amiga. “[Ela] me deu e disse: ‘Você tem que ler esse livro, a história é linda e é uma super personagem. Você tem que ler, independente de querer fazer ou não. Mas é uma personagem que você pode fazer, ela é latina e tal’. Aí eu li e me apaixonei pela Teresa”, conta a atriz. Na época estava previsto que o texto virasse filme, possivelmente protagonizado por Eva Mendes. O projeto caiu por terra, a história virou novela e o livro continuou na estante de Alice.
Anos depois, quando ela gravava o filme ‘O Duelo’ — ainda inédito — nos Estados Unidos, recebeu um e-mail dizendo que dois roteiristas queriam conversar com ela sobre o projeto “Queen of the South”. “Eles me mandaram a sinopse e eu pensei: ‘Não é possível, depois de oito anos voltou esse projeto pra mim’. Foi muito especial.” Eles se encontraram, conversaram e logo Alice topou. Ajudou que sua estreia em séries fosse em uma produção com 13 episódios por temporada. “Eu não fecharia se tivesse 22. Porque com 22 você fica o ano todo fazendo ela. E eu amo muito fazer cinema”, diz. “Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série. É engraçado, pensei muito nisso quando fui assinar o contrato de cinco anos. Meu Deus, cinco anos. Nunca assinei uma coisa que você fica conectada.”
A série tem algumas diferenças em relação ao livro que a originou e à novela que a antecedeu. No original, Teresa foge do México após a morte do namorado e vai para a Espanha e o Marrocos. Na série, ela vai para o Texas, local escolhido parte porque o Estado deu incentivos à produção e parte porque fica próximo da fronteira entre México e Estados Unidos. Lá, Teresa, garota que não tinha muita família ou amigos e veio das ruas, se transforma na Rainha do Sul, chefe do tráfico. Há também novos personagens e tramas. “Eles ainda estão escrevendo e desenvolvendo essa jornada. O que eu achei interessante, também pra se diferenciar do que a gente já viu na série em espanhol.”
[citacao credito=”” ]Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série[/citacao]
Sua Teresa, porém, é totalmente baseada na versão do livro, que ela chama de sua Bíblia. “Eu falei [para os roteiristas]: ‘Vamos nessa, mas vou honrar ela. Tudo que vocês jogarem pra mim eu vou querer sentar com vocês e falar que isso ela não faria e isso ela faria’. Foi muito legal, porque eles foram muito generosos comigo nesse sentido, de entender, de querer saber”, conta. A Teresa do livro, por exemplo, é uma mulher que não se vitimiza. “Teve uma fala que eles escreveram em que ela estava se vitimizando. Liguei pra eles e falei: ‘Não posso falar essa frase, porque isso compromete pra onde a gente está indo. Como é uma série em que a gente sabe onde ela vai chegar, que ela é a Rainha do Sul, a gente tem que tomar muito cuidado.”
Alice fala com bastante empolgação da personagem, que descreve como uma traficante que não é má nem usa violência se puder evitar. “Ela é quase uma diretora de empresa. É uma mulher de negócios, que foi construindo o império dela pelas condições que a vida foi levando, mas que é uma mulher que trabalha nesse business de cocaína, que é um mundo extremamente masculino”, diz. Viver um tipo de personagem geralmente interpretado por homens, aliás, foi um dos grandes atrativos, segundo ela. “Normalmente quando a gente é protagonista de alguma coisa relacionada ao universo masculino ou a gente está procurando marido ou separando do marido. Ou é sobre o universo feminino e por isso é interpretado por uma mulher”, afirma. “Ela tem a força de uma mulher e esse é o diferencial, mas não é interpretada por uma mulher porque é feminino. Nesse tempo em que a gente está tendo essa discussão foi muito especial.”
Gravar “A Rainha do Sul” foi uma experiência bem física. “Quando vi os roteiros pensei: ‘Vocês realmente me acharam a heroína da ação, né?”, ri Alice. “Teve uma vez que o câmera e o foquista estavam num carrinho, eles vinham correndo com o carrinho e eu correndo. E eu comecei a bater o carrinho. Eles diziam: ‘Você tem que ir mais devagar!’. E eu: ‘Gente, não dá pra eu ir mais devagar, eu tô correndo pela minha vida!’. Era eu apostando corrida com o carrinho. Foi muito divertido, esse tipo de coisa eu adoro fazer.”
Alice tinha três dublês disponíveis, mas tentou fazer tudo o que dava, incluindo cenas de explosão e uma em que a personagem dirigia recebendo tiros de um lado, vidros do outro, no escuro (“videogame total!”). “Você ver a cara do personagem até o limite faz diferença. Você ficar com ela até aquele segundo. Talvez seja eu que ache isso, mas quando vejo um filme eu gosto disso”, diz. Mexer com armas não foi novidade. “Sou muito tipo medrosa, mas por uma feliz coincidência fiz muita coisa de ação.” Aprendeu, por outro lado, a contar dinheiro muito rápido. “Gente, ela troca dinheiro todo dia.” Pequenas coisas.
Depois da polêmica do sotaque de Wagner Moura, seria Alice a próxima vítima? Ela diz que quis muito tentar um sotaque mexicano, mas o canal optou por deixar seu acento original. “Foi engraçado, eu passei anos limpando o inglês e eles falam: ‘Esquece a limpeza, usa seu inglês!’. Foi um desafio legal.” Deixar a língua mais neutra é parte de uma estratégia para atrair também as segundas e terceiras gerações de latinos nos Estados Unidos, comunidade alvo de investimento do canal. “A comunidade latina lá é gigante, cada vez maior, cada vez crescendo. Existe um desejo [de trazer latinos para a TV], assim como de um protagonismo feminino, como eu disse, algo que eu quero trazer cada vez mais pra mesa”, diz. “É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor, em busca de realizar um sonho, de ligar a TV e estar lá.”
[citacao credito=”” ]É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor[/citacao]
Na versão brasileira, Teresa será dublada pela própria Alice. “É muito legal as pessoas do meu próprio país me verem falando a minha língua. Teve uma vez, num filme que eu não conseguiu fazer [a dublagem], que a minha mãe não conseguiu ver, mudou de canal!”, conta. “E é um desafio, você revisitar uma coisa que você já fez, é um personagem que está pulsando, vivo dentro de você, mas trazendo uma leitura dele. A música é diferente, a maneira que você imposta sua voz é diferente. É uma releitura daquilo”, continua. “Não tinha como não ser minha voz. Até ia ficar com ciúmes se alguém mais fizesse, ela é minha!”
Depois de passar tanto tempo nos Estados Unidos, Alice se confunde às vezes no português e usa termos em inglês. “Quando eu conversei com os roteiristas a primeira coisa que eu perguntei foi: isso não é uma ‘glamouralização’ da droga? Pelo amor de Deus. O que está acontecendo no mundo, principalmente no México, é muito sério. Muito sério. Então se a gente faz uma glamouriza… Gla-mou-ra-li-za-ção? Desculpa, gente. Glamourização. Glamourization! Mais fácil”, diz, rindo. Glamourizar a droga iria contra o que ela acredita, diz.
“O que eu acho que é o diferencial de ‘A Rainha do Sul’ é que a gente segue ela [a personagem]. A gente não fala ‘ah, é legal a cocaína’, a cocaína é um coadjuvante. A gente está vendo essa mulher sobrevivendo nesse mundo movido por violência, um mundo extremamente masculino. É uma jornada de busca pela sobrevivência, pragmatismo, foco, de buscar segurança”, opina. É que nem “Breaking Bad”. “Por que a gente pirou? Por causa da jornada dele como personagem.”
Ela conta que no último dia de filmagem, levantou as mãos enquanto chorava, momento registrado em foto. “É diferente de um filme, quando você lê um roteiro, discute com diretor e roteirista, faz começo, meio e fim, entregou, próximo projeto. Eles continuam montando, mas em três meses você fez sua jornada. Pela primeira vez estava em contato com uma coisa de ela estar pulsante, os roteiros estavam chegando e a gente mudando ela, vendo pra onde ela vai”, diz. “Você vai quase criando e vivendo com o coração dela. Você vive das cinco da manhã quando senta na cadeira de maquiagem até as oito da noite quando volta pra casa. Foi muito legal. Agora ela é um corpo vivo. É total cenas do próximo capítulo, eu não sei o que vai acontecer na segunda temporada.”