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Uma década a 45rpm

Em uma manhã chuvosa, fim do verão de 2004, eu assinava o certificado de reservista na junta militar do Viaduto Jacareí, no centro de São Paulo, e entrava oficialmente na idade adulta, embora sem muita convicção. Longe dos estudos, sem trabalhar e tensionado pela imaturidade, eu sentia no alto dos meus dezoito anos o peso do rito de passagem. Mas essa não era a única metamorfose latente. O rock, especialmente punk e hardcore, que ditara meu comportamento desde a adolescência, influenciando a forma com que eu percebia o mundo e me via perante ele, já não me bastava. Uma necessidade quase física me empurrava a novos ritmos e melodias.

Naquele dia, enquanto aguardava o burocrático processo, rodava no meu discman um CD que eu baixara na internet por influência de um primo, com clássicos do reggae. Gênero que, até então, eu praticamente desconhecia e que há um par de meses absorvia completamente minhas atenções. Ainda que eu não fosse muito afeito à natureza e viagens místicas. Coisas que, pensava eu, faziam, obrigatoriamente, parte da vida de quem curtia Bob Marley. Apesar do meu próprio preconceito e autocensura, não podia disfarçar que a febre jamaicana tinha me acometido.

Descobri, na velocidade de um modem 56K, mais informações sobre aquele ritmo hipnótico e sua cultura. Bob Marley não era o único mito da pequena ilha caribenha; o reggae era apenas uma das possibilidades dentre as vertentes da música jamaicana; sua origem era urbana, nada tinha a ver com som de cachoeira ou trampos de Durepoxi; e o melhor de tudo: em São Paulo, havia uma festa, bem na Boca-do-Lixo, quando o centro ainda não estava na moda, a Susi in Dub. De quebra, ela era comandada por um DJ japonês, que tocava reggae de verdade, com discos de vinil e caixas potentes. Melhor rolê da cidade, diziam.

O disco dá voltas

Lá, ouvi e vi, pela primeira vez, a destreza de Fabio Murakami, ou melhor, Yellow-P, nas pick-ups. Era uma sexta-feira. Logo ao entrar no local, um forte grave irrompeu no meu tórax. Combinado às intermitentes guitarras, o som formava uma espécie de colchão sonoro que dava um toque inebriante ao ambiente. O DJ de olhos puxados, envolto a uma fumaça branca e densa, soltava pedradas musicais, uma atrás da outra. O chiado dos vinis reverberava nas paredes sem reboco, fuzilando de ricochete os ouvidos de no máximo 100 pessoas, apertadas e em transe, dançando ao sabor daquela que, para mim, era a maior novidade do ano.

Passados onze anos, reencontro o paulistano descendente de orientais em outra situação, dessa vez em sua casa, na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, com o reggae emancipado e atraindo cada vez mais público. A cultura sound system, na forma de coletivos e festas, já não é novidade e se multiplica por todos os cantos. Hoje, é possível curtir música jamaicana, seja qual for a vertente, quase que diariamente, sem exageros. Os discos ficaram mais acessíveis por conta da internet e a capital paulista entrou na rota de grandes nomes da cena, com a vinda de cantores, produtores e DJs, jamaicanos ou não, a exemplo de Lee Perry, U-Roy, Skatalites, Mad Professor, Roy Ellis, Tommy Far East, entre outros. Mas nem sempre foi assim, digamos, fácil. Principalmente para os primeiros que se aventuraram a fazer das vitrolas suas vidas.

Apesar de a cultura sound system e a cena reggae serem populares no Maranhão há algumas décadas, sob o nome de “radiolas”, aqui em São Paulo a coisa se desenrolou apenas na virada do século. Lutar contra a escassez de discos e recursos, a estigmatização do ritmo, além da desinformação do público sobre em que consistiam as festas, eram algumas das missões mais árduas para os iniciantes do negócio. Foi necessário muito empenho para que o status do ritmo fosse aos poucos se alterando.

Influenciado por uma tia que frequentava shows de reggae no início dos anos 90 e que chegou a namorar o baixista do Shabba Ranks, Fabio Murakami, 35 anos, começou sua coleção com CDs, ainda adolescente, e comprou seus primeiros discos de vinil por telefone, de uma loja britânica descoberta através do livro “Rough Guide”. “Aqui não havia discos de vinil de reggae, era mais pop e rock. Em Londres, sim, a loja se chamava Dub Vendor. Liguei e tive a sorte de ser atendido por uma portuguesa. Fiz uma seleção dos produtores que eu mais gostava e deu certo”, recorda-se sobre o início da saga. “Aproveitei que minha tia estava na casa da melhor amiga, na Inglaterra, ela que me trouxe os discos. Ainda me lembro: foram 15 vinis de sete polegadas; Lloyd Parks, King Tubby, Johnny Clark… Coisas que toco até hoje.”

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Yellow P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: Divulgação
Yellow-P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: André Freitas

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Com os discos em mãos e algumas parcerias firmadas, não levou muito tempo para que pintassem as primeiras festas e o pseudônimo, Yellow-P, trocadilho com a ascendência japonesa (Yellow Power). Afinal, “DJ Fabinho” lembrava uma coisa meio rádio FM e festa de praia, tudo o que à época ele queria evitar. O primeiro evento com organização própria, oficialmente, aconteceu no fim de 2001, na Green Express, pico tradicional da comunidade maranhense em São Paulo. Falantes ruins, mais de dois mil cartazes colados à mão, trabalho braçal de divulgação. Ali nascia o coletivo de sound system Dubversão, que alcançaria, anos mais tarde, grande projeção devido às famigeradas noites no Susi, culminando na festa mensal Java, que rola desde 2006, e influenciando as novas gerações de DJs que surgiriam ao longo da década.

Aqueles foram anos de militância. Onde quer que abrisse um espaço para o reggae, lá estaria Yellow-P e o Dubversão. A casa de show KVA — conhecida pelo forró –, uma praça na Lapa e até um acampamento do MST abrigaram suas caixas de som e seus vinis. A convite de uma amiga, para um dia cultural na ocupação, ele foi parar em um acampamento do movimento, perto de Mairiporã, debaixo de uma chuva torrencial. “Essa festa no MST foi inesquecível, legal pra caralho. Fomos muito bem recebidos. No dia, caiu um temporal absurdo e, na cabana onde estávamos, entrava água por todos os lados, o equipamento ficou encharcado. Foi a primeira vez que tomei uma chuvarada na cabeça”, diverte-se ele.

Se o pessoal do MST recebeu a festa de braços abertos, não se pode dizer o mesmo do público clássico do reggae, acostumado às tradicionais versões tupiniquins do roots internacional, feitas por bandas como Tribo de Jah e Planta & Raiz. “Cadê os músicos?”, indagavam. É só um DJ? É instrumental e não tem vocal? O que é isso? A estranheza era tamanha que, no início, nos versos dos flyers das festas, a equipe se prontificava a explicar, como numa cartilha, que dub é um recurso de mixagem das bases do reggae em estúdio, com efeitos eletrônicos, criado nos anos 70. Para Yellow-P, o público do reggae não só não entendeu o que era como virou as costas. E os leigos nem frequentavam, porque existia uma imagem estereotipada do gênero. Algo que o Dubversão em muito ajudou a desconstruir.

De lá para cá, tudo mudou. Se no início, Fabio discotecava com apenas 100 discos, ou menos, hoje ele possui aproximadamente dois mil. Não sabe nem dizer. Além disso, tocou em eventos como a Virada Cultural, e recepcionou a vinda de muitos artistas estrangeiros ligados à cena ao Brasil. “Realmente, os gringos descobriram São Paulo. A cena hoje é grande e completamente diferente. Não tínhamos pretensão alguma naqueles primeiros anos, mas sonhávamos com isso. Quem pensou que um dia teríamos dois artistas jamaicanos tocando na mesma semana?”, questiona, fazendo referência a junho deste ano, quando apenas alguns dias separaram as apresentações de Johnny Osbourne e Danny Red.

As facilidades, de certa forma, impuseram uma realidade não programada à ideia de crescimento. Atualmente, é possível encontrar discos de reggae até na feirinha da Teodoro Sampaio. Vendedores na internet disputam compradores ávidos por montarem seus próprios sistemas de som. Há lojinhas espalhadas por todos os lugares, mas este fácil acesso, diz ele, diminuiu a pesquisa e a profundidade necessárias. Tudo está mais superficial. “Há 10 anos, ninguém sabia o que era dub, hoje muitos pensam que conhecem tudo”, comenta o DJ, que enxerga o panorama com certa desconfiança: “Tá bizarro. Claro que o crescimento, a popularização, isso tudo é bom, mas existem poréns. Todo mundo, agora, quer ter um sound system, mas ser DJ, seletor, não é apenas colocar o vinil pra rodar; há um conceito por trás, e, para atingir este nível, exige estudo e dedicação”, sentencia Yellow.

Do outro lado do atlântico

Em 2005, Yellow-P já fazia sucesso tocando dub em São Paulo, mas foi na cidade portuária de Santos que um grupo de skinheads – adeptos da tradicional cultura nascida no fim dos anos 60, mescla da troca entre jovens ingleses e imigrantes jamaicanos, que nada tem a ver com a cena neonazista inventada a partir da década de 80 –, inaugurava uma nova fase na cena sound system regional. Nada de dub ou reggae dos anos 70: o que fazia a cabeça dessa rapaziada eram os antigos sons da ilha, chamados de “oldies”, a música jamaicana produzida até 1969. Ou seja, o ska, o rocksteady e o early reggae. “Entrei em contato com a cultura sound system através das subculturas skinhead e punk. Já frequentávamos festas de reggae em São Paulo, mas nada do que a gente gostava era tocado. A gente curtia as músicas dos anos 60 e foi por isso que as coisas começaram a acontecer”, conta o DJ e produtor musical Felix Barreira, um dos fundadores do que viria a ser o coletivo Reggay 420, um dos mais atuantes do sound system paulista na atualidade.

O Gordão, como é conhecido, fala pausadamente e quase que de maneira enciclopédica. Lembra-se da primeira festa, a Bomboclat, ocorrida no clube Atlético, no canal 3. Um ônibus inteiro de skinheads paulistanos descendo a serra, sentido à Baixada Santista, para curtir a velharia jamaicana, que, naquele momento, ainda era tocada em stereos domiciliares e através de CDs. As informações e os vinis foram chegando aos poucos, as festas cresceram, o reconhecimento do público, também. Ele, que é designer, mas segue na luta tentando viver dos eventos e de música, chegou a ser colunista da revista Sexy por sua pesquisa em relação aos ritmos jamaicanos.

Convidado para tocar fora do país, mostrou a força do sound system brasileiro nos vizinhos Argentina, Paraguai, Colômbia, e também na Europa, quando esteve na Espanha e na Holanda. Deve tudo o que tem conquistado à música jamaicana, que considera como a sua escola. O sucesso e os frutos colhidos, no entanto, não chegam nem aos pés do que lhe aconteceu em 2010, quando atravessou o atlântico para materializar algo experimentado só nos mais loucos devaneios.

Com quase dois mil discos na coleção, decidiu ir buscar na fonte a matéria-prima de seu trabalho. Foi na Jamaica, em dez dias de viagem, acompanhado por outros parceiros de cena, que Felix conseguiu seus discos mais importantes e vivenciou situações impagáveis. Experimentou a sensação de estar perto de seus ídolos jamaicanos, de aprender com eles, e, sobretudo, entender que, por maior e mais significativo que seja o trabalho do seletor e DJ, nada pode superar o que os verdadeiros artistas fizeram, e o que a música jamaicana representa.

[citacao credito=”Felix Barreira” ]Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae[/citacao]

“Teve época de eu ser mais marrudo, entrar na dança, falar e me achar demais. Isso aconteceu, sim. Mas hoje, especialmente depois do rolê que fiz em 2010, só agradeço o reggae por ter entrado na minha vida. Foi uma felicidade conhecer tudo isso. Uma graça. Fizemos as primeiras festas, mas perto dos caras, do que eles construíram, a gente não é nada. Só devemos a eles. Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae. Os amigos que eu fiz, aqui e lá fora, são por causa da música. A cultura sound system, acima de tudo, é amizade e amor pelo som, não status”, confessa, com voz embargada, a lição aprendida.

Na capital Kingston, além de acrescentar algumas dezenas de discos ao seu repertório, Felix conheceu ícones como Derrick Harriot, Stranger Cole e King Stitt. Presenciou, inclusive, os caras na ativa, ali, na sua frente, soltando a voz. Visitou lojas e estúdios, a exemplo da mítica Randys, na North Parade 17, onde Peter Tosh gravou “Whistling Jane”, o Gaylads, “I Love The Reggay”, e onde muitos outros clássicos do early reggae foram registrados. Caminhou por ruas e lugares que até então conhecia somente através de canções.

Lá, notou logo que as principais raridades não se encontravam em lojas oficiais, mas na mão do cidadão corriqueiro. Muitas vezes são parentes que estão se desfazendo da coleção de um ente já falecido; uma viúva vendendo os discos de um marido ou um filho se livrando das velharias do pai. Eles descobrem, de boca em boca, que grupos de turistas estão à procura de discos antigos e vão até os hotéis com caixas de vinis. Sem cerimônia, batem à porta e os oferecem. Para eles, é apenas um disco senil de ska ou rocksteady. Para colecionadores, como o Gordão, a chance de adquirir uma joia rara, um tune para o baile. E foi numa visita assim, de um vendedor comum, que Felix fez valer a visita.

Felix Barreira. Crédito: Divulgação
Felix Barreira. Crédito: Divulgação

Era logo cedo quando um deles apareceu no hotel para oferecer sua mercadoria. E a rapaziada toda acordou para garimpar as preciosidades entre caixas e mais caixas. Menos Felix, que dormiu até mais tarde, e chegou atrasado ao leilão. “Fiquei até puto que os caras não me acordaram.” Esbaforido, foi metendo a mão no primeiro arquivo que viu e, no terceiro disco zapeado, encontrou uma raridade. “Tea House From Emperor Rosko”, do Dice The Boss, de selo amarelo, prensagem original de 1970, alcançava a bagatela de 300 libras esterlinas na internet e, ainda por cima, era a música que representava a Moonstompers Crew, a turma skinhead de Santos. Sem titubear, falou: “Eu quero esse”. “Não, não, eu disse para ninguém mexer nessa caixa”, retrucou o vendedor, visivelmente irritado. “Eu acabei de chegar, você não falou nada pra mim.” Argumentação vai, conversa vem, e o acordo foi selado.

Se a sorte bateu à porta de Felix, ela o brindou por mais de uma vez na mesma viagem. Voltando para o hotel depois de um dia de andanças, os brasileiros, por insistência de um deles e a despeito do cansaço que sentiam, resolveram entrar em uma praça onde parecia acontecer um show. Era O show. Ainda que apenas poucas pessoas o assistissem. Ali, viram monstros da música jamaicana, ao vivo e de graça: Ken Boothe, U-Roy e Dennis Alcapone, este último após oito anos sem se apresentar em sua própria terra natal. “A gente parecia louco, os dez brasileiros mais animados que todo mundo. A gente tava tipo chorando. Os caras olhavam aquilo como um evento na praça, não era uma virada cultural ou algo do tipo, era um show na praça. E foi uma coincidência termos entrado ali”, conta, surpreso como no dia.

Conseguiu, inclusive, tomar umas cervejas com os ídolos – para falar de música, das origens da cultura, trocar experiências e até ser agradecido por um gesto de solidariedade. Enquanto bebia com Stranger Cole, Felix deu um trocado para uma moça, uma pedinte de rua que o abordou de repente. “Não foi muito que eu dei, talvez alguns poucos centavos de dólares.” Mas a ocasião tornou-se especial segundos mais tarde. “O Stranger me pegou pelo braço e disse: ‘Isso o que você fez é lindo, filho, e Deus vai te dar em dobro’. Porra, eu fico arrepiado até de contar.” A cena de humildade lhe arrebatou. Felix teve a plena consciência da dádiva de estar ali. Compreender que os caras são os protagonistas da história e o resto, apenas meros expectadores. Sem eles, nada haveria. Ainda bem.

A novidade de meio século atrás

Ao mesmo tempo em que a internet auxiliou na difusão dos ritmos jamaicanos em São Paulo, impulsionando o colecionismo e habilitando novos ouvintes, houve um período em que o Youtube, e suas sugestões de artistas similares, não reinava soberano. A música por streaming ainda estava a galáxias de distância do panorama atual e o garimpo musical era feito através de programas pouco intuitivos, como o Soulseek, e divulgado por canais hoje tidos como obsoletos. Quem não se lembra das comunidades do Orkut e os infindáveis blogs repletos de mp3 à disposição? A época de ouro dos Ipods Classic e da máxima “quanto mais espaço, melhor”. Foi justamente nesse contexto, da era arqueozóica da digitalização musical, no qual veio à luz uma das mais importantes contribuições da internet para a cena sound system e a música jamaicana em geral: o blog You And Me On A Jamboree.

No ar desde o dia 31 de março de 2006, o blog surgiu da interação entre alguns usuários da comunidade “Skinhead Reggae”, até então a mais efervescente do gênero no Orkut, e não demorou muito para que se tornasse referencial da música caribenha na rede. Aqui e lá fora. Todos os dias por volta de 40 e 50 mil visitantes, metade eram brasileiros e a outra metade formada por estrangeiros – principalmente vizinhos latinoamericanos –, baixavam freneticamente as coletâneas compartilhadas em mp3 e liam as resenhas que contavam um pouco sobre a história das canções, dos ritmos e da cultura sound system.

“Até o surgimento da comunidade ‘Skinhead Reggae’ do Orkut, o público era disperso. Existia quem gostasse de música jamaicana, os ‘oldies’, ska e rocksteady, por exemplo, mas essas pessoas não se conheciam. Eu mesmo passei muito tempo isolado, e minha vontade era interagir mais, conhecer gente, falar sobre o assunto. Foram anos reprimidos”, conta o jornalista Greg Fernandes, 28 anos, um dos primeiros colaboradores do You And Me, como era carinhosamente chamado o blog. Sobre o início, ele recorda: “Lembro quando o Sono, ele fez o blog, postou a página na comunidade. O primeiro post se chamava ‘Skinhead Generation’ e tinha uma coletânea para baixar. Eu achei sensacional e mandei uma mensagem para ele, dando sugestões de conteúdo, porque eu queria participar. De tanto que eu enchi o saco, virei colaborador, no segundo dia de existência do blog”, gargalha.

A diligência foi tanta que resultou em sucesso. Com a disponibilização das músicas para download – agora era possível escutar o que antes apenas se lia sobre – e a organização e concentração da informação em somente um único espaço, sedimentou-se um nicho de público voltado, exclusivamente, para os “oldies”. E foram necessários 21 meses para que o You And Me extrapolasse os limites virtuais da internet e se convertesse em festa.

“A galera começou a se questionar por que não havia festas de som jamaicano dos anos 60 em São Paulo e os pedidos para fazermos uma viraram constantes”, relata Greg. Os primeiros encontros ainda eram rústicos, sem vinis, e tinham a finalidade de divulgar o som, ocupar a lacuna de carência entre os assíduos visitantes do blog e o mundo real. Até que o Alex Jurássico, da Jurassic Sound System, entrou em cena. “Eu e o Sono fomos a um baile em Osasco, em 2007, e lá conhecemos um seletor, com vários discos que curtíamos no case, no meio daquele monte de dub e roots. Convidamos ele, que já conhecia o blog, para fazer uma festa só de ‘oldies’, ele topou na hora. Aprendemos muito com ele, e aí entramos de cabeça no lance de comprar discos, de se aprimorar.” A eles somaram-se Luiz e Neggo. A trupe estava completa.

Pouco mais de dois anos depois das primeiras postagens, um convite vindo da MTV levaria o blog a se hospedar no site da emissora e ingressar na onda dos podcasts. “A MTV, no fim das contas, culminou mais em desaprovação do que resultado. Uma galera, que também havia conhecido a música jamaicana recentemente, começou a nos criticar, porque existe um orgulho de o negócio ser alternativo. Mas, pra mim, sempre vai ser um nicho. Se é moda, para alguém, vai durar um ano. Se alguém se identificar com a coisa, mesmo que sejam 10 pessoas entre 100, é o mais importante”, salienta.

“Para nós, da Jamboree, nunca foi trampo. Eu sempre tive meu trabalho, os caras também. Achar que as festas dão lucro é ingenuidade. Nessa época, comprávamos tunes, como ‘This Life Makes Me Wonder’, do Delroy Wilson, por dois mil reais. A festa apenas sustenta o hobby”, conclui Greg, sem antes acrescentar o significado de todo essa devoção: “Meu sonho sempre foi divulgar ao máximo a música jamaicana. Que todo mundo saiba, pelo menos, o que é rocksteady, o que é ska. Não precisam virar fãs. O mais importante, para mim, é que a música seja conhecida”.

Com o surgimento dos novos modos de se consumir música, o blog, que sofreu o primeiro baque em 2011, depois de seu conteúdo ser apagado da rede por completo, definhou. Já os bailes, não. Após mais dois anos sem atividades e para comemorar o aniversário de oito anos da primeira festa, a You And Me terá uma edição especial, em dezembro. Uma nova oportunidade para que Greg transforme seus anseios em realidade.

Lugar dela é na vitrola

Na cena reggae, como em todos os outros segmentos sociais, não é diferente: as mulheres ainda lutam para ter voz. Elas colam aos grupos nos bailes, dão coro à cultura e, da mesma forma que eles, ajudam a construir a cena. Mas admitir o protagonismo delas, ah, isso é outra coisa. Quando o assunto, por exemplo, é comandar as vitrolas, é inegável perceber que elas não são tantas.

Renata Aguiar Fernandes, 32 anos, é uma das representantes de um movimento em ascensão. Chef de cozinha em um restaurante em São Paulo, ela se desdobra para dar conta de uma rotina atarefada, que, além da gastronomia, envolve criar um filho. Ela é DJ e seletora de música jamaicana, considerada a primeira entre as mulheres paulistanas. Seu som é o dancehall, um ritmo dançante e acelerado, o mais popular entre os jovens da ilha. E o gênero, controverso mesmo lá – existem acusações de homofobia nas letras –, se confunde com o pseudônimo Rude Sistah, adotado por ela em 2008, quando começou a colecionar seus primeiros exemplares.

Renata. Crédito: Divulgação
Renata Aguiar. Crédito: Groovin Mood/Divulgação

Atualmente, ela comanda as picapes de uma das festas mais cultuadas da cidade, Dance Hall Fever, que rola uma vez por mês em uma casa do Centro. O sucesso de suas seleções é inquestionável, mas ainda assim alguns pontos a incomodam. Numa conversa por telefone, ela me explicou, laconicamente, o motivo de não haver tantas garotas discotecando: “Tem muito cara machista na cena.” Contou que, apesar de ter mais amigos homens que mulheres, poucos foram os que lhe deram uma oportunidade. Ainda hoje, escuta que não sabe tocar, e sente seu trampo ser menosprezado. Chegou a ser convidada para se apresentar em um baile e, na hora de acertar o cachê pela noite, veio à tona a frustração. Só os DJs homens foram pagos. Ela, a única mulher, foi ignorada.

“Não é só colocar disco para tocar, eu pesquiso, estudo, crio meu conceito. Cheguei a ouvir que estavam me fazendo um favor, e eu cobrei a pessoa, que no fim acabou me pagando”, disse. Ter de chegar a este limite é péssimo, mas nem de longe isso a desanima. “Dá mais força para continuar. Você não tem ideia o tanto de mensagens que eu recebo no Facebook, de mulheres e de homens. Me elogiam na cena, que eu sou guerreira, mãe, mulher, DJ. Tiram dúvidas sobre como começar a coleção. Para mim, esse reconhecimento vale muito”, confessou, antes de lembrar um causo recente, enquanto ria: “Fui tocar em Brasília faz uns 3 meses. No aeroporto, do nada, uma mina me gritou: ‘Hey, Rude Sistah!’. Eu nem sabia quem era. Mas eu curto muito isso, troco ideia com todo mundo, sou povão”.

Questionei também Andrea Soriano, 29 anos, seletora e DJ brasiliense radicada em São Paulo, sobre a força das mulheres dentro da cultura sound system. Atenta, ela, que é da safra influenciada pelo trabalho seminal da Rude Sistah, desabafou: “O machismo existe no rolê e no mundo. Cada dia mais temos sentido nossa força e temos batalhado pelo nosso espaço. Muitas seletoras estão produzindo suas próprias festas e eventos, com isso estamos fomentando uma cena mais feminina e incentivando as próximas gerações, abrindo caminhos.”

Pensando na abertura de caminhos citada por ela, me vi sentado na fila do serviço militar, com o offbeat invadindo meus fones de ouvido e revolucionando minha breve vida de 18 anos. Depois de uma década, tudo já se modificou ao redor, até que rápido demais. O gosto pela música jamaicana continua. O resto é questão de fase.