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A garota de lugar nenhum

A epopeia não concluída de Maha Jean Mamo, uma apátrida no Brasil

Sentada à minha frente, comendo um petit gateau, Maha Jean Mamo falava, na tarde de uma sexta-feira de setembro, sobre o pesadelo burocrático de sua vida. Sobre como não teve nenhum tipo de documento até os 26 anos, sobre o que teve de fazer para existir e encontrar soluções que seus pais, advogados, diplomatas e ministros achavam impossíveis. Sobre como tinha abandonado toda sua vida no Líbano e vindo para o Brasil sem falar uma palavra em português. Sobre como esse país tinha dado a ela tanta felicidade e tristeza em uma proporção para a qual não há cálculo possível. Sobre como, em resumo, foi sua vida de apátrida.

“Eu tinha oito anos quando comecei a perceber. Participava de corridas na escola, ganhava, mas não podia participar das competições de fora. Era escoteira desde pequena e, quando eu tinha 15 anos, nosso grupo todo foi pra Jordânia. Eu não pude ir. Era um choque atrás do outro”, me disse Maha em uma sorveteria no centro de Ibitinga, município de 50 mil habitantes no noroeste paulista.

Um apátrida é alguém que não tem nenhum tipo de vinculação a uma nacionalidade, nenhuma prova de reconhecimento oficial pelo Estado. O que aconteceu com Maha tem origem na interferência da religião com a lei. O pai é cristão e a mãe, muçulmana. Ambos nasceram e se conheceram na Síria, onde o casamento inter-religioso é proibido. Para ficarem juntos, a única solução deles foi abandonar a cidade em que moravam, a hoje devastada Aleppo, e casar em uma igreja em Beirute em 1984.

Assim, Maha e os irmãos não podiam ser libaneses, pois o pai era sírio, e também não podiam ser sírios, pois o casamento não era reconhecido pelo Estado, muito menos os filhos daquela união proibida. Foram frutos da paixão romântica com o amor impossível — tinha tudo para dar errado.

Por não existir legalmente, a vida dela e dos irmãos foi complicada em cada episódio que envolvia um documento. Estudou de favor em uma escola armênia, precisou de uma autorização especial do governo para prestar o equivalente libanês do Enem e só conseguiu entrar em uma faculdade por insistência e sorte. “Depois da escola, minha irmã mais velha quis ir pra faculdade, mas não foi aceita. Quando isso aconteceu, meu irmão abandonou os estudos.”

Ela decidiu tentar. Fez uma lista com mais de 40 possíveis universidades, entre públicas e privadas, e conta que tinha nota para entrar em todas. “Eu queria fazer medicina. Chegava nos locais e dizia: ‘Quero estudar, mas não tenho documentos. Você me aceita?’. Na primeira a que eu fui, o cara jogou papéis na minha cara.” Todos respondiam a mesma coisa: não. Até que encontrou a AUL Arts & Science University, na qual o diretor era o próprio dono e por isso as irmãs puderam estudar. Cursou o equivalente a Sistemas de Informação e a irmã, Engenharia da Computação. Mais tarde, fez um MBA.

Trabalhou dentro da faculdade para poder abater os custos do curso e fazia uns bicos onde conseguia que aceitassem um trabalhador ilegal — se não tinha identidade, menos ainda carteira de trabalho. “Meu pai era tão ‘machisto’! Não queria que a gente trabalhasse, mas a gente precisava.” O pai, um motorista de caminhão, não tinha condições de bancar uma universidade privada. Era a única opção.

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Nacionalidade: Apátrida. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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É difícil saber como é não ter documentos. A maior parte das pessoas experimenta essa sensação por uma fração de tempo quando tem a carteira roubada. E mesmo assim a gente sabe que a prova oficial de quem somos está em algum lugar. No caso de Maha, essa sensação era permanente em um país onde conflitos externos e guerras civis foram constantes depois dos anos 1980. Se ela fosse parada em um checkpoint na cidade, não teria o que mostrar. Poderiam achar que fosse, talvez, uma terrorista e mandá-la para prisão. Uma emergência hospitalar também poderia ser um grande risco.

“Eu tenho uma alergia chamada urticária em um nível muito alto. Tinha uns 20 anos e nem sabia que tinha isso. Durante o casamento de um amigo, comecei a me coçar muito. Fui ao banheiro e não me reconheci no espelho. Me levaram desmaiada ao hospital, mas não queriam me atender. Meus amigos foram em peso, pois sabiam que podiam não me aceitar. Tiveram uma grande briga lá até que uma amiga pegou a identidade e disse: ‘O nome dela é esse. Vocês vão aceitá-la e nos dizer quanto custa que nós vamos pagar’.” Maha foi atendida.

Não sei qual a cara que fiz ao ouvir esse episódio, mas ela me disse: “Agora eu tenho seguro e remédios comigo. Não se preocupe”. E riu.

Naquele momento, ela tinha deixado a sobremesa de lado e eu tinha acabado um capuccino doce demais. O ambiente da sorveteria Slechi parecia colorido e descontraído demais em contraste com a história. Apesar de tudo, Maha é vivaz, enérgica, e narra a própria história sem autocomiseração e sem aquele artificialismo narrativo de uma palestra do TED. Ela se conecta rápido com as pessoas porque transmite sinceridade. Ri, gesticula, bate no gravador e mistura algumas palavras em português no meio do papo. Tem cabelos curtos, escuros, onde se percebe alguns fios brancos, e olhos bem grandes, cujas pálpebras se abrem com força e deixam à mostra a íris escura banhada por todos lados pelo branco do globo ocular. São olhos bem abertos, de quem viu pouco do mundo, mas tem gana de ver tudo o que for possível.

Ela esgotou as possibilidades para ganhar cidadania no Líbano: tentou fazer valer a lei que dá cidadania a quem mora há mais de 10 anos no país, mas a regra nunca funcionou. Tentou alegar que era órfã, ser adotada, adotar, casar. Nada funcionou.

Se no Líbano não era possível, o próximo passo era tentar pela Síria. Foi até a embaixada, contou o que estava acontecendo e conseguiu uma advogada. “Passava sempre pela conversão do meu pai.” Mas a guerra civil síria começou e a solução desapareceu. A própria advogada se tornou uma refugiada. Maha não desistiu. Estava decidida a entrar nesse mundo em que nós vivemos, de cartas de propaganda que chegam pelo correio com nosso nome impresso a carimbos de países exóticos no nosso passaporte.

“Busquei no Google todas as embaixadas que existiam em Beirute e fui disparando e-mails contando minha história”, disse fazendo uma vozinha irônica, como que lembrando da reprodução infinita do porquê ela não tinha nenhum documento. A lista de rejeições imediatas foi longa, com exceções. O Canadá a chamou, adorou seu perfil. Maha tinha um MBA e falava quatro idiomas: árabe, francês, inglês e armênio. “Disseram que meu perfil era ótimo, que me queriam no Canadá, mas me perguntaram como iriam colocar um visto no meu passaporte se eu não tinha um. Disse que meu maior problema era não ter um passaporte e que estava lá por isso.” Não adiantou.

A embaixada americana não a chamou, mas respondeu ao e-mail e definiu pela primeira vez para Maha qual era o seu problema: um caso de apatridia. Indicaram contatos na ONU, que também não puderam ajudar – “mas a menina que me entrevistou lá é minha amiga até hoje”. Ela também passou por uma entrevista de oito horas na embaixada da Suíça. Saiu chorando.

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Maha em sua casa, em Ibitinga, com recordações e foto de seu irmão. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Depois veio o México. E quase deu certo. Conseguiu um arranjo em que bastava a ela encontrar um trabalho e um lugar para morar para poder ir. “Encontrei um empresário libanês dono de uma cadeia de restaurantes cuja mulher também tinha sido escoteira. Ele conhecia pessoalmente o pessoal do consulado. ‘No Natal, você vai estar aqui’, ele me falou.” Era novembro de 2013 e Maha tinha alcançado a solução suprema: ela havia decifrado um problema impossível.

“Meus pais sempre foram contra minhas tentativas. Eu sempre dizia que iria viajar um dia e eles me mandavam parar de sonhar. Não queriam que eu me frustrasse. Mas quando chegou a hora de contar para minha família, meu pai se ofereceu para pagar minha passagem.” Ela contou a todos, mas… sempre tem um maldito mas. No final de 2013, algo mudou no México e Maha precisou esperar. Levaria mais tempo que o esperado, mas era certo que ela conseguiria. Então, ela relaxou.

Nesse meio tempo, Souad, a irmã mais velha, pediu o e-mail que Maha estava mandando para as embaixadas, mudou o nome e os dados e começou a disparar também. Era fevereiro de 2014, quando recebeu a ligação de um diplomata brasileiro pedindo documentos. Maha a ajudou e o inacreditável aconteceu. O Itamaraty foi eficiente: em duas semanas ligaram e pediram para Souad buscar o passaporte e o visto. Foi tão rápido que as irmãs achavam que se tratava de um esquema de prostituição internacional. “Quando ela pegou os documentos, liguei para ela e perguntei se era o nome dela com foto no passaporte. Ela disse que sim.”

Souad pegou o documento em uma quinta-feira, e seu voo foi marcado para segunda-feira. Maha correu para o Facebook e encontrou uma família brasileira que se dispôs a aceitar a irmã. A solidariedade falou mais alto, mas houve uma espécie de troca amena de medo e preconceitos: as libanesas achavam que entrariam para uma rede de prostituição no Brasil e os brasileiros temiam estar abrigando terroristas em casa.

No dia do embarque, mais um problema. “A polícia me parou. Faça alguma coisa”, dizia uma mensagem de Souad para Maha.

Era uma situação não prevista, mas que fazia sentido burocrático: como uma pessoa iria embarcar com um passaporte especial apenas com visto brasileiro, sem o registro de entrada no Líbano? A polícia federal libanesa acabou por liberar Souad, mas estabeleceu que, para sair, ela teria que pagar cinco mil dólares por cada um dos 28 anos que viveu ilegalmente no país. Agora, havia solução, mas não havia dinheiro.

Maha ativou sua rede de contatos e encontrou uma alternativa. Era ruim, mas era o que tinha. Conseguiram diminuir a multa, mas ficariam “black listed”. Ou seja: proibidas de voltar — para sempre. Depois de um mês, a irmã conseguiu embarcar. “Quando ela chegou no Brasil, meu pai me disse: ‘Esqueça o México, seus irmãos vão precisar de você lá’.” Ela aceitou.

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Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Foi no dia 19 de setembro de 2014 que Maha, com o irmão, recebeu pela primeira vez na vida um documento que dizia quem ela era. “Senti que existia, que tinha encontrado a ‘solution’, que iria viajar antes de morrer. Era fantástico! Uma nova vida, novos horizontes, novas oportunidades.” Ela não sabia nada sobre o país que a aceitara, exceto o clichê futebol, samba e a qualidade de nossos cirurgiões plásticos. Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte nem de Minas Gerais. Mas o Brasil é o Brasil. Eu sei, você sabe. Maha descobriria da pior maneira.

Sem falar uma palavra em português, quase sem dinheiro para se sustentar, os três irmãos passaram a viver juntos na casa da família Fagundes, uma família católica de classe média baixa. Márcio, o pai, deixou o segundo andar da casa para o trio estrangeiro. “Eles abriram a casa para nós, nos ajudaram muito”, me disse Maha. Ainda hoje Souad mora com eles.

Distribuíram folhetos, trabalharam em uma padaria, mas a barreira da língua se revelou grande demais para conseguirem um trabalho estável. “Eu tentei de tudo. Foi muito ruim. Sofremos muito e começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui.” Ela também se deparou pela primeira vez com moradores de rua, assaltos e assassinatos. Sua programação mental estava preparada para outro tipo de insegurança, o terrorismo, que era uma ameaça, mas não diária.

[olho]”Começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui”[/olho]

Nos primeiros sete meses, longe do Líbano, dos amigos, da família e do próprio idioma, ela penou. Maha começou a sair do casulo da proteção familiar quando recebeu a visita de sua melhor amiga, Nicole Khawand, uma das poucas pessoas que a apoiou nas tentativas de encontrar uma solução para sua não existência burocrática. “Viajamos juntas e tinha momentos em que precisava falar português, que era obrigada a me comunicar com as pessoas. Precisava parecer forte na frente dela.” O processo fez com que Maha retomasse a antiga confiança, perdida no choque inicial com o Brasil.

Mais confiante, Maha entrou em contato com a Acnur, agência de refugiados da ONU, para resolver o problema com o visto. Maha havia entrado no Brasil como apátrida, algo que a lei brasileira não está preparada para lidar. Na prática, significa renovar o visto de seis em seis meses. O objetivo era conseguir o estatus de refugiada, o que lhe permitia receber um visto de cinco anos e, mais tarde, obter um Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) — um número no sistema que permitiu a ela ter um passaporte brasileiro especial para estrangeiros, um documento que quase ninguém conhece.

Agora, ela era um combo quase único: apátrida e refugiada. Pela força de sua história e pela coragem de se expor, Maha foi convidada pela ONU para ser a embaixadora jovem do programa de apátridas chamado I Belong. Apesar dos novos documentos, ela seguiu vivendo em uma espécie de apartheid individual. Podia viajar pelo Brasil, mas precisava de uma autorização do ministério da Justiça para ir para o exterior e de uma carta do país que a receberia. Mesmo assim nenhum país da Europa aceita o passaporte que ela usa para viajar. Em uma viagem para a Turquia, o agente da imigração do aeroporto olhou o documento e disse: “É falso”. Só era diferente.

A maior parte dos seus documentos é diferente. Na rodoviária de Ibitinga, quando nos encontramos pela primeira vez, ela aproveitou para comprar uma passagem no ônibus da meia-noite para São Paulo. O funcionário no guichê de atendimento, Claudino, segundo o crachá, pediu o documento. Ela entregou um cartão de plástico, cor salmão, um pouco maior do que uma carteira de identidade. Claudino também parecia estar vendo pela primeira vez. Olhou de um lado, virou, olhou do outro, talvez tenha lido a palavra “apátrida”, mas não falou nada. Anotou os dados, devolveu o documento e imprimiu a passagem. Na entrada do ônibus, o processo foi parecido. Voltaríamos juntos na madrugada, acompanhados por Guilherme Roger Venâncio, um estudante de artes de 22 anos que se tornou amigo de Maha. No sábado pela manhã, os dois participariam de uma oficina na sede do Google. O ônibus estava quase cheio, mas ela pediu para sentar ao lado da janela. “Gosto de sentir que estou viajando.”

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O incomum passaporte brasileiro para estrangeiros e outros documentos de Maha. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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A vida de Maha é tão singular que ela conseguiu um emprego pelo site Catho. Desde fevereiro, ela se mudou para a fazenda onde funciona a Agro Betel, em Ibitinga. Com a vida nos eixos, ela estava em uma curva ascendente. Até que o Brasil mostrou os dentes. Na madrugada do dia 30 de junho deste ano, ela foi acordada por uma ligação: o irmão estava morto. “Eddie estava com a namorada no carro, quando pararam em um cruzamento perto de casa. Eles entregaram o carro e saíram, mas quando meu irmão falou, eles atiraram. Foi uma bala só. Pegou no coração. Ele foi morto por três adolescentes drogados. E por que são adolescentes não há justiça. Eu amo o Brasil, mas o Brasil pegou a melhor coisa da minha vida.” Seus olhos estavam marejados e foram tomados por uma rede crescente de capilares vermelhos. Paramos a entrevista.

O assassinato do irmão operou uma mudança em Maha. Antes, ela estava mais preocupada em conscientizar as pessoas para o problema dos apátridas. Agora, quer se tornar cidadã brasileira o mais rápido possível. Pelo ritmo normal, demoraria entre oito e 15 anos, o que ela não considera mais um opção. “Não quero mais estar numa prisão. Eddie morreu sem realizar os sonhos dele, sem ver meus pais novamente, sem ter uma família, sem poder viajar, sem ser livre. Eu preciso achar outra solução e pressionar para a criação de uma lei que permita aos apátridas receberem a nacionalidade.”

Maha pagou a conta na sorveteria. Mais tarde, acompanhados por Guilherme, fomos jantar na La Bella Pizzaria, um rodízio de pizza. Ela chamava os garçons de “habibi” – querido, em árabe – e ela não conseguia entender porque colocavam queijo na pizza de abacaxi. Acabou a refeição com uma fatia de chocolate branco.

Ficamos caminhando pela cidade, enquanto esperávamos pelo ônibus da meia-noite. Embarcamos, e cada um se sentou em uma fileira diferente. Maha foi direto para a janela sem ninguém ao lado dela. Cerca de 40 minutos depois, paramos em Araraquara onde mais pessoas subiram. Um rapaz de óculos parou ao lado dela. Não a cumprimentou e disse: “A janela é minha!”, com um tom de garoto mimado. Eu queria me levantar e dizer pra ele tudo o que ela já tinha passado para conseguir sentar naquela janela e poder gozar do prazer de viajar. Dos documentos, do irmão, da Síria, do Líbano. Mas não falei nada. Maha foi para o assento do corredor, mexeu um pouco no celular e depois dormiu até chegar em São Paulo. Ela só queria sentir que estava viajando.

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