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Que zona boa

Como a zona cerealista, em São Paulo, se transformou no paraíso dos ingredientes

São 10h30 de um sábado e já é impossível entrar no Armazém Santa Filomena, na zona cerealista, em São Paulo. O trecho entre a rua Santa Rosa e a avenida Mercúrio, a cinco minutos do Mercado Municipal, está praticamente intransitável. Há carros parados em fila dupla, manobristas instruindo motoristas a estacionar nas apertadas e raras vagas, famílias empurrando carrinhos de feira cheios de comida pela calçada, procurando espaço entre os vendedores de diferentes tipos de produtos, de ricota defumada a doces. Em duas horas, o movimento não diminui e as lojas continuam cheias. Ainda é impossível colocar o pé dentro do armazém, tamanho o número de pessoas apinhadas ali. De algum lugar não identificado na rua vem o alto som da música “Quem de Nós Dois”, de Ana Carolina, em uma versão em espanhol.

Sábado é o ponto alto do trânsito semanal de pessoas na zona cerealista, no Brás, no centro de São Paulo. Mas o movimento é constante: segunda o fluxo é maior entre quem compra no atacado — hotéis, restaurantes, outras lojas da cidade que abastecem suas prateleiras de castanhas, farinhas, frutas secas e grãos variados. Há também a reposição daquilo que se foi no sábado. Às terças e quartas as ruas são mais transitáveis e o público, menor. Na quinta já começa a preparação para o fim de semana. Sábado é o caos e domingo, a calmaria, quando a maior parte das lojas fecha. Mas mesmo nos dias que parecem tranquilos a zona cerealista não para. Para além da Santa Rosa há um mar de galpões, abastecidos constantemente por caminhões cheios de produtos desde a madrugada.

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Cebolas descarregadas de caminhão para depósito na zona cerealista. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Nas lojas da zona cerealista há uma variedade imensa de alimentos e bebidas. É possível encontrar vinhos, queijos, vários tipos de comida sem glúten ou lactose, ervas, chás, grãos e mil tipos de farinha (aparentemente é possível fazer farinha de maracujá). Para desbravar as lojas é melhor ir munido de uma lista de compras, porque as opções são muitas e o tempo geralmente é curto. Em boa parte das lojas você pega uma senha e espera para ser atendido. Você diz o que procura, fala a quantidade desejada, o vendedor embala o produto num saco, pesa e etiqueta. “Que mais?”, pergunta, e assim vai. É um pouco como ir ao Spoleto: fale agora o que quer ou cale-se para sempre.

Há também produtos industrializados ou já embalados, mas tem muita venda a granel e, nos dois casos, os preços são bem mais em conta. A goji berry seca, fruta rica em vitamina C e que virou moda poucos anos atrás, por exemplo, é vendida na Drogaria São Paulo a R$ 21,99 (100g). Na Bendito Grão, na rua Santa Rosa, o preço do quilo é R$ 69,90. No caixa da loja na Santa Rosa, a funcionária checa três vezes todos os itens da minha numerosa compra, apesar da imensa fila, para ter certeza de que o valor, de R$ 70, estava correto (“Muito alto. Você comprou algo super caro?”, ela pergunta).

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Azeites na Laticínios Camanducaia, na rua Santa Rosa. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

O bairro do Brás, onde se localiza a zona cerealista, se desenvolveu com a cultura do café. Os imigrantes que chegavam ao Brasil em Santos iam de trem até o Brás, de onde eram encaminhados para o interior de São Paulo para trabalhar nos cafezais. Alguns imigrantes, porém, principalmente italianos, optavam por ficar na cidade e se estabeleciam no bairro, montando fábricas e pequenas lojas. Segundo a Prefeitura, em 1886 o Brás tinha 6 mil habitantes e, sete anos depois, o número era cinco vezes maior.

“As produções eram escoadas para cá e daqui eram distribuídas: café, feijão, arroz, grãos diversos. Aí começaram a montar os armazéns aqui”, conta Bruno Lopes, do Laticínios Camanducaia, que está na zona cerealista desde 1952 — jovem e vestindo uma roupa despojada, trabalha há cinco anos na loja da família de sua mulher. “Os imigrantes que ficavam aqui precisavam fazer alguma coisa. Como era aqui o centro de São Paulo eles começaram a montar os comércios pra cá. A rua Santa Rosa começou com esses empórios, não tinha supermercados. Eles vendiam pra tudo quanto é tipo de cliente, mas principalmente abasteciam os pequenos comércios que iam surgindo nos bairros.”

Bruno diz que hoje o mercado na zona cerealista está em transformação. “Ainda tem parte de atacado — você abastece muita loja por aqui –, mas tem também lojas para um público que vem buscar produtos diferentes, por estilo de vida”, afirma, num galpão em que, numa sexta de manhã, dezenas de pessoas trabalham descarregando produtos de caminhões. “Ainda mais de uns dois anos pra cá, com a crise econômica, tem um público que vem atrás de preço, que migra do mercado e vem pra cá. Porque aqui é realmente muito mais em conta.”

José Bispo, da Casa Flora, presente há mais de 40 anos na Santa Rosa, concorda que a busca por produtos saudáveis fez o fluxo aumentar nos últimos anos — ele trabalha ali há 30. Preço e qualidade de vida — a zona cerealista é ótima para quem está naquela dieta ou tem curiosidade com os super ingredientes da moda — são os dois fatores que mais levam o público para lá.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Sobre os produtos que mais saem, Bruno faz uma lista eclética: tapioca, sal rosa, derivados de soja, leite, cacau, farinhas diversas, azeitonas, cereja para bolo. “Tem uma turma que vem atrás de proteína, sem gosto, whey, e compra cacau ou farinha de morango pra misturar e fazer shake”, diz. Também são muito procurados produtos que se acham em supermercados, mas mais baratos se comprados em grandes quantidades. Em vez de levar uma lata padrão de leite condensado, por exemplo, pode-se comprar logo um quilo, já que o preço compensa. O mesmo vale para macarrão, granola e molho de tomate, por exemplo. “Na nossa loja quase todo produto vende muito. Tem muito giro”, diz Bruno enquanto mais e mais caixas são carregadas para dentro do depósito da Camanducaia.

As lojas também precisam ficar atentas aos ingredientes do momento — como o hibisco e o sal rosa do Himalaia, presentes nas prateleiras de todas as lojas. O hibisco, por exemplo, potencializa a queima de calorias e combate o inchaço, enquanto o sal rosa tem menos sódio, um dos inimigos da vez. As lojas lá costumam ter painéis que informam as características de cada ingrediente e funcionários que sabem tirar dúvidas — e que, com sorte, te darão comida para experimentar.

De tempos em tempos, novos ingredientes ganham o cardápio de quem faz dieta ou quer levar uma vida mais saudável e a zona cerealista é o lugar ideal para quem busca reproduzir as receitas da Bela Gil. As lojas têm de ficar atentas às modas. “Quando o ‘Globo Repórter’ fala de uma castanha, por que comer, no sábado abarrota e o estoque vai embora. E hoje, com esses programas culinários em alta, na TV a cabo e o ‘Masterchef’, eles usam alguns produtos no preparo e reflete aqui também. Você vai na internet procurar onde achar cúrcuma e vai chegar na zona cerealista, vai acabar vindo pra cá”, diz Bruno, citando o ingrediente que Bela Gil usa como pasta de dente.

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Caixas de alho em depósito. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Boa parte dos produtos vendidos na rua Santa Rosa e na avenida Mercúrio, vitrines da região, vem do próprio bairro, de estabelecimentos que não vendem ao público. Saindo um pouco da região mais movimentada descobre-se outra faceta da zona cerealista, por onde praticamente só circula quem trabalha ali e onde as câmeras fotográficas do Risca Faca são observadas com curiosidade.

Portas abertas revelam grandes galpões abarrotados de sacos, do chão ao teto, enquanto caminhões bloqueiam completamente as ruas. Na sexta de manhã, um pequeno grupo de homens ensaca feijão em frente a um depósito. O feijão solto é colocado em sacos, costurados ali mesmo, e uma máquina os levanta para ajudar a colocá-los nas costas dos carregadores. “O feijão fica saindo o dia inteiro e vai abastecer o atacado. Você tem o cara do milho, o cara que torra o amendoim, faz paçoca, um monte de coisa. Batata ainda é muito forte aqui. Alho. Você cansa de contar as carretas de alho que chegam: alho argentino, importado da China, nacional. Tudo quanto é tipo de alho. E tudo isso acontece pra trás”, conta Bruno.

As calçadas são cheias de grãos e cascas de alho, que vendedores compram e descascam ali mesmo para vender no farol. É mais sujo que na Santa Rosa, onde a Prefeitura pressiona por mais limpeza. “A maioria dos nossos fornecedores está por aqui. Quando você não compra de fora tem tudo aqui, o próprio fornecedor está aqui, mas não tem loja”, diz Bruno. Entramos em um desses galpões e ele mostra os sacos de 25 quilos de hibisco empilhados. “Esse é um dos maiores fornecedores nossos, muita coisa que a gente pega vem daqui. Aí a gente porciona ou vende a granel. Esse saco rosa é de hibisco, muito bom. A gente compra feijão, milho, lentilha, grão de bico, ervilha, chia… Tudo. Acho que nossa lista de compras tem mais de cem itens daqui.” O saco rosa de hibisco que ele aponta é o melhor, em sua opinião. Em outros sacos pode-se encontrar bitucas de cigarro, penas de galinha, lascas de madeira.

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Vendedor de frutas numa esquina da rua Santa Rosa. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Mas há também coisa de fora, de vários cantos do mundo, na zona cerealista. É quase a regra na Casa Flora, onde o forte são as bebidas — a loja também é uma importadora, e por isso vende mais barato que supermercados, apesar de ter garrafas na casa dos 3 mil reais expostas. José Bispo lembra que nem sempre foi assim. A loja começou pequenininha, vendendo bacalhau, queijos e produtos enlatados. Bispo estava lá quando os primeiros vinhos começaram a chegar e fez curso para entender bem do produto — é comum que fregueses apareçam atrás de um vinho que tomaram na viagem e, caso eles não tenham aquela garrafa, lá eles sabem te indicar um produto que se aproxime.

Bispo, gerente que circula pela loja, conta que já conhece alguns clientes faz tempo e que é comum que fregueses novos venham se apresentar e peçam ajuda para conhecer a loja. Com prazer, ele mostra algumas de suas garrafas mais especiais, aquelas com rótulos mais bonitos (há uma coleção com o rosto de divas do cinema), com garrafas diferentes ou mais antigas (é comum que clientes peçam, por exemplo, um vinho do mesmo ano do nascimento de um conhecido).

Se a maioria das lojas da zona cerealista lembra armazéns do interior, a Casa Flora está mais para Empório Santa Luzia, o supermercado chique localizado nos Jardins. No meio de muitas lojas que vendem a mesma coisa, é importante se diferenciar. Ali os grãos, frutas e farinhas são vendidos em embalagens da Casa Flora e, além das bebidas, há uma boa variedade de queijos. Há produtos importados e nacionais, incluindo uma marca própria — o primeiro produto de lá foi o queijo Flora, produzido a partir de 1955 por Antônio Pereira Carvalhal, em Flora, distrito de Três Corações, em Minas Gerais. Basicamente, segundo Bispo, se o seu produto for bom as portas da Casa Flora estão abertas.

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José Bispo na Casa Flora. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Além das pessoas que se aglomeram na calçadas aos sábados tentando vender seus produtos na rua mesmo, há produtores batendo na porta das lojas direto querendo vender, com variados graus de qualidade. Queijos, por exemplo, devem respeitar algumas especificações para que possam ser vendidos. Produtos baratos demais também devem levantar suspeitas. O sal rosa, por exemplo, tem grandes variações de preço na própria zona cerealista. Se for muito barato, segundo Bruno, provavelmente o sal não será do Himalaia, e sim da Bolívia. “Você é obrigado a ter laudo de todo produto que você vende. Você pode pedir o laudo do hibisco. Tem que ter. Tem que ter uma garantia.”

Outra dica: ao comprar uva-passa, fique atento a grãos de açúcar ali. Se houver pontinhos brancos na fruta, é sinal de que ela recebeu um banho de groselha para ficar mais doce e com aparência mais fresca. Mas essas coisas só se aprende com a experiência. “Esse sal é bom, olhe a cor, bem rosa”, aponta Bruno numa loja concorrente. Além da Camanducaia, ele cita como lojas mais tradicionais a Casa Flora, o Empório Casmar, o Arroz Integral, o São Vito, o Filomena, o Empório Rosa — mas, basicamente, o ideal é ir ao bairro com calma e testar, se possível em dias de semana, dica unânime por ali. A cada visita é possível descobrir algo novo: diferentes tipos de lentilha, temperos, ervas, chás, grãos, e até cereal matinal de açaí ou bacon em flocos. Dá vontade de cozinhar mais.

No encontro entre a avenida Mercúrio e a Santa Rosa está sendo construído uma unidade do Sesc, que deve trazer ainda mais movimento no local — já há alguns eventos culturais no espaço. Entre os prédios baixos e mal conservados, começam a apontar também alguns edifícios altos e modernos residenciais, que parecem não pertencer ao bairro. Boa parte das lojas da zona cerealista fica no térreo de edifícios antigos, com salões pouco espaçosos nos quais é difícil circular — não é bem um local turístico, como o vizinho Mercadão. Os lojistas não ignoram o desconforto e alguns já expandiram os negócios para a internet — embora a maioria das lojas ainda não tenha aderido.

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Estoque de alho na zona cerealista. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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“A gente ainda não tem a parte de internet e está desenvolvendo esse meio de venda. É muito solicitado, mas como a gente vende muito a granel tem dificuldade com transporte e embalagem. A gente não encontrou um meio bom de fazer isso ainda. Tem muito produto de geladeira, precisa dar uma encaixada melhor nisso. Tem uma empresa já vendo isso pra gente, é um passo que a gente tem que dar”, diz Bruno, sobre a Camanducaia. Outras lojas, como a Empório Rosa e o Armazém Santa Filomena, já vendem pela internet — mas é uma minoria. No caso da Casa Flora, dá pra ver os produtos que eles têm, mas para comprar é preciso ir até o local.

De lá é possível ver o Mercadão, localizado do outro lado da avenida do Estado, primo rico da zona cerealista. O que se encontra na Santa Rosa também se acha lá, mas a preços mais turísticos. Sobre a zona cerealista, apesar do forte movimento aos sábados, sabe-se menos, vai-se menos a passeio e ainda há gente com um pé atrás. “Qual é o metrô mais próximo daqui?”, pergunta uma mulher com quatro sacolas pesadas, cheias de grãos, na porta da Casa Flora. Respondo que é o Pedro II, mas que não sei o melhor caminho. “Tudo bem, chegar lá eu sei. Só que tenho medo, dizem que aqui é perigoso, né?”, diz ela às 16h, com as ruas ainda bem cheias e iluminadas. Mas Bruno é otimista. Além do movimento crescente, diz que tem aumentado também o conhecimento sobre o local. “As pessoas não sabem tanto sobre a zona cerealista. Mas agora estão conhecendo.”

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